Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:03463/19.7BEPRT-S1
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:10/22/2021
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Antero Pires Salvador
Descritores:FALTA CITAÇÃO ESTADO – NULIDADE CITAÇÃO, MINISTÉRIO PÚBLICO, CENTRO COMPETÊNCIAS JURÍDICAS ESTADO,
INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL - N.º 1 DO ART.º 11.º E DO N.º 4 DO ART.º 25.º DO CPTA, NA REDACÇÃO DA LEI N.º 118/2019, DE 17/09.
Sumário:1 . Apesar da parte final do n.º 1 do art.º 11.º do CPTA se referir à possibilidade de representação do Estado pelo MP, a verdade é que apenas a este incumbe tal representação, atendendo a que não existe norma que lhe retire essa função, subsistindo ainda outros preceitos normativos conexos que continuam a cometer essa tarefa ao MP em sentido positivo.

2 . Da primeira parte do n.º 4 do art.º 25.º do CPTA apenas resulta que a citação feita ao Estado deve ser dirigida ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, cabendo-lhe assegurar a sua transmissão aos serviços competentes, v.g., ao Procurador da República junto do TAF onde corre o processo, ou em obediência à respetiva lei orgânica do MP.

3 . A coordenação mencionada na última parte do mesmo n.º 4 não confere ao centro de Competências Jurídicas do Estado qualquer espécie de poder funcional sobre o MP, cabendo-lhe apenas coordenar com este último nos termos solicitados, designadamente recolhendo as informações e os elementos necessários junto dos diversos gabinetes ministeriais e preparando, de acordo com o solicitado e se tal suceder, os termos da defesa a apresentar pelo Estado.*
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:ESTADO PORTUGUÊS
Recorrido 1:Sindicato Independente de Professores e Educadores E OUTROS
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, no Tribunal Central Administrativo Norte – Secção do Contencioso Administrativo:

I
RELATÓRIO

1 . O MINISTÉRIO PÚBLICO, agindo em nome próprio, como defensor da legalidade democrática - art.º 219.º, n.º1 da CRP e arts. 2.º e 4.º, n.º1, als. a) e j) do EMP -, inconformado, veio interpor recurso jurisdicional da decisão do TAF do Porto, datada de 19 de Março de 2020, que, no âmbito da acção administrativa instaurada pelo Sindicato Independente de Professores e Educadores contra o Ministério da Educação, indeferiu o requerimento do Ministério Público no âmbito do qual foi arguida a inconstitucionalidade material das normas constantes do segmento final do n.º 1 do art.º 11.º e do n.º 4 do art.º 25.º do CPTA, na redacção da Lei n.º 118/2019, de 17/09 e arguida a nulidade por falta de citação do réu Estado e foi requerida:
a) A recusa de aplicação, neste processo, das normas constantes do segmento final do nº 1 do artigo 11º e do nº 4 do artigo 25º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), na redação da Lei nº 118/2019, de 17.09, por inconstitucionalidade material emergente da violação do parâmetro constante da primeira proposição do nº 1 do artigo 219º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e do nº 2 desta mesma disposição; e,
b) A declaração de nulidade da falta de citação do réu Estado - arts. 188.º, n.º 1, al. a) e 187.º, al. a) do CPC, subsidiariamente aplicáveis -, com a consequente anulação de todo o processado posterior à Petição Inicial e que seja determinada a citação do Estado no Ministério Público.

*
Nas suas alegações, o M.º P.º/recorrente formulou as seguintes conclusões:
"1 – A presente ação foi intentada pelo Sindicato Independente de Professores e Educadores para Reconhecimento de Direito contra o Ministério da Educação e o Estado Português, tendo, nos termos do disposto no artigo 25º, nº 4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), a citação do Réu Estado Português sido dirigida unicamente para o Centro de Competências Jurídicas do Estado, e o Ministério Público não foi citado, nem sequer notificado da pendência da mesma, designadamente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 85º, nº 1 do CPTA;
2 – A Lei nº 118/2019, de 17 de Setembro, que entrou em vigor no passado dia 16.11.2019, introduziu no CPTA nova norma acima referida, que estabelece que quando seja demandado o Estado já não é citado o Ministério Público, em representação deste, como até agora sempre esteve consagrado, mas sim o Centro de Competências Jurídicas do Estado, designado por JurisAPP, que é um serviço central da administração direta do Estado, integrado na Presidência do Conselho de Ministros;
3 – Sob a sua aparência puramente procedimental e regulamentar — o que bastaria para a considerar deslocada num diploma sobre processo administrativo —, trata-se de uma norma revolucionária, sobretudo quando conjugada com o disposto na parte final do nº 1 do artigo 11º do CPTA, na redação igualmente conferida pela mesma Lei nº 118/2019;
4 – Com efeito, onde na anterior redação desta norma se previa ¯(…) sem prejuízo da representação do Estado Pelo Ministério Público passou, com a referida alteração, a prever-se ¯(…) sem prejuízo da possibilidade de representação do Estado pelo Ministério Público, o que transformou numa exceção o que era uma regra, pois o possível tanto é o que pode ser como o que pode não ser vez alguma, sendo que não se vislumbra qualquer possibilidade de o Ministério Público ser eliminado, ao menos potencialmente, da representação do Estado no domínio do contencioso administrativo sem que daí resulte uma flagrante ofensa da primeira proposição do nº 1 do artigo 219º da CRP;
5 – Pelo que, esse conjunto normativo esvazia o essencial da função do Ministério Público nos tribunais administrativos, enquanto representante do Estado-Administração, mostrando-se desconforme ao parâmetro normativo consagrado na primeira proposição do nº 1 do artigo 219º da CRP;
6 – A norma do artigo 219º, nº 1 da CRP configura um imperativo constitucional, a observar pelo legislador ordinário, que contém a regra da atribuição de competência ao Ministério Público para representar o Estado;
7 – Em 1 de Janeiro de 2020 entrou em vigor o novo Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei nº 68/2019, de 27 de Agosto — i.e, menos de um mês antes da publicação da Lei nº 118/2019, de 17 de Setembro, que contém as normas cuja inconstitucionalidade se invoca, que continuou a confiar a representação do Estado ao Ministério Público (artigo 4º, nº 1, al. b)) e a prever a existência de ¯um departamento central de contencioso do Estado e interesses coletivos e difusos da Procuradoria-Geral da República‖, o qual passará a intervir também em matéria tributária e não apenas na cível e administrativa (artigo 61º, nº 1 e 2);
8 – A Lei nº 114/2019, de 12 de Setembro, que procedeu à 12ª alteração no ETAF/2002, — i.e., menos de uma semana antes da edição da Lei nº 118/2019, a que pertencem as normas aqui questionadas —, não introduziu qualquer alteração ao disposto no artigo 51º;
9 – A representação do Estado em juízo foi sempre confiada, a nível constitucional e da lei ordinária, ao Ministério Público (com a única exceção da hipótese residual contemplada na parte final do nº 1 do artigo 24º do vigente CPC), estando essa representação, nas áreas cível, administrativa e até tributária, inequivocamente prevista em diplomas recentíssimos e de uma evidente centralidade na conformação dos nossos sistemas jurídico e judiciário;
10 – A norma do nº 1 do artigo 219º da CRP, que confia ao Ministério Público a representação judiciária do Estado-Administração (central), possui natureza auto-exequível, incondicionada, sem necessidade de densificação pela legislação ordinária, configurando-se como uma intencional e estrutural opção constitucional, em consonância com a tradição jurídica do país;
11 – Tanto o legislador constituinte originário como o derivado ponderaram os atributos do Ministério Público como magistratura dotada de ¯autonomia (artigo 219º, nº 2 da CRP), com a sua atuação sempre vinculada a ¯critérios de legalidade e objetividade (artigo 3º, nº 2 do EMP) e, em razão desses atributos, confiaram-lhe a tarefa representativa do Estado em juízo, justamente a título de representação e não como advogado, patrono ou mandatário judicial; sendo a representação do Estado nos tribunais por parte do Ministério Público é configurável como um verdadeiro princípio judiciário constitucional, com alcance material;
12 – Porém, em flagrante contradição sistémica e teleológica, a parte final do nº 1 do artigo 11º do CPTA, na redação conferida pelo artigo 6º da Lei nº 118/2019, vem reduzir a representação do Estado por parte do Ministério Público a uma pura eventualidade;
13 – A nova redação limita-se a acrescentar o substantivo possibilidade, mas desse modo transforma a regra da representação do Estado pelo Ministério Público em exceção, pois o possível tanto é o que pode ser como o que pode não ser vez alguma, não sendo inócuo que o conjunto de alterações legislativas no âmbito da jurisdição administrativa que ocorreram em 2019, de que faz parte aquele preceito, não tenha introduzido, paralelamente, o referido substantivo no artigo 51º do ETAF.
14 – Do confronto da fórmula usada no CPTA (parte final do nº 1 do artigo 11º ¯sem prejuízo da possibilidade de representação do Estado pelo Ministério Público‖) com a acolhida no CPC (artigo 24º, nº 1: ¯O Estado é representado pelo Ministério Público, sem prejuízo dos casos em que a lei especialmente permita o patrocínio por mandatário judicial próprio…), resulta segura a conclusão de que, no âmbito do primeiro diploma, a representação do Estado por parte do Ministério Público tem caráter eventual e subsidiário, ao passo que no segundo constitui a regra, só passível de afastamento por lei concreta;
15 – A nova redação do artigo 11º, nº 1, in fine, do CPTA torna meramente eventual e subsidiária a intervenção do Ministério Público como representante do Estado no processo administrativo, pelo que, mesmo numa apreciação isolada, dificilmente a norma se compatibilizaria com o princípio judiciário constitucional da representação do Estado nos tribunais através do Ministério Público, imposta pelo primeiro segmento do nº 1 do artigo 219º da CRP;
16 – A desarmonia dessa norma com a Lex Fundamentalis torna-se ainda mais clara quando se proceda à sua interpretação conjugadamente com a do nº 4 do artigo 25º, também aditado pela referida Lei nº 118/20, que estabelece que quando seja demandado o Estado a citação é dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado;
17 – No que se reporta ao Estado, a norma destrói a mais elementar lógica de constituição da instância processual administrativa, visto que, por um lado, o réu Estado-Administração é unicamente citado numa entidade que não possui poderes legais para a sua representação em juízo e, por outro, não é citado através do órgão que possui tais poderes, por força de disposição constitucional (e também legal);
18 – Por outro lado, nos termos do artigo 223º, nº 1 do CPC, subsidiariamente aplicável ao contencioso administrativo, a citação das pessoas coletivas — como é o caso indiscutível do Estado-Administração — realiza-se na pessoa dos seus legais representantes;
19 – O único representante do Estado em juízo, pelo menos enquanto o Estado não manifestar a vontade de pretender ser patrocinado de outro modo (pressuposta, por necessidade de raciocínio, a validade dessa declaração), é o seu representante natural, o Ministério Público, em quem deve ser realizada a citação;
20 – O mecanismo implementado pelo nº 4 do artigo 25º, conjugado com a parte final do nº 1 do artigo 11º do CPTA, ambos na redação da Lei nº 118/2019, conduz em linha reta, de forma necessária, a uma presença subsidiária e minimalista do Ministério Público como representante do Estado no processo administrativo;
21 – Acresce que a norma do nº 4 do art.º 25º CPTA, na redação da Lei nº 118/2019, vem atribuir ao Centro de Competências Jurídicas do Estado a competência para coordenar os termos da (…) intervenção em juízo dos serviços a quem aquele entenda transmitir a citação, que, no caso dos autos (tal como noutros), não a transmitiu ao Ministério Público, estando sob sua decisão escolher quem vai representar o Estado;
22 – Só um construtivismo artificial e pré-ordenado pode sustentar a legitimidade constitucional da opção do legislador ordinário, creditando-a na faculdade de a Assembleia da República definir a competência do Ministério Público (cfr. artigo 165º, nº 1, al. p) da CRP), pois é verdade elementar que a lei formal também deve obediência ao princípio da constitucionalidade;
23 – Apesar da sua falta de clareza e desarmonia com a arquitetura do sistema processual, resulta do preceito que o dito Centro pode, se e quando lhe aprouver, confiar a representação judiciária do Estado ao Ministério Público — tratado como mero serviço administrativo — e coordenar os termos da respetiva intervenção em juízo;
24 – Ou seja, o dito Centro passará a decidir, caso a caso, e ao contrário do referido na decisão recorrida, se o Ministério Público representa ou não o Estado, sem que haja qualquer indicação dos critérios que conformam tal decisão, sendo que o teor da norma constitucional constante do artigo 219º, nº 1 da CRP não permite a supressão do Ministério Público como representante do Estado (tal como sucedeu no caso concreto dos autos);
25 – Ao atribuir ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, um serviço central da administração direta do Estado, a competência para proferir decisões que delimitam a intervenção do Ministério Público enquanto representante do Estado, a norma jurídica resultante das disposições conjugadas dos artigos 11º, nº 1 e 25°, n° 4 do CPTA configura, dessa forma, uma inconstitucionalidade material, também por violação ao artigo 165°, n° 1, al. p) da CRP;
26 – A norma em causa prevê que, em vez do Estado, seja citado o referido Centro que transmitirá aos serviços competentes, e, se assim o entender (e quando o entender), a transmitirá ao Ministério Público. No entanto, o Ministério Público não é um serviço do Estado-Administração, mas sim um órgão constitucional da administração da justiça, pelo que o conhecimento da ação – a citação - quando seja demandado o Estado representado pelo Ministério Público não pode deixar de ter lugar no âmbito do contexto jurisdicional;
27 – No que concerne aos termos da respetiva intervenção em juízo, e ao contrário do referido na decisão recorrida, a norma ínsita na parte final do novo nº 4 do artigo 25º do CPTA confere à JurisApp competência para coordenar os próprios termos da intervenção do Ministério Público quanto a aspetos relativos à técnica do processo;
28 – Desse modo, sai gravemente ofendido o princípio da autonomia (externa) do Ministério Público, consignado no nº 2 do artigo 219º da CRP, degradando-se esta magistratura à condição de mera serventuária subordinada da vontade da Administração;
29 – Em face do exposto, é forçoso concluir que as normas constantes do segmento final do nº 1 do artigo 11º e do nº 4 do artigo 25º do CPTA, na redação da Lei nº 118/2019, de 17.09, são materialmente inconstitucionais, por violação do disposto no artigo 219º da CRP, nº 1, primeira proposição (¯Ao Ministério Público compete representar o Estado) e nº 2 (¯O Ministério Público goza de (…) autonomia…), violando igualmente o conteúdo material dos princípios e normas constitucionais do artigo 165°, n° 1 da CRP, pelo que são materialmente inconstitucionais, nos termos do artigo 277°, n° 1, da CRP;
30 – E, em consequência, verifica-se a nulidade emergente da falta de citação do Estado, por omissão completa do ato (artigos 188, nº 1, al. a) e 187, al. a) do CPC, aplicáveis ex vi artigo 1º do CPTA), uma vez que o Ministério Público não foi citado".
Assim, concluiu, pedindo que seja "... concedido provimento ao presente recurso e, consequentemente, deve o douto despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que determine:
a) A recusa de aplicação, neste processo, das normas constantes do segmento final do nº 1 do artigo 11º e do nº 4 do artigo 25º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), na redação da Lei nº 118/2019, de 17.09, por inconstitucionalidade material emergente da violação do parâmetro constante da primeira proposição do nº 1 do artigo 219º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e do nº 2 desta mesma disposição, bem como do conteúdo material dos princípios e normas constitucionais do artigo 165°, n° 1 da CRP;
b) E, em consequência, que:
- Seja declarada a nulidade da falta de citação do réu Estado (artigos 188, nº 1, al. a) e 187, al. a) do CPC, aplicáveis ex vi artigo 1º do CPTA), com a consequente anulação de todo o processado posterior à Petição Inicial, e
- Seja determinada a citação do Estado no Ministério Público".
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Notificadas as alegações, apresentadas pelo recorrente, supra referidas, não foram apresentadas contra-alegações.
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Sem vistos, foram os autos remetidos à Conferência para julgamento.
*
2 . Efectivando a delimitação do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelo recorrente, sendo certo que o objecto do recurso se acha delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, acima elencadas, nos termos dos arts. 660.º, n.º 2, 664.º, 684.º, ns. 3 e 4 e 685.º A, todos do Código de Processo Civil, “ex vi” dos arts.1.º e 140.º, ambos do CPTA.

II
FUNDAMENTAÇÃO
1 .
A decisão objecto de sindicância jurisdicional por este TCA é a seguinte:
"...Para sustento da sua pretensão, alega, em síntese, que a conjugação das normas ínsitas nos artigos 11.º, n.º 1, segmento final e 25.º, n.º 4, do CPTA esvazia, ao menos nas suas previsíveis consequências aplicativas, o essencial da função do Ministério Público nos tribunais administrativos, enquanto representante do Estado- Administração, mostrando-se, por isso, desconforme ao parâmetro normativo consagrado na primeira proposição do n.º 1 do artigo 219.º da CRP (“Ao Ministério Público compete representar o Estado”) e ao n.º 2 do mesmo artigo (“O Ministério Público goza de (…) autonomia”).
Por despacho datado de 17/01/2020, foi determinada a notificação das restantes partes para, querendo, se pronunciarem sobre o requerimento apresentado pelo Ministério Público.
Por requerimento apresentado em 03/02/2020, o Ministério da Educação pronunciou-se, pugnando, em síntese, pela conformidade constitucional dos preceitos legais referidos pelo Ministério Público, recusando por isso qualquer violação do disposto no artigo 219.º da CRP e qualquer nulidade processual por o Ministério Público não ter sido citado.
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A questão que importa ao tribunal apreciar e decidir consiste em saber se último segmento do n.º 1 do artigo 11.º do CPTA quando lido em conjugação com o n.º 4 do artigo 25.º do CPTA, em ambos os casos, na versão resultante da Lei n.º 118/2019, de 17 de Setembro, padecem de inconstitucionalidade material, por violação da primeira proposição do n.º 1 do artigo 219.º da CRP (“Ao Ministério Público compete representar o Estado”) e do n.º 2 do mesmo artigo (“O Ministério Público goza de (…) autonomia”).
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Vejamos então.
As normas que segundo o Ministério Público padecem de inconstitucionalidade são as contidas nos artigos 11.º, n.º 1, último segmento e 25.º, n.º 4, do CPTA, na versão resultante da Lei n.º 118/2019, de 17 de Setembro.
O artigo 11.º, n.º 1, do CPTA, na redacção anterior à Lei n.º 118/2019, de 17/09, dispunha do seguinte modo:
Nos tribunais administrativos é obrigatória a constituição de mandatário, nos termos previstos no Código do Processo Civil, podendo as entidades públicas fazer-se patrocinar em todos os processos por advogado, solicitador ou licenciado em direito ou em solicitadoria com funções de apoio jurídico, sem prejuízo da representação do Estado pelo Ministério Público”.
A referida norma com a alteração introduzida pela Lei n.º 118/2019, de 17/09, passou a dizer o seguinte:
Nos tribunais administrativos é obrigatória a constituição de mandatário, nos termos previstos no Código do Processo Civil, podendo as entidades públicas fazer-se patrocinar em todos os processos por advogado, solicitador ou licenciado em direito ou em solicitadoria com funções de apoio jurídico, sem prejuízo da possibilidade de representação do Estado pelo Ministério Público”.
O artigo 25.º do CPTA, na redacção anterior à Lei n.º 118/2019, de 17/09, dispunha do seguinte modo:
Artigo 25.º
Citações e notificações
1 – Salvo disposição em contrário, as citações editais são realizadas mediante a publicação de anúncio em página informática de acesso público, nos termos a definir em portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça.
2 – Em todas as formas de processo, todos os articulados e requerimentos autónomos e demais documentos apresentados após a notificação ao autor da contestação do demandado são notificados pelo mandatário judicial do apresentante ao mandatário judicial da contraparte nos termos da lei processual civil.
3 – A notificação determinada no número anterior pode realizar-se por meios electrónicos, nos termos de portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça”.
Com a Lei n.º 118/2019, de 17/09, foi aditada à referida norma o n.º 4, no qual, agora, se lê:
“4 – Quando seja demandado o Estado, ou na mesma ação sejam demandados diversos ministérios, a citação é dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, que assegura a sua transmissão aos serviços competentes e coordena os termos da respetiva intervenção em juízo”.
Segundo o requerimento apresentado pelo Ministério Público, o conjunto normativo transcrito do CPTA, introduzido pela Lei n.º 118/2019, de 17/09, esvazia, ao menos nas suas previsíveis consequências aplicativas, o essencial da função do Ministério Público nos tribunais administrativos, daí resultando a violação do artigo 219.º, n.ºs 1 (primeiro inciso) e 2, da CRP e a inerente inconstitucionalidade material do novo regime jurídico.
No artigo 219.º, n.ºs 1 e 2, da CRP, sob a epígrafe “Funções e estatuto”, lê-se o seguinte:
1 – Ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como, com observância do disposto no número seguinte e nos termos da lei, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática.
2 – O Ministério Público goza de estatuto próprio e de autonomia, nos termos da lei”.
Não se ignorando as dificuldades que se apontam à interpretação do artigo 219.º, n.º 1, primeira parte, da CRP [vide, sobre o assunto, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume II, 4.ª edição, Coimbra Editora, páginas 602 e 603], entende-se que da leitura do texto da norma contida no artigo 219.º, n.º 1, da CRP resulta que, em regra, a representação do Estado pertence ao Ministério Público, uma vez que a letra do texto constitucional não favoreça a ideia de exclusividade, como realça António da Costa Neves Ribeiro – cfr. O Estado nos Tribunais, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, página 28.
Como refere Vieira de Andrade, “a atribuição *da função de representação do Estado nas acções administrativas em que seja parte] resulta da Constituição, no artigo 219.º, n.º 1, que remete para os termos da lei” – cfr. A Justiça Administrativa (Lições), 2015, 14.ª edição, Almedina, página 139.
Defende-se que a representação do Estado por parte do Ministério Público tem natureza legal (e não orgânica). Neste sentido, pronunciou-se Alexandra Leitão, sinteticamente, nos seguintes termos:
Tradicionalmente, tem-se entendido que a representação do Estado pelo Ministério Público é uma representação orgânica, na medida em que o Ministério Público é um órgão do Estado (NEVES RIBEIRO) e figura como sujeito da relação material controvertida (LOPES DO REGO).
(…).
Em primeiro lugar, o Ministério Público é, de facto, um órgão do Estado, mas não é um órgão da pessoa coletiva Estado ou, dito de outra forma, do Estado-Administração, que é aquele que é representado nas ações cíveis e nas ações administrativas. Trata-se, pelo contrário, de um órgão que se integra, à luz do princípio da separação orgânico-funcional de poderes, na função judicial do Estado, como resulta, aliás, da sua inserção sistemática no título V da Constituição dedicado aos Tribunais.
A posição adotada afigura-se, por isso, algo incoerente com a desgovernamentalização do Ministério Público.
(…).
Efetivamente, enquanto a representação orgânica decorre da própria natureza das coisas — é, por assim dizer, lógica e ontológica —, a representação legal decorre de uma opção do legislador.
Por outras palavras: seria possível optar-se por não cometer ao Ministério Público a representação em juízo do Estado, mas seria impossível determinar que a pessoa coletiva deixasse de ser representada por um ou mais dos seus órgãos, pela simples razão que as pessoas coletivas são entidades imateriais que carecem sempre de um ou mais órgão(s) e do(s) seu(s) titular(es) para manifestar a sua vontade. Este é o cerne da distinção entre representação orgânica e legal.
Dito isto, fácil será perceber que, na minha opinião, a tese da representação legal se apresenta como a mais correta, uma vez que também não se trata apenas de um simples patrocínio judiciário, que pressupõe uma representação voluntária (…)” – cfr. “A Representação do Estado pelo Ministério Público nos Tribunais Administrativos”, in Revista Julgar, n.º 20, 2013, páginas 191 a 208.
O artigo 219.º, n.º 1, da CRP confere à lei ordinária a faculdade de conferir a representação do Estado a outros órgãos ou entidades, desde que, claro está, não se esvazie de sentido e alcance o aludido preceito constitucional, o que sucederia se o legislador privasse, totalmente, o Ministério Público das funções de representação, em juízo, cometendo-as, por inteiro, a outras entidades.
No sentido da interpretação aqui acolhida, cumpre ainda realçar que:
- O artigo 24.º do CPC, sob a epígrafe “Representação do Estado”, no seu n.º 1, dispõe que “O Estado é representado pelo Ministério Público, sem prejuízo dos casos em que a lei especialmente permita o patrocínio por mandatário judicial próprio, cessando a intervenção principal do Ministério Público logo que este esteja constituído”;
- O próprio contencioso administrativo estabelece (e já estabelecia anteriormente à entrada em vigor da Lei n.º 118/2019, de 17 de Setembro), no n.º 2 do artigo 10.º, que as acções cujo pedido principal se reporte à acção ou omissão de órgãos integrados em ministérios não são propostas contra o Estado, mas contra o ministério cujos órgãos estejam em causa, pelo que a representação processual já não cabia, nestas situações, ao Ministério Público;
- No contencioso tributário, a Fazenda Pública tem representação judiciária própria, através dos representantes da Fazenda Pública (artigo 15.º, n.º 1, do CPPT).
Posto isto, a questão que de seguida se coloca e a que importa responder é a de saber se da leitura conjugada da parte final do n.º 1 do artigo 11.º com o n.º 4 do artigo 25.º do CPTA resulta o esvaziamento do papel do Ministério Público enquanto representante do Estado, ou seja, se, no contencioso administrativo, o Ministério Público, deixa de representar o Estado, uma vez que só em caso afirmativo é que se poderá concluir que se estará perante uma inconstitucionalidade material por violação do disposto no número 1 do artigo 219.º da Constituição.
Entende-se, adiante-se desde já, que a resposta à questão colocada terá de ser negativa.
Em primeiro lugar porque, no plano infra-constitucional, diversas disposições legais continuam a estabelecer que é ao Ministério Público que compete a representação do Estado, nomeadamente, o artigo 51.º do ETAF (que não sofreu qualquer alteração, com ou após a Lei n.º 118/2019, de 17/09) e o artigo 4.º, n.º 1, alínea b), do novo Estatuto do Ministério Público.
Em segundo lugar porque se deve fazer uma interpretação restritiva e conforme com a Constituição dos artigos 11, n.º 1, última parte, do CPTA e 25.º, n.º 4, do CPTA.
O operador jurídico deve, pois, fazer uma interpretação conforme com a Constituição, isto é, de entre os vários sentidos a priori configuráveis da norma infra-constitucional, deve acolher aquele que lhe seja conforme ou mais conforme. Como refere Jorge Miranda, “(…) no limite, por um princípio de economia jurídica, procuram um sentido que – na órbita da razoabilidade e com um mínimo de correspondência verbal na letra da lei (art. 9.º, n.º 2, do Código Civil), evite a inconstitucionalidade” – cfr. Manual de Direito Constitucional, volume II, tomo VI, 1.º edição, Coimbra Editora. 2014, página 84.
Com efeito, é verdade que a nova redacção do artigo 11, n.º 1, última parte, do CPTA, principalmente se conjugada com a do novo n.º 4 do artigo 25.º do CPTA, sugere, à primeira vista, que a representação do Estado pelo Ministério Público como regra é, hoje, uma mera possibilidade. Contudo, procedendo a uma interpretação conforme com CRP, temos que não ocorre qualquer inconstitucionalidade, dado que o sentido das normas em causa não afecta a representação do Estado pelo Ministério Público. A junção do termo “possibilidade” (“sem prejuízo da possibilidade de representação do Estado pelo Ministério Público”) pela Lei n.º 188/2019, de 17 de Setembro nada mais fez do que permitir, à semelhança do que sucede no artigo 24.º, n.º 1, do CPC (pese embora a menos clara redacção da norma do CPTA), a representação do Estado pelo Ministério Público, como forma de abrir a possibilidade de a representação ocorrer por outra entidade, se lei especial o vier a definir uma vez que o CPTA nada diz sobre o assunto.
Ademais, deve entender-se que a coordenação mencionada na última parte do n.º 4 do artigo 25.º não confere ao centro de Competências Jurídicas do Estado qualquer espécie de poder funcional sobre o Ministério Público, cabendo-lhe apenas coordenar com este último nos termos solicitados, designadamente recolhendo as informações e os elementos necessários junto dos diversos gabinetes ministeriais e preparando, de acordo com o solicitado e se tal suceder, os termos da defesa a apresentar pelo Estado.
Neste sentido, já se pronunciou o Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, em decisão prolatada em 11/02/2020 (proc. n.º 1240/19.4BEPNF):
“(…). mesmo que de modo incorretamente expresso, o legislador do CPTA quis dizer o mesmo que diz no art.º 24.º do CPC, i.e., que pode ser admitida a representação do Estado pelo MP, como forma de abrir a possibilidade de a representação ocorrer por outra entidade, assim o venha a definir lei especial (porque o CPTA nada diz sobre o assunto).
E a coordenação por parte do Centro de Competência Jurídicas não representa qualquer atribuição de poder funcional a este último, mas apenas a definição da entidade à qual o MP se deve dirigir na preparação da representação do Estado (o que é relevante nos casos em que, nomeadamente, são necessários vários elementos de departamentos ministeriais distintos).
Assim, e concluindo, procedendo a uma interpretação conforme à CRP, à luz dos considerandos vindos de expender, o sentido que melhor resulta da conjugação da interpretação dos artigos 11.º, n.º 1, e 25.º, n.º 4, do CPTA é o seguinte:
1) Apesar de a parte final do n.º 1 do art.º 11.º do CPTA se referir agora à possibilidade de representação do Estado pelo MP, a verdade é que apenas a este incumbe tal representação, atendendo a que não existe norma que lhe retire essa função, subsistindo ainda outros preceitos normativos conexos que continuam a cometer essa tarefa ao MP em sentido positivo;
2) Da primeira parte do n.º 4 do art.º 25.º do CPTA apenas resulta que a citação feita ao Estado deve ser dirigida ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, cabendo-lhe assegurar a sua transmissão aos serviços competentes, v.g., ao Procurador da República junto do TAF onde corre o processo, ou em obediência à respetiva lei orgânica do MP:
3) A coordenação mencionada na última parte do mesmo n.º 4 não confere ao centro de Competências Jurídicas do Estado qualquer espécie de poder funcional sobre o MP, cabendo-lhe apenas coordenar com este último nos termos solicitados, designadamente recolhendo as informações e os elementos necessários junto dos diversos gabinetes ministeriais e preparando, de acordo com o solicitado e se tal suceder, os termos da defesa a apresentar pelo Estado”.

Inexistindo qualquer inconstitucionalidade, conforme exposto, impõe-se concluir, por conseguinte, que não deve ser declarada a existência de qualquer nulidade por falta de citação.
**
Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se:
A) Indeferir a requerida recusa de aplicação, neste processo, das normas constantes do segmento final do n.º 1 do artigo 11.º e do n.º 4 do artigo 25.º do CPTA, na redacção conferida pela Lei n.º 118/2019, de 17/09, por inconstitucionalidade material; e, consequentemente,
B) Indeferir a requerida declaração de nulidade por falta de citação, com a consequente anulação de todo o processado posterior à petição inicial e a determinação da citação do Estado no Ministério Público".

2 . MATÉRIA de DIREITO

No caso dos autos, as questões a decidir resumem-se em determinar se, na situação vertente, a decisão recorrida, ao indeferir o requerimento apresentado, quanto à requerida recusa de aplicação das normas constantes do segmento final do n.º 1 do artigo11.º e do n.º 4 do artigo 25.º do CPTA, na redacção da Lei n.º 118/2019, bem como, consequentemente, quanto à requerida declaração de nulidade da citaçãodo réu Estado e anulação do processado posterior à petição inicial”, incorreu em erro de julgamento.
Sintetizando, a tese do Ministério Público consiste, no seguinte:
- Ocorre a nulidade da citação do Réu Estado Português operada por ofício dirigido ao Centro de Competências Jurídicas do Estado por entender que o mesmo deve ser representado por si, sendo materialmente inconstitucionais as normas constantes do segmento final do n.° 1 do art.º 11.° e do n.° 4 do art.º 25.° do CPTA, na redacção da Lei n.° 118/2019, de 17/09, que dispõem em sentido contrário, por violação do disposto no artigo 219.° da CRP.
Porque sobre a questão decidenda este TCA-N já se pronunciou em vários acórdãos, nos quais foi negada razão à tese defendida pelo Ministério Público, nomeadamente nos acórdãos de 3/07/2020, proc. n.º 902/19.2BEPNF-S1, 18/09/2020, proc. n.º 1240/19.4BEPNF-S1, 18/12/2020, proc. n.º 895/20.1BEPRT-S1, 18/12/2020, proc. n.º 1031/19.2BEAVR-S1, 22/01/2021, proc. n.º 714/19.1BECBR-S1 e de 19/02/2021, proc. n.º 952/20.4BEPRT-S2 e, mais recentemente no Ac. de 8/10/2021, Proc. n.º 3262/19.6BEPRT-S1 --- que o Relator deste processo também subscreveu, na qualidade de adjunto ---, perante a total correspondência entre a questão decidenda e a que foi apreciada e decidida nos referidos acórdãos, cuja fundamentação acompanhamos integralmente, remetemos a resposta à aludida questão para a solução que lhe foi dada no acórdão de 3/07/2020, proc. n.º 902/19.2BEPNF-S1, que, data venia, transcrevemos:
"...
3. Da análise e apreciação do recurso
3.1. A questão essencial que vem colocada em recurso é a de saber se as normas constantes do segmento final do n.º 1 do artigo 11º e do n.º 4 do artigo 25º do CPTA, na redação dada pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, deviam ter sido desaplicadas, por materialmente inconstitucionais, em termos que ao invés da citação ter sido dirigida ao CENTRO DE COMPETÊNCIAS JURÍDICAS DO ESTADO devia ter sido dirigida ao MINISTÉRIO PÚBLICO por ser este quem deve representar na ação o demandado ESTADO PORTUGUÊS, e se, assim, o Tribunal a quo devia ter deferido a arguição de nulidade da falta de citação do réu ESTADO PORTUGUÊS.
3.2. A questão surge na decorrência das alterações introduzidas ao CPTA pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro que a nova versão dada aos artigos 11º e 25º do CPTA operou no que toca à representação do ESTADO nos processos nos Tribunais Administrativos.
Sendo que, naturalmente, a aferição da eventual inconstitucionalidade daquelas normas por violação do artigo 219º n.ºs 1 e 2 da CRP, que foi suscitada na arguição da nulidade por falta de citação do réu ESTADO PORTUGUÊS, relevará apenas na medida em que se for de concluir pela invocada inconstitucionalidade das indicadas normas, a sua aplicação deve ser recusada (cfr. artigo 204º da CRP).
3.3. Atentemos, então, nas normas em causa.
3.4. Dispõe o seguinte o artigo 219º da CRP:
“Artigo 219º
Funções e Estatuto
1. Ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como, com observância do disposto no número seguinte e nos termos da lei, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática.
2. O Ministério Público goza de estatuto próprio e de autonomia, nos termos da lei.
3. (…)
4. (…)
5. (…). ”
O artigo 11º do CPTA na sua versão original (a da Lei n.º 15/2002, de 22 de fevereiro), dispunha o seguinte:
“Artigo 11º
Patrocínio judiciário e representação em juízo
1 - Nos processos da competência dos tribunais administrativos é obrigatória a
constituição de advogado.
2 - Sem prejuízo da representação do Estado pelo Ministério Público nos processos que tenham por objecto relações contratuais e de responsabilidade, as pessoas colectivas de direito público ou os ministérios podem ser representados em juízo por licenciado em Direito com funções de apoio jurídico, expressamente designado para o efeito, cuja actuação no âmbito do processo fica vinculada à observância dos mesmos deveres deontológicos, designadamente de sigilo, que obrigam o mandatário da outra parte.
3 - Para o efeito do disposto no número anterior, e sem prejuízo do disposto nos dois números seguintes, o poder de designar o representante em juízo da pessoa colectiva de direito público ou, no caso do Estado, do ministério compete ao auditor jurídico ou ao responsável máximo pelos serviços jurídicos da pessoa colectiva ou do ministério.
4 - Nos processos em que esteja em causa a actuação ou omissão de uma entidade administrativa independente, ou outra que não se encontre integrada numa estrutura hierárquica, a designação do representante em juízo pode ser feita por essa entidade.
5 - Nos processos em que esteja em causa a actuação ou omissão de um órgão subordinado a poderes hierárquicos, a designação do representante em juízo pode ser feita por esse órgão, mas a existência do processo é imediatamente comunicada ao ministro ou ao órgão superior da pessoa colectiva.”
Com a revisão operada ao CPTA pelo DL. n.º 214-G/2015, de 2 de outubro os n.ºs 1 e 2 daquele artigo 11º foram alterados e aditado ainda um novo n.º 6, os quais passaram a dispor o seguinte:
“Artigo 11º
Patrocínio judiciário e representação em juízo
1 - Nos tribunais administrativos é obrigatória a constituição de mandatário, nos termos previstos no Código do Processo Civil, podendo as entidades públicas fazer-se patrocinar em todos os processos por advogado, solicitador ou licenciado em direito ou em solicitadoria com funções de apoio jurídico, sem prejuízo da representação do Estado pelo Ministério Público.
2 - No caso de o patrocínio recair em licenciado em direito ou em solicitadoria com funções de apoio jurídico, expressamente designado para o efeito, a referida atuação no âmbito do processo fica vinculada à observância dos mesmos deveres deontológicos, designadamente de sigilo, que obrigam o mandatário da outra parte.
3 – (…).
4 - (…).
5 - (…).
6 - Os agentes de execução desempenham as suas funções nas execuções que sejam da competência dos tribunais administrativos.”

A Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, que veio mais recentemente, modificar os regimes processuais no âmbito da jurisdição administrativa e tributária, procedendo a diversas alterações legislativas, alterou a redação do n.º 1 do artigo 11º do CPTA, a qual passou a dispor o seguinte:
“Artigo 11º
Patrocínio judiciário e representação em juízo
1 - Nos tribunais administrativos é obrigatória a constituição de mandatário, nos termos previstos no Código do Processo Civil, podendo as entidades públicas fazer-se patrocinar em todos os processos por advogado, solicitador ou licenciado em direito ou em solicitadoria com funções de apoio jurídico, sem prejuízo da possibilidade de representação do Estado pelo Ministério Público.
(…)”
Simultaneamente também o artigo 25º do CPTA foi modificado.
Na versão original do CPTA (que veio a resultar da Lei n.º 4-A/2003, de 19 de fevereiro) dispunha o seguinte:
“Artigo 25º
Citações e notificações
Sem prejuízo do que, neste Código, especificamente se estabelece a propósito da citação dos contra-interessados quando estes sejam em número superior a 20, é aplicável o disposto na lei processual civil em matéria de citações e notificações.”
E com a revisão operada pelo DL. n.º 214-G/2015 passou a dispor o seguinte:
“Artigo 25º
Citações e notificações
1 - Salvo disposição em contrário, as citações editais são realizadas mediante a publicação de anúncio em página informática de acesso público, nos termos a definir em portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça.
2 - Em todas as formas de processo, todos os articulados e requerimentos autónomos e demais documentos apresentados após a notificação ao autor da contestação do demandado são notificados pelo mandatário judicial do apresentante ao mandatário judicial da contraparte nos termos da lei processual civil.
3 - A notificação determinada no número anterior pode realizar-se por meios eletrónicos, nos termos de portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça.”
E com a Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, assumiu a atual versão, com a modificação da redação dos n.ºs 3 e 4, os quais passaram a dispor o seguinte:
“1 - (…)
2 - (…)
3 - A notificação determinada no número anterior realiza-se por via eletrónica, nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça.
4 - Quando seja demandado o Estado, ou na mesma ação sejam demandados diversos ministérios, a citação é dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, que assegura a sua transmissão aos serviços competentes e coordena os termos da respetiva intervenção em juízo.”
3.5. Na atual versão dos dispositivos dos artigos 11º e 25º do CPTA resulta que a representação do ESTADO nas ações em que este seja parte demandada (por a ele lhe pertencer a legitimidade passiva nos termos do artigo 10º do CPTA) fica agora apenas garantida a possibilidade da sua representação em juízo ser assegurada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, e não já, como acontecia anteriormente, que essa representação a si lhe pertença. Simultaneamente, a citação do ESTADO deixou de se operar «na pessoa do magistrado do Ministério Público» na usual fórmula utilizada, e passou a ser dirigida ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, serviço central da administração direta do Estado, dotado de autonomia administrativa, que se integra na Presidência do Conselho de Ministros e está sujeito ao poder de direção do Primeiro-Ministro ou do membro do Governo em quem aquele o delegar (cuja orgânica foi aprovada pelo DL. n.º 149/2017, de 6 de dezembro, e posteriormente alterada pelo DL. n.º 91/2019, de 5 de julho).
3.6. A questão está em saber se estes dispositivos, na sua atual redação, atentam a Constituição nos termos invocados pelo MINISTÉRIO PÚBLICO.
3.7. Mas estão aqui em causa duas vertentes da representação da pessoa coletiva ESTADO no âmbito do contencioso administrativo: uma a vertente orgânica (funcional), outra na vertente de patrocínio judicial.
3.8. Ora, se o que importa aferir é se ocorreu a invocada falta de citação do ESTADO, por a citação ter sido dirigida ao Centro de Competências Jurídicas do Estado nos termos atualmente previstos no artigo 25º n.º 4 do CPTA (e não ao MINISTÉRIO PÚBLICO, como acontecia na solução legal anterior), não relevam aqui, e para a utilidade do presente recurso, os argumentos tecidos em torno da questão da invocada subalternização do MINISTÉRIO PÚBLICO à vontade da Administração, nem da invocada afronta à autonomia do MINISTÉRIO PÚBLICO, decorrente do artigo 219º n.º 2 da CRP e legalmente definida no respetivo Estatuto (à data da instauração da ação o aprovado pela Lei n.º 47/86, de 15 de outubro, atualmente o aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27 de Agosto, cuja entrada em vigor ocorreu em 01/01/2020 – cfr. artigo 287º), os quais se prendem já com o papel do MINISTÉRIO PÚBLICO enquanto “advogado” do ESTADO.
Essa questão (atinente já ao patrocínio judiciário e representação em juízo) colocar-se-á a jusante da que agora nos interessa.
3.9. A que agora releva e importa é saber se a opção do legislador infra-constitucional, de fazer operar a citação da pessoa coletiva ESTADO, quando este seja demandado no âmbito dos processos nos tribunais administrativos, através do Centro de Competências Jurídicas do Estado, fere ou não o artigo 219º n.º 1 da CRP.
Sabendo-se que a citação é o ato pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada ação e se chama ao processo para se defender (cfr. artigo 219º n.º 1 do CPC, ex vi do artigo 1º do CPTA).
3.9. E a resposta tem que ser negativa.
3.10. É sabido que a questão do carater necessário ou não da representação do ESTADO pelo MINISTÉRIO PÚBLICO no âmbito das ações sobre contratos ou relativas à responsabilidade civil não é de hoje.
Aliás, a opção legislativa acolhida pelo CPTA (na reforma do contencioso administrativo operada em 2002-2004) havia sido já amplamente debatida no debate universitário que antecedeu aquela reforma do contencioso administrativo, e continuou a sê-lo posteriormente.
A tal respeito, vide, designadamente, Vieira de Andrade, defendendo fim do patrocínio do Estado pelo Ministério Público, em especial nas acções de responsabilidade, in, “Reforma do Contencioso Administrativo – O debate universitário (trabalhos preparatórios), Vol. I, Coimbra Editora, 2003, pág. 70, e in, “A Justiça Administrativa (Lições)”, 5ª Edição, Almedina, 2004, pág. 267. No mesmo sentido, associando-se à critica de continuar a atribuir-se ao MINISTÉRIO PÚBLICO a representação do ESTADO, Pedro Gonçalves, in, “A acção administrativa comum” – “A Reforma da Justiça Administrativa”, STVDIA IVRIDICA n.º 86, Boletim da Faculdade De Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, Dezembro 2005, pág. 167 (n. 90). Veja-se, ainda, Maria Isabel F. Costa, in, "O Ministério Público no contencioso administrativo - Memória e "Razão de Ser"", Revista do Ministério Público, Ano 28, AbrJun 2007, pág. 28, destacando ser função nuclear do MINISTÉRIO PÚBLICO a defesa da legalidade democrática, com expressão na acção penal e na ação pública do contencioso administrativo.
3.11. O certo é que se manteve, na reforma do contencioso administrativo operada em 2002-2004 a regra da representação do ESTADO nas ações sobre contratos e relativas à responsabilidade civil. Opção legislativa que foi agora alterada pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro.
3.12. Mas a questão objeto do recurso não é a de saber se o ESTADO, demandado que foi como réu na ação, se encontra ou não regularmente representado em juízo (enquanto pressuposto processual).
A questão é a de saber se ocorreu nulidade (falta) de citação (enquanto nulidade processual), se ao abrigo do artigo 25º n.º 4 do CPTA, na sua versão atual, a citação foi dirigida ao CENTRO DE COMPETÊNCIAS JURÍDICAS DO ESTADO, por dever ser recusada a aplicação dessa norma com fundamento em inconstitucionalidade. E se, assim, deve ser anulado todo o processado, e determinada a citação do ESTADO através do MINISTÉRIO PÚBLICO.
Atenha-se que nos termos do artigo 188º n.º 1 alínea b) do CPC, aplicável ex vi do artigo 1º do CPTA, há falta de citação “… quando tenha havido erro de identidade do citado”.
3.13. É sabido que o nomini nomine «ESTADO» tem várias aceções. Mas neste âmbito, a que essencial releva é a pessoa coletiva ESTADO, em especial na sua vertente Estado-administração, fazendo-o distinguir-se das outras pessoas coletivas públicas dotadas de personalidade jurídica (e, por conseguinte, também, judiciária).
Sendo que a qualificação do ESTADO como pessoa coletiva decorre da própria Constituição, designadamente dos seus artigos 3º n.º 3, 5º n.º 3, 18º n.º 1, 22º, 27º n.º 5, 38º n.º 2, 41º n.º 4, 204º n.º 1 alínea b) e n.º 2, 269º n.ºs 1 e 2, 271º n.ºs 1 e 4 ou 276º n.º 4, sendo particularmente significativas, neste conspecto, as disposições onde se atribuem direitos ou deveres ao ESTADO e às outras pessoas coletivas públicas – vide, a este respeito, Diogo Freitas do Amaral, in, “Curso de Direito Administrativo”, Vol. I, II edição, Almedina, pág. 213 ss.
3.14. Na versão anterior do CPTA o chamamento do ESTADO à ação sobre contrato ou relativa a responsabilidade civil que contra ele tivesse sido instaurada fazia-se através da citação dirigida ao MINISTÉRIO PÚBLICO, que era quem também, quem atuava na ação em sua representação legal.
Como refere Alexandra Leitão, in, “A Representação do Estado pelo Ministério Público nos Tribunais Administrativos”, JULGAR, n.º 20, 2013, pág. 13 ss. tratava-se aí de uma representação legal e não propriamente, como representação orgânica, como vinha sendo entendido em alguma doutrina “(…) enquanto a representação orgânica decorre da própria natureza das coisas — é, por assim dizer, lógica e ontológica —, a representação legal decorre de uma opção do legislador. Por outras palavras: seria possível optar-se por não cometer ao Ministério Público a representação em juízo do Estado, mas seria impossível determinar que a pessoa coletiva deixasse de ser representada por um ou mais dos seus órgãos, pela simples razão que as pessoas coletivas são entidades imateriais que carecem sempre de um ou mais órgão(s) e do(s) seu(s) titular(es) para manifestar a sua vontade. Este é o cerne da distinção entre representação orgânica e legal.”
3.15. A circunstância de a expressão «representação», usada nas normas em causa, não é, assim unívoca, sendo aplicada com aceções diferentes. As suas repercussões são, aliás, explicitadas, no âmbito da versão original do CPTA, por Esperança Mealha, in, “Personalidade Judiciária e Legitimidade Passiva das Entidades Públicas”, CEDIPRE ONLINE I 2, novembro 2010, pág. 29, na análise que ali se efetua quanto à medida em que a representação do ESTADO pelo MINISTÉRIO PÚBLICO interferia com os critérios de atribuição de personalidade judiciária vertidos no artigo 10º CPTA.
3.16. Não vemos como a representação orgânica da pessoa coletiva ESTADO nos tribunais administrativos, em defesa dos seus interesses patrimoniais, que são os que estão em causa nas ações sobre contratos e relativas à responsabilidade, esteja constitucionalmente acometida ao MINISTÉRIO PÚBLICO.
Mas será que o artigo 219º n.º 1 da CRP ao determinar, sob a epígrafe “Funções e Estatuto” que “ao Ministério Público compete representar o Estado”, lhe reserva a ele a representação legal do ESTADO nessas mesmas ações?
3.17. As justificações para a solução infra-constitucional adoptada pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro podem ser muitas. Mas uma delas adverirá, com certeza, da circunstância aos dois meios processuais principais - a «ação administrativa comum» e a «ação administrativa especial», cujos respetivos âmbitos e regras processuais eram distintas (cfr. artigos 35º, 37º, 42º e 46º do CPTA, na versão original) – com a revisão operada pelo DL. n.º 214-G/2015, ter resultado o abandono daquele modelo dualista de meios processuais principais não urgentes, através do estabelecimento de uma única forma de processo declarativo não urgente, a «ação administrativa», na qual passaram a poder ser cumulados pedidos que anteriormente pertenciam a cada uma daquelas distintas formas de processo. Daí emergindo múltiplas dificuldades ao nível da determinação da legitimidade passiva, resultando, não raras vezes, em decisões de forma, com absolvição da instância, e sem possibilidade de aproveitamento do ato de citação, nem da respetiva interrupção da prescrição ou da caducidade, a verificar-se. Podendo, até, raiar em situações de denegação de justiça, com prejuízo dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
3.17. Assim se explicará que a citação deva ser dirigida uma única citação ao Centro de Competências Jurídicas do Estado quando numa na mesma ação sejam demandados diversos ministérios, quando numa ação seja demandado o ESTADO, ou quando na mesma ação sejam demandados diversos ministérios e o ESTADO, sendo que foi aliás esta última hipótese que sucedeu nos autos. E com essa citação, que o ESTADO (e/ou os Ministérios que sejam também demandados) é chamado à ação, e a instância fixada, nos termos do artigo 260º do CPC, ex vi do artigo 1º do CPTA (sem prejuízo das eventuais modificações que possam vir a ocorrer nos termos que processualmente sejam admitidos).
3.18. Não cabe aqui fazer qualquer juízo quanto ao melhor acerto da opção legislativa adoptada na Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, já que num Estado de Direito assente no primado da Lei (cfr. arts. 2.º e 3.º, n.ºs 1 e 2 da CRP) na sua aplicação aos casos concretos têm de ser acatados os juízos de valor legislativamente formulados, quando não ofendam normas de hierarquia superior nem se demonstre violação de limitações legais de carácter geral “…não podendo o intérprete sobrepor à ponderação legislativa os seus próprios juízos sobre o que pensa que deveria ser regime legal, mesmo que os considere mais adequados e equilibrados que os emanados dos órgãos de soberania com competência legislativa.” (cfr., por todos, o Acórdão do Pleno do STA de 13/11/2007, Procº n.º 01140/06, in, www.dgsi.pt/jsta).
3.19. Ainda que sejam de reportar as dificuldades da sua articulação com outras normas do sistema jurídico infra-constitucional.
Designadamente as decorrentes de o Estatuto do MINISTÉRIO PÚBLICO (à data da instauração da ação o aprovado pela Lei n.º 47/86, de 15 de outubro, atualmente o aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto, cuja entrada em vigor ocorreu em 01/01/2020 – cfr. artigo 287º), se referir à intervenção principal do MINISTÉRIO PÚBLICO quando representa o ESTADO, as REGIÕES AUTÓNOMAS ou as AUTARQUIAS LOCAIS, simultaneamente dispondo que “… em caso de representação de região autónoma, de autarquia local ou, nos casos em que a lei especialmente o permita, do Estado, a intervenção principal cessa quando for constituído mandatário próprio” (cfr. artigo 5º n.º 1 alíneas a) e b) e n.ºs do Estatuto antigo e artigo 9º do Estatuto novo) e de prever a existência de departamentos de contencioso do ESTADO enquanto órgão de coordenação e de representação do ESTADO em juízo em matéria cível, administrativa e tributária (cfr. artigo 51º do Estatuto antigo e 61º do Estatuto novo) aos quais compete (cfr. artigo 52º n.º 1 do Estatuto antigo e 61º n.º 1 do Estatuto novo) a “… representação do Estado em juízo, na defesa dos seus interesses patrimoniais, em casos de especial complexidade ou de valor patrimonial particularmente relevante, mediante decisão do Procurador-Geral da República (alínea a)); “… organizar a representação do Estado em juízo, na defesa dos seus interesses patrimoniais” (alínea b)); “… assegurar a defesa dos interesses coletivos e difusos” (alínea c)); “… preparar, examinar e acompanhar formas de composição extrajudicial de conflitos em que o Estado seja interessado” (alínea d)), e ainda “… apoiar os magistrados do Ministério Público na representação do Estado em juízo” (n.º 2).
3.19. Sendo certo que por outro lado, e no que toca às ações cíveis, o CPC atual dispõe no seu artigo 24º, a respeito da representação do ESTADO que este é nelas “… representado pelo Ministério Público, sem prejuízo dos casos em que a lei especialmente permita o patrocínio por mandatário judicial próprio, cessando a intervenção principal do Ministério Público logo que este esteja constituído” (n.º 1), ressalvando que “… se a causa tiver por objeto bens ou direitos do Estado, mas que estejam na administração ou fruição de entidades autónomas, podem estas constituir advogado que intervenha no processo juntamente com o Ministério Público, para o que são citadas quando o Estado seja réu; havendo divergência entre o Ministério Público e o advogado, prevalece a orientação daquele”.
Não podendo deixar de se estranhar, que quando estejam em causa ações da mesma natureza, mas por não integrarem a área da competência da jurisdição administrativa e fiscal (cfr. artigo 4º do ETAF), estejam submetidas à jurisdição dos tribunais comuns, a representação do ESTADO possa ser feita de modo tão diametralmente distinto.
3.20. Claro que o inciso da parte final do n.º 4 do artigo 25º do CPTA na sua versão atual, no qual, referindo-se ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, se diz que este “assegura a sua transmissão aos serviços competentes e coordena os termos da respetiva intervenção em juízo” poderá criar dúvidas quanto à forma como será assegurada, em tal caso, a garantia da autonomia do MINISTÉRIO PÚBLICO, nos termos do artigo 219º n.º 2 da CRP e do respetivo Estatuto, em relação aos demais órgãos do poder central, regional e local (cfr. artigo 2º do Estatuto antigo e 3º do Estatuto novo).
Mas não é despiciente relembrar que nos termos Estatuto antigo (aprovado pela Lei n.º 47/86) não só era contemplada a interligação entre a atuação judicial do MINISTÉRIO PÚBLICO em representação do ESTADO e os demais serviços do Estado, cuja atuação estivesse implicada, como se previa que ao Ministro da Justiça competia transmitir, ainda que por intermédio do Procurador-Geral da República, instruções de ordem específica nas acções cíveis e nos procedimentos tendentes à composição extrajudicial de conflitos em que o Estado fosse interessado ou autorizar o Ministério Público, ouvido o departamento governamental de tutela, a confessar, transigir ou desistir nas acções cíveis em que o Estado fosse parte (cfr. artigo 80º alíneas a) e b) do Estatuto antigo).
3.21. E recentrando-nos na invocada desconformidade das normas em causa, temos que reafirmar a análise feita pela 1ª instância quanto à convocação do artigo 219º n.º 1 da CRP, nos termos da qual “ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como, com observância do disposto no número seguinte e nos termos da lei, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática”. Dando por renovados os entendimentos doutrinais ali citados a tal respeito. Os quais evidenciam que a discussão em torno da representação do ESTADO pelo MINISTÉRIO PÚBLICO se encontra atualmente já limitada. Na medida em que é aceite, sem reservas, a conformidade constitucional com o inciso “ao Ministério Público compete representar o Estado” constante da primeira parte do n.º 1 do artigo 219º da CRP, quanto às demais opções legais em que a representação do ESTADO, e a defesa dos interesses patrimoniais deste, não são feitas pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, mas pelas entidades ou órgãos integrados na administração direta ou indireta do Estado (tenham ou não personalidade jurídica), quando nos termos da lei processual aplicável lhes é reconhecida personalidade e capacidade judiciária.
O que significa que restam apenas em discussão as ações relativas a contratos e a responsabilidade civil extracontratual em que o ESTADO seja demandado nos Tribunais Administrativos. E não se vê em como possam estas considerar-se núcleo essencial das funções do MINISTÉRIO PÚBLICO referidas no n.º 1 do artigo 219º da CRP.
3.22. E por último sempre importará ainda dizer que independentemente de estar ou não a matéria em causa, regulada nos dispositivos dos artigos 11º e 24º do CPTA na versão dada pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, no âmbito da reserva relativa da assembleia da república nos termos do artigo 165º n.º 1 da CRP, também apontado como violado, o certo é que essa competência legislativa foi observada.
3.23. Aqui chegados, tem pois que concluir-se, dever ser negado provimento ao recurso e manter-se, com a antecedente fundamentação, a decisão do Mmº Juiz a quo que indeferiu a arguição de nulidade de falta da citação”.
Termos em que, pelas razões expostas no acórdão transcrito, plenamente subsumíveis ao presente recurso e que acompanhamos por se mostrarem concordantes com o direito aplicável ao caso vertente, as normas constantes do segmento final do nº 1 do artigo 11º e do nº 4 do artigo 25º do CPTA, na actual redacção, que fazem operar a citação da pessoa coletiva Estado, quando este seja demandado no âmbito dos processos nos Tribunais Administrativos, através do Centro de Competências Jurídicas do Estado, não violam a normação constitucional invocada pelo Ministério Público.
Concludentemente, não ocorre qualquer nulidade processual decorrente da falta da citação do Ministério Público, improcedendo o alegado erro de julgamento imputado ao despacho recorrido".

III
DECISÃO

Nestes termos, acordam, em conferência, os juízes deste Tribunal em negar provimento ao recurso e assim manter a decisão recorrida.
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Sem custas.
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Notifique-se.
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DN.



Porto, 22 de Outubro de 2021

Antero Salvador
Helena Ribeiro
Conceição Silvestre