Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:02790/11.6BEPRT
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:11/15/2018
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Pedro Vergueiro
Descritores:IMPUGNAÇÃO JUDICIAL. JULGAMENTO DA MATÉRIA DE FACTO. CESSAÇÃO DE ACTIVIDADE. PRESUNÇÃO DE ALIENAÇÃO DOS BENS DO ACTIVO. ART. 3º Nº 3 AL. F) DO CIVA.
Sumário:
I) A lei processual civil impõe ao recorrente um ónus rigoroso, cujo incumprimento implica a imediata rejeição do recurso, o que significa que o Recorrente tem de especificar, obrigatoriamente, na alegação de recurso, não só os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, mas também os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que, em sua opinião, impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da adoptada pela decisão recorrida.
II) Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da lógica, da ciência e da experiência, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção.
III) Não subsistindo dúvidas sobre o facto de a aludida sociedade ter cessado a prática de actos relacionados com a actividade determinante da tributação durante um período de dois anos, tal implica a transmissão da eventual existência de produtos a favor do titular do estabelecimento nos termos da al. f) do nº 3 do art. 3º do CIVA, sendo que, como se disse, o conceito de transmissão corresponde à ficção da transferência onerosa de bens corpóreos por forma correspondente ao direito de propriedade, embora não corresponda ao conceito jurídico deste direito, sendo que se presumem transmitidos, nos termos da alínea f) do n.º 3 do artigo 3.º, os bens a essa data existentes no activo da empresa O princípio da especialização dos exercícios visa tributar a riqueza gerada em cada exercício, independentemente do seu efectivo recebimento, pelo que ganha especial relevância nos casos em que não existe coincidência entre o exercício em que os ganhos ou perdas são contabilizados e o exercício em que os recebimentos ou despesas correspondentes têm lugar.
IV) Tal equivale a dizer que, na verdade, o trabalho dos Recorridos acabou por, acima de tudo, por confirmar a bondade do procedimento da AT, na medida se provou que, à data da cessação oficiosa da SDO esta era proprietária dos bens existentes na empresa que se traduzem em mercadorias no valor total de € 391.141,96 e imobilizado corpóreo líquido de amortizações no valor de €108.800,42, no valor total de €499.942,38. *
*Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:Autoridade Tributária e Aduaneira
Recorrido 1:FAFF
Votação:Unanimidade
Decisão:
Conceder provimento ao recurso
Revogar a sentença recorrida
julgar improcedente a impugnação
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

1. RELATÓRIO
A Excelentíssima Representante da Fazenda Pública, devidamente identificada nos autos, inconformada veio interpor recurso jurisdicional da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, datada de 22-05-2018, que julgou procedente a pretensão deduzida por JASBM e FAFF na presente instância de IMPUGNAÇÃO relacionada com o acto de liquidação oficiosa de IVA no montante de € 94.989,05.
Formulou nas respectivas alegações, as seguintes conclusões que se reproduzem:
“(…)
A. Vem o presente recurso interposto da douta sentença que anulou a liquidação oficiosa de Imposto sobre o Valor acrescentado (IVA), n.º 05162519, no valor total de €94 898,05.
B. Com a ressalva do sempre devido respeito, não pode a Fazenda Pública conformar-se com o doutamente decidido, porquanto considera que da prova produzida não é possível extrair a conclusão que serviu de base à decisão proferida, padecendo a mesma de erro de julgamento quanto à matéria de facto e de direito, por valoração errada dos elementos constantes dos autos e ausência da análise crítica das provas que lhe cumpria conhecer, e consequentemente, erro na aplicação do direito, mormente, nos termos que a seguir se expõem.
C. Concluiu assim a douta sentença a quo, na parte que é desfavorável à ora recorrente,
(…) No caso em apreço, estamos, portanto, perante uma cessação de actividade presumida e uma ficção de transmissão de bens da empresa.
Trata-se assim de uma presunção estabelecida no art. 33/3/f, do CIVA que sendo presunção júris tantum (art. 73, da LGT e 350,2, do CC) é ilidível. Ora, entendemos que os impugnantes lograram ilidir tal presunção, pois demonstraram que não houve qualquer transmissão dos bens da sociedade executada, tendo estes ficado guardados e alguns penhorados.
Não tendo havido transmissão o IVA não é devido.(…)”
D. Dos elementos juntos aos autos não resulta que à guarda do impugnante JM tenham ficado os bens da MSMI conforme ponto 14 do probatório.
E. Nas declarações que prestou no âmbito do depoimento de parte devidamente autorizado, o impugnante disse que em meados do ano de ano de 2000, o BPI (capital de risco) mandou suspender a actividade da empresa, tendo sido elaborado um inventário e que os equipamentos ficaram à guarda de PT.
F. No ofício remetido aos autos de execução fiscal pelo Banco BPI, SA, junto aos autos, é referido que tanto quanto é do conhecimento daquela instituição os referidos equipamentos encontram-se à guarda do Senhor Arquitecto PANTL
G. No auto de penhora lavrado em 02.03.2011, o fiel depositário identificado é PANTA.
H. Assim, o facto provado sob o n.º 14 terá de ser eliminado, não podendo o mesmo integrar o quadro factológico dado como assente no probatório, o que expressamente se requer, com todas as legais consequências.
I. Na motivação não pode o tribunal indicar que a sua convicção também se baseou na prova testemunhal dizendo à posteriori que os depoimentos das testemunhas não contribuíram para a decisão da causa, sob pena de contradição entre os fundamentos e a decisão.
J. No caso em apreciação existe uma presunção a favor da Administração Tributária de que a cessação de actividade se verifica decorridos dois anos em que deixem de se praticar actos relacionados com actividades determinantes de tributação.
K. Trata-se portanto de uma presunção iuris tantum, que o impugnante não ilidiu, não tendo demonstrado que durante aqueles dois anos exerceu actividade.
L. No final de tal prazo (2 anos), verificada pois a cessação da actividade, a situação releva em termos tributários, na medida em que, todos os bens que nessa data façam parte do activo da empresa, se presumem transmitidos nos termos do artigo 3º, n.º 3, alínea f) do Código do IVA, isto porque,
M. Tendo os referidos bens sido adquiridos com direito à dedução do imposto suportado, deverá ser liquidado imposto nos termos do artigo 16º, n.º 2 alínea b) do Código do IVA.
N. A previsão deste normativo, artigo 3º, n.º 3 alínea f) mais não visa que combater a evasão e fraude fiscal.
O. Entende a meritíssima juiz, que os impugnantes lograram ilidir tal presunção, uma vez que demonstraram que não houve qualquer transmissão dos bens da sociedade executada, tendo estes ficado guardados e alguns penhorados.
P. A guarda e a penhora pela sociedade devedora originária, que fundamentam a alegada ilisão da presunção terão, em nosso entendimento consequência oposta.
Q. Com efeito, a guarda e penhora só demonstram que na data da cessação oficiosa da actividade os bens se encontravam na posse da MSMI.
R. Decidindo o Tribunal a quo como decidiu, a douta sentença recorrida enferma de erro de julgamento na matéria de facto por valoração errada da prova e de direito em violação do disposto nas normas supra invocadas (na redacção à data dos factos).
Termos em que,
Deve ser concedido provimento ao presente recurso jurisdicional e, em consequência, ser revogada a douta sentença recorrida, com as legais consequências.
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Os recorridos JASBM e FAFF apresentaram contra-alegações onde, apesar de não formularem conclusões, pugnam pela manutenção da decisão recorrida.
*
O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu o parecer de fls. 136-1380 dos autos, no sentido da improcedência do recurso.
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Colhidos os vistos dos Exmºs Juízes Desembargadores Adjuntos, vem o processo submetido à Conferência para julgamento.
2. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO –QUESTÕES A APRECIAR
Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sendo que as questões suscitadas resumem-se, em suma, em indagar se houve erro com referência à decisão sobre a matéria de facto e bem assim apreciar a bondade da decisão recorrida quando concluiu que os impugnantes lograram ilidir a presunção de alienação à data da cessação de todos os bens que constituíam o activo de acordo com o artigo 3.º, n.º 3, alínea f) do CIVA.
3. FUNDAMENTOS
3.1 DE FACTO
Neste domínio, consta da decisão recorrida o seguinte:
“…
1. A sociedade MSMI, S.A., contribuinte fiscal n.º 50…59, foi constituída por escritura pública em 11/03/1999 – P.A. em anexo;
2. Consta da certidão da Conservatória do Registo Comercial do Porto que em 14/04/2000 foi designado como presidente do conselho de administração da sociedade MSMI - FJCN, como vogais PANTL, JASRBM, FAFF e BPIP, SGPS, S.A., representada por PMMTP– PA;
3. A referida sociedade foi sujeita a inspecção inspectiva que culminou na cessação oficiosa da mesma e na liquidação oficiosa de IVA n.º 05162519, de 04/06/2005, no montante de €94.989,05 – PA em anexo;
4. Do relatório de inspecção consta que a sociedade deixou de praticar actos relacionados com a sua actividade por um período de 2 anos pelo que se presumem transmitidos por afectação os bens da empresa a uso próprio dos titulares;
5. Os Impugnantes apresentaram reclamação graciosa – PA;
6. Que lhes veio a ser indeferida – PA;
7. O Serviço de Finanças do Porto 4 instaurou o processo de execução fiscal n.º 3379200501042874, em nome de MSMI, SA, NIPC 50…59, por dívidas de IVA do período de 2002 no montante de €102,104,12 – PA;
8. Em 22/06/2006 foi exarado auto de diligências de onde decorre o seguinte: “(…) Não foram encontrados bens susceptíveis de penhora à executada. (…)” – fls. 23, do PA;
9. No âmbito deste processo foi proferido em 10/11/2010 no Serviço de Finanças do Porto despacho com o teor seguinte “(…) A divida exequenda respeita a IVA do período 200212. Nessa data, de acordo com os elementos registados na competente Conservatória do Registo Comercial, eram gerentes da executada JARBM NIF 11…37, FAFF, NIF 18…37, PANTL, NIF 13…05 e FJCN, NIF 13…13. De acordo com o disposto na alínea b) do Art° 24° da LGT os administradores, directores e outra pessoas que exerçam, ainda que somente de facto funções de administração ou gestão em pessoas colectivas e entes fiscalmente equiparados são subsidiariamente responsáveis em relação a estas e solidariamente entre si, pelas dividas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado no período do exercício do seu cargo, quando não provem que não lhes foi imputável a falta de pagamento, cabendo-lhes deste modo o ónus da prova nos termos do nº 2 do Art° 153° do Código de Processo e de Procedimento Tributário o chamamento à execução dos responsáveis subsidiários depende da verificação de qualquer das seguintes circunstâncias: a) Inexistência de bens penhoráveis do devedor e seus sucessores; b) Fundada insuficiência, de acordo com os elementos constantes do auto de penhora o que o órgão da execução fiscal disponha, do património do devedor para a satisfação da divida exequenda e acrescido. Os referidos gerentes foram devidamente notificado nos termos do nº 4 do Art° 23° da LGT para no prazo de dez dias exercer o direito de audição prévia tendo o Srºs JA e FA informado da existência de bens penhoráveis da devedora originário e o Srº PA e a Sra F…alegado o não exercício do cargo de gerente e a falta de culpa pela insuficiência do património da devedora. A folhas 200 verso dos autos constata-se que a divida exigida resulta do cumprimento do referido no Art° 33° nº 1 alínea a)e Art°3° nº 3 alínea f) do CIVA que referia " considera-se verificada cessação da actividade no momento em que deixem de praticar-se actos relacionados com actividade determinantes da tributação durante um período de dois anos consecutivos, caso em que se presumirão transmitidos nos termos da alínea f) do nº 3 do Art° 3, os bens a essa data existentes no activo da empresa". Destarte, nos termos da alínea b nº1 do citado Art° 24° da LGT e, por se mostrarem reunidos os pressupostos da responsabilidade subsidiaria face à insuficiência de bens penhoráveis do devedor originário, a sociedade que girava sob o nome de " MSMI, SA" , reverto a execução contra os referidos gerentes JASRBM, NIF 11…37, FAFF, NIF 18…37, PANTL, NIF 13…05 e FJCN, NIF 13…13 pela divida exequenda no montante de €102.104,12 (cento e dois mil cento e quatro euros e doze cêntimos) e, respectivos acréscimos legais (…)” – cfr. 13, do PA;
10. Em 12/11/2010 o Serviço de Finanças do Porto 4 remeteu aos Oponentes ofícios de onde decorre o seguinte: “(…) Inexistência ou insuficiência dos bens penhoráveis do devedor principal e responsáveis solidários, sem prejuízo do benefício da excussão (artº 23/ n.º 2 da LGT): Dos administradores, directores, ou gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas colectivas e entidades fiscalmente equiparadas, por não terem provado não lhes ser imputável a falta de pagamento da dívida, quando o prazo legal de pagamento/entrega da mesma terminou no período de exercício do cargo [art.24º/nº1/b) LGT]. – PA;
11. Os Impugnantes deduziam a presente impugnação – fls. 1 e ss., dos autos;
12. À data da cessação oficiosa da SDO esta era proprietária dos bens existentes na empresa que se traduzem em mercadorias no valor total de € 391.141,96 e imobilizado corpóreo líquido de amortizações no valor de €108.800,42, no valor total de €499.942,38 constituído por aparelhos de cardiologia, electrocardiogramas e monotorização e aparelhos de pneumologia – parte por acordo, p.i. e relatório de inspecção;
13. Que se encontram depositados num armazém;
14. À guarda do Impugnante JM e de um dos administradores, PAL;
15. O OEF expediu carta precatória ao SF de Vila do Conde para penhora de bens pertencentes ao devedor originário – fls. 27, dos autos;
16. Que foi concretizada, tendo sido atribuído um valor de €151.800,00 – fls. 27.
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Factos não provados:
Com interesse para a decisão da causa não foram apurados.
*
MOTIVAÇÃO.
A convicção do tribunal baseou-se no correlacionamento e análise crítica de toda a prova produzida nestes autos, com especial destaque para os documentos juntos ao PA, não impugnados, bem como nos factos sobre os quais as partes estão de acordo e ainda na prova testemunhal e declarações de parte, valorada da forma seguinte:
O Impugnante JAM declarou que os bens da SDO ficaram à sua guarda e do arquitecto Lemos e que foram penhorados, tendo prestado depoimento de forma coerente e credível, tendo ainda descrito o tipo de bens existentes.
A testemunha AB em nada contribuiu para a decisão da causa, pois nada sabia. A testemunha IM também não contribuiu para decisão da causa, pois depôs com incerteza.
Os factos que interessam à decisão da causa que se prendem com a cessação da actividade da SDO e a existência e destino dado aos bens resultam dos autos, pois a cessação foi decretada oficiosamente pela AT e os bens encontrados foram penhorados.”
3.2 DE DIREITO
Na matéria das suas primeiras conclusões do recurso, a Recorrente questiona a sentença recorrida quanto à decisão sobre a matéria de facto, sendo que constituindo tal erro de julgamento não só o primeiro aduzido mas, em especial, aquele de cuja decisão estaria dependente o que este Tribunal de recurso viesse a decidir quanto ao erro de julgamento de direito, impõe-se, naturalmente, que à sua apreciação venha a ser dada primazia.
Vejamos.
Na óptica da recorrente, dos elementos juntos aos autos não resulta que à guarda do impugnante JM tenham ficado os bens da MSMI conforme ponto 14 do probatório, pois que nas declarações que prestou no âmbito do depoimento de parte devidamente autorizado, o impugnante disse que em meados do ano de ano de 2000, o BPI (capital de risco) mandou suspender a actividade da empresa, tendo sido elaborado um inventário e que os equipamentos ficaram à guarda de PT e no ofício remetido aos autos de execução fiscal pelo Banco BPI, SA, junto aos autos, é referido que tanto quanto é do conhecimento daquela instituição os referidos equipamentos encontram-se à guarda do Senhor Arquitecto PANTL e no auto de penhora lavrado em 02.03.2011, o fiel depositário identificado é PANTA, de modo que, o facto provado sob o n.º 14 terá de ser eliminado, não podendo o mesmo integrar o quadro factológico dado como assente no probatório, o que expressamente se requer, com todas as legais consequências, além de que na motivação não pode o tribunal indicar que a sua convicção também se baseou na prova testemunhal dizendo a posteriori que os depoimentos das testemunhas não contribuíram para a decisão da causa, sob pena de contradição entre os fundamentos e a decisão.
Sobre esta matéria, e com referência ao julgamento da matéria de facto, crê-se pertinente apontar que com a revisão do CPC operada pelo DL n.º 329-A/95, de 12.12, e pelo DL n.º 180/96, de 25.09, foi instituído, de forma mais efectiva, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto.
Importa, porém, ter presente que o poder de cognição deste Tribunal sobre a matéria de facto ou controlo sobre a decisão de facto prolatada pelo tribunal “a quo” não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento de facto - art. 685º-B do CPC, que regula esta matéria depois da alteração introduzida pelo D.L. nº 303/07, de 24-08, porquanto, por um lado, tal possibilidade de conhecimento está confinada aos pontos de facto que o recorrente considere incorrectamente julgados e desde que cumpra os pressupostos fixados no art. 685º-B nºs 1 e 2 do CPC, e, por outro lado, o controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade (vide sobre esta problemática A.S. Abrantes Geraldes in: “Temas da Reforma do Processo Civil”, vol. II, págs. 250 e segs.).
Daí que sobre o recorrente impende um especial ónus de alegação quando pretenda efectuar impugnação com aquele âmbito mais vasto, impondo-se-lhe, por conseguinte, dar plena satisfação às regras previstas no art. 685º-B do CPC.
É que ao TCA assiste o poder de alterar a decisão de facto fixada pelo tribunal “a quo” desde que ocorram os pressupostos vertidos no art. 712.º, n.º 1 do CPC, incumbindo-lhe, nessa medida, reapreciar as provas em que assentou a decisão impugnada objecto de controvérsia, bem como apreciar oficiosamente outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre aqueles pontos da factualidade controvertidos.
Diga-se ainda que a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova por parte do julgador que se mostra vertido no art. 655.º do CPC, sendo certo que na formação da convicção daquele quanto ao julgamento fáctico da causa não intervém apenas elementos racionalmente demonstráveis, mas também factores não materializados, visto que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação e/ou na respectiva transcrição.
Na verdade, constitui dado adquirido o de que existem inúmeros aspectos comportamentais dos depoentes que não são passíveis de ser registados numa gravação simples áudio. Tal como já era apontado por Eurico Lopes Cardoso os depoimentos não são só palavras, nem o seu valor pode ser medido apenas pelo tom em que foram proferidas. Todos sabemos que a palavra é só um meio de exprimir o pensamento e que, por vezes, é um meio de ocultar. A mímica e todo o aspecto exterior do depoente influem, quase tanto como as suas palavras, no crédito a prestar-lhe e como tal apreendidos ou percepcionados por outro Tribunal que pretenda fazer a reapreciação da prova testemunhal, sindicando os termos em que a mesma contribuiu para a formação da convicção do julgador, perante o qual foi produzida (cfr. BMJ n.º 80, págs. 220 e 221).
Como tal, sempre o juiz perante o qual foram prestados os depoimentos estará em posição privilegiada em termos de recolha dos elementos e sua posterior ponderação, nomeadamente com a devida articulação de toda a prova oferecida, de que decorre a convicção plasmada na decisão proferida sobre a matéria de facto.
Em conformidade, a convicção resultante de tal articulação global, evidencia-se como sendo de difícil destruição, principalmente quando se pretende pô-la em causa através de indicações parcelares, ou referências meramente genéricas que o impugnante possa fazer, como contrárias ao entendimento expresso.
Com efeito e como tem vindo a ser entendimento jurisprudencial consensual o depoimento oral de uma testemunha é formado por um complexo de situações e factos em que sobressai o seu porte, as suas reacções imediatas, o sentido dado à palavra e à frase, o contexto em que é prestado o depoimento, o ambiente gerado em torno da testemunha, o modo como é feito o interrogatório e surge a resposta, tudo contribuindo para a formação da convicção do julgador.
Segundo a lição que se extrai dos ensinamentos de Enrico Altavilla "… o interrogatório como qualquer testemunho, está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá também aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras …" (in: "Psicologia Judiciária", vol. II, Coimbra, 3.ª edição, pág. 12).
Daí que a convicção do tribunal se forma de um modo dialéctico, pois, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas produzidas nos autos, importa atender também à análise conjugada das declarações produzidas e dos depoimentos das testemunhas, em função das razões de ciência, da imparcialidade ou falta dela, das certezas e ainda das lacunas, das contradições, das hesitações, das inflexões de voz, da serenidade, dos “olhares de súplica” para alguns dos presentes, da "linguagem silenciosa e do comportamento", da própria coerência de raciocínio e de atitude demonstrados, da seriedade e do sentido de responsabilidade evidenciados, das coincidências e inverosimilhanças que transpareçam no decurso da audiência de julgamento entre depoimentos e demais elementos probatórios.
Ao invés do que acontece nos sistemas da prova legal em que a conclusão probatória está prefixada legalmente, nos sistemas da livre apreciação da prova, como o nosso, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do discussão em sede de julgamento, com base apenas no juízo que se fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
Note-se, contudo, que este sistema não significa puro arbítrio por parte do julgador.
É que este pese embora livre no seu exercício de formação da sua convicção não está isento ou eximido de indicar os fundamentos onde aquela assentou por forma a que, com recurso às regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquele processo de formação da convicção sobre a prova ou não prova daquele facto, permitindo, desta feita, sindicar-se o processo racional da própria decisão.
Aliás, a nossa lei processual determina e faz impender sobre o julgador um ónus de objectivação da sua convicção, através da exigência da fundamentação da matéria de facto (da factualidade provada e da não provada), devendo aquele analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção (cfr. art. 653.º, n.º 2 do C. Proc. Civil).
É que não se trata de um mero juízo arbitrário ou de simples intuição sobre veracidade ou não de uma certa realidade de facto, mas antes duma convicção adquirida por intermédio dum processo racional, objectivado, alicerçado na análise critica comparativa dos diversos dados recolhidos nos autos na e com a produção das provas e na ponderação e maturação dos fundamentos e motivações, sendo que aquela convicção carece de ser enunciada ou explicitada por expressa imposição legal como garante da transparência, da imparcialidade e da inerente assunção da responsabilidade por parte do julgador na administração da justiça.
À luz desta perspectiva temos que se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da lógica, da ciência e da experiência, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção.
Aliás e segundo os ensinamentos de M. Teixeira de Sousa ”… o tribunal deve indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado. A exigência da motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão. Através da fundamentação, o juiz passa de convencido a convincente …” (in: “Estudos sobre o novo Processo Civil”, Lex, Lx 1997, pág. 348).
Presentes os considerandos que antecedem e na sequência dos mesmos temos que para que possa ser atendida nesta sede a divergência quanto ao decidido em 1.ª instância no julgamento de facto deverá ficar demonstrado, pelos meios de prova indicados pelo recorrente, a ocorrência de um erro na apreciação do seu valor probatório, exigindo-se, contudo e para tanto, que tais elementos de prova sejam inequívocos quanto ao sentido pretendido por quem recorre, ou seja, neste domínio, a lei processual civil impõe ao recorrente um ónus rigoroso, cujo incumprimento implica a imediata rejeição do recurso, o que significa que o Recorrente tem de especificar, obrigatoriamente, na alegação de recurso, não só os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, mas também os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que, em sua opinião, impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da adoptada pela decisão recorrida.
Neste domínio, diga-se que a afirmação de que na motivação não pode o tribunal indicar que a sua convicção também se baseou na prova testemunhal dizendo à posteriori que os depoimentos das testemunhas não contribuíram para a decisão da causa, sob pena de contradição entre os fundamentos e a decisão resulta deslocada, dado que, o Tribunal formou a sua convicção “na prova testemunhal e declarações de parte, valorada da forma seguinte”, ou seja, o Tribunal ponderou tal meio de prova, sendo que a análise em concreto da relevância desse meio de prova acabou por nada aportar de relevante para a factualidade apurada nos autos, sem que tal procedimento envolva qualquer contradição nos termos sugeridos pela Recorrente.
Quanto ao mais, é manifesto que a Recorrente não cumpre com o duplo ónus acima apontado, pois que, embora indique o elemento que pretendia ver eliminado do probatório, cumprindo desse modo o primeiro dos ónus que lhe é imposto na lei, já o mesmo não acontece quanto ao segundo ónus, uma vez que não indica o momento do depoimento (que ficou registado) do qual se retira a afirmação do impugnante no sentido de que em meados do ano de ano de 2000, o BPI (capital de risco) mandou suspender a actividade da empresa, tendo sido elaborado um inventário e que os equipamentos ficaram à guarda de PT e, mais importante do que isso, as passagens do depoimento susceptíveis de colocar em crise a apreciação do Tribunal a quo quando refere que “o Impugnante JAM declarou que os bens da SDO ficaram à sua guarda e do arquitecto Lemos e que foram penhorados, tendo prestado depoimento de forma coerente e credível, tendo ainda descrito o tipo de bens existentes.”, de modo que, não tendo a recorrente cumprido o determinado na norma citada, o recurso nesta parte é rejeitado, o que obsta a que este Tribunal proceda ao reexame de tal matéria de facto.
Em todo o caso, ainda que o Tribunal tivesse uma postura porventura mais generosa nesta sede, diga-se que os vários elementos destacados pela Recorrente não colocam em crise de forma decisiva a apreciação do Tribunal recorrido, dado que, independentemente do maior protagonismo do referido PL, tal não significa que os demais elementos da administração como o citado BPI estivessem totalmente alheados da situação, ou seja, a alegação da Recorrente não comporta elementos que permitam colocar em crise o processo racional da própria decisão, além de que se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da lógica, da ciência e da experiência, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção.
A partir daqui, assente a factualidade apurada cumpre, agora, entrar na análise da realidade essencial que envolve o presente recurso jurisdicional e que se prende com a bondade da decisão recorrida quando concluiu que os impugnantes lograram ilidir a presunção de alienação à data da cessação de todos os bens que constituíam o activo de acordo com o artigo 3.º, n.º 3, alínea f) do CIVA.
Nas suas alegações, a Recorrente defende que a guarda e a penhora pela sociedade devedora originária, que fundamentam a alegada ilisão da presunção tem a consequência oposta, na medida em que a guarda e penhora só demonstram que na data da cessação oficiosa da actividade os bens se encontravam na posse da MSMI.
Que dizer?
Pois bem, o art. 33º nº 1 al. a) do CIVA, dispunha, à data, que “1 - Para efeitos do disposto no artigo anterior, considera-se verificada a cessação da atividade exercida pelo sujeito passivo no momento em que ocorra qualquer dos seguintes factos: a) Deixem de praticar-se atos relacionados com atividades determinantes da tributação durante um período de dois anos consecutivos, caso em que se presumem transmitidos, nos termos da alínea f) do n.º 3 do artigo 3.º, os bens a essa data existentes no ativo da empresa”, referindo o art. 3º nº 3 al. f) do mesmo diploma que “3 - Consideram-se ainda transmissões de bens, nos termos do n.º 1 deste artigo: f) Ressalvado o disposto no artigo 26.º, a afectação permanente de bens da empresa, a uso próprio do seu titular, do pessoal, ou em geral a fins alheios à mesma, bem como a sua transmissão gratuita, quando, relativamente a esses bens ou aos elementos que os constituem, tenha havido dedução total ou parcial do imposto”.
Nesta sequência, tal como refere o Ac. do TCA Sul de 04/10/2005, Proc. nº 7381/02, www.dgsi.pt, citado pela Recorrente, “Neste preceito o conceito de transmissão corresponde à ficção da transferência onerosa de bens corpóreos por forma correspondente ao direito de propriedade, embora não corresponda ao conceito jurídico deste direito.
Na verdade, definindo-se o direito de propriedade como o pleno e exclusivo gozo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que pertencem ao seu titular, podendo ser dele objecto as coisas corpóreas, tanto móveis como imóveis, não é ele o critério consagrado naquele normativo do CIVA, mas antes o critério económico ou material como se infere da expressão “transferência por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade”. A essa luz, são consideradas genuínas transmissões as de facto por quem seja mero detentor das mercadorias ou por quem delas seja possuidor por tradição sem que seja o seu proprietário. Diga-se, no entanto, que à luz do artº 3º nº 3 al. f) do CIVA, é tributável a afectação permanente de bens da empresa a uso próprio do seu titular, do pessoal ou em geral a fins alheios à mesma, bem como a sua transmissão gratuita quando em relação a esses bens tenha havido dedução de imposto.
Como referem E, Pinto Fernandes e Nuno Pinto Fernandes, CIVA Anotado e Comentado, 4ª ed., pág. 67, “A tributação relativa ao consumo próprio do titular da empresa, do pessoal ou em geral a fins alheios à mesma visa por um lado combater a evasão e fraude fiscal e pelo outro, evitar a concorrência desleal entre os utilizadores, para que haja uniformidade na tributação do consumo. Trata-se da tributação do auto-consumo externo, ou seja, em fins estranhos à actividade da empresa. O auto-consumo interno de bens produzidos pela empresa e por ela utilizados no exercício da sua actividade quer no activo permutável quer no imobilizado não é, em regra, tributado”.
A partir daqui, tendo presente que a afirmada cessação da actividade do impugnante, nos termos da a) do n.º 1 do artigo 33.º do CIVA não foi posta em crise, o que torna actuante a presunção de transmissão prevista no artigo 3.º, n.º 3, alínea f) do mesmo Código, resta analisar a relevância da afirmação no sentido de que os impugnantes lograram ilidir esta presunção.
Neste ponto, o probatório aponta que à data da cessação oficiosa da SDO esta era proprietária dos bens existentes na empresa que se traduzem em mercadorias no valor total de € 391.141,96 e imobilizado corpóreo líquido de amortizações no valor de €108.800,42, no valor total de €499.942,38 constituído por aparelhos de cardiologia, electrocardiogramas e monotorização e aparelhos de pneumologia, que se encontram depositados num armazém à guarda do Impugnante JM e de um dos administradores, PAL, sendo que o OEF expediu carta precatória ao SF de Vila do Conde para penhora de bens pertencentes ao devedor originário, que foi concretizada, tendo sido atribuído um valor de €151.800,00.
Com este pano de fundo, temos por adquirido que a decisão recorrida não pode ser confirmada, dado que, tem de entender-se que o circunstancialismo fáctico aduzido pela AT na declaração fundamentadora do seu juízo subjectivo quanto à presunção de transmissão mostra-se apto a convencer sobre a adequação desse juízo, matéria que os Recorridos nem sequer colocam em crise, ou seja, assiste razão à Recorrente quando defende que a guarda e a penhora pela sociedade devedora originária, que fundamentam a alegada ilisão da presunção tem a consequência oposta, na medida em que a guarda e penhora só demonstram que na data da cessação oficiosa da actividade os bens se encontravam na posse da MSMI.
Com efeito, não subsistindo dúvidas sobre o facto de a aludida sociedade ter cessado a prática de actos relacionados com a actividade determinante da tributação durante um período de dois anos, tal implica a transmissão da eventual existência de produtos a favor do titular do estabelecimento nos termos da al. f) do nº 3 do art. 3º do CIVA, sendo que, como se disse, o conceito de transmissão corresponde à ficção da transferência onerosa de bens corpóreos por forma correspondente ao direito de propriedade, embora não corresponda ao conceito jurídico deste direito, sendo que se presumem transmitidos, nos termos da alínea f) do n.º 3 do artigo 3.º, os bens a essa data existentes no activo da empresa, o que significa que a realidade a ponderar está relacionada com os bens existentes no activo da empresa na data em que se completam os tais dois anos sem que exista qualquer prática de actos relacionados com a actividade determinante da tributação.
Tal equivale a dizer que, na verdade, o trabalho dos Recorridos acabou por, acima de tudo, por confirmar a bondade do procedimento da AT, na medida se provou que, à data da cessação oficiosa da SDO esta era proprietária dos bens existentes na empresa que se traduzem em mercadorias no valor total de € 391.141,96 e imobilizado corpóreo líquido de amortizações no valor de €108.800,42, no valor total de €499.942,38 constituído por aparelhos de cardiologia, electrocardiogramas e monotorização e aparelhos de pneumologia, que se encontram depositados num armazém à guarda do Impugnante JM e de um dos administradores, PAL, sendo que o OEF expediu carta precatória ao SF de Vila do Conde para penhora de bens pertencentes ao devedor originário, que foi concretizada, tendo sido atribuído um valor de €151.800,00.
Assim, existindo tais bens no activo da empresa no momento da cessação oficiosa da SDO, mais não restava à AT do que proceder nos termos descritos, não sendo relevante nesta sede a questão da penhora dos bens apontada nos autos, a qual veio a produzir-se muito tempo depois (2011).
A situação apenas poderia conhecer outros contornos no caso de tal penhora estar já realizada no momento decisivo para esta matéria, dado que, tratando-se de bens onerados, cremos que os mesmos teriam de ser subtraídos para efeitos de liquidação de imposto, dado estarem seguramente relacionados com a prática de actos relacionados com a actividade da empresa e, nesta medida, estarem fora do enquadramento da situação que conduz à cessação de actividade apontada nos autos.
4. DECISÃO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202.º da Constituição da República Portuguesa, em conceder provimento ao recurso jurisdicional interposto pela Recorrente, revogar a sentença recorrida e julgar improcedente a presente impugnação judicial.
Custas pelos Recorridos.
Notifique-se. D.N..
Porto, 15 de Novembro de 2018
Ass. Pedro Vergueiro
Ass. Ana Patrocínio
Ass. Ana Paula Santos