Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00177/08.7BECBR
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:06/28/2019
Tribunal:TAF de Coimbra
Relator:Ricardo de Oliveira e Sousa
Descritores:DIREITO DE PROPRIEDADE; IUS AEDIFICANDI; DEMOLIÇÃO; NULIDADE; PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES
Sumário:
I - O uso e fruição pelo respetivo titular do direito de propriedade não é livre e absoluto, antes se apresentando como juspublicisticamente enquadrado e condicionado.
II- Pelo que, regra geral, o ato de demolição de obras não licenciadas, regra geral, não afronta o direito de propriedade deste sobre o terreno em causa.
III- E dizemos regra geral, pois, na generalidade dos casos, o despacho que determina a demolição das obras não integra qualquer pronúncia atentatória do direito de propriedade dos pretensos infratores, apenas lhe vedando a possibilidade de erigir uma obra de construção civil, por razões de licenciamento.
IV- Mas nada disso aqui se passa, visto que um dos vetores sustentadores da demolição em causa é a concreta circunstância assumida pela Administração de que a parcela de terreno a demolir integrava o domínio público municipal, o que este Tribunal Superior, no acórdão tirado no processo nº. 178/05.5BECBR veio infirmar, claramente assumindo que o mesmo é propriedade do Recorrido.
V- Deste modo, é mandatório concluir que o Réu, ao determinar a demolição respetiva nos termos do esteio fáctico supra explicitado, atentou, ainda que indiretamente, contra o direito de propriedade previsto no artigo 62º da C.R.P, não podendo tal atuação ser acobertada pelos princípios de segurança jurídica e da confiança, da prossecução do interesse público e da proteção de direitos e interesses dos cidadãos.
VI- Tanto mais sabendo-se que são nulos os atos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental [cfr. 161.º do C.P.A., nº. 2, alínea d)], o que claramente se prefigura ocorrer no caso versado.
VII- O que serve para concluir pela improcedência do erro de julgamento de direito imputado à decisão recorrida. *
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:MUNICÍPIO DE C…
Recorrido 1:JFS
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:
Negar provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido da procedência do recurso
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

I – RELATÓRIO
MUNICÍPIO DE C…, vem intentar o presente RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra [doravante T.A.F. de Coimbra], de 13.02.2017, proferida no âmbito da Ação Administrativa Especial intentada por JFS, que julgou a mesma procedente, e, em consequência, declarou nulos os atos impugnados.
Em alegações, o Recorrente formula as conclusões que ora se reproduzem, que delimitam o objeto do recurso:
(…)
I- A sentença recorrida opera, ainda que implicitamente, uma revolução coperniciana quanto àquilo que doutrina e jurisprudência vêm, ao longo dos tempos, afirmando pacificamente, ou seja, que o ius aedificandi não se apresenta à luz do texto constitucional, em especial do artigo 62.° da CRP, como fazendo parte integrante do direito fundamental de propriedade privada, tratando-se, antes, de um direito de natureza jurídico-pública e não de faculdade ínsita no conteúdo prévio e substancial do direito de propriedade privada;
II- Ainda que se tenha chegado à conclusão de que as obras realizadas pelo Recorrido estão erigidas em propriedade deste, tal não conduz, automaticamente, com pretende o Tribunal a quo, à legalidade de tais obras.
III- Ao afirmar que essas obras foram construídas licitamente a sentença recorrida extravasa, manifestamente, aqueles que são os poderes judiciais, imiscuindo-se na esfera de poderes da Administração. Em bom rigor, por sentença licenciam-se as obras realizadas pelo Recorrido.
IV- Ainda que se considere que o direito de propriedade integra o poder de gozo sobre o bem objeto do direito, o certo é que o exercício desse poder não inclui o direito de construir aquilo que se quer, onde se quer e como se quer mas, apenas e tão só, a construir aquilo que as autoridades administrativas consentirem dentro das limitações e restrições assinaladas na legislação atinente;
V- Se o direito de edificação inexiste como elemento integrador do direito de propriedade também dele não faz parte o direito de manter o edificado nas condições em que o proprietário quiser e na forma que quiser visto que tais edificações têm de respeitar as exigências legais, desde logo as relacionadas com a sua segurança e salubridade.
VI- O Tribunal a quo, ao declarar a nulidade dos atos impugnados por alegada violação do artigo 62.° da CRP, faz errada interpretação e aplicação desse preceito, violando-o.
VII- Mais, ao considerar que as obras erigidas pelo Autor o foram de forma lícita, o Tribunal a quo viola o princípio da separação de poderes, uma vez que, por essa via, licencia obras que carecem de licenciamento municipal, nos termos que decorrem do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, o que extravasa largamente os poderes que lhe decorrem do artigo 3.° do CPTA.
Nestes termos,
Declarando procedente o presente recurso e revogando, em consequência, a sentença recorrida, farão V. Exas JUSTIÇA!
(…)”.
*
Notificado que foi para o efeito, o Recorrido apresentou contra-alegações, que concluiu da seguinte forma::
“(…)
1 - Cumpre desde logo referir que, da sentença do Tribunal “a quo” não decorre qualquer decisão condenatória que obrigue a Câmara Municipal a considerar que as obras foram construídas licitamente, o Tribunal “a quo” apenas cita uma afirmação dos Autores:" Como assim, os atos impugnados são nulos, pelo motivo de facto alegado pelo Autor - tratar-se de obras licitamente erigidas em terreno sua propriedade - mas por diverso motivo de direito - jura novit curia - (...) ”
2 - Pelo que, quem alega “tratar-se de obras licitamente erigidas em terreno sua propriedade” é o Autor, sendo que o Tribunal “a quo” apenas faz citação ao que foi dito pelo Autor.
3 - Referindo ainda que, a decisão do Tribunal “a quo” assenta em motivos diversos dos invocados pelo Autor/Recorrido, e consequentemente afasta afirmação que as obras foram construídas licitamente.
4 - A decisão do Tribunal “a quo” apenas refere que os atos são nulos “ por ofenderem, por esse erro nos pressupostos, o núcleo essencial de um direito fundamental do Autor (alínea d) dos mesmos número e artigo), a saber, o direito de propriedade.”
5 - Na verdade quem faz uma errada interpretação do artigo 62.° da CRP é o Recorrente, pois esquece-se que com base no princípio da legalidade e da proporcionalidade, o DIREITO DE PROPRIEDADE SÓ PODE SOFRER RESTRIÇÕES QUANDO O ATO ADMINISTRATIVO PREENCHA OS REQUISITOS LEGAIS PARA O RESTRINGIR!
6 - Assim, não é qualquer ato administrativo que pode restringir o Direito de Propriedade.
7 - O Direito de Propriedade só pode ser restringido, quando o ato que o restringe cumpre os requisitos de legalidade e proporcionalidade. O QUE NÃO ACONTECE NO CASO CONCRETO.
8 - De acordo com a Deliberação/Despacho do Presidente da Câmara de C… (ato administrativo) de 04/01/2008 (Ato administrativo que se realiza com aposição do concordo na informação proposta pelo Diretor do Departamento de Gestão Urbanística e Renovação urbana, cujo assunto é “ JFS - Urbanização S… - Obras de demolição”) : “Retomando a tramitação do processo e só agora possível por razões de deficiente arquivamento, refere-se o seguinte: Na sequência da deliberação camarária de 20/03/2006 foi dado cumprimento aos art°s 100.° e seguintes do CPA (Código do Procedimento Administrativo) Audição de Interessados (...) Assim, propõe-se: 1. A posse administrativa do imóvel ao abrigo do disposto no n.° 1 do art. 107° do RJUE, devendo notificar-se o interessado como previsto no n.° 2 do mesmo artigo e diploma legal. 2. A demolição dos muros de vedação e das ampliações efetuadas, repondo o projeto deferido por despacho de 19/9/1992 e telas finais deferidas por despacho de 22/7/1994, nos termos do n.° 4 do art.1 106.° do RJUE (Regime Jurídico de Urbanização e Edificação), a expensas do munícipe. Está fixado o prazo de 60 dias. (.)”(o despacho consta a folhas 130 e 148 do processo do Tribunal a quo)
9 - Da análise do despacho do Presidente da Câmara verifica-se que, o ato administrativo definitivo que ordena a demolição da obra assentou na deliberação camarária de 20/03/2006.
10 - Ora, consta da deliberação camarária de 20/03/2006 (ver fls. 131 e 132, 149 e 150 do processo do Tribunal a quo): (.) “ 4. Em resposta à exposição apresentada, foi comunicada ao munícipe, pelo ofício n.° 3606/2006, a ausência de enquadramento urbanístico e regulamentar para a legalização de quaisquer obras executadas sem licença de construção municipal fora dos limites do lote configurados à largura da moradia. (...) 7. Neste contexto e face à solicitação do munícipe, propõe-se : 7.1 Seja superiormente determinada a demolição das obras executadas sem licença de construção municipal fora dos limites do lote 171 do alvará de loteamento n.° 7, em S…, ao abrigo do art. 106°, n°4 do regime Jurídico da Urbanização e Edificação, promovendo-se nova audiência prévia com notificação pessoal (.) Para este assunto o Sr. Vereador João Rebelo emitiu o seguinte despacho: (…), podendo proceder-se nos termos propostos, ou seja, ser determinada a demolição das obras executadas sem licença, fora dos limites do lote 171. Posto isto, o Executivo deliberou: Deliberação n° 867/2006 (20/03/2006) " (sublinhado e negrito nosso)
11 - Da análise do ato administrativo que ordena a demolição verifica-se que, tanto a audiência de interessados, como todo o ato administrativo, tiveram como fundamento a realização de obras construídas fora dos limites do lote 171.
12 - Pelo que, o que esteve sempre no cerne do ato administrativo foi o facto de as obras terem sido realizadas fora dos limites do lote, ou seja construídas em domínio público.
13- Motivo pelo qual, o Autor viu-se obrigado a recorrer à via judicial, peticionando o reconhecimento da propriedade privada, e a nulidade dos atos administrativos com base na usurpação de poderes, por entender que era ao Tribunal que cabia o reconhecimento de domínio público e não à Câmara Municipal. E motivo pelo qual, o Recorrente no âmbito da ação administrativa especial apresentou Contestação peticionando, em suma que os atos já não eram inimpugnáveis, dada a sua vetustez e o facto de efetivamente se tratar de domínio público, desde logo por a área do lote, no alvará de loteamento como no registo predial, ser inferior à realmente ocupada e este confrontar com domínio público constituído mediante operação de loteamento, pelo que está fora de causa um vício de nulidade.
14- Ora, posto isto cumpre referir que todo o procedimento administrativo camarário foi realizado com fundamento em que as obras estavam fora dos limites do lote, pelo que nunca existiu um procedimento que averiguasse da possibilidade de legalização das obras em propriedade privada.
15- Assim, desencadeando-se um procedimento de legalização de edificação não licenciada, está o Presidente da Câmara vinculado a uma de duas soluções finais: ou a obra, após sofrer (ou não) modificações, fica conforme “às disposições legais e regulamentares que lhe são aplicáveis” (artigo 106°, n° 2 do RJEU), e é legalizada, ou não está em condições de preencher aqueles requisitos, e tem de ser demolida.
16- A verdade, é que no caso concreto NUNCA EXISTIU uma análise da viabilidade de licenciamento de obras realizadas sem licença em terreno privado!
17- Inexistindo uma análise da viabilidade de licenciamento de obras realizada em propriedade privada, a ordem de demolição NÃO PREENCHE OS REQUISITOS legais para RESTRINGIR O DIREITO DE PROPRIEDADE.
18- Pelo que, face a todo o exposto os atos administrativos padecem de nulidade por violação do direito de propriedade, na medida em que violam o princípio da legalidade e da proporcionalidade (constitucionalmente consagrado, artigo 18° da Constituição da República Portuguesa).
19- É de referir ainda que, em informações recentes prestadas pela Câmara Municipal a mesma terá informado o Recorrido, que o Plano Diretor Municipal (PDM) foi revisto, tendo a taxa de ocupação daquela zona aumentado, isto é subiu a capacidade de utilização do solo, o que passou a permitir uma construção por metro2 maior.
20- A Câmara Municipal informou ainda que, dadas as várias construções realizadas sem licenciamento naquela Urbanização, e uma vez que apenas foi ordenada a demolição das obras realizadas pelo Autor, por uma questão de igualdade entre Munícipes, a Câmara terá de proceder à legalização da Urbanização.
21- Nos termos do artigo 133.° n.° 2 alínea h) do CPA (antes da revisão de 2015) “ São, designadamente, atos nulos: h) Os atos que ofendam casos julgados.”
22- Ora, no caso concreto existe uma decisão, que fez caso julgado, onde a Câmara Municipal foi obrigada a reconhecer o Direito de Propriedade do Autor sobre o terreno onde foram construídas as obras. Ao mesmo tempo, existe na esfera jurídica do Autor/Recorrido um ato administrativo que ordena a demolição das obras com fundamento que, as obras executadas sem licença de construção municipal foram realizadas fora dos limites do lote 171 do alvará de loteamento n.° 7 (consta a fls. 131 e 132, 149 e 150 do processo do Tribunal a quo).
23- Pelo que, o ato administrativo que ordena a demolição viola o reconhecimento do direito de propriedade privada daquele terreno, pois a Câmara Municipal ordena a demolição de obra construída sem licença fora dos limites do lote, quando já reconheceu que a obra está construída dentro dos limites do lote.
24- Pelos mesmos motivos, pode falar-se ainda de nulidade dos atos administrativos, por serem designadamente nulos os “ Os atos cujo objeto seja impossível, ininteligível ou constitua crime.” (artigo 133.° n.° 2, alínea c) do CPA antes da revisão de 2015)
25- Destarte, ao ordenar a demolição das obras por se encontrarem fora do limite do lote, o ato administrativo de demolição de obra passa a ser juridicamente impossível, pois a Câmara Municipal já reconheceu que as obras foram construídas sem licença dentro do limite do lote.
26- Assim, o que existe é uma construção de obra sem licença dentro do limite do lote e não fora. Pelo que, não pode ser ordenada a demolição quando a fundamentação para a prática daquele ato já não existe.
Nestes termos e nos melhores que V. Exas. doutamente suprirão deve a douta sentença recorrida manter-se por os atos administrativos padecerem de nulidade por violação do direito de propriedade, por não preencherem os requisitos da legalidade e da proporcionalidade, por violaram o caso julgado e por a demolição ser presentemente um ato jurídico de impossível realização.
(…)”.
*
O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso, fixando os seus efeitos e o modo de subida, que não vincula este Tribunal Superior [cfr. artigo 641º, nº. 5 do CPC].
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O Ministério Público neste Tribunal emitiu parecer no sentido da procedência do presente recurso.
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Com dispensa de vistos prévios, cumpre, pois, apreciar e decidir, já que nada a tal obsta.
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II – DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A DECIDIR
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, de acordo com o disposto nos artigos 144.º n.º 2 e 146.º n.º 4 do C.P.T.A. e dos artigos 5.º, 608.º n.º 2, 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º do novo CPC ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA.
Neste pressuposto, as questões suscitadas pelo Recorrente consistem em saber se o Tribunal a quo, ao declarar a nulidade dos atos impugnados por alegada violação do artigo 62.° da CRP, faz errada interpretação e aplicação desse preceito, violando-o, bem como se, ao considerar que as obras erigidas pelo Recorrido o foram de forma lícita, o Tribunal a quo violou o princípio da separação de poderes.
Assim sendo, estas serão, por razões de precedência lógica, as questões a apreciar e decidir.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
III.1 – DE FACTO
Na decisão recorrida deram-se como provados os seguintes factos:
“(…)
1 O Autor é dono do prédio urbano designado Lote n.° 171, sito na Quinta V… - Urbanização S…, freguesia de S…, concelho de C…, a confrontar do Norte com arruamento, do sul e nascente com zona verde e do poente com lote 170, que se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o n.° 328/061189 da freguesia de S… e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o art. 1137 - cfr. doc. n.° 3.
10 O espaço em que se encontram implantados os muros e as construções qualificadas como garagem e telheiro pelo Réu, objeto das ordens de demolição e de posse administrativa consubstanciadas nos atos impugnados é parte integrante do sobredito prédio.
Cf. o acórdão do TCA Norte cuja certidão, com nota do trânsito em julgado, junta em 10/7/2014 aqui se dá como reproduzida.
11 Dá-se aqui por reproduzido o teor dos despachos e deliberações acima indicados, cujos termos constam, respetivamente, a fs. 132/133, 115-118, 111, 107, 22 e 11 do P.A.
(…)”
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III.2 - DO DIREITO
O Recorrido pediu ao tribunal a quo a declaração de nulidade (i) dos despachos do Vereador do Pelouro das Obras de Câmara Municipal de C… datados de 20.03.1995, 05.01.1996 e 24.07.1996; (ii) dos despachos do Presidente da Câmara Municipal de C… datados de 29.07.2004 e 4.01.2008; (iii) e da deliberação da Câmara Municipal de C… nº. 5963/97, datada de 24.02.1997, que determinaram a demolição, a reposição do terreno ao seu estado anterior e a posse dos solos em causa dos muros e dos garagem e telheiro que construiu no Lote 171 - Quinta V… - Urbanização S….
O T.A.F. de Coimbra julgou esta ação procedente, e, consequentemente, declarou nulos os atos impugnados.
Fê-lo com a seguinte fundamentação jurídica:
“(…)
Como se disse, o Autor limita a sua arguição de jure à usurpação de poder, fautora de nulidade. Parte, para tanto, dos pressupostos de que o fundamento dos atos impugnados consistia no juízo de que os solos em causa eram domínio público municipal e não propriedade do Autor e de que integraria aquele vício um ato administrativo esteado em tal fundamento, por o juízo sobre esta questão competir após tribunais.
Efetivamente, compulsados os atos impugnados, quer dizer, não só os seus dispositivos mas também as informações e propostas por eles homologadas, conclui-se que, ao invés do que de barato dá o MP, o motivo último por que os atos foram praticados consistia em entenderem os seus emissores que a parcela de terreno onde estavam implantadas as obras a demolir não integrava o prédio do Autor mas sim o domínio público municipal, isto é, por as obras estariam implantados fora do prédio é que os muros, garagem e telheiro estavam desconformes com o projeto. Deste modo, a desconformidade com o projeto pedia um princípio, a saber, a dominialidade pública do terreno de implantação, essa sim, fundamento das decisões impugnadas.
Porém, não acolhe o tribunal o pressuposto de que consista em usurpação de poder a prática de um ato com erro nos pressupostos quanto ao domínio público ou a propriedade privada de uma parcela de terreno. Com efeito, ao fundar a prática de um ato administrativo no entendimento de que determinada parcela de terreno integra o domínio público municipal, o Município não está arrogar-se poderes judiciais, mas apenas a fundamentar um ato meramente administrativo, impugnável judicialmente como qualquer outro.
Aliás, os atos impugnados são iminentemente administrativos, mesmo que o critério de distinção seja outrossim o enunciado pelo MP no seu Parecer:
“Há ato jurisdicional quando a sua prática se destina a realizar o próprio interesse público da composição de conflitos de interesses, no desenvolvimento de uma atividade tendo como fim específico a realização do direito e da justiça; há ato administrativo quando a composição de interesses em causa tem em vista a prossecução de qualquer outro dos interesses públicos que ao Estado incumbe realizar, representando aquela composição um simples meio ou instrumento para a realização desse outro interesse (cf. M Esteves de Oliveira - Direito Administrativo, I, pág. 28 e ac. do STA de 18-12-91 - Rec. 18882)”.
Portanto improcede a alegação de nulidade por desvio de poder, apesar de se ter provado que o terreno de implantação das obras ordenadas demolir era efetivamente propriedade do Autor e integrante do lote 171.
Dir-se-á, então:
Se assim é os atos impugnados eram meramente anuláveis, por erro nos pressupostos, pelo que já se consolidaram na ordem jurídica; e assim a ação terá que improceder, apesar de o Réu já ter sido convencido, em caso julgado, de que os muros, a garagem e o telheiro demolendos foram, afinal, erigidos em terreno particular do Autor.
Não vemos que assim seja.
De facto, a pretender ordenar a demolição ou demolir a expensas do Autor o que se veio as saber estar construído, licitamente, em terreno propriedade do Autor, os atos impugnados implicavam, sabemo-lo hoje, uma lesão do núcleo essencial de um direito fundamental de natureza análoga à dos direitos liberdades e garantias enunciados no título II do capítulo I da parte I da Constituição, a saber, o direito de propriedade, consagrado, embora, no artigo 62° n° 1 da mesma Constituição.
Como assim, os atos impugnado são nulos, pelo motivo de facto alegado pelo Autor - tratar-se de obras licitamente erigidas em terreno sua propriedade - mas por diverso motivo de direito - jura novit curia - ou seja, não porque, devido a esse falso pressuposto, redundassem em usurpação de poder (alínea a) do n° 2 do artigo 133° do CPA aplicável) mas antes por ofenderem, por esse erro nos pressupostos, o núcleo essencial de um direito fundamental do Autor (alínea d) dos mesmos número e artigo), a saber, o direito de propriedade.
Assim sendo, a ação procede. (…)”.
Recapitulando o que ficou transcrito, temos que o Tribunal a quo, pese embora tenha concluído no sentido da inexistência do vício de usurpação de poderes, decidiu que os atos impugnados eram nulos, por violação do direito de propriedade, dado ter-se adquirido processualmente que o terreno de implantação das obras ordenadas demolir era propriedade do Autor e integrante do lote 171, e não domínio público municipal.
Do assim decidido discorda o Recorrente, que lhe imputa erro de julgamento de direito, por violação do artigo 62º da CRP e do princípio da separação de poderes.
Efetivamente, o Recorrente perfilha o entendimento que a sentença recorrida opera, ainda que implicitamente, uma revolução coperniciana quanto àquilo que doutrina e jurisprudência vêm, ao longo dos tempos, afirmando pacificamente, ou seja, que o ius aedificandi não se apresenta à luz do texto constitucional, em especial do artigo 62.° da CRP, como fazendo parte integrante do direito fundamental de propriedade privada, tratando-se, antes, de um direito de natureza jurídico-pública e não de faculdade ínsita no conteúdo prévio e substancial do direito de propriedade privada, mais defendendo que o Tribunal a quo, ao considerar como devidamente licenciadas obras que carecem de efetivo licenciamento municipal, violou o princípio de separação de poderes.
Vejamos, sublinhando, desde já, que, examinando o teor do dispositivo fixado na sentença recorrida, não se descortina qualquer imposição jurisdicional expressa no sentido de considerarem como devidamente licenciadas as obras levadas a cabo pelo Recorrido.
Efetivamente, o Tribunal a quo apenas declarou a nulidade dos atos impugnados, nada mais determinando, ademais e especialmente, em matéria de obrigação camarária de se considerarem tais obras como devidamente licenciadas.
É certo que, na fundamentação de direito, vem referido “(…) tratar-se de obras licitamente erigidas em terreno sua propriedade (…) ”.
Todavia, esta alegação tem que ser contextualizada no âmbito da premissa fáctica que ancorou a procedência da presente ação, como seja, o “falso pressuposto” assumido pela Administração de que se tratavam de obras realizadas em domínio público municipal, e não em terreno próprio do Recorrido, o que desembocou na prolação por parte da Administração dos atos impugnados nos autos, agora sujeitos a controle jurisdicional.
De facto, não se trata aqui da assunção jurisdicional da conformidade das obras levadas a cabo com o procedimento legal de licenciamento municipal, que justificaria a eventual atribuição de licença camarária por parte da Administração [e não pelo Tribunal, sob pena de violação do princípio de separação de poderes], mas antes, e tão só, da enfatização que as obras foram licitamente realizadas no local em questão, no exclusivo sentido do mesmo integrar a propriedade privada do Recorrido e não o domínio público municipal.
Daí que, verdadeiramente, nem se possa falar em qualquer violação do violação do princípio de separação de poderes, situação que tem um verdadeiro efeito de implosão em relação à tese dos Recorrentes no tocante à existência de erro de julgamento no domínio em análise.
Resta-nos, pois, a questão de saber se a sentença recorrida violou, efetivamente, o artigo 62º da CRP nos termos e com o alcance supra expostos.
Neste particular, cabe referir que tem constituído entendimento jurisprudencial constante o de que o "jus aedificandi" não se apresenta à luz do texto constitucional, em especial do artº 62º, como fazendo parte integrante do direito fundamental de propriedade privada.
Neste sentido, ver, de entre outros, os seguintes arestos:
- do Supremo Tribunal Administrativo, de 10.10.2002, tirado no processo nº. 0912/02, em que se parcialmente sumariou:
“(…)
I - É legalmente impossível a "revalidação" de um alvará de loteamento já caducado.
II - O "jus aedificandi" não se apresenta à luz do texto constitucional, em especial do artº 62º, como fazendo parte integrante do direito fundamental de propriedade privada.
III - A faculdade de construir é de configurar como mera concessão jurídico-pública resultante, regra geral, dos planos urbanísticos.
IV - Trata-se, assim de um direito de natureza jurídico-pública, não se consubstanciando em faculdade, ínsita no conteúdo prévio e substancial do direito de propriedade privada.
(…)”
- do Supremo Tribunal Administrativo, de 15.01.2003, tirado no processo nº. 302/02, em que parcialmente se sumariou:
“(…)
- O "ius aedificandi" não se inclui no direito de propriedade privada, sendo antes o resultado de uma atribuição juridico-pública decorrente do ordenamento jurídico-urbanístico, designadamente dos planos.
II - Assim, o indeferimento de um pedido de licenciamento de construção é insuscetível de violar o direito à propriedade privada, garantido no artº 62º da CRP.
(…)”
- do Supremo Tribunal Administrativo, de 31.03.2004, tirado no processo nº. 035338, em que, neste domínio, se sumariou:
“(…)
IV - No direito de propriedade consagrado constitucionalmente, não se tutela o ius aedificandi como elemento natural e natural daquele direito.
(…)”
- do Tribunal Central Administrativo Sul, de 30.11.2013, tirado no processo nº. 01495/06, em que parcialmente se sumariou:
“(…)
1. O direito à propriedade privada (artigo 62° nº 1 da Constituição) é um direito de natureza análoga aos direitos liberdade e garantias. Porém, o jus aedificandi (o direito de urbanizar, lotear e edificar) não decorre imediatamente daquele direito. O jus aedificandi é hoje um poder que acresce à esfera jurídica do proprietário, nos termos e nas condições definidas pelas normas jurídico-urbanísticas.
(…)”.
Como denota a jurisprudência ora espraiada, o uso e fruição pelo respetivo titular do direito de propriedade não é livre e absoluto, antes se apresentando como juspublicisticamente enquadrado e condicionado.
Pelo que a atuação da administração em matéria de conformação legal do direito a construir com estrita obediência ao princípio da legalidade [ v.g, a imposição de demolição de obra não licenciada], regra geral, não afronta o direito de propriedade garantido no art. 62º da Lei Fundamental.
E dizemos regra geral, pois, na generalidade dos casos, o despacho que determina a demolição das obras não integra qualquer pronúncia atentatória do direito de propriedade dos pretensos infratores, apenas lhe vedando a possibilidade de erigir uma obra de construção civil, por razões de licenciamento.
Mas nada disso aqui se passa, visto que, contrariamente ao defendido pelo Recorrente, um dos vetores sustentadores da demolição em causa é a concreta circunstância assumida pela Administração de que a parcela de terreno a demolir integrava o domínio público municipal, o que este Tribunal Superior, no acórdão tirado no processo nº. 178/05.5BECBR, e cuja cópia faz fls. 269 e seguintes dos autos [suporte físico] veio infirmar, claramente assumindo que o mesmo é propriedade do Recorrido.
Deste modo, é mandatório concluir que o Réu, ao determinar a demolição respetiva nos termos do esteio fáctico supra explicitado, atentou, ainda que indiretamente, contra o direito de propriedade previsto no artigo 62º da C.R.P, não podendo tal atuação ser acobertada pelos princípios de segurança jurídica e da confiança, da prossecução do interesse público e da proteção de direitos e interesses dos cidadãos.
Tanto mais sabendo-se que são nulos os atos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental [cfr. 161.º do C.P.A., nº. 2, alínea d)], o que claramente se prefigura ocorrer no caso versado.
Na verdade, não se antolham motivos que justifiquem a necessidade da acentuada restrição ao direito fundamental em causa, uma vez que, na prática, os atos impugnados, ao considerarem a parcela de terreno como sendo de domínio público municipal - quando já se sabe que assim não é -, impossibilitam de forma irremediavelmente a plena disponibilidade, gozo e fruição da propriedade no lote em questão, ademais e especialmente, em termos de futura construção, para além de impedirem de forma definitiva a regularização da situação relativa à construção ali pretensamente ilegalmente realizada, considerando a consumação da demolição decretada.
A ablação do conteúdo essencial deste direito fundamental, do modo como se descreve, é, portanto, de todo desrazoável, constituindo inclusive violação do princípio constitucional da proporcionalidade, consagrado no art.º 18.º, n.º 2 da CRP.
O que serve para concluir pela improcedência do erro de julgamento de direito imputado à decisão recorrida.
Concludentemente, deverá ser negado provimento ao presente recurso jurisdicional e mantida a decisão judicial recorrida.
Ao que se provirá em sede de dispositivo.
* * *
IV – DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Administrativa deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202º da CRP, em negar provimento ao recurso jurisdicional “sub judice” e manter a decisão judicial recorrida.
Custas pelo Recorrente.
Registe e Notifique-se.
Porto, 28 de junho de 2019
Ass. Ricardo de Oliveira e Sousa
Ass. Fernanda Brandão
Ass. Frederico de Frias Macedo Branco