Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01832/19.1BEBRG-S1
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:04/30/2020
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Helena Ribeiro
Descritores:LEVANTAMENTO DO EFEITO SUSPENSIVO AUTOMÁTICO; TRANSPORTE ESCOLAR; ACESSO AO ENSINO; FACTOS NOTÓRIOS.
Sumário:1-O artigo 103.º-A do CPTA, introduzido pelo D.L. 214/-G/2015, de 02.10, associou o efeito suspensivo automático á impugnação dos atos de adjudicação, que apenas pode ser levantado por decisão judicial, desde que se verifiquem os requisitos legalmente estabelecidos.

2- As consequências adversas decorrentes da falta de transporte escolar para os alunos que dele fiquem privados são factos notórios conhecidos pelo juiz quando colocado na posição do cidadão comum, regularmente informado, sem necessidade de recorrer a operações lógicas nem a juízos presuntivos ( art.º 412.º, n.º2 do Cód. Civil), e como tal, não carecem de alegação, sequer de prova.

3- Há uma indiscutível supremacia do interesse público a acautelar com o levantamento do efeito suspensivo automático em relação ao interesse que a apelada pretende ver assegurado com a manutenção desse efeito suspensivo, quando ao interesse meramente económico da apelada se contrapõe o direito dos estudantes ao ensino e a uma formação plena e integral. *
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:MUNICIPIO DE (...)
Recorrido 1:T., LDA. E OUTRA
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Impugnação Urgente - Contencioso pré-contratual (arts. 100º e segs. CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
1
Decisão Texto Integral:Acordam os Juízes Desembargadores do Tribunal Central Administrativo do Norte:


I.RELATÓRIO


1.1.T., LDA., intentou contra o MUNICIPIO DE (...), com sede no Largo (…) (…), ação de contencioso pré-contratual, indicando como Contra-Interessada a sociedade M., LDA, visando obter decisão que determinasse: (i) a anulação do ato administrativo proferido no âmbito do concurso público para aquisição de serviços de transporte terrestre de alunos, em circuitos especiais, para o ano letivo de 2019/2020, do Município de (...); (ii) a anulação do contrato celebrado entre o Réu e a Contra-interessada; (iii) a condenação do Réu a adjudicar à Autora os lotes 6 e 8 do procedimento concursal.

1.2.O Réu MUNICÍPIO DE (...), regularmente citado na presente ação de contencioso pré-contratual, veio requerer o levantamento do efeito suspensivo automático, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 103.º-A do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA).
Alegou, para tanto e, em síntese, que nos presentes autos, está em discussão um procedimento concursal para aquisição de serviços de transporte terrestre de alunos, em circuitos especiais, para o ano letivo de 2019/2020.

No âmbito deste procedimento foram postos a concurso 15 lotes que correspondem a 15 circuitos e na se sequência das adjudicações já efetuadas, foram celebrados os contratos entre o Réu e a Autora para transporte dos alunos dos lotes 7, 10 e 11 e entre o Réu e a Contrainteressada M., LDA. para transporte dos lotes 1 a 6, 8, 10, 13 e 14;

Para os lotes 9, 12 e 15 não foram apresentadas quaisquer propostas, sendo o transporte dos alunos destes 3 lotes efetuado pela entidade adjudicante;
A Autora e a Contrainteressada garantem o transporte dos alunos dos lotes 1 a 8, 10, 12, 13 e 14, num total de 228 alunos;

Os contratos estão em fase de execução, sem qualquer contratempo, desde o dia 13 de setembro de 2019, dia em que se iniciou o ano letivo;

Fruto do efeito suspensivo automático da presente ação, à partida, terá que suspender a execução dos contratos em causa, o que implicará, sem mais, que 228 alunos fiquem sem transporte escolar, impossibilitados de frequentar a escola, porque os mesmos não têm outro meio de se deslocar de casa para a Escola e da Escola para casa, posto que, se assim não fosse, não tinham recorrido ao transporte escolar;

Os 228 alunos podem ficar sem transporte escolar durante todo o ano letivo;

Na melhor das hipóteses ficarão sem transporte escolar até final de novembro de 2019 (isto se nenhuma das partes interpuser recurso da decisão que vier a ser proferida);

O efeito suspensivo automático pode ter consequências nefastas na vida de 228 alunos que certamente, perderão um ano das suas vidas, fruto de não poderem frequentar o ensino escolar obrigatório;

São consequências irreversíveis ao nível da educação, do crescimento, aprendizagem, vivências sociais, etc.;

Esses alunos teriam que ficar o dia todo em casa, na maior parte das situações, sozinhos e sem ninguém que lhes confecionasse as refeições;

É que os encarregados de educação, na maior parte dos casos, têm os seus empregos que não lhes permite conviver com tal realidade;

Acresce que no centro escolar de (...) todos os alunos utilizam o transporte e não sendo levantado o efeito suspensivo, este Centro Escolar ficará sem alunos e, naturalmente, terá que encerrar;

São consequências de uma gravidade impossível de qualificar e imaginar, o que seria, claramente um cenário catastrófico;

Por outro lado, caso obtenha vencimento na ação, a Autora pode, no máximo, conseguir que lhe sejam adjudicados os lotes 6 e 8, pois é o que peticiona por via da presente ação, uma vez que não concorreu a quaisquer outros lotes para além dos lotes 6 e 8 que lhe foram adjudicados;

Pelo que não tem interesse em agir para pedir a anulabilidade do ato em relação à adjudicação dos lotes 1 a 5, 10, 11 13 e 15.

O interesse da Autora é um interesse puramente económico (legítimo, não se questiona), mas que será sempre salvaguardado, em caso de vencimento da ação, por via da convolação do presente processo num processo indemnizatório;

A própria Autora tem interesse no levantamento do efeito suspensivo pois a mesma encontra-se a efetuar o transporte de alvos nos circuitos 7, 10 e 11;

Atento o supra exposto, não existe qualquer dúvida que o diferimento da execução dos atos impugnados será gravemente prejudicial para o interesse público, gerador de consequências irreversíveis na vida de 228 alunos;

Mesmo a considerar-se que o efeito suspensivo automático só se verifica em relação aos lotes 6 e 8, estão em causa 28 alunos que, pura e simplesmente, não poderão ir à escola;

O não levantamento do efeito suspensivo automático será gerador de consequências lesivas claramente desproporcionadas para todos os interesses envolvidos;

Por outro lado, o efeito suspensivo nenhum beneficio acarreta para quem quer seja.

1.3.Regular e devidamente notificada, a Autora apresentou Resposta, pugnando pela improcedência do incidente e, consequentemente, pela manutenção do efeito suspensivo do contrato (Cfr. Páginas eletrónicas 107 e 122 a 129), sustentado em síntese, que não se verifica o prejuízo para o interesse público invocado pelo Réu, uma vez que o efeito suspensivo automático abrange apenas os lotes 6 e 8 de concurso, cujo transporte pode ser assegurado em veículos do Município ou através da adjudicação de tais circuitos por ajuste direto, pelo tempo necessário ao levantamento do efeito suspensivo, tal como, de resto, sucedeu quanto aos lotes 9, 12 e 15 que estão a ser efetuados pela entidade adjudicante.
Daí que o "cenário catastrófico" que o Réu refere como decorrente da manutenção do efeito suspensivo automático é absolutamente irrealista e inventado, sendo muito graves as consequências para si que decorreriam do levantamento do efeito suspensivo automático.

1.4. O TAF de Braga proferiu decisão a indeferir o levantamento do efeito suspensivo automático, a qual consta do seguinte segmento decisório:
«Pelo exposto, não se encontrando reunidos, no caso concreto, os requisitos necessários ao levantamento do efeito suspensivo automático do ato impugnado, julgo improcedente o presente incidente e, em consequência, recuso o levantamento do efeito suspensivo automático.
**

Valor do Incidente:
Ao abrigo do disposto no artigo 304.º e n.ºs 1 e 2 do artigo 306.º do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi artigo 1.º do CPTA fixo ao incidente o valor de €15.327,80.
*
Custas do incidente a suportar pelo Requerente/Réu, que fixo em 1 UC (Cfr. artigo 527.º, n.º 1 e 539.º, n.º 1, ambos do CPC, aplicáveis ex ui artigo 1.º do CPTA, e artigo 7.º, n.º 4 do Regulamento das Custas Processuais e tabele II-A anexa ao Regulamento).
Notifique.
D.N.»
*
1.5.O Apelante não se conforma a decisão proferida dela tendo interposto o presente recurso jurisdicional, formulando as seguintes conclusões:
«
1.Deve ser atribuído efeito suspensivo ao presente recurso nos termos do artigo 143.º, n.º 5 do CPTA, pois caso assim não suceda terá que suspender-se o transporte escolar dos lotes 6 e 8, impossibilitando 28 crianças de frequentarem a Escola, sendo que com a atribuição de efeito meramente devolutivo, nenhuma vantagem a A. obtém, pois nem sequer se sabe ainda se a si deverão ser adjudicados os lotes 6 e 8.

2.Refere-se na sentença que o Réu não demonstrou em que medida a suspensão do transporte nos lotes 6 e 8 implicará que os 28 alunos fiquem sem transporte escolar e impossibilitados de frequentar a escola porque o Réu se limitou a alegar (não demonstrando, nem concretizando), que os referidos 28 alunos “não têm outro meio de se deslocar de casa para a escola e da escola para casa”, como também não logrou demonstrar/provar que “esses alunos teriam que ficar em casa, na maior parte das situações, sozinhos e sem ninguém que lhes confecionasse as refeições”.

3.Para além de esses factos não terem sido impugnados pelo R. na sua resposta, são facto notórios que não carecem de prova que se os encarregados de educação das 28 crianças que pediram o transporte escolar é porque estas crianças não têm outra forma de se deslocarem para a escola e, como tal, se for suspenso o transporte escolar dos lotes 6 e 8, estas crianças ficam impossibilitadas de frequentar a escola.

4. Caso o pedido de levantamento de efeito suspensivo automático não seja atendido, a impossibilidade destas crianças frequentarem a escola por não possuírem transporte escolar, é um dano incomensurável, de verificação certa e não meramente eventual.

5.Está em confronto o interesse puramente económico da A. em garantir o transporte dos lotes 6 e 8 e o interesse do Recorrente, titular do interesse público de salvaguardar o cumprimento das suas atribuições e de garantir o transporte escolar de 28 alunos e o próprio interesse de 28 alunos de uma comunidade escolar por si só diminuta em frequentar a escola, o que por si só consubstancia um interesse público relevante.

6.Neste caso, o interesse do Recorrente em prosseguir as suas atribuições de fornecer de forma adequada um serviço público e o próprio interesse dos cidadãos em acederem a esse serviço público terá que prevalecer sobre qualquer interesse económico da A.– veja-se a este propósito o Acórdão do TCA Norte datado de 20/12/2019, processo n.º 01846/19.1BEPRT-S1 e ainda com mais assertividade o Acórdão deste mesmo Tribunal datado de 30/11/2017, processo 19/17.2BEVIS – A.

7.E no caso concreto é também um facto notório que não pode existir ajuste directo para garantir o transporte dos alunos durante o período em que se mantenha o efeito suspensivo automático, sob pena de duplicação da despesa pública.

8.Sendo certo que não é ónus da entidade demandada alegar e demonstrar a impossibilidade de poder lançar mão de “alternativos” “mecanismos de contratação urgente durante o período em que se mantém o efeito suspensivo automático – cf. Acórdão do TCA Norte datado de 15/09/2017, proferido no processo 00320/17.5BEPRT-A.

9.Tal como se refere no Acórdão deste TCA 320/17.5BEPRT-A, datado de 15-09-2017, a possibilidade de recurso aos mecanismos de contratação alternativa não relevam para a decisão a tomar no âmbito do incidente do pedido de levantamento suspensivo automático pois a permanência ou o levantamento do efeito suspensivo automático faz-se por referência ao contrato correspondente; pois, se fosse exigível a alegação e a prova da impossibilidade de uma contratação alternativa, abrir-se-ia a possibilidade de também esta vir a ser questionada e suspensa, implicando a necessidade de outra – e assim “ad infinitum”.

10.Não há dúvida que os danos que resultam do não levantamento suspensivo automático são incomparavelmente superiores aos danos que resultam da manutenção desse levantamento e assim, mal andou o Meritíssimo Tribunal, a quo, ao não ter deferido o pedido de levantamento de efeito suspensivo automático, tendo violado, claramente o disposto no 103.º - A, n.º 2 do CPTA.

Termos em que,
Deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho recorrido, requerendo-se, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 103.º-A, n.º 2 do CPTA o levantamento do efeito suspensivo automático causado pela presente acção de contencioso pré-contratual.»

1.6. A Apelada sociedade comercial Transportes Santa Bárbara Lda. contra-alegou mas não formulou conclusões.

1.7.O Ministério Público junto deste TCA Norte, notificado nos termos e para efeitos do disposto no artigo 146.º, n.º1 do CPTA, emitiu parecer, pugnando pela procedência do recurso e pelo levantamento do efeito suspensivo automático.
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1.8.Prescindindo-se dos vistos legais mas com envio prévio do projeto de acórdão aos juízes desembargadores adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
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II.DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO.

2.1. Conforme jurisprudência firmada, o objeto de recurso é delimitado em função do teor das conclusões do Recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso –cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) e artigos 608.º, n.º2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do NCPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPTA – e, por força do regime do artigo 149.º do CPTA, o tribunal ad quem no âmbito dos recursos de apelação não se queda por cassar a sentença recorrida, conquanto ainda que declare nula a sentença decide “sempre o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito”.

2.2. Nos presentes autos, as questões que a este tribunal cumpre ajuizar, cifram-se em saber se a decisão recorrida padece de erro de julgamento decorrente da errada interpretação e aplicação do direito ao julgar não verificados os requisitos para o levantamento do efeito suspensivo.

III. FUNDAMENTAÇÃO
A.DE FACTO

3.1. O Tribunal a quo não fixou os factos assentes mas os factos que relevam para a decisão a proferir são os que constam do relatório supra elaborado.
**
III.B. DO DIREITO
3.1. Por força da ação de contencioso pré-contratual que a autora T., Lda., moveu contra o Município de (...), na qual indicou como Contra-Interessada a sociedade M., Lda, visando a impugnação judicial do resultado do concurso público lançado pelo Município de (...) para a aquisição de serviços de transporte terrestre de alunos, em circuitos especiais, para o ano letivo de 2019/2020, os efeitos do ato de adjudicação à Contra- Interessada de alguns dos lotes foram automaticamente suspensos em consequência do disposto no artigo 103.º, n.º1 do CPTA.
3.2. O TAF de Braga considerou que as razões aduzidas pelo Município de (...) em ordem ao levantamento do efeito suspensivo automático não eram relevantes ao ponto de justificar o efeito pretendido, considerando que o transporte escolar dos alunos abrangidos pelos circuitos cuja adjudicação foi questionada, dado o seu reduzido número, sempre poderia ser assegurado pelos serviços de transporte da própria autarquia ou através do lançamento de um procedimento por ajuste direto para a contratação desse transporte.
A Meretissima Juiz a quo, depois de tecer algumas considerações sobre as razões que levaram o legislador a consagrar as soluções vertidas no artigo 103.º-A do CPTA e sobre os requisitos para o levantamento do efeito suspensivo automático previsto nessa disposição legal, decidiu conforme se passa a transcrever:
«(…)Do prescrito no artigo 103.º- A n.º 2 do CPTA, conjugado com o disposto no artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil, é inequívoco que incumbe à Entidade Demandada e ao Contrainteressado o ónus de provar que os interesses suscetíveis de serem lesados com a manutenção do efeito suspensivo são superiores aos interesses que podem resultar do levantamento desse efeito (neste sentido Rodrigues Esteves de Oliveira, in A tutela "cautelar" ou provisória associada à impugnação da adjudicação de contratos públicos, CJA, n.º 115, pág. - 24).
O que no caso em análise o Município de (...) não logrou fazer.
Como salienta VIEIRA DE ANDRADE "a decisão do juiz deve efetuar a ponderação de todos os interesses, públicos e privados, em presença, dando preferência à solução que implique menores danos globais" (in A Justiça Administrativa, 14.º edição, Almedina, 2015, pág. 225).

Mas ainda que, demonstrados os prejuízos, há que ponderar a situação e os interesses do impugnante e aferir se ocorre ou não um desequilíbrio desproporcionado entre uns interesses e outros envolvidos.
Do exposto resulta que o regime vertido no artigo 103.º- A do CPTA, como afirmam MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, CARLOS ALBERTO CADILHA "faz depender o levantamento do efeito suspensivo automático do preenchimento de pressupostos exigentes, no que diz respeito aos danos que podem resultar da manutenção do efeito suspensivo: a regra é o efeito suspensivo automático, que só deve ser levantado em circunstâncias particularmente exigentes" (in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 4.º ed., 2018, pág. 844)

Vejamos:

O levantamento do efeito suspensivo pressupõe, desde logo, a alegação de factos concretos e não alegações genéricas, de meras possibilidades, que permitam ao juiz concluir que o diferimento da execução do ato será gravemente prejudicial para o interesse público ou gerador de consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos.
Atento o enquadramento legal mencionado, como já referido, incumbia ao Réu Município de (...) o ónus de provar que os interesses suscetíveis de serem lesados com a manutenção do efeito suspensivo são superiores aos interesses que podem resultar do levantamento desse efeito, mas como também já se referiu tal não ocorreu.
Com efeito, pese embora se reconheça a importância do transporte escolar de 28 alunos, a verdade é que não foram alegados quaisquer perigos que, da manutenção do efeito suspensivo durante a pendência desta ação, possam, com um razoável grau de probabilidade, vir a consubstanciar danos efetivos para o interesse público.
De facto, não demonstrou o Réu em que medida a suspensão do transporte nos lotes 6 e 8 implicará que os 28 alunos fiquem sem transporte escolar e impossibilitados de frequentar a escola.
O Réu Município de (...) limitou-se a alegar (não demonstrando, nem concretizando), que os referidos 28 alunos "não têm outro meio de se deslocar de casa para a escola e da escola para casa", como também não logrou demonstrar/provar que "esses alunos teriam que ficar em casa, na maior parte das situações, sozinhos e sem ninguém que lhes confecionasse as refeições".
Por outro lado, não há qualquer evidência dos autos que comprove que o Centro Escolar que recebe diariamente os 28 alunos transportados, nos lotes 6 e 8, “ficará sem alunos e, naturalmente, terá que encerrar. São consequência de uma gravidade impossível de qualificar e imaginar. Seria, claramente, um cenário catastrófico".
Os perigos e consequências que o Réu alude são genéricos e de verificação meramente eventual, não sendo suscetíveis de fundamentar um juízo acerca da sua gravidade. Note-se que, não é pelo facto de estar em causa um serviço de interesse público que o procedimento respetivo não deva ser paralisado.
Refira-se, ainda, que quaisquer que sejam os possíveis e eventuais prejuízos avessos ao "interesse público", afigura-se impossível asseverar que tais prejuízos são superiores aos prejuízos decorrentes do risco de a Autora vir a perder a possibilidade de ser a adjudicatária, de celebrar o contrato e daí retirar as devidas vantagens.
Era, pois, necessário que se demonstrasse que a gravidade da paralisação dos transportes escolares nos lotes 6 e 8 é superior à gravidade que decorre, do risco da Autora, vir a perder a adjudicação do contrato em análise.
O que, reitera-se, não se demonstrou.

Refira-se ainda: em abstrato (não cumpre, por ora, aquilatar do mérito da pretensão de fundo da Autora), é possível que, por decisão transitada em julgado, se venha a concluir que assiste razão à Autora e que, então, não seja já possível reconstituir a situação que existiria se o ato de adjudicação não tivesse sido praticado.
Em síntese, julgamos, que os perigos a que a Entidade Demandada alude são vagos e conclusivos e, como tal, tais prejuízos não são superiores aos prejuízos decorrentes do risco de a Autora vir a perder a possibilidade de ser adjudicatária, de celebrar o contrato e daí retirar vantagens.

Saliente-se ainda que, com os efeitos suspensivos do ato de adjudicação pretende-se garantir o interesse (público) correspondente à própria legalidade ou respeito pela legislação nacional e comunitária em sede de contratação pública e assegurar uma tutela efetiva por parte dos particulares concorrentes.
Ora, ponderados estes concretos interesses, os danos que podem resultar da manutenção do efeito suspensivo não podem considerar-se superiores aos danos que podem resultar do seu levantamento.

Pelo exposto, não se encontrando reunidos, no caso concreto, os requisitos necessários ao levantamento do efeito suspensivo automático do ato impugnado, julgo improcedente o presente incidente e, em consequência, recuso o levantamento do efeito suspensivo automático.»

3.3. O Município de (...), ao invés, considera que na situação vertente, atendendo ao disposto no artigo 103.º-A, n.º 2 o efeito suspensivo deveria ter sido levantado, adiantado para o efeito, que a não atribuição do efeito suspensivo terá como consequência a suspensão dos transportes escolares dos lotes 6 e 8, impossibilitando-se as 28 crianças atingidas de frequentarem a Escola. E quanto á decisão do Tribunal a quo, de que não logrou provar, limitando-se a alegar que os referidos 28 alunos não têm outro meio de transporte para a escola e que se veriam obrigados a ficar em casa, sozinhos e sem ninguém que lhes confecionasse as refeições, sustenta tratarem-se de factos notórios que não carecem de prova, uma vez que se os encarregados de educação pediram o transporte escolar é porque as crianças não têm outra forma de se deslocarem para a escola. E reitera que a manter-se o efeito suspensivo, aquelas crianças se verão impossibilitadas de frequentarem a escola, por tal razão, o que constitui um dano incomensurável, de verificação certa e não meramente eventual, ao qual se contrapõe o interesse meramente económico da autora em em garantir o transporte dos lotes 6 e 8.
Afirma que o seu interesse, enquanto titular do interesse público de salvaguardar o cumprimento das suas atribuições é de garantir o transporte escolar de 28 alunos e o próprio interesse de 28 alunos de uma comunidade escolar por si só diminuta, em frequentar a escola, o que, na sua ótica, só por si, consubstancia um interesse público relevante.
E quanto ao recurso ao ajuste direto apontado na decisão recorrida, alega que é também um facto notório que não pode existir ajuste direto para garantir o transporte dos alunos durante o período em que se mantenha o efeito suspensivo automático, sob pena de duplicação da despesa pública.
E assiste-lhe inteira razão.
Vejamos.
3.4. Considerando que a petição inicial da presente ação deu entrada em juízo no dia 26.09.2019, aplicar-se-á aos presentes autos a versão do artigo 103.º-A que lhe foi conferida pelo DL. n.º 214-G/2015, de 2.10 .15.
Como se sabe, este artigo foi alterado pela Lei nº 118/2019, de 17 de setembro, mas as alterações em causa entraram em vigor posteriormente (cfr. artigos 13º e 14º) e neste novo regime apenas se atribui efeito suspensivo automático aos contratos que estejam submetidos ao período de standstill ( 10 dias úteis) desde que sejam impugnados dentro desse período.
O artigo 103.º-A do CPTA foi introduzido pelo D.L. 214/-G/2015, de 02.10, visando dar cumprimento á obrigação que impendia sobre o Estado português de proceder à transposição das Diretivas Recursos, associando um efeito suspensivo automático á impugnação dos atos de adjudicação, assim se pretendendo obstar à verificação de uma situação de facto consumado resultante da “corrida ao contrato”.
Porém, no nº 2 do artigo 103º-A do CPTA o legislador estabeleceu a possibilidade de ser levantado o efeito suspensivo automático, por decisão judicial, a requerimento das partes interessadas, quando alegado e demonstrado que «(…)o diferimento da execução do ato seria gravemente prejudicial para o interesse público ou gerador de consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos” (vide nº 2), sendo o efeito suspensivo levantado “…quando, ponderados os interesses suscetíveis de serem lesados, os danos que resultariam da manutenção do efeito suspensivo se mostrem superiores aos que podem resultar do seu levantamento” (vide nº 4).
A decisão a proferir pelo juiz sobre o levantamento ou não do efeito suspensivo automático requerido exige que se ponderem os interesses específicos alegados pelas partes e que possam ser lesados. Cfr. Ac. do TCA Sul de 04/10/2018, Proc. nº 722/18.0BELSB-S1; de 07/03/2019, Proc. nº 848/18.0BESNT-S2; de 19/12/2017, Proc. nº 205/17.5BEPRT e de 28/02/2018, Proc. nº 2597/16.4BELSB-A, todos disponíveis in, www.dgsi.pt/jtca;





A aplicação do critério de decisão para levantamento do efeito suspensivo tem gerado controvérsia na doutrina e na jurisprudência, designadamente, se se aplica o critério previsto no n.º4 do artigo 103.º-A ou antes o critério previsto no n.º2 do artigo 103.º-A, que remete para o artigo 120.º, n.º 2.

A respeito desta questão permitimo-nos citar aqui o que a esse respeito se escreveu em recente acórdão deste TCAN: «Em face da redação constante da parte final do nº 2 deste artigo 104ºA e do nº 4 do mesmo artigo, aparentemente não coincidente e contraditória, poderão resultar dúvidas quanto ao critério da decisão do pedido de levantamento do efeito suspensivo automático. Havendo, de todo o modo, que descortinar o critério que o legislador, pretendeu e fez estabelecer.
3.9 A doutrina não deixa de fazer referência a tal dificuldade, que tem tentado resolver. Veja-se a tal respeito, e nesse desiderato, entre outros, Rodrigo Esteves de Oliveira,
in, “A tutela "cautelar" ou provisória associada à impugnação da adjudicação de contratos públicos”, CJA 115, Janeiro-Fevereiro 2016, pág. 24 ss.; Margarida Olazabal Cabral, in, “O contencioso pré-contratual no CPTA revisto – algumas notas”, Lisboa, Centro de Estudos Judiciários, Fevereiro, 2017, pág. 58 ss., consultável em:
http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/Administrativo_fiscal/eb_Contencioso_Precontratual.pdf; Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha in, “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, Almedina, 2017, 4ª edição, págs. 643 ss. e págs. 843 ss; Duarte Rodrigues Silva, in, “O Levantamento do Efeito Suspensivo Automático no Contencioso Pré-Contratual”, Cadernos Sérvulo de Contencioso Administrativo e Arbitragem, n.º 1, 2016, págs. 11 e 12; Mário Aroso de Almeida, in, “Manual de Processo Administrativo”, 2016, 2ª Edição, págs. 389 e 453; António Cadilha, in, “Contencioso Pré-Contratual”, Revista Julgar, nº 23, Coimbra Editora, 2014, consultável in, http://julgar.pt/wp-content/uploads/2014/05/10-Ant%C3%B3nio-Cadilha.pdf, pág. 213.
3.10 Temos para nós que a interpretação consentida pela concatenação dos nºs 2 e 4 do artigo 103º-A do CPTA é a de que o efeito suspensivo automático (previsto no nº 1) deve ser levantado quando se demonstre (por alegação e prova) que o diferimento da execução do ato seria gravemente prejudicial para o interesse público ou gerador de consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos (nº 2) quando na ponderação com os danos que podem resultar do seu levantamento aqueles se mostrem superiores (nº 4).
Trata-se, de um duplo grau de exigência, como de certo modo já se entendeu no acórdão deste TCA Sul de 14-07-2016, Proc. nº 13444/16, in, www.dgsi.pt/jtcas, ao considerar-se que «Do art. 103º-A, do CPTA revisto, resulta que o levantamento do efeito suspensivo automático depende da verificação - cumulativa - dos seguintes requisitos: a) Grave prejuízo para o interesse público ou de consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos. b) Ponderação de todos os interesses em presença segundo critérios de proporcionalidade.», e se reiterou, no acórdão de 04/10/2017, Proc. 1329/16.1BELSB, de que fomos relatores, disponível in, www.dgsi.pt/jtcas.
Interpretação que é, a um tempo, consentida pelo elemento literal dos dispositivos em causa, e a outro pelo espírito da lei, enformada pelo direito comunitário subjacente. O direito comunitário, pretende, através da Diretiva, a suspensão automática do ato de adjudicação em caso de recurso, com o que visa impedir o efeito de facto consumado decorrente da celebração e execução do contrato (que possa vir a ser reconhecido como ilegal), como já se viu supra. Se a norma nacional permite o levantamento desse efeito suspensivo quando, sob alegação da entidade adjudicante ou dos contra-interessados, se constate que o diferimento da execução do ato seja não tão somente prejudicial para o interesse público (que sempre será), mas gravemente prejudicial, que naturalmente exige uma qualificação (agravada) desse prejuízo, no sentido de sério, intenso ou elevado. O mesmo com as consequências lesivas para os outros interesses envolvidos, que a lei exige deverem ser claramente desproporcionadas. Pelo que só nesse caso deve a imposição ope legis do efeito suspensivo ceder, determinando o Tribunal o seu levantamento.» Cfr. Ac. do TCAN de 03.04.2020, processo 00955/19.1BEAVR-S1; em igual sentido, Ac. do TCAN de 14-02-2020, Proc. nº 02326/19.0BEPRT-S1. E ainda Ac. do STA de 05-04-2017, Proc. nº 031/17

3.5.O recurso aos tribunais para o levantamento do efeito suspensivo automático previsto no artigo 103.º-A, n.º1 do CPTA, e em que o levantamento do efeito suspensivo automático foi concedido, é confirmado em inúmeros arestos.Cfr. Acs. do TCAS de 09-05-2019, proc. nº 601/18.0BELRA-S1; de 24-11-2016, proc. nº 919/16.7BELSB; de 19-12-2017, Proc. nº 205/17.5BEPRT; Ac. do TCAN de 12-07-2019, Proc. nº 02842/19.1BEPRT-S1;
O próprio Supremo Tribunal Administrativo tem sido chamado a pronunciar-se sobre este tipo de questão, citando-se, a título de exemplo o seu Acórdão 05-04-2017, Proc. nº 031/17 no qual se sumariou a seguinte jurisprudência: «I - A decisão sobre o pedido de levantamento do efeito suspensivo automático depende dos concretos interesses que as partes aleguem e demonstrem que possam ser lesados, por forma a possibilitarem uma aferição acerca da sua relevância através da ponderação jurisdicional dos mesmos. II - Estando na base do contrato impugnado, cujo efeito suspensivo automático se pretende levantar, um serviço a prestar pelo Município, de gestão de resíduos urbanos, que impõe imediata continuidade e não se compadece com qualquer delonga pelo trânsito da decisão a proferir na acção de contencioso pré-contratual a correr no TAF do Porto, a sua paralisação implicará por si só riscos de saúde pública. III - Não se impõe ao Município o ónus de alegar o facto negativo de que não podia superar a suspensão automática da execução do contrato através de uma contratação alternativa, antes bastando a invocação da falta de meios humanos e equipamentos que lhe permitissem assegurar a prestação dos serviços de recolha de lixo, objeto do contrato suspenso. IV - Face à falta de alegação de danos por parte das requeridas e falta de impugnação do alegado pelo requerente, apenas se pode considerar que o seu interesse no referido levantamento é o interesse particular de qualquer concorrente com expectativas de vir a ser o escolhido e das vantagens /benefícios que poderá retirar da futura adjudicação enquanto para o interesse público está em causa um risco de acumulação de lixos, por falta de recolha, potenciador de doenças e epidemias, sendo, por isso, gravemente prejudicial para o interesse público a manutenção do efeito suspensivo automático» Cfr. Ac. do STA de 26-04-2018, Proc. nº 062/18;.

3.6. Revertendo ao caso em discussão, está em causa garantir o transporte escolar de um conjunto de 28 alunos para acederem á Escola.
Sobre o Estado recai a incumbência que lhe está constitucionalmente cometida de garantir a todos a concretização do direito ao ensino, designadamente, o acesso ao ensino básico universal, obrigatório e gratuito (vide artigo 74.º da CRP). O acesso universal e gratuito ao ensino básico é um direito constitucionalmente garantido e representa uma das mais importantes e emblemáticas atribuições do Estado Social.
O acesso á educação é absolutamente crucial à qualificação dos recursos humanos de um país e traduz o maior investimento que se pode realizar para formar cidadãos capazes.
Ora, os prejuízos decorrentes da não acessibilidade do conjunto de 28 alunos à escola não são comparáveis aos prejuízos, ainda que graves, que possam advir para a autora do levantamento do efeito suspensivo. É que, por banda da Autora, estão em causa prejuízos de índole estritamente económica, ao passo que por banda do Apelante está em causa a sua obrigação de garantir transporte escolar a um conjunto de alunos para que possam aceder ao ensino, interesse público que não pode ceder ante os interesses económicos da Apelada, uma vez que os prejuízos decorrentes da falta de transporte escolar contendem com o direito constitucional de acesso ao ensino básico.

Conforme se refere em Acórdãos deste TCAN, de 20.12.2019, processo 01846/19.1BEPRT-S1 e de 30.11.2017, processo 19/17.2BEVIS-A, citados pelo Apelante, o seu interesse em prosseguir as atribuições de fornecer de forma adequada um serviço público e o próprio interesse dos cidadãos em acederem a esse serviço público terá que prevalecer sobre qualquer interesse económico da Autora.
E quanto ao recurso ao ajuste direto para colmatar a falta de transporte dos 28 alunos à Escola, adiantada como possibilidade para evitar a falta de transporte para aqueles alunos, na linha da jurisprudência firmada pelo Acórdão deste TCAN, de 15/09/2017, proferido no processo 00320/17.5BEPRT-A. e como argui o Apelante « não é ónus da entidade demandada alegar e demonstrar a impossibilidade de poder lançar mão de “alternativos” “mecanismos de contratação urgente durante o período em que se mantém o efeito suspensivo automático;… a possibilidade de recurso aos mecanismos de contratação alternativa não relevam para a decisão a tomar no âmbito do incidente do pedido de levantamento suspensivo automático pois a permanência ou o levantamento do efeito suspensivo automático faz-se por referência ao contrato correspondente; pois, se fosse exigível a alegação e a prova da impossibilidade de uma contratação alternativa, abrir-se-ia a possibilidade de também esta vir a ser questionada e suspensa, implicando a necessidade de outra – e assim “ad infinitum”.»
Nesse sentido aponta igualmente o Ac.do STA supracitado.

3.7.Relativamente à não demonstração por parte do Apelante dos prejuízos que resultariam da falta de transporte escolar para aqueles alunos que seriam privados desse transporte, assim entendido na decisão recorrida, concordamos com o Apelante quando invoca que tais prejuízos traduzem um facto notório, na medida em que são factos notórios os factos que são do conhecimento geral ( artigo 412.º, n.º1 do CPC), ou seja, os factos conhecidos pelo juiz quando colocado na posição do cidadão comum, regularmente informado, sem necessidade de recorrer a operações lógicas nem a juízos presuntivos. Cfr. Alberto dos Reis, CPC Ant., 3.º Vol, pág. 259;
São assim factos notórios aqueles que sejam do conhecimento geral, ou seja, os que sejam do conhecimento da massa dos cidadãos portugueses regularmente informados, isto é, com acesso aos meios normais de informação. Cfr. Acs. do STJ, de 01.07.04, proc. 04B2285 e de 23.02.05, proc. 3165/04-4.ª, sumários, fev./2005;


Dir-se-á que o transporte escolar conforme é do conhecimento geral se destina a propiciar às crianças e adolescentes transporte dos locais de residência para a Escola e vice-versa e, bem assim, que esses transportes são facultados pelas autarquias locais nos termos definidos na lei.
Mais é do conhecimento geral que caso não seja disponibilizado transporte escolar pela Apelante às crianças e adolescentes que residam na área do respetivo concelho, parte desses estudantes ficarão impedidos de ir á escola atenta a sua idade e a distância que intercede entre as respetivas residências e a Escola e os que conseguirem só o lograrão fazer com sacrifício, tendo de percorrer a pé distâncias consideráveis ou então com recurso a meios de transporte alternativos, designadamente, dos pais nem sempre disponíveis ou com prejuízo para os pais que, ou se verão impossibilitados de exercer a sua atividade profissional ou, caso não exerçam e disponham de transporte próprio, com custos acrescidos.
É notório que o impedimento daí decorrente para uma parte dos alunos de frequentar a escola e de outra parte o poder fazer apenas mediante sacrifícios acrescidos dos próprios e do seu agregado familiar, acaba por interferir na aprendizagem dos alunos e bem assim no seu bem-estar físico e psíquico bem como dos respetivos agregados familiares.
Os prejuízos associados a tais situações são factos notórios que nos termos do disposto no art.º 412.º, n.º 2 do CC não carecem de alegação, sequer de prova. Por conseguinte, o Apelante contrariamente ao que subjaz ao entendimento sufragado pela 1.ª instância não se encontrava obrigado a provar as consequências adversas que resultariam para os estudantes e respetivos agregados familiares decorrentes de ficarem privados do transporte escolar que este lhes faculta.
Essas consequências nefastas e notórias que decorrem para as crianças e jovens estudantes e seus agregados familiares contendem com os direitos daqueles ao ensino e a uma formação plena e integral e sobrepõe-se aos interesses económicos da Apelada os quais, aliás, caso tenham sido postergados são suscetíveis de obter satisfação, designadamente em sede indemnizatória. Trata-se de interesses que não ficarão irremediavelmente prejudicados ao contrário do direito dos estudantes ao ensino e á aprendizagem, os quais uma vez sofridos já ninguém lhos poderá retirar.
Há uma indiscutível supremacia do interesse público a acautelar com o levantamento do efeito suspensivo automático em relação ao interesse que a apelada pretende ver assegurado com a manutenção do efeito suspensivo automático.

Sobre o presente recurso, veja-se o parecer que o Ministério Público emitiu ao abrigo do disposto no artigo 146.º, n.º1 do CPTA, pronunciando-se nos seguintes moldes:
« (…) 7 -Diremos desde já que em nosso entender o recorrente Município de (...) tem razão, dado que os valores em causa nos parecem algo diferentes na sua necessária graduação e ponderação.

8 - Na verdade, entre os valores da livre empresa, da transparência e da concorrência que o efeito suspensivo automático visa salvaguardar, e os do direito dos alunos do Centro escolar de (...) a beneficiar de um transporte público efectivo que na prática lhes garanta o direito à educação constitucionalmente consagrado, cremos que não será difícil reconhecer que é este último que deverá prevalecer.

9 – Ora, se como o recorrente afirma este serviço ficar em risco por causa do efeito suspensivo da presente acção, ao contrário do que se diz na decisão recorrida, com o devido respeito pela opinião contrária, os danos que podem advir da manutenção do efeito suspensivo são muito superiores aos que podem resultar do seu levantamento.

10 – Na verdade, os interesses comerciais da Autora, caso se prove a final que tem razão e devia ter sido a vencedora do concurso no segmento aqui em causa, são indemnizáveis. Já a dificuldade para acompanhar o ano lectivo, que os alunos podem perder se não tiverem condições para acompanhar as aulas por falta de transporte, é um dano que não poder ser avaliado na mesma escala de valores, e poderá vir a provocar impactos bem mais gravosos se a adjudicação não se concretizar.

11 – Assim, e salvo melhor opinião, não podemos compartilhar a fundamentação, constante da decisão recorrida, segundo a qual não foram alegados pelo Município «...quaisquer perigos que, da manutenção do efeito suspensivo durante a pendência desta acção, possam, com um razoável grau de probabilidade, vir a consubstanciar danos efetivos para o interesse público.»

12 – Pelo contrário, retira-se da normal experiência de vida, pelo que nem carecerá de demonstração probatória, e por isso é entendimento do Ministério Público que deixar sem transporte escolar dezenas de alunos de uma zona rural – e em que por isso mesmo dependem desse transporte para a sua deslocação para as aulas - durante vários meses, é um dano de consequências potencialmente muito mais devastadoras do que assegurar o direito da autora a uma possível indemnização caso a sua pretensão obtenha vencimento a final.

13 –Pelo exposto, fazendo nossas, com a devida vénia, as considerações tecidas nas alegações e conclusões do recurso interposto pelo Município de (...), que só não repetimos aqui por razões de celeridade, concluímos no sentido da procedência das objecções que aí são feitas à decisão recorrida.»

Não podemos estar mais de acordo, pelo que, sem necessidade de maiores desenvolvimentos, acolhendo a jurisprudência que citamos, impõe-se julgar procedente os invocados fundamentos de recurso, revogar a decisão recorrida e em substituição, deferir o incidente do levantamento do efeito suspensivo requerido pelo Apelante.

IV- DECISÃO

Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal em conceder provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida, levantando-se o efeito suspensivo automático do ato de adjudicação.

Custas nesta instância pela recorrida - artigo 527º nºs 1 e 2 do CPC novo e artigos 7º e 12º nº 2 do RCP e 189º nº 2 do CPTA.

Notifique.

Porto, 30 de abril de 2020.


Helena Ribeiro
Conceição Silvestre
Alexandra Alendouro