Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00270/05.8BEMDL
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:03/13/2014
Tribunal:TAF de Mirandela
Relator:Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos
Descritores:IMPUGNAÇÃO JUDICIAL; IABA; PERDAS; CASO FORTUITO; NEGLIGÊNCIA GRAVE
Sumário:1. O artigo 41.º do C.I.E.C. exclui da tributação as perdas de produtos devidas a caso fortuito, quando não tenha havido negligência grave do operador e tenham sido comunicadas à estância aduaneira competente até ao segundo dia útil imediato ao da sua ocorrência.
2. As perdas de produto resultantes do desprendimento de um bocal da mangueira onde o mesmo circulava são compatíveis com um caso fortuito, se o desprendimento foi um facto imprevisível.
3. Deve ser considerado imprevisível o desprendimento de uma mangueira num circuito de trasfega em funcionamento normal, constante e automático há mais de 24 horas e sem nenhuma ocorrência, ainda que o bocal da mangueira que se desprendeu só tivesse uma abraçadeira metálica e houvesse outro bocal que não se desprendeu com duas abraçadeiras, porque deste facto não decorre que o desprendimento se ficou a dever a não terem sido acopladas duas abraçadeiras ao primeiro.
4. Constitui negligência grave o comportamento do operador que omitiu deveres de cuidado elementares e deixou de tomar precauções que, nas mesmas circunstâncias, se impunham a qualquer pessoa razoável.
5. Não viola deveres de cuidado elementares o operador que se deslocou três vezes ao local no segundo dia de uma operação de trasfega de 48 horas e que, até então, decorria sem incidentes, deixando-a depois em funcionamento automático entre as 17.30 horas desse dia e a manhã do dia seguinte.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:Ministério Público
Recorrido 1:Adega Cooperativa de F... e DGAIEC
Decisão:Negado provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

1. Relatório

1.1. O Ministério Público recorre da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga que julgou procedente a impugnação judicial da liquidação a posteriori de imposto sobre o álcool e sobre as bebidas alcoólicas (IABA), a que corresponde o registo de liquidação n.º 2005/9000686, de 2005-06-21, no montante total de € 143.797,50, efetuada pelo Diretor da Alfândega de Braga a Adega Cooperativa de F..., C.R.L., n.i.f. 5…, com sede em F..., 5070-265 F....

Recurso este que foi admitido com subida imediata nos próprios autos e com efeito suspensivo.

Notificado da sua admissão, o Recorrente apresentou as respetivas alegações e formulou as seguintes conclusões:

1 - A sentença recorrida omitiu, na factualidade provada, vários factos relevantes trazidos ao processo pela autora e não contestados nem contraditados pelas restantes provas;

2 - Pelo que a sua fundamentação infringiu o normativo contido no art.º 659, n.º 1, do C. de Processo Civil.

3 - Ademais, os elementos referidos e os próprios factos provados demonstram, ex abundanti, ter a recorrida actuado com grave negligência, o que obstava ao benefício da franquia;

4 - Anulando a liquidação, infringiu ainda a decisão em crise o disposto nos artigos 41 do CIEC e 99 do CPPT;

5 - Pelo que deve ser revogada e substituída por outra que reconheça nos factos provados os elementos supra referidos sob os números 1 a 4, e decrete a improcedência da acção, mantendo o acto tributário impugnado.

Porém, Vossas Excelências Venerados Desembargadores, uma vez mais, farão a melhor JUSTIÇA!

1.2. A Fazenda Pública não contra-alegou.

Remetidos os autos a este Tribunal, foram colhidos os vistos legais, pelo que cumpre agora decidir.

2. Do Objeto do Recurso

São questões a decidir a de saber se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento de facto ao não ter inserido determinados factos que se reputam relevantes para a justa composição do litígio, e a de saber se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento na aplicação do direito aos factos ao concluir que não houve negligência grave da parte da Recorrida no incidente que conduziu às perdas de produto sobre o qual incide imposto sobre o álcool e as bebidas alcoólicas.

3. Do Julgamento de Facto

3.1. Foi o seguinte o julgamento de facto em primeira instância: «Para apreciar e decidir a questão acima suscitada importa assentar a seguinte matéria de facto:

Factos provados:

1 - A ora impugnante é uma adega cooperativa do sector vitivinícola, que produz e comercializa vinhos elaborados a partir de uvas dos seus associados, nomeadamente “Moscatel de F...”, “F…” e outros vinhos com denominações de origem “Porto” e “Douro”.

2 - Nas suas instalações em F..., dispõe de pavilhões de engarrafamento e armazenagem de vinhos e de vasilhame exterior para armazenagem de vinho a granel, nomeadamente de balões e cubas em cimento e aço inoxidável.

3 - No dia 30 de Novembro de 2004, por determinação do enólogo responsável da Adega, Engº M…, teve início uma operação de tratamento enológico de 550.000 litros de vinho moscatel que se encontravam armazenados no balão de inox 6/25.

4 - A operação de tratamento referida em 3) consistiu na adição de sulfuroso (para correcção do teor de SO2) e na “remontagem” do vinho (para homogeneização da mistura), procedendo-se a uma trasfega em circuito fechado, fazendo circular o vinho, através de uma bomba, de um ponto na base do depósito para outro ponto na parte superior do mesmo.

5 - A operação em causa era necessária, uma vez que das análises efetuadas ao vinho, este revelava um baixo teor de sulfuroso, havendo o risco de potencial contaminação microbiótica com a consequente degradação da qualidade do mesmo.

6 - Previu-se que a operação teria uma duração de 48 horas.

7 - A mesma iniciou-se pelas 15 horas do dia 30 de Novembro, terça-feira, prevendo-se a sua conclusão para quinta-feira, 2 de Dezembro.

8 - Uma vez que o dia 1 de Dezembro é feriado, o encarregado do armazém, Sr. M..., ficou incumbido de ir acompanhando o desenrolar da operação.

9 - Este encarregado de armazém deslocou-se 3 vezes à adega no dia 01 de Dezembro, sendo que a última vez ocorreu pelas 17 horas.

10 - A esta hora a operação decorria em perfeitas condições.

11 - No dia 02 de Dezembro, por volta das 7.30 horas, ao chegar às instalações da Adega, o encarregado, M..., apercebeu-se de um intenso cheiro a vinho.

12 - E verificou que havia ocorrido o derrame de um volume considerável do vinho armazenado no citado balão de inox nº 6/25.

14 - De imediato, desligou a bomba e informou os responsáveis da Adega, designadamente o Engº F….

15 - Entre as 7.30h e as 9 horas existiam vestígios de um nível elevado de vinho.

16 - Este derrame foi comunicado à Delegação Aduaneira do Peso da Régua no dia 02/12.

17 - Em resultado desse derrame, perderam-se cerca de 275.000 litros de vinho moscatel dos 550.000 que se encontravam armazenados no balão 6/25.

18 - A liquidação ora impugnada foi efectuada tendo por base os 275.000 litros de vinho.

19 - Do vinho derramado não foi possível recolher parte alguma do mesmo.

20 - O terreno adjacente ao depósito em causa é acidentado.

21 - E é de acentuada inclinação.

22 - O que permite o fácil e rápido escoamento do líquido.

23 - Na altura ocorriam obras nas imediações, com valas de terras removidas a céu aberto.

24 - O vinho derramado escoou-se por essas valas.

25 - O derrame deveu-se ao desprendimento da mangueira no bocal de saída da bomba.

26 - Esta bomba existe na empresa há cerca de dois anos e encontra-se em bom estado.

27 - A operação de “remontagem” decorreu sem quaisquer problemas durante mais de 24 horas seguidas.

28 - Pela impugnante foram já realizadas operações idênticas nunca tendo ocorrido um problema idêntico.

29 - Na manhã do dia 02 de Dezembro chovia.

30 - Os dois funcionários da Alfândega chegaram às instalações da ora impugnante por volta das 15 horas e foram encaminhados para o escritório.

31 - Por volta das 15 horas existiam algumas poças com vinho localizadas junto do balão.

32 - A ora impugnante procedeu ao pagamento da dívida ora impugnada em 06.04.2006, cfr. fls. 104 a 106 destes autos.

Alicerçou-se a convicção do Tribunal na consideração da matéria de facto dada como assente, nos factos alegados e não impugnados, na análise dos documentos acima identificados e no depoimento das testemunhas que se revelou credível.

FACTOS NÃO PROVADOS:

Com relevância para a presente decisão, inexistem.».

3.2. Entre os fundamentos do recurso encontra-se o erro no julgamento de facto.

Considera o Recorrente que a Impugnante – ora Recorrida – trouxe aos autos alguns factos para a decisão e que o tribunal recorrido não relevou, seja para os dar como provados seja para os dar como não provados. A saber:

«1- Que o vinho objecto de trasfega (cerca de 550.000 litros) se encontrava segurado;

2- Que sobre ele impendia um penhor mercantil, sendo credora a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo, e havendo a autora recebido, depois, o valor seguro – fls. 106;

3- Que a mangueira solta, causadora do derrame, estava presa à bomba respectiva somente com uma abraçadeira, ao contrário das restantes bombas e tubos ali existentes, que possuíam duas em cada bocal.

4- Por fim, que o derrame se registou durante um lapso temporal de 14 horas entre duas observações.».

Considera ainda a Recorrente que estes factos relevam para a decisão, porque dos dois primeiros resulta a imposição de «um acrescido dever de vigilância e cuidado» e dos dois últimos resulta «a inadmissível ligeireza com que foi preparada a operação de trasfega, no tocante à maquinaria e ao estado das tubagens, e a forma descuidada como ela foi conduzida».

Considera, finalmente a Recorrente que estes factos devem ser dados como provados, por resultarem dos documentos juntos pela Impugnante – ora Recorrida – a fls. 96 e seguintes e não terem sido contraditados.

Invoca, assim, a Recorrente o erro de julgamento, não na parte relativa a factos que a M.mª Juiz a quo relevou, mas na parte que deveria ter relevado com vista à justa composição do litígio. Pede, em consequência, a ampliação do julgamento de facto e a consequente inserção dos factos referidos no rol dos factos provados.

Cumpre decidir.

Da informação que suporta a liquidação impugnada resulta que foi «possível averiguar que o vinho em causa se encontra segurado junto da Companhia de seguros Fidelidade Mundial, SA e que o mesmo se encontrava penhorado como garantia junto da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de F...». Nos doutos articulados, esses factos não foram infirmados nem reafirmados, pelo que não fazem parte do objeto do litígio, não tendo o tribunal que tomar posição sobre eles. E não está por isso inibido de os invocar, quando relevem instrumentalmente para alguma conclusão de facto que deva formular, porque tudo o que consta da decisão administrativa impugnada faz parte do processo.

Da informação que suporta a liquidação impugnada resulta também que é «referido pelo operador e pela seguradora» que «o alegado derrame ter-se-á ficado a dever a uma deficiente montagem da mangueira (“…encontrava-se acoplada ao bocal da bomba com uma única abraçadeira metálica, situação contrária à montada no outro ramal, onde a mangueira estava fixa por duas abraçadeiras.”». Também este facto não foi posto em causa e não faz parte do objeto do litígio, não tendo o tribunal que tomar posição sobre ele. E o documento de fls. 96, para que o Recorrente remete nas suas doutas alegações, nada mais confirma do que aquilo que vinha anunciado no processo administrativo (que o relatório da seguradora avança com essa explicação para o sucedido).

Quanto ao facto de o derrame ter ocorrido num período de 14 horas entre duas observações, não estamos, em bom rigor, perante uma ocorrência sobre a qual deva ser formulado um juízo cognoscitivo, mas uma conclusão a extrair da conjugação de dois factos: a última visita do encarregado do armazém ao local (pelas 17.00 horas) no dia 1 e a primeira visita do dia 2 (pelas 7.30 horas). Factos que tinham sido alegados nos artigos 8.º e 9.º da douta petição inicial e que foram inseridos nos pontos 9 e 11 da resposta à matéria de facto.

Pelo que o recurso não merece provimento nesta parte.

4. Do Julgamento de Direito

4.1. Vem o presente recurso interposto pelo Digno Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, da douta sentença deste tribunal que, tendo concluído que o derrame de 275.000 litros de vinho moscatel, ocorrido em 2004/12/01 nas instalações da Recorrida, não se deveu a negligência grave desta, julgou ilegal a liquidação do imposto sobre o álcool e sobre bebidas alcoólicas que lhe correspondia.

Com o assim decidido não se conforma o ora Recorrente por entender que a factualidade apurada levaria a concluir que a Recorrida descurou o seu dever legal de diligência e vigilância, aqui reforçado pelo facto de se tratar de mercadoria segurada e empenhada.

A obrigação do pagamento do imposto sobre o álcool e as bebidas alcoólicas é gerada com a produção ou importação de produtos sujeitos a imposto e é exigível no momento em que esses produtos são introduzidos no consumo. Era o que resultava ao tempo dos artigos 6.º e 7.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 566/99, de 22 de Dezembro (sempre na redação então em vigor – vd. atualmente o artigo 8.º, n.º 1 do mesmo Código) e é o que resulta agora dos seus artigos 7.º e 8.º.

Pode, no entanto, suceder que, relativamente a um produto sujeito a imposto, seja constatado que já não vai ser introduzido no consumo. É o que sucede quando se verifica que um determinado produto foi importado ou produzido no território nacional (ou nos outros Estados membros) mas não se encontra em regime de suspensão nem foi apresentada a declaração de introdução no consumo.

Numa situação destas abrem-se duas possibilidades: ou o produto se perdeu, ou foi mesmo introduzido no consumo (apesar de a introdução no consumo não ter sido declarada). Mas foi introduzido irregularmente.

Ora, resulta do artigo 7.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo (atual artigo 8.º) que o produto produzido ou importado que não se encontre em regime de suspensão se considera introduzido no consumo, a menos que sejam constatadas as perdas. Ou seja, o legislador presume que um produto produzido ou importado e que não se encontre em regime de suspensão nem foi declarado para introdução no consumo foi introduzido no consumo irregularmente. As perdas, em princípio, não se presumem: têm que ser constatadas.

Só assim não será se for de considerar que se trata de perdas inerentes à própria natureza dos produtos, considerando-se como tal as que, tendo ocorrido em regime de suspensão, não ultrapassem os limites quantitativos fixados pelo legislador (franquias) – artigos 37.º a 40.º do Código. Hipótese que, no caso, não importa considerar, visto não estar em causa que as perdas são muito superiores a esses limites quantitativos e que não tiveram nada a ver com a natureza ou as propriedades da mercadoria (a sua volatilidade).

Mas mesmo uma perda acidental (isto é, uma perda não imputável à natureza do produto) que seja constatada (isto é, que permita pôr de parte a hipótese de introdução irregular no consumo) é uma perda tributável, em princípio. Só assim não será se forem verificados três requisitos, constantes do seu artigo 41.º:

a) Que a perda seja devida a caso fortuito ou de força maior (requisito objetivo);

b) Que não tenha havido negligência grave (requisito subjetivo);

c) Que tenha sido oportunamente comunicada à estância aduaneira competente (requisito formal).

O conceito de caso fortuito ou de força maior não foi concretizado nem pelo legislador nacional nem pelo legislador comunitário. No entanto, a doutrina e a jurisprudência têm entendido que o caso é de força maior quando estamos perante um evento estranho ao sujeito que o impede de agir de acordo com a sua vontade e que não pode ser evitado em si mesmo nem nas suas consequências (ideia de inevitabilidade) e é fortuito quando estamos perante um evento estranho ao sujeito que não foi possível prever mas que poderia ter sido evitado se tivesse sido previsto (ideia de imprevisibilidade) [Na doutrina, SÉRGIO VASQUES, in «Os Impostos Especiais de Consumo», pág. 331, e NUNO ALEIXO, PEDRO ROCHA e RICARDO DE DEUS, in «Código Aduaneiro Comunitário Anotado e Comentado 2007, pág. 315); na jurisprudência, vd., por ex. o acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, de 2010/01/14 (processo n.º 0566/08)].

Deve observar-se, porém, que a ocorrência de um caso fortuito nem sempre é de fácil demonstração, porque pode estar associado a um facto inexplicável ou para cuja ocorrência não exista uma explicação aparente. A própria ideia de imprevisibilidade está muito próxima da ideia de inexplicabilidade, porque um facto que a mente humana não pode explicar pode ser, por isso mesmo, um facto que não se possa razoavelmente prever. Pelo que a prova de um caso fortuito não pode ser tão exigente que passe pela demonstração da origem de um facto que é desconhecida e que não é de explicação aparente.

O conceito de negligência grave também não foi concretizado legislativamente. No entanto, a doutrina e a jurisprudência têm entendido que a negligência é grave ou grosseira «quando o lesante violou as mais elementares regras de prudência, deixando de tomar precauções que, nas mesmas circunstâncias, se impunham a qualquer pessoa razoável» (Lições policopiadas do Sr. Prof. RUI DE ALARCÃO ao 3.º ano jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1983, pág. 266).

Este requisito merece alguma reflexão, porque a verificação de um evento estranho ao sujeito e que este não poderia prever ou evitar já afastaria, em princípio, a sua culpa. Mas pode suceder que o evento (que em si mesmo seria imprevisível ou inevitável) se tenha conjugado com o comportamento do sujeito para produzir aquele resultado. A negligência grave presume-se, por isso, quando essa relação de concausalidade exista.

O requisito da comunicação à estância aduaneira competente não carece de densificação, relevando sobretudo, a finalidade da sua introdução: assegurar que a estância aduaneira tem possibilidades de confirmar a ocorrência e apurar a perda.

Apliquemos estes conceitos ao caso dos autos.

4.2. Como ponto prévio, assinale-se que o fundamento da liquidação impugnada não é a introdução irregular no consumo dos 275.000 litros de vinho moscatel, no seu todo ou em parte. Em parte alguma a Alfândega de Braga põe em causa que tenha ocorrido o derrame acidental do vinho moscatel depositado no balão de inox n.º 6/25, embora tivesse consignado de passagem que a equipa responsável pela fiscalização da Delegação Aduaneira de Peso da Régua não pôde comprovar, pelos vestígios visíveis existentes no local, que o derrame tenha atingido a dimensão da perda registada.

Sendo que, de qualquer modo, está assente que a Delegação Aduaneira foi atempadamente avisada e encontrou vestígios de vinho no local, compatíveis com um derrame do conteúdo daquele balão. E também não é posta em causa a operação de trasfega, a natureza acidentada do terreno (que permitisse «o fácil e rápido escoamento do produto») ou as obras nas imediações do depósito («com grandes extensões de vala aberta» e «de terras removidas» que conferissem «uma anormal capacidade de permeabilidade do solo»). Tudo factos que a M.mª Juiz a quo levou aos factos provados e cuja inserção nunca foi posta em causa e nem sequer faz parte do objeto do recurso.

Podemos, por isso, concluir que estamos perante uma perda de produto.

O que a Alfândega punha em causa era que a perda fosse devida a caso fortuito ou que não tivesse havido negligência grave.

Não teria havido caso fortuito porque – se bem interpretamos – o derrame não resultou de um evento estranho ao sujeito e, ainda que tivesse resultado, não seria imprevisível. Não resultou de um evento estranho ao sujeito porque a montagem da mangueira é um facto controlável pela sua vontade. E não seria imprevisível porque a mangueira estava fixa por uma única abraçadeira metálica.

E teria havido negligência grave porque a operação decorreu num dia feriado e não foi sujeita a vigilância permanente, não obstante a mercadoria se encontrar empenhada e possuir um elevado valor comercial.

Ou seja: a Alfândega concluiu que a perda era tributável porque o derrame é um facto poderia ter sido previsto. E mesmo que o não pudesse ter sido, a Recorrida poderia e deveria ter tomado medidas para o evitar (ou evitar que o derrame tivesse aquela dimensão).

Deve anotar-se desde já que – à luz dos factos apurados – o derrame não se ficou a dever à montagem da mangueira, mas ao desprendimento da mangueira do bocal. E este facto, não é, em si mesmo um facto humano e voluntário do sujeito, podendo resultar de algum evento estranho a quem a montou. Facto que é reforçado por o desprendimento da mangueira ter ocorrido a uma hora em que não estaria ninguém no local.

Por outro lado, a deficiente montagem da mangueira é uma conclusão que a Alfândega coloca em termos meramente hipotéticos e que não está devidamente suportada.

Na verdade, para que o tribunal pudesse concluir que o desprendimento da mangueira do bocal se deveu ao facto de só ter acoplada uma única abraçadeira, teria que saber qual era a pressão exercida no bocal e qual a pressão que a abraçadeira permitia suportar, factos que ninguém apurou em fase administrativa.

Finalmente, o facto da mangueira montada no outro bocal não se ter separado do conjunto pode nada ter a ver com a existência de duas abraçadeiras. Basta para o efeito ponderar a eventualidade de a pressão ser aí inferior. Aliás, o raciocínio de que a montagem da mangueira é deficiente porque no outro ramal existem mais abraçadeiras é ilógico, porque dele decorreria que se noutro bocal existissem três abraçadeiras, a montagem com duas abraçadeiras também seria deficiente.

Assim, dando como certo apenas que o derrame se deveu ao desprendimento da mangueira no bocal da saída da bomba (ponto 25.º dos factos provados) e estando suficientemente indiciado que nesse desprendimento não houve intervenção humana (tendo em conta a hora em que terá ocorrido e o facto de ter ocorrido num feriado), o evento é compatível com um caso fortuito.

A questão que fica é a de saber se a complexidade da manobra, o valor do produto e o facto de se encontrar segurado e sobre ele incidir um penhor reclamariam uma vigilância contínua dos responsáveis da Recorrida.

Ora, o tribunal nada sabe sobre a complexidade técnica da operação de trasfega ou dos riscos que lhe estão associados, porque não foram carreados para os autos nenhuns dados objetivos que pudesse aproveitar para formular algum raciocínio devidamente sustentado sobre a matéria. E também não nos parece adequado apelar a regras da experiência ou do senso comum para deduzir factos que deveriam estar essencialmente apoiados em dados técnicos.

A única coisa que sabe – porque o tribunal recorrido o consignou no ponto 28.º dos factos provados, não impugnado em via de recurso – é que não se trata de uma operação inédita e que nunca ocorreu tal problema. E esta indica que não se justificariam precauções especiais, para além das que tivessem sido anteriormente adotadas.

Por outro lado, também não é o facto de a mercadoria ter elevado valor que deve, em si mesmo, reclamar medidas de vigilância especiais. Se fosse o caso, a vigilância teria que ser permanente e estaria relacionada, não com a operação de trasfega, mas com o valor de todos os produtos armazenados na cooperativa, que deverão atingir um valor muito superior ao do líquido contido naquele específico balão.

Finalmente, o facto de a mercadoria estar segurada e sobre ela incidir um penhor a favor de uma instituição bancária até pode reclamar especiais responsabilidades para a Recorrida. Mas essas terão que resultar da relação contratual estabelecida com a seguradora ou dos deveres de depositário que a Recorrida porventura tenha assumido junto da referida instituição bancária. E que não podem nem devem ser extrapolados para a relação jurídica entre a Recorrida e a Fazenda Pública.

Ou seja, a violação dos deveres de cuidado da Recorrida deveria estar relacionada com as suas obrigações que decorrem do seu estatuto de depositário autorizado (cfr. artigos 21.º e seguintes do Código dos Impostos Especiais de Consumo) e que aquela tenha preterido grosseiramente, e não das que tenha contraído especialmente junto de outra entidade. A haver procedimentos específicos para este tipo de operação, prescritos pela Autoridade Aduaneira, teria esta que os invocar, competindo então à Recorrida alegar e demonstrar que lhes deu cumprimento. Mas sobre esta matéria a Autoridade Aduaneira nada adiantou.

Pelo que o recurso não merece provimento.

5. Conclusões

5.1. O artigo 41.º do C.I.E.C. exclui da tributação as perdas de produtos devidas a caso fortuito, quando não tenha havido negligência grave do operador e tenham sido comunicadas à estância aduaneira competente até ao segundo dia útil imediato ao da sua ocorrência.

5.2. As perdas de produto resultantes do desprendimento de um bocal da mangueira onde o mesmo circulava são compatíveis com um caso fortuito, se o desprendimento foi um facto imprevisível.

5.3. Deve ser considerado imprevisível o desprendimento de uma mangueira num circuito de trasfega em funcionamento normal, constante e automático há mais de 24 horas e sem nenhuma ocorrência, ainda que o bocal da mangueira que se desprendeu só tivesse uma abraçadeira metálica e houvesse outro bocal que não se desprendeu com duas abraçadeiras, porque deste facto não decorre que o desprendimento se ficou a dever a não terem sido acopladas duas abraçadeiras ao primeiro.

5.4. Constitui negligência grave o comportamento do operador que omitiu deveres de cuidado elementares e deixou de tomar precauções que, nas mesmas circunstâncias, se impunham a qualquer pessoa razoável.

5.5. Não viola deveres de cuidado elementares o operador que se deslocou três vezes ao local no segundo dia de uma operação de trasfega de 48 horas e que, até então, decorria sem incidentes, deixando-a depois em funcionamento automático entre as 17.30 horas desse dia e a manhã do dia seguinte.

6. Decisão

Por todo o exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte em negar provimento ao recurso.

Sem custas o presente recurso, por delas estar isenta a Recorrente.

Porto, 13 de março de 2014

Ass. Nuno Bastos

Ass. Fernanda Esteves

Ass. Irene Neves