Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01721/21.0BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:07/15/2022
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:SUSPENSÃO DA EFICÁCIA DO ACTO; PENSÃO DE REFORMA; COMPENSAÇÃO DE DÍVIDAS À SEGURANÇA SOCIAL; ORDEM DE RESTITUIÇÃO; VIOLAÇÃO DO CONTEÚDO ESSENCIAL DE UM DIREITO FUNDAMENTAL;
DIREITO À SEGURANÇA SOCIAL; 17º E 18º, Nº 1, E 63º, TODOS DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA; ARTIGO 161.º, N.ºS 1 E 2, ALÍNEA D) DO CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO; AUDIÊNCIA PRÉVIA; ARTIGOS 11º, 12º, 121º E 124º, N.ºS 1 E 2, DO CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO; VIOLAÇÃO DE LEI; N.º4 DO ARTIGO 36.º DO DECRETO-LEI N.º 155/92, DE 28.07; PONDERAÇÃO DE INTERESSES; ARTIGO N.º 1 DO ARTIGO 120.º DO CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
Sumário:1. O legislador ordinário está confinado, na concretização do direito à segurança social (e de outros direitos derivados a prestações), entre, por um lado, a “reserva do possível” e, por outro, o mínimo de dignidade humana vigente em cada época.

2. Quer o acto administrativo de compensação de dívidas de contribuições à segurança social com o valor integral da pensão do requerente, quer o acto de recálculo da sua pensão de reforma que a reduz de 457,05 euros para 381,00 euros, violam o conteúdo essencial do direito fundamental à segurança social, e, como tal, nulos, por força do disposto nos 17º e 18º, nº 1, e 63º, todos da Constituição da República Portuguesa, e no artigo 161.º, n.ºs 1 e 2, alínea d) do Código de Procedimento Administrativo.

3. A restituição de montantes recebidos a título de pensão não resulta nem pode resultar directamente da lei, no caso concreto do disposto no artigo 36.º, nº 1, do Decreto-Lei nº 155/92, de 28 de Julho, se traduz numa das interpretações possíveis da lei, pelo que o acto que o determina deve ser precedido da audiência prévia e, não o sendo, torna-se anulável - artigos 11º, 12º, 121º e 124º, n.ºs 1 e 2, do Código de Procedimento Administrativo.

4. O acto que determinou a supressão total das prestações pagas ao requerente não salvaguarda o pagamento de 5/6 da sua pensão de reforma, imposto pelo n.º4 do artigo 36.º do Decreto-Lei n.º 155/92, de 28.07.

5. Sem a respectiva pensão de aposentação e face aos restantes rendimentos e despesas, o requerente respectivo agregado familiar veriam o seu nível de vida drasticamente diminuído e até perderiam a possibilidade de vida com um mínimo de dignidade.

6. Não sai significativamente prejudicado o interesse público na não reposição do valor em causa, através do mecanismo da compensação que elimina a totalidade, ainda que alegadamente por mera suspensão, da pensão auferida pelo requerente e, por outro lado, está em causa assegurar ao requerente e ao seu agregado familiar um mínimo de dignidade humana.

7. Prevalecendo o interesse do requerente na ponderação de interesses em jogo e verificando-se os demais requisitos para a suspensão da eficácia dos actos que, em conjunto, eliminaram o recebimento de qualquer importância por parte do requerente, a título de pensão de reforma, é de suspender a eficácia de tais actos, face ao disposto no artigo n.º 1 do artigo 120.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Procedimento Cautelar Suspensão Eficácia (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
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Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

A Caixa Geral de Aposentações veio interpor RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, de 09.05.2022, pela qual foi julgada (totalmente) procedente a providência cautelar intentada por AA para suspensão da eficácia da decisão da ora Recorrida, notificada em 20.05.2021, na parte que determinou a reposição, mediante o mecanismo de compensação, dos valores recebidos pelo aqui Recorrido a título de pensão de aposentação e para a regulação provisória do pagamento dessas importâncias, assim como do acto que procedeu ao recálculo da pensão, diminuindo-o.

Invocou para tanto, em síntese, que, ao contrário do decidido, não se verifica o pressuposto fumus boni iuris e deve prevalecer o interesse público na devolução das importâncias pagas a título de pensão de aposentação, de elevado montante.

O Recorrido contra-alegou, defendendo a manutenção do decidido.

O Ministério Público neste Tribunal não emitiu parecer.
*
Cumpre decidir já que nada a tal obsta.
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I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:

1.ª A CGA vem recorrer da decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto em 2022-05-09, na parte em que julgou verificada a aparência de “bom direito” no que concerne à probabilidade de violação, pelo ato suspendendo, do direito à audiência dos interessados (cfr. pág. 19 da Sentença recorrida), à probabilidade de inobservância dos limites de penhorabilidade, quer na perspetiva da violação do princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de Direito, e que resulta das disposições conjugadas do artigo 1º e dos nºs 1 e 3 do artigo 63º da Constituição (cfr. pág. 20 a 23 da Sentença), quer na perspetiva da possível violação do disposto no n.º 3 do artigo 174.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho (cfr. pág. 27 e 28 da Sentença).

2.ª A CGA considera que não existe qualquer preterição do direito de audiência prévia pois a restituição dos montantes indevidamente recebidos pelo Requerente não resulta (nem tem de resultar) de qualquer ato administrativo, antes resulta diretamente da lei, a saber do disposto no artigo 36.º, nº 1, do Decreto-Lei nº 155/92, de 28 de Julho.

3.ª Por outro lado, o Requerente já se havia pronunciado no procedimento sobre as questões que importam à decisão (cfr. pontos 9, 11 e 15 dos Factos Assentes), ou seja, já havia exposto as razões pelas quais, no seu entender, deveria a CGA proceder ao pagamento da pensão. Por assim ser, nos termos do artigo 124º do CPA, estava a CGA dispensada de audiência do requerente.

4.ª Relativamente à probabilidade de terem sido inobservados os limites de penhorabilidade, quer na perspetiva da violação do princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de Direito, e art.º 1º e dos nºs 1 e 3 do art.º 63.º da Constituição (cfr. pág. 20 a 23 da Sentença), quer na perspetiva da possível violação do disposto no n.º 3 do artigo 174.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho e artigo 36.º do Decreto-Lei n.º 155/92, de 18 de julho (cfr. pág. 27 e 28 da Sentença), a CGA considera que o Tribunal a quo não analisou corretamente os normativos que fundamentam a sua decisão.

5.ª Tal como melhor explicitado supra em Alegações, analisado quer o n.º 4 do artigo 36.º do Decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de julho, quer o n.º 3 do artigo 174.º da Lei n.º 35/2014, o qual tem de ser lido em articulação com os restantes números do artigo 174.º, por para eles remeter, constata-se que, um e outro, não se aplicam à CGA

6.ª O nº 4 do referido artigo 36.º tem de ser lido em articulação com n.º 3 do artigo 174.º da Lei n.º 35/3014, o qual tem de ser lido em articulação com os restantes números do artigo 174.º, por para eles remeter.

7.ª Tais preceitos normativos – o n.º 4 do artigo 36.º do Decreto-Lei n.º 155/92 e o artigo 174.º da Lei nº 35/2014 - não se aplicam à CGA na medida em que esta não é um empregador público, é, isso sim, uma instituição de previdência social.

8.ª Ainda que assim se não entenda, o nº 3 do artigo 174.º da Lei n.º 35/2014 expressamente ressalva, da regra da garantia de 1/6 da remuneração, os descontos a favor do Estado ou da segurança social previstos na alínea a) do seu n.º 2.

9.ª Não há, assim, na perspetiva da CGA qualquer inobservância dos limites de penhorabilidade, contrariamente ao que concluiu a decisão recorrida.

10.ª Na Resposta à pretensão cautelar, a CGA expôs que estamos perante uma situação de recebimento indevido de prestações sociais e que os Tribunais superiores têm vindo a decidir, consistentemente, que os pilotos da TAP, reformados da Força Aérea, estão, de facto, abrangidos pelo regime de incompatibilidades previsto nos art.ºs 78.º e 79.º do Estatuto da Aposentação, não podendo receber em simultâneo pensões de reforma e remunerações da TAP. (cfr. Acórdãos proferidos pelo TCA Sul nos processos n.ºs 02111/14.6BESNT e 0243/15.2BELSB, de 2020-0521 e de 2020-07-02 e, também, o entendimento recentemente explanado no Acórdão do TCA Sul, proferido no proc.º n.º 405/21.3BESNT em 2022-05-19respetivamente - todos disponíveis na base de dados do IGFEJ em www.dgsi.pt).

11.ª Certo é que o Requerente recebeu em simultâneo, entre 2011-01-01 e 2014-05-31, as pensões de reforma e remunerações da TAP, pelo que pagar-se ao Requerente uma pensão mensal de € 3.219,25 (de acordo com o ponto 26 dos Factos Assentes) quando este tem um avultado montante a repor aos cofres públicos parece constituir um facto que, só por si, é suscetível de lesar o interesse público.

*

II –Matéria de facto.

A decisão recorrida deu como indiciariamente provados os seguintes factos, sem reparos nesta parte:

1) O Requerente ingressou, nos termos da Carta Patente de 05.01.1998, no Quadro de Oficiais de Pilotos Aviadores, por via da Portaria de 25.07.1994, Ordem à Força Aérea n.º 35 (2.ª série) de 29.08.1994 – cfr. fls. 69 a 73 do SITAF.

2) Entre 28.05.2001 e 31.03.2021, o Requerente desempenhou funções de piloto de aviação, na TAP, S.A., ao abrigo de um contrato individual de trabalho por tempo indeterminado – cfr. fls. 75 a 78 do SITAF.

3) Por força da Portaria de 21.09.2005, publicada na Ordem à Força Aérea n.º 12, transitou para a situação de reforma, sendo pensionista da CGA– cfr. fls. 69 a 74 do SITAF.

4) Pelo Ofício n.º ...12 LS/CF 1222561-00, datado de 30.05.2014, a Entidade Requerida informou o Requerente da suspensão do pagamento da sua pensão de aposentação com fundamento na cumulação ilegal de funções, nos termos previstos nos artigos 78.º e 79.º do Estatuto da Aposentação – cfr. fls. 79 do SITAF e fls. 64 do processo administrativo, junto a fls. 586 e seguintes do SITAF.

5) Em 2014, o Requerente apresentou, no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, uma acção administrativa, à qual foi atribuído o n.º de processo 2419/14...., com vista a remover da ordem jurídica o acto que determinou a suspensão do pagamento das pensões – cfr. fls. 80 e seguintes do SITAF.

6) A acção referida no número anterior foi julgada improcedente, encontrando-se o Requerente a aguardar a decisão do recurso interposto para o Tribunal Central Administrativo do Sul – cfr. fls. 109 e seguintes, 132 e seguintes e 1187 e seguintes do SITAF.

7) Em janeiro de 2017, a Entidade Requerida moveu contra o aqui Requerente e outros Pilotos de aviação, em idêntica situação, uma acção administrativa, peticionando a condenação deste(s) último(s), a proceder à reposição dos montantes de pensão indevidamente acumulados com a remuneração auferida na TAP, S.A., no período compreendido entre 01.01.2011 e 31.05.2014, a qual corre termos no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, sob o processo n.º 120/17...., tendo o requerente invocado a prescrição das quantias alegadamente em dívida – cfr. fls. 151 e seguintes do SITAF.

8) A acção mencionada no número anterior encontra-se em fase de saneamento – cfr.
fls. 1218 e seguintes do SITAF.

9) Em 28.07.2020, o Requerente requereu à Entidade Requerida a reposição do pagamento das pensões, invocando que “(…) desde aquela data [12.11.2015] não existe qualquer fundamento para que se possa vedar aos Requerentes a possibilidade de cumular a pensão com a remuneração auferida ao abrigo do contrato de trabalho com a TAP, S.A.”, na medida em que a TAP, S.A. não era uma empresa pública – cfr. fls. 204 e seguintes do SITAF e fls. 81 e seguintes do processo administrativo, junto a fls. 658 e seguintes do SITAF.

10) Por Ofício n.º ...20, datado de 31.07.2020, a Entidade Requerida informou o Requerente de que “a TAP, S.A. é uma sociedade que integra o sector público empresarial do Estado, pelo que a Caixa Geral de Aposentações, I.P. considera nada poder alterar à informação anteriormente veiculada nesta matéria” – cfr. fls. 210 do SITAF e fls. 100 do processo administrativo, junto a fls. 658 e seguintes do SITAF.

11) Em 21.08.2020, o Requerente deduziu reclamação administrativa da decisão mencionada no número anterior – cfr. fls. 212 e seguintes do SITAF e fls. 101 e seguintes do processo administrativo, junto a fls. 658 e seguintes do SITAF.

12) Por comunicação, datada de 31.08.2020, a Entidade Requerida informou o Requerente de que mantinha a decisão comunicada pelo ofício de 31.07.2020) – cfr. fls. 224 do SITAF.

13) Em 09.11.2020, o Requerente propôs nova acção administrativa, junto do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, pugnando pela condenação da CGA na prática de um acto que determine que, desde 12.11.2015, o Requerente pode cumular a pensão com o rendimento auferido em virtude do vínculo laboral que detinha com a T.A.P., S.A. e, bem assim, que ordene a restituição dos montantes indevidamente retidos, a qual corre actualmente termos sob o processo n.º 2045/20.... – cfr. fls. 225 e seguintes do SITAF.

14) A ação mencionada no número anterior encontra-se em fase de saneamento – cfr. fls. 1139 e seguintes do SITAF.

15) Por carta datada de 17.03.2021, o Requerente peticionou à Requerida que “Sem prejuízo dos direitos que o Requerente pretende valer no âmbito das ações judiciais em curso a propósito dessa interpretação [da aplicabilidade da incompatibilidade prevista nos artigos 78.º e 79.º do Estatuto da Aposentação ao caso concreto], deixando de existir, a partir de 31.03.2021, as razões que estão na base da suspensão mencionada, requer-se a V. Exas. se dignem a ordenar o pagamento da sua pensão da aposentação, a partir de 01.04.2021” – cfr. fls. 281 e seguintes do SITAF e fls. 167 e seguintes do processo administrativo, junto a fls. 732 e seguintes do SITAF.

16) Em 16.04.2021, a Entidade Requerida proferiu o seguinte despacho:

“As pensões devem continuar suspensas, para reposição, por compensação, das verbas que indevidamente receberam da CGA, de acordo com o artigo 36.º do Decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de julho, sem prejuízo da instauração ou prosseguimento, logo que possível, de processos de cobrança coerciva para recuperação imediata e por inteiro dos valores em causa.” – cfr. fls. 820 e seguintes do SITAF.

17) Em 20.05.2021, pelo Ofício n.º AAC3MV.1222561.00, a Entidade Requerida dirigiu ao Requerente a seguinte resposta ao requerimento, mencionado no ponto 16):

“Assunto: EXERCÍCIO DE FUNÇÕES

Reportando-me ao assunto acima referenciado, informo V. Exa. de que, não obstante ter deixado de exercer definitivamente funções na TAP, SA, o certo é que, por efeito de ter exercido aquelas funções no período de janeiro de 2011 até ao mês a partir do qual a CGA suspendeu o abono da pensão, em maio de 2014, foi pago o montante de 91 334,32 euros, a título de pensão de reforma que acumulou com o respetivo vencimento na TAP, em violação do disposto nos artigos 78.º e 79.º do E.A., valor ao qual acrescem juros de mora, no montante 18 756,81 euros. Por essa razão, foi determinado, por resolução genérica de 16 de abril de 2021, que ueles montantes devem ser repostos mediante o mecanismo de compensação nas pensões de reforma ou de aposentação a ser abonadas após a cessação definitiva de funções, conforme decorre do artigo 36.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de julho.

Sem prejuízo do exposto, V. Exa. poderá requerer a reposição daquele montante, de uma só vez.

Para o efeito, deverá solicitar a este serviço, o envio de referência multibanco ou indicação de IBAN para transferência bancária.
(…)”
– cfr. fls. 68 do SITAF e 174 do processo administrativo junto a fls. 732 e seguintes do SITAF.

18) Em 14.06.2021, o Requerente deduziu reclamação administrativa da decisão mencionada no número anterior – cfr. fls. 298 e seguintes do SITAF.

19) O agregado familiar do Requerente é constituído, para além deste, pela sua esposa e por uma filha de 3 anos – cfr. fls. 320 do SITAF.

20) A esposa do Requerente aufere um vencimento no valor de € 1.046,64 – cfr. fls. 560 do SITAF.

21) O Requerente aufere mensalmente o valor de 200€00, a título de rendas – cfr. fls. 561 e 562 do SITAF;

22) O Requerente suporta, pelo menos, as seguintes despesas mensais:

– Empréstimo – 2.208€45;
– Seguro de Saúde– 52€78;
– Mensalidade do infantário da filha – 320€00;
– Mensalidade do ginásio – 27€96;
– Vodafone – 48€80;
– Despesas com a água –22€30;
– Despesas com a luz – 145€17;
– Condomínio – 60€10;
– Multi Risco segunda habitação – 8€64;
– Garagem – 95€;
– Mensalidade empréstimo casa ... – 158€28;
– Seguro de vida empréstimo da esposa do Requerente – 16€09;
– Seguro do Carro – 11€65;
– Seguro segundo carro –15€28;
– Seguro acidentes da empregada doméstica – 4€94;
– Despesa com a Empregada Doméstica – 300€00
- cfr. fls. 321 a 559 do SITAF.

23) Em 18.06.2021, o Requerente contraiu um empréstimo, junto do Banco ... S.A., no valor de 26.278€76 – cfr. fls. 860 e seguintes do SITAF.

24) O Requerente é proprietário dos seguintes imóveis:

- Fracção autónoma D, do prédio sito na Rua ..., ... ...;
- Fracção autónoma AZ, do prédio sito na Rua ..., ..., ... ...;
- Fracção autónoma N, do prédio sito na Rua ..., ..., ... ...;
- Fracção autónoma C, do prédio sito na Avenida ..., ..., ..., ... ... – cfr. fls. 839 e seguintes do SITAF.

25) A esposa do Requerente é proprietária da fracção autónoma I, do prédio sito na Rua ..., ... ... – cfr. fls. 839 do SITAF.

26) Em 2013, a pensão de aposentação do Requerente era de 3.219€25 – fls. 62 e seguintes do processo administrativo, junto a fls. 586 e seguintes do SITAF.
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III - Enquadramento jurídico.

1. O requisito do periculum in mora (facto consumado ou prejuízo de difícil reparação).

Determina a primeira parte do n.º 1 do artigo 120.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos:

“Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, as providências cautelares são adotadas quando haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal…” .

No caso concreto é evidente – e a Recorrente não o põe em causa – que se verifica este requisito: sem esta pensão de aposentação e face aos factos indiciariamente provados o Requerente e respetivo agregado familiar veriam o seu nível de vida drasticamente diminuído e até perderiam a possibilidade de vida com um mínimo de dignidade.

2. O requisito do fumus boni iuris (a aparência do bom direito).

A segunda parte do n.º 1 do artigo 120.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, dispõe:

“ … e seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente.”

O procedimento cautelar caracteriza-se pela sua instrumentalidade, (dependência da acção principal), provisoriedade (não está em causa a resolução definitiva de um litígio) e sumariedade (summaria cognitio do caso através de um procedimento simplificado e rápido.

Face ao teor deste preceito - que não distingue, como antes, entre providências conservatórias, como o pedido de suspensão da eficácia de um acto, e providências antecipatórias, como é o pedido de regulação provisória do pagamento da pensão de aposentação - é necessário, além do mais, que seja provável que a pretensão formulada ou a formular no processo principal venha a ser julgada procedente

O juízo sobre o êxito da acção principal, sempre sumário, não é mais intenso ou aprofundado agora para as providências cautelares conservatórias, apenas distinto: exige-se, como antes para as providências antecipatórias, não apenas que não seja manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada ou a formular no processo principal ou a existência de circunstâncias que obstem ao seu conhecimento de mérito, passando agora a exigir-se, em todo o tipo de providências, que seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente.

Feitas estas considerações genéricas, forçoso é concluir que se mostra acertado o juízo feito na decisão recorrida de ser provável o êxito na acção principal apenas com base nestes vícios, perfuntoriamente analisados, entre outros: 1- o vício da violação do conteúdo essencial de um direito fundamental, conducente à nulidade do acto suspendendo (artigo 161.º, n.ºs 1 e 2, alínea d) do Código de Procedimento Administrativo), 2- a preterição do direito de audiência prévia e 3 – o vício de violação de lei, o disposto no artigo 174.º, n.º 3, da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, ex vi do artigo 36.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 155/92, de 18.07, estes dois últimos vícios determinantes da anulação do acto (artigo 163.º, n.º 1, do Código de Procedimento Administrativo).

2.1. O vício de violação do conteúdo essencial de um direito fundamental:

Resulta do disposto no artigo 161.º, n.ºs 1 e 2, alínea d) do Código de Procedimento Administrativo que são nulos os actos que “ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental”.

Para que se verifique a nulidade de um acto administrativo, tendo em conta este normativo, é necessário 1º - que haja a violação de um direito fundamental e 2º - que essa violação atinja o conteúdo essencial desse direito.

Não basta, portanto, que se verifique a violação de um direito fundamental é necessário ainda que essa violação atinja o conteúdo essencial do direito fundamental para que o acto fique ferido da grave invalidade que é a nulidade.

E violação de qualquer princípio apenas releva para este preceito quando traduzir a violação do conteúdo essencial de um qualquer direito fundamental, dado o preceito se referir em exclusivo a direitos e não a princípios e sendo certo que a violação de princípios, por si mesma, sem qualquer reporte a direitos, não afecta a esfera jurídica dos interessados.

Dito isto:

Está aqui em causa o direito à pensão de aposentação do Requerente, integrado no direito à segurança social.

O direito à segurança social está consagrado nos artigos XXII e XXV, nº 1, parte final, da Declaração Universal dos Direitos Humanos (Adoptada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de Dezembro de 1948:

“Toda a pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social; e pode legitimamente exigir a satisfação dos direitos económicos, sociais e culturais indispensáveis, graças o esforço nacional e à cooperação internacional, de harmonia com a organização e os recursos de cada país.”

“Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade.”

Regras que também encontram acolhimento no nosso ordenamento jurídico fundamental.

Integrado no Capítulo II (Direitos e deveres sociais), do Título III (Direitos e deveres económicos, sociais e culturais), I Parte (Direitos e deveres fundamentais), dispõe o artigo 63º da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe “Segurança social e solidariedade”:

“1. Todos têm direito à segurança social.

2. Incumbe ao Estado organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado e descentralizado, com a participação das associações sindicais, de outras organizações representativas dos trabalhadores e de associações representativas dos demais beneficiários.

3. O sistema de segurança social protege os cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho.

4. Todo o tempo de trabalho contribui, nos termos da lei, para o cálculo das pensões de velhice e invalidez, independentemente do sector de actividade em que tiver sido prestado.

(…)”.

A Constituição não só consagra, assim, o direito à segurança social como também impõe ao Estado a organização, coordenação e subsidiação de um sistema de segurança social unificado e descentralizado, definindo em parte o modelo de satisfação do direito fundamental em causa, mas não os seus precisos termos.

O que significa que apenas se pode retirar desta norma constitucional a obrigação genérica do Estado garantir protecção aos cidadãos em situações de desemprego, doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, mas não a sua concretização.

Daí que se entenda que o artigo 63º não tenha, por regra, a força jurídica estabelecida pelos artigos 17º e 18º, nº 1, todos da Constituição da República Portuguesa, ou seja, a possibilidade de aplicação directa e vinculação das entidades públicas e privadas.

Face às crescentes limitações orçamentais dos Estados para dar resposta às necessidades de apoio social, tem-se vindo a defender que os direitos fundamentais sociais estão sujeitos a uma “reserva do possível” em cada momento, na linha da ressalva já constante do artigo XXII (parte final) da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Claro que a aceitação sem reservas deste entendimento pode abrir a porta ao esvaziamento praticamente total dos direitos fundamentais sociais, sempre que as opções ideológicas do legislador ordinário o levem a estabelecer outras prioridades em detrimento das políticas sociais.

Assim se, por um lado, se deve ter em conta os constrangimentos financeiros do Estado e a margem de escolha dos governos eleitos, em função do seu projecto político, por outro lado também há que proteger a confiança dos cidadãos criada pelo sistema de protecção social estabelecido que deve ser assegurado no seu conteúdo mínimo.

No dizer de Rui Medeiros, in Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, tomo I, p. 634, «os direitos sociais contêm também - ou podem conter – um conteúdo mínimo, nuclear ou, porventura essencial directamente aplicável».

O que significa que o legislador ordinário está confinado, na concretização do direito à segurança social (e de outros direitos derivados a prestações), entre, por um lado, a “reserva do possível” e, por outro, o mínimo de dignidade humana vigente em cada época.

Como sustentou o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 3/2010, processo n.º 176/09:

“Na verdade, naquelas circunstâncias típicas previstas no n.º 3, do artigo 63.º, quando esteja em causa a própria subsistência mínima e, portanto, a existência socialmente condigna, o direito à segurança social adquire uma urgência e uma força vinculante que o tornam directamente aplicável e o subtraem, em ampla medida, ao poder de legislar extrai-se do princípio da dignidade humana (artigo 1º da Constituição da República Portuguesa) um direito fundamental a um mínimo de existência condigna.”

Resulta em suma deste acórdão que se extrai do princípio da dignidade humana (artigo 1º da Constituição da República Portuguesa) um direito fundamental a um mínimo de existência condigna.

Apenas se poderá considerar violado o conteúdo essencial deste direito – e, repete-se, para a finalidade de determinar se o acto é nulo ou meramente anulável - se não puder ser assegurado, com a negação do direito, um mínimo de existência condigna.

No caso concreto – e como decidido - quer o primeiro acto administrativo, de compensação de dívidas de contribuições à segurança social com o valor integral da pensão do Requerente, quer o segundo acto, de recálculo da sua pensão de reforma e que a reduz de 457,05 euros para 381,00 euros, são inconstitucionais e ilegais, porque violadores do conteúdo essencial do mencionado direito fundamental, e, como tal, fulminados com o vício da nulidade.

Com este último valor não fica, nem de perto nem de longe, assegurado o mínimo de existência condigna ao requerente e ao seu agregado familiar, dois adultos e uma criança de 3 anos, ainda que se adicione a este valor 1.046€64 do vencimento da esposa e tendo em conta os encargos que tem de suportar, em particular a despesa mensal de 2.208€45 para cumprir a obrigação decorrente de um empréstimo que o Requerente contraiu.

2.2. A preterição do direito de audiência prévia.

A audiência dos interessados, como corolário dos princípios da colaboração da Administração com os particulares e da participação dos particulares na formação das decisões que lhes digam respeito, é uma formalidade que a Administração, salvo os casos excepcionais previstos na lei, não pode omitir, sob pena de as decisões que vier a tomar ficarem afectadas na sua validade - 267º, nº4, da Constituição da República Portuguesa, artigos 11º, 12º, 121º e 124º, n.ºs 1 e 2, do Código de Procedimento Administrativo.

Esta formalidade deve ser cumprida sempre que haja um qualquer acto de instrução e imediatamente antes da decisão final (ver o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 19.3.2002, recurso 045/03).

No caso concreto não se verifica nenhuma situação excepcional, das previstas no n.º1 do artigo 124º, n.ºs 1 e 2, do Código de Procedimento Administrativo, que permitisse dispensar a audiência do interessado.

Invoca a Caixa Geral de aposentações que “a restituição dos montantes indevidamente recebidos pelo Requerente não resulta (nem tem de resultar) de qualquer ato administrativo, antes resulta diretamente da lei, a saber do disposto no artigo 36.º, nº 1, do Decreto-Lei nº 155/92, de 28 de Julho”.

E que, por outro lado, “o Requerente já se havia pronunciado no procedimento sobre as questões que importam à decisão (cfr. pontos 9, 11 e 15 dos Factos Assentes), ou seja, já havia exposto as razões pelas quais, no seu entender, deveria a CGA proceder ao pagamento da pensão. Por assim ser, nos termos do artigo 124º do CPA, estava a CGA dispensada de audiência do requerente”.

Mas sem razão.

A restituição dos montantes recebidos não resulta nem pode resultar directamente da lei porque é uma das interpretações possíveis da lei. A ordem de restituição do valor em dívida, no critério da Entidade Requerida, de uma só vez, por compensação, é, de resto, claramente ilegal, como veremos a propósito do vício de violação de lei.

O mesmo se diga em relação à redução, por novo cálculo, da pensão.

Resultaram tais actos da interpretação da lei feita pela Entidade Requerida e da sua aplicação ao caso concreto, através dos actos administrativos aqui suspendendos e cuja impugnabilidade a própria Recorrente não pôs em causa.

Por outro lado, dos pontos 9), 11), e 15) da matéria dada como provada constam apenas requerimentos do ora Recorrido; não consta qualquer projecto de decisão da Caixa Geral de Aposentações; menos ainda com o teor e conteúdo dos actos suspendendos.

Tanto basta para concluir, como decidido, pela verificação deste vício, da violação da audiência prévia, que provavelmente conduzirá à anulação do acto na acção principal.

2.3. O vício de violação de lei; o disposto no artigo 174.º, n.º 3, da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, ex vi do artigo 36.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 155/92, de 18.07.

O acto que determinou a supressão total das prestações pagas ao Requerente não salvaguarda o pagamento de 5/6 da sua pensão de reforma, imposto pelas normas acima referenciadas e citadas na decisão recorrida.

Afirmar, como faz no presente processo a Caixa Geral de Aposentações, nas suas conclusões de recurso 5ª a 9ª, que não se lhe aplica o n.º4 do artigo 36.º do Decreto-Lei n.º 155/92, de 28.07,é contradizer o próprio conteúdo do acto suspendendo onde se invoca precisamente o disposto nos n.ºs 1 e 2 desta norma para o justificar (ver facto provado sob o n.º 17).

E quando é certo que é próprio Decreto-Lei n.º 155/92, de 28.07 - invocado no acto suspendendo que determinou a supressão, ainda que alegadamente temporária, da pensão do Requerente - que remete para o artigo 174.º da Lei do Trabalho em Funções Públicas.

Normas esta que expressa e inequivocamente determina que “… os descontos … não podem exceder, no seu conjunto, um sexto da remuneração.”.

Também este vício, muito provavelmente será tido por verificado na acção principal, tal como decidido.

O que permite concluir, com facilidade, pela verificação do requisito da aparência do bom direito.

3. A ponderação de interesses.

Estipula o n.º 2 do artigo 120.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos:

“Nas situações previstas no número anterior, a adoção da providência ou das providências é recusada quando, devidamente ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adoção de outras providências.”

Como é entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência o interesse público há-de ser específico e concreto, ou seja, diferenciado do interesse genérico da legalidade e eficácia dos actos administrativos; caso contrário, a providência seria invariavelmente indeferida com este fundamento.

Deste modo, só quando as circunstâncias do caso concreto revelarem a existência de lesão do interesse público que justifique a qualificação de grave e se considere que essa qualificação deve prevalecer sobre os outros prováveis prejuízos que se contrapõem é que se impõe a execução imediata do acto.

Neste caso a Recorrente invoca que o Recorrido tem um “avultado montante” a repor aos cofres públicos, o que, na sua perspectiva, “parece” constituir um facto que, só por si, é suscetível de lesar o interesse público.

Sucede que para a suspensão da eficácia do acto que ordenou ao Requerente a reposição de 91.334,32 euros, não é a reposição por si mesma, mas a ordem de reposição excedendo 1/6 do valor que vinha sendo pago mensalmente.

Ora não se vislumbra em que possa sair significativamente prejudicado o interesse público na não reposição do valor em causa, através do mecanismo da compensação que elimina a totalidade, ainda que alegadamente por mera suspensão, da pensão auferida pelo Requerente. Manifestamente não causa qualquer problema grave de tesouraria à Caixa Geral de Aposentações não receber tal valor tão depressa quanto possível.

Quando, do outro lado, está em causa, assegurar ao Requerente e ao seu agregado familiar um mínimo de dignidade humana.

Também a ponderação de interesses em jogo favorece, tal como decidido, o deferimento da providência.
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IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em NEGAR PROVIMENTO ao presente recurso jurisdicional pelo que mantêm a decisão recorrida.

Custas pelo Recorrente.
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Porto, 15.07.2022


Rogério Martins
Luís Migueis Garcia
Conceição Silvestre