Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01741/18.1BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:11/11/2022
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Ricardo de Oliveira e Sousa
Descritores:RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
ATRAVESSAMENTO DE ANIMAL
PRESUNÇÃO DE INCUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES DE SEGURANÇA
ARTIGO 12º DA LEI Nº 24/2007, DE 18/07
Sumário:I- A Lei n.º 24/2007, de 18 de julho, veio definir direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como autoestradas concessionadas, itinerários principais e itinerários complementares.
II- A imposição de assegurar as condições de segurança em lanço rodoviário concessionado integra uma obrigação reforçada de meios.
III- Só o “caso de força maior devidamente verificado” exonera a concessionária da sua obrigação de garantir a circulação nas autoestradas em condições de segurança, pelo que, para afastar a presunção de culpa estabelecida no mencionado art. 12º,nº. 1, al. c) da Lei nº 24/2007, terá a concessionária de provar a ocorrência de um acontecimento concreto que integre o conceito de força maior, ou seja, de um “acontecimento imprevisto e irresistível cujos efeitos se produzem independentemente da vontade ou das circunstâncias pessoais da concessionária”.
IV- Não conseguindo a R. a forma como o dito javali entrou na autoestrada, por forma a imputar a sua proveniência a terceiros ou a caracterizá-lo como um eventual caso fortuito, e que não podia ter adotado conduta diferente daquela que adotou, isto é, não logrando a R. provar factualidade de onde se possa concluir que cumpriu as exigências de diligência na sinalização e remoção dos obstáculos existentes na via e, por conseguinte, não foi ilidida a presunção de incumprimento que sobre si impendia relativamente ao aludido dever de vigilância, não tendo resultado provados factos suficientes que permitam concluir que a mesma atuou com a diligência que lhe era exigida.
Recorrente:AA e BB
Recorrido 1:BRISA – CONCESSÃO RODOVIÁRIA, S.A.
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Conceder parcial provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não foi emitido parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
I – RELATÓRIO
AA e BB, melhor identificados nos autos à margem referenciados de AÇÃO ADMINISTRATIVA nos quais é Ré BRISA – CONCESSÃO RODOVIÁRIA, S.A., vem intentar o presente RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, que, em 04.05.2022, julgou a presente ação totalmente improcedente e, em consequência, absolveu a Ré do pedido.
Alegando, os Recorrentes formularam as seguintes conclusões:“(…)
A. Entendem os Recorrentes que os factos dados como provados pelo Tribunal a quo, nos pontos C e D dos factos provados, se encontram incompletos e erróneos, bem como a existência de determinados factos não considerados que deveriam constar dos factos provados, pelo que entende que a matéria de facto dada como provada/não provada pelo Tribunal a quo deverá ser alterada conforme a seguir se exporá.
B. No que se refere ao Facto Provado C, desde logo, e conforme depoimento da testemunha CC, o trabalhador ao serviço da concessionária que se deslocou ao local do acidente, este apenas verificou as vedações numa extensão de 250 metros para cada lado, o que fez com uma lanterna, porque estava escuro, tendo tal verificação sido feita de noite, com uma lanterna, algo que se deve considerar importante, atento que esta verificação é também usada pelo Tribunal a quo para justificar o cumprimento das responsabilidades pela concessionária.
C. Tal decorre claro do depoimento da testemunha (ficheiro de áudio "GravacaoAudiencias 20-01-2022 14-32-19”: "[00:27:51] - Meritíssima Juiz: Estava escuro? // [00:27:52] - CC: Sim. // [00:27:54] - Meritíssima Juiz: E mesmo assim fazem a verificação das vedações? // [00:27:56] - CC: Sim. // (...) // [00:28:51] - Mandatário: Mas só faz a procura daquele local específico. Não anda a percorrer a volta? // [00:28:55] - CC: É sempre uma média de 250m para cada lado, nos dois sentidos. // (...) // [00:42:57] - Mandatário: Outra coisa que eu lhe pergunto é, há coisas que são redundância e eu não vou lhe perguntar porque a minha colega já perguntou é: o senhor á confirmou e já tinha atestado no seu documento a questão de ter vistoriado a vedação, estamos a dizer às 5 da manhã. A viatura tem algum elemento auxiliar que lhe permita visualizar a vedação durante a noite? // [00:43:18] - CC: Temos uma lanterna.”
D. Como tal, o facto dado como provado deveria em boa verdade dizer que “e arrastou o javali para a valeta, tendo ainda verificado as vedações com recurso a uma lanterna, numa extensão de 250 metros para cada lado”.
E. Quanto ao Facto Provado D, desde logo, consta como Doc. 6 junto pela Recorrida com a sua contestação uma pesquisa de incidências entre as 00:01 e as 07:30 do dia 17 de abril de 2017, na qual consta, enquanto incidência n.° 17-1032904, com início entre as 00:55 e as 01:28, quanto a animais vivos na via, ao “KM A...-58300 Ambos" - ou seja, no local do sinistro -, que "Origem: GNR Notas: GNR informa que está ao referido pk em S/N e neste local estão dois cães. Ar desloca-se ao local, á chegada ao sentido N/S GNR informa AR de que os animais desapareceram no talude"; tendo, nessa mesma noite, enquanto incidência 17¬1032898 nesse mesmo documento n.° 6, a referência a que foi retirado um animal morto da via.
F. Foi ainda referido pela testemunha DD (ficheiro de áudio “Gravacao Audiencias 20-01-2022 14-32-19"): “[01:28:31] - Mandatário: Outra coisa que eu queria perguntar a dona DD é assim, a BRISA concessão rodoviária juntou aqui um resumo de incidências e a senhora disse que estava responsável pela A.... No mesmo dia e na zona de patrulhamento em questão, as 10:55 foi comunicada ou não a BRISA a existência de animais na via naquela zona da autoestrada? // [01:29:02] - DD: Sim, eu as 10:55 tive a informação, por parte da GNR, que por volta do km 58 haviam dois cães. // [01:29:17] - Mandatário: E qual foi os procedimentos que a senhora adotou face a esta informação? // [01:29:23] - DD: é igual. Portanto faço a criação da incidência e tenho um colega da assistência rodoviária ao local, para verificar. O colega da assistência rodoviária, eu tenho aqui escrito, deslocou-se ao local, a chegada, o sentido, o agente da GNR encontrava-se no local de forma a ... os animais...”
G. Portanto, o facto de não ter sido detetado o javali antes dos Recorrentes terem sofrido o sinistro, não quererá dizer que o mesmo não estaria já presente na auto-estrada, ou que não tivesse entrado no entretanto, tal como anteriormente tinham entrado os referidos cães que, repare-se, desapareceram (ou seja, existe a possibilidade de terem saído por alguma parte da via). Reitere-se assim que os referidos cães avistados pela GNR se encontravam no mesmo KM onde ocorreu o sinistro, conforme decorre do relatório de incidências junto pela Recorrida.
H. Aliás, sempre se dirá, tivesse a Recorrida detetado o javali, poderiam ter impedido o sinistro, o que, aliás, é aqui o fundamento da ação - a responsabilidade da Recorrida pelas vias que lhe são concessionadas, e a inversão do ónus da prova quanto a essa responsabilidade.
I. Assim, entende-se que o Facto D deveria ser reformulado, passando a constar, por ser de interesse na resolução do sinistro: D. Nos dias 16 e 17.04.2017, a Brisa Concessão Rodoviária, SA efetuou os seguintes patrulhamentos, não tendo detetado a existência do dito animal, tendo contudo lhes sido comunicada a existência de outros animais, nomeadamente de dois cães no mesmo KM do acidente entre as 00:55 e as 01:28 do dia 17.04.2017, que desapareceram no talude (cf. documentos n.°s 5 e 6 junto aos autos com a contestação, e depoimento das testemunhas DD e EE, que aqui se dão por integralmente reproduzido).
J. Consta como facto não provado os danos sofridos pelos Recorrentes, por dela não terem feito prova.
K. Ora, e antes de mais, é de referir que parte da prova testemunhal dos Recorrentes - relativamente aos gastos que tiveram posteriormente ao acidente em si - não foi possível localizar quatro anos decorridos da data em que foi intentada a ação. De facto, os Recorrentes arrolaram como testemunha, por exemplo, o vendedor do veículo ao qual tiveram que recorrer, Sr. FF, para prova do constante no Doc. 9 - que, passados quatro anos, não conseguiram mais localizar para efeitos de notificação para comparência em audiência de julgamento, pelo tiveram que prescindir dela.
L. Juntaram ainda como Doc. 10, na sua petição inicial, um orçamento de reparação de, claramente, a parte da frente de dois telemóveis, com o valor de € 282,90, referindo o documento “equipamentos apresentam bom estado de conservação, ambos com display partido, derivado a impacto violento”. Deve aqui ser, desde logo, aplicada a regra da experiência - ambos os Autores tinham telemóveis em boas condições, que repentinamente, após embaterem num javali, ficaram com o “display” partido.
M. Ainda, sempre se dirá, quanto aos danos, que consta do depoimento da testemunha CC (ficheiro de áudio “GravacaoAudiencias 20-01-2022 14-32-19”), o seguinte: “[00:12:00] - Mandatário: Recorda-se bem do acidente? // [00:12:05] - CC: Recordo-me do que está no relatório do acidente. // [00:12:15] - Mandatário: E recorda-se dos danos que verificou no veículo? // [00:12:21] - CC: Não me recordo, mas posso ler o que tenho aqui escrito. Seriam os danos visíveis aqueles no para-choque, grelha, faróis e capo. // (...) // [00:17:27] - CC: O animal estava na berma e, por norma, é retirado por nós, por um local seguro. Se for de pequeno porte colocamos em outro local até ser retirado. Naquela altura recordo-me que era de grande porte porque tive dificuldade em puxá-lo da berma.”
N. Constando ainda do depoimento da testemunha GG, (ficheiro de áudio “GravacaoAudiencias 20-01-2022 14-32-19”), o seguinte: “[00:56:58] - Mandatário: Mas os danos são os mesmos, o veículo é o mesmo. Portanto... Pronto. Então, da elaboração do seu relatório o senhor atesta os factos que aqui estão. Então pergunto-lhe efetivamente considerou que face aos vestígios no local, fragmentos de plástico, está aqui no relatório, que os danos no veículo resultaram do embate... da presença de um javali na via. É assim? // [00:57:30] - GG: Sim. // (...) // [01:01:43] - GG: Essa parte já não presenciei. Estava lá o mecânico e depois nós continuamos a viagem... quando o veículo foi removido do local, do ponto de socorro. // [01:01:57] - Meritíssima Juiz: O veículo já não saiu de lá em movimento? Ou seja, teve que ser levado. // [01:01:59] - GG: Sim, sim. Depois fica lá o mecânico a providenciar que seja recolhido pelos colegas dele, não é. // (...) // [01:03:44] - Mandatário: então não sabemos quanto tempo é que vocês estiveram no local... Ficou até a chegada do reboque, pelo o que parece a mim... Diz aqui no seu... Ficou até a saída do veículo... // [01:04:03] - GG: Mas eu recordo-me do reboque. Não coloquei aqui?”.
O. Ou seja, resulta claro do depoimento de ambas as testemunhas, supra transcrito, que o veículo não só sofreu danos, como esses danos provocaram a imobilização do veículo, tal que foi necessário chamada uma viatura para que procedesse ao reboque.
P. Resulta ainda do Doc. 3 junto com a Petição Inicial, que se trata da participação da GNR, que "do acidente resultaram danos no veículo n° 1, em toda a parte frontal”, bem como que havia vestígios de plásticos no local, relatório este que foi exibido e confirmado pela testemunha GG (ficheiro de áudio “GravacaoAudiencias 20-01-2022 14-32-19”): “[00:55:23] - GG: Eventualmente, quando há situações muito dúbias... é que fazemos uma folha em anexo e colocamos ao lado imagens. // [00:55:33] - Mandatário: Mas foi o senhor que fez essas medições que estão aqui no autos...// [00:55:37] - Meritíssima Juiz: No croqui que tem aqui no auto. Aparece aqui o javali, diz aqui javali sobre a berma. Local provável do embate do veículo via da direita. //[005549] - GG: Sim. //(...) //[00:56:58] - Mandatário: Mas os danos são os mesmos, o veículo é o mesmo. Portanto... Pronto. Então, da elaboração do seu relatório o senhor atesta os factos que aqui estão. Então pergunto-lhe efectivamente considerou que face aos vestígios no local, fragmentos de plástico, está aqui no relatório, que os danos no veículo resultaram do embate... da presença de um javali na via. É assim? // [00:57:30] - GG: Sim.”
Q. Ora, os danos indicados no relatório junto como Doc. 5 coincidem com os danos referidos pelas testemunhas supra citadas, bem como o descrito no relatório junto como Doc. 3 na Petição Inicial - danos frontais.
R. Ainda, sempre se dirá que o Tribunal tem livre apreciação da prova; “Os documentos particulares que tenham sido impugnados deixam de fazer prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, nos termos previstos no art. 376° do CC, mas podem ser utilizados como meios de prova, apreciados livremente pelo tribunal” (Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no processo 4013/15.0T8LRS.L1-7, em 11/07/2019).
S. No caso, está dado como provado que os Autores embateram num javali, na A..., sendo claro do testemunho e documentos indicados supra que existiram danos frontais; seguindo a regra do pensamento do homem médio, é claro que o embate, em autoestrada, na qual as velocidades permitidas chegam aos 120KM/hora, num animal de grande porte como um javali, causa necessariamente danos a um veículo automóvel.
T. Ainda e no que se refere à profissão dos Recorrentes, foi pelo Tribunal a quo oficiado o Instituto da Segurança Social para vir juntar aos autos os extratos de remunerações daqueles, o que foi feito pela entidade e notificado às partes em 22/10/2020 (referência Citius 006227704), constando dos documentos juntos que os Recorrentes residem em ..., e que ambos são trabalhadores por conta de outrem na a empresa “E... LDA.". Como tal, e pela experiência do homem médio, um trabalhador de uma empresa de camiões não anda sempre com o referido camião de transporte, antes precisa de uma viatura para se deslocar até ao local onde se encontra estacionado o referido camião, em regra, junto da entidade patronal.
U. Assim, entendem os Recorrentes estar provado nos autos que são camionistas de profissão, por conta de outrem e residentes em ..., sendo o veículo automóvel indispensável para as deslocações para o trabalho - que, no caso dos Recorrentes, é apenas ligeiramente diferente de outras profissões, dado que se deslocam até onde se encontra o referido camião.
V. Assim, entendem os Recorridos que o Tribunal a quo errou a não dar como provados os danos no veículo, devendo passar a constar como Factos Provados:
“I. Após o sinistro o veículo automóvel ficou imobilizado devido aos danos sofridos, tenso sido chamada viatura de reboque, sendo os danos no veículo em toda a parte frontal do mesmo, e tendo o custo de reparação aproximado de € visíveis na Do sinistro decorreram danos no veículo automóvel dos Autores, nomeadamente da parte fronteira do veículo, que consubstanciam o montante de € 4.222,60.
“J. Em virtude do acidente, os Autores ficaram ainda com os telemóveis danificados, tendo a reparação sido orçamentada em € 282,90.
“K. Em virtude do acidente, os Autores viram-se obrigados a recorrer à compra de um veículo de idênticas características do sinistrado.
“L. Os Autores, com residência em ..., são trabalhadores por conta de outrem na empresa E... LDA., utilizando o veículo automóvel nas suas deslocações até ao local de trabalho.”
W. Entendem os Recorrentes que os factos provados deverão passar a ter a seguinte formulação:
- A. (sem alterações)
- B. (sem alterações)
- C. Na sequência do acidente, o operador de central de comunicações da Brisa Concessão Rodoviária, SA, acionou pelas 05h:19m, um painel de mensagem variável com o intuito de avisar os utentes para a existência de acidente na via, e o trabalhador ao serviço da concessionária deslocou-se ao local do acidente e arrastou o javali para a valeta, tendo ainda verificado as vedações com recurso a uma lanterna, numa extensão de 250 metros para cada lado, e não tendo detetado qualquer anomalia, o que foi corroborado por uma outra equipa de trabalhadores da concessionária que também se deslocaram ao local, durante o dia esse mesmo dia (cf. documento n.° 3 junto aos autos com a contestação, e depoimento da testemunha DD e CC, que se dá aqui por integralmente reproduzido).
- D. Nos dias 16 e 17.04.2017, a Brisa Concessão Rodoviária, SA efetuou os seguintes patrulhamentos, não tendo detetado a existência do dito animal, tendo contudo lhes sido comunicada a existência de outros animais, nomeadamente de dois cães no mesmo KM do acidente entre as 00:55 e as 01:28 do dia 17.04.2017, que desapareceram no talude (cf. documentos n.°s 5 e 6 junto aos autos com a contestação, e depoimento das testemunhas DD e EE, que aqui se dão por integralmente reproduzido).
- E. (sem alterações)
- F. (sem alterações)
- G. (sem alterações)
- H. (sem alterações)
- I. Após o sinistro o veiculo automóvel ficou imobilizado devido aos danos sofridos, tenso sido chamada viatura de reboque, sendo os danos no veículo em toda a parte frontal do mesmo, e tendo o custo de reparação aproximado de € visíveis na Do sinistro decorreram danos no veículo automóvel dos Autores, nomeadamente da parte fronteira do veículo, que consubstanciam o montante de € 4.222,60 (cf. Documentos n.°s 3 e 5, e depoimento das testemunhas CC e GG, que aqui se dão por integralmente reproduzido).
- J. Em virtude do acidente, os Autores ficaram ainda com os telemóveis danificados, tendo a reparação sido orçamentada em € 282,90.
- K. Em virtude do acidente, os Autores viram-se obrigados a recorrer à compra de um veículo de idênticas características do sinistrado.
- L. Os Autores, com residência em ..., são trabalhadores por conta de outrem na empresa E... LDA., utilizando o veículo automóvel nas suas deslocações até ao local de trabalho.
X. Continuando; nos presentes autos estamos, antes de mais, perante a inversão do ónus da prova nos termos do art. 12.°, n.° 1, da Lei n.° 24/2007, ou seja, "Nas autoestradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respetiva causa diga respeito a: (...) b) Atravessamento de animais"; quanto a este ponto, entendeu o Tribunal a quo que a Recorrida concessionária "provou que o lanço rodoviário onde ocorreu o embate encontra-se completamente vedado e que é efetuado patrulhamento diário, inclusive no dia em que o acidente se verificou”, bem como que teria uma patrulha da Recorrida "passado perto do local do acidente, pelas 04h:41, quando o embate ocorrera aproximadamente pelas 05:28, e que não fora detetado qualquer animal na via”.
Y. Salvo o devido respeito, o facto de a Recorrida ter passado perto do local de embate cerca de cinquenta minutos antes do embate, e de nada ter encontrado nas vedações a 250metros para cada lado - ou mesmo que fossem os dados como provados 500 metros para cada lado - não é suficiente para se entender como provado que a Recorrida cumpriu com os seus deveres de segurança na via.
Z. Desde logo, sempre se dirá que um javali não “caiu do céu” na autoestrada, tão pouco se tratando de um animal que algum utilizador da via (utilizando a regra da experiência) deixaria no meio da autoestrada; assim, o animal entrou na via por algum ponto de acesso, sobre o qual a Recorrida não cumpriu devidamente o seu dever de vigilância.
AA. Retornemos ao depoimento da testemunha CC, do qual podemos antes de mais retirar que têm várias ocorrências com animais, que são descritas pela testemunha como singulares, isto é, nunca iguais (ficheiro de áudio “Gravacao Audiencias 20-01-2022 14-32-19”): “[00:18:20] - Mandatário: E neste tempo que trabalha na BRISA já teve alguma situação similar com animais? // [00:18:26] - CC: Sim, temos algumas ocorrências singulares, nunca são iguais.”
BB. Do depoimento desta testemunha, podemos igualmente inferir que, quando se deu a dita passagem no troço do acidente, cerca das 04:41, cinquenta minutos antes do sinistro, o funcionários encarregues das patrulhas estariam já na 5ª hora de patrulhamento, de noite, durante o qual fazem cerca de 250 KM, com paragens, sendo certo que, ocorrendo um sinistro, podem permanecer horas no mesmo local (no caso, ficaram no local do acidente cerca de 40 minutos): “[00:22:24] - CC: É assim, depende da zona de patrulhamento. Podemos começar numa virada para o norte ou para o sul. No final de um turno são mais ou menos 250 km. // (...) // [00:22:59] - Mandatário: Só mais uma pergunta. Fazem nos dois sentidos? // [00:23:01] - CC: Nos dois sentidos. // (...) // [00:23:28] - Mandatário: Tem postos de paragem. // [00:23:29] - CC: Sim. (...) // [00:32:20] - Mandatário: Então nestes 40 minutos que lá esteve fez a sinalização da Berma, recolheu o animal para a valeta dos calheiros da água, e ainda teve tempo para verificar 500 metros de vedação? // [00:32:40] - Meritíssima Juiz: E entretanto chegou a GNR? // [00:32:43] - CC: Entretanto chegou a GNR as 5:45. // (...) // [00:39:38] - Mandatário: (...) Este dia o senhor, e a partida teve conhecimento da incidência as 5:18. A que horas o senhor iniciou o seu turno? // [00:39:58] - CC: às 23h. // [00:40:00] - Mandatário: Portanto começou às 23, do dia 16/04/2017. E a que horas terminou? // [00:40:10] - CC: No geral às 7.”
CC. Foi ainda referido pela testemunha GG que, perto do KM do acidente, existe uma área de serviço e um acesso à autoestrada (ficheiro de áudio “GravacaoAudiencias 20-01-2022 14-32-19”): “[01:05:44] - GG: Ali perto terá uma cancela de acesso a autoestrada, mas depois, dois KM antes tem a estação de serviços de ... e 8km a seguir tem a portagem de Anais Ponte de Lima. // [01:06:03] - Mandatário: Dois KM antes deste 58? // [01:06:06] - GG: Aos 56 é a - de serviços de ....”
DD. Bem como que é regular a entrada de javalis na autoestrada, e que estes podem percorrer vários quilómetros (KM) desde o local de entrada (ficheiro de áudio "GravacaoAudiências 20-01-2022 14-32-19”): "[01:11:33] - GG: Javalis, há uma altura que acontece, não sei se é altura... um período dê temporal em que eles quando aparecem todos naquela altura. Depois cães acontece em muitas alturas, os gatos também entram. // (...) // [01:12:36] - Meritíssima Juiz: Mas eles percorrem vários KMS os javalis? // [01:12:37] - GG: Sim, vários KMS. // [01:12:43] - Meritíssima Juiz: Ou seja, eles podem ter entrado por outro sítio... // [01:12:45] - GG: há situações que eles entram pelas vias de acesso... Tanto eles como os cães. Normalmente há sempre população a volta e os cães tentam entrar por ali.”
EE. Algo que é corroborado pela testemunha HH (ficheiro de áudio “GravacaoAudiencias 20-01-2022 14-32-19”): “[02:10:03] - Mandatário: Animais na via, são frequentes ou não. // [02:10:07] - HH: Vão aparecendo, principalmente, como explicar, nesta altura mais de caça.”
FF. Decorre ainda do depoimento da testemunha GG que a visibilidade, à noite, naquele troço, era pouca, cerca de 30 metros autoestrada (ficheiro de áudio “GravacaoAudiencias 20-01-2022 14-32-19”): “[01:14:42] - GG: Não sei se será tanto... depois depende das características do veículo, porque depois depende... os condutores uns tem mais outros tem menos. // (...) //[01:14:56] - GG: 50m não me parece... acho que será de mais. //[01:15:00] - Mandatário: Mas seriam 30m? // [01:15:01] - GG: 30m talvez.”
GG. Sem esquecer que o acidente de seu numa curva, conforme croqui que consta dos autos, e conforme ainda o depoimento da testemunha GG (ficheiro de áudio “GravacaoAudiencias 20-01-2022 14-32-19”): “[00:57:53] - Meritíssima Juiz: era mesmo uma curva o local? // [00:57:56] - GG: uma curva suave, não era muito fechada, não era muito acentuada. Uma curva a esquerda...é muito cumprida.”
HH. Ao demais, como foi já referido, entre as 00:55 e 01:28, no dia do sinistro, no mesmo troço onde decorreu o sinistro, foram avistados dois cães (conforme Doc. 6 junto pela Recorrida à contestação), mas, para lá de constar no relatório de incidências, não consta que a Recorrida tenha procurado saber como tinham entrado, ou sequer ter certeza de ter avisado os utilizadores sobre animais na via. Ou seja, não foi dada importância à existência de dois cães na via - cães que poderão ter entrado pelo mesmo acesso que o javali que causou o sinistro, mas aos quais não foi dada, aparentemente, importância.
II. O Tribunal a quo entendeu que a Recorrida concessionária cumpriu as suas obrigações de segurança, nomeadamente “provou que o lanço rodoviário onde ocorreu o embate encontra-se completamente vedado e que é efetuado o patrulhamento diário, inclusive no dia em que aquele acidente se verificou”, e que “Consequentemente, tendo-se provado que a concessionária efetuara os patrulhamentos que lhe eram exigidos, e que tinha passado pouco tempo antes no local do acidente, não constatando a presença de qualquer animal, não podemos deixar de concluir que o Réu conseguiu ilidir a sua presunção de culpa, (...), demonstrando que o acidente não se deveu à violação dos seus deveres de cuidado”. Salvo o devido respeito, a prova dos patrulhamentos diários e da existência da vedação não são suficientes para ilidir a presunção de culpa que recai sobre a Recorrida.
JJ. Aliás, e conforme decidiu o Tribunal Central Administrativo Norte, por Acórdão proferido no processo n.° 00334/19.0BEBRG, de 30/10/2020 (disponível em www.dgsi.pt): "Como é do conhecimento geral, sendo um facto notório, a atividade de condução de veículos automóveis é uma atividade perigosa, que está vinculada por múltiplas regras específicas relativas não só à própria atividade, mas ainda à faculdade de conduzir. "Assim, o concessionário de uma autoestrada tem necessariamente que estar consciente de que se comprometeu com o Estado Português a exercer funções numa atividade que envolve um risco elevado para os condutores, que são os beneficiários da concessão. Assim, as obrigações de segurança que impendem sobre o concessionário ou subconcessionária devem adaptar-se aos níveis de risco e perigosidade. "Em concreto, desconhece-se a proveniência do canídeo, sendo certo que o mesmo se encontrava inadvertidamente na faixa de rodagem da autoestrada onde foi embatido. "Mesmo admitindo que a A. exercia todas as Ações de fiscalização que afirma levar a cabo, o que é facto é que é patente que as mesmas não se mostraram suficientes e adequadas para ilidir a presunção de incumprimento que sobe si recai, por força do artigo 12. °, n° 1 da Lei n. ° 24/2007, de 18 de julho, regime que se não reconhece como inaplicável ao caso concreto. “O que é facto é que a A. não conseguiu demonstrar a proveniência do canídeo ou que o mesmo surgiu de forma inusitada e incontrolável, e que, por esse motivo, não lhe é imputável o sinistro. “O facto de a concessionária afirmar “que desconhecia a presença do animal na via” em nada mitiga a sua responsabilidade, pois que o canídeo não só estava efetivamente na via, como provocou o acidente participada, não tendo aquela logrado demonstrar que a referida permanência lhe não seria imputável, ainda que por negligência ou omissão.”
KK. Dizendo ainda o referido Acórdão que, “É igualmente irrelevante a existência de patrulhamentos se não ficar demonstrado, como não ficou, que estão instalados na autoestrada em causa os meios físicos e técnicos tendentes a impedir a entrada de canídeos e outros animais na via.”
LL. O caso nos presentes autos enquadra-se, perfeitamente, no mesmo caso indicado no referido Acórdão, ou seja, desconhece-se a proveniência do javali, ou “que o mesmo surgiu de forma inusitada e incontrolável, e que, por esse motivo, não lhe é imputável o sinistro”, o facto de desconhecer que o javali se encontrava na via não mitiga a sua responsabilidade, atento que é claro que o sinistro ocorreu, e que ocorreu pelo embate de um javali que circulava, pelas 5 horas da manhã em 17 de abril de 2017, na autoestrada concessionada à Recorrida.
MM. Ainda, no Acórdão em causa do Tribunal Central Administrativo Norte, foi decidido que:
"1 - Em via concessionada, o lesado por acidente de viação tem direito a ser indemnizado, incluindo por danos sofridos pelo veículo, verificados que estejam os demais requisitos da responsabilidade civil.
“2 - A demonstração de que a Concessionária de Autoestrada vigia regularmente a mesma, e que no dia do acidente os vigilantes de serviço terão passado pouco tempo antes no local, sem detetar qualquer anomalia ou animal, não é suficiente para ilidir a presunção de incumprimento que recai sobre si, por força do artigo 12. ° n° 1 da Lei n. ° 24/2007, de 18 de julho.
3 - Para ilidir a sua presunção de responsabilidade, impõe-se que a concessionária evidencie, designadamente, que a rede/vedação da via era idónea para prevenir a entrada de cães, como o que esteve envolvido no acidente em causa, demonstrando concretamente que medidas tomou para aumentar/garantir a segurança no local, não sendo suficiente a existência genérica de meios direcionados para todos os aspetos em termos abstratos, sem qualquer garantia de que concretamente evitaria a ocorrência do em causa. O cumprimento de obrigações de segurança não se restringe à operação de patrulhamentos e à confirmação do estado das vedações, ou à sua mera existência. É irrelevante a existência de patrulhamentos se não ficar demonstrado, como não ficou, que estão instalados na autoestrada em causa os meios físicos e técnicos tendentes a impedir a entrada de canídeos e outros animais na via.
4 - A ilusão de uma presunção "juris tantum" só é feita mediante a prova do contrário, não sendo bastante a mera contraprova, pelo que o "non liquet" prejudica a pessoa/parte contra quem funciona a presunção. Sobre a Concessionária impende o ónus de provar a adoção de todas as providências que, segundo a experiência comum e as regras técnicas aplicáveis, fossem suscetíveis de evitar o perigo, prevenindo o dano, o qual não se teria ficado a dever a culpa da sua parte, ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua. Para se ter como ilidida a presunção de culpa da Concessionária não basta a simples prova, em abstrato, de que o mesmo desenvolve ou dispõe de funcionários ou dum corpo técnico que têm por função proceder à fiscalização e reparação das vias sob sua jurisdição, pois tem de ser demonstrado quais são as providências desencadeadas em relação à via pública em questão, a fim de que o Tribunal possa aferir se aquele organizou os seus serviços de modo a assegurar um eficiente sistema de prevenção e vigilância de anomalias previsíveis, exercendo uma adequada e contínua fiscalização.” (negrito e sublinhados nossos).”
NN. Entendimento este que se encontra plasmado em outros Acórdãos, nomeadamente no acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Norte, no processo 00371/13.9BEPRT, de 04/12/2015 (disponível em www.dgsi.pt): “Caso fosse possível afastar a presunção, pela mera alegação de que funcionários da concessionária passavam nos diversos locais da autoestrada, de duas em duas horas, estar-se-ia a subverter a própria presunção de culpa legalmente estabelecida, que passaria a constituir a um mero requisito formal, facilmente contornável. Não pode ficar a cargo do utilizador da autoestrada sinistrado a prova da origem do obstáculo, pois que se assim fosse, mais uma vez se estaria a subverter a presunção legal de culpa da concessionária. O afastamento da presunção de incumprimento que sobre si impende, só poderia operar se a Concessionária fizesse prova que a existência do tronco de madeira no pavimento da autoestrada que determinou o acidente, surgiu de forma inopinada ou foi colocado de forma intencional ou negligente, por outrem.”
OO. E ainda no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, no processo n.° 01966/15.1BEPRT, de 18/09/2020 (disponível em www.dgsi.pt): "a prova de que aquela não teve conhecimento do acidente nem foi chamada ao local em que o mesmo ocorreu nem detetou qualquer objeto na via nem antes nem depois do acidente e que à data do acidente, era seu procedimento realizar ações de patrulhamento, em toda a via, durante as 24 horas de cada dia e em todos os dias do ano, não é bastante para que dê como ilidida a sua presunção de culpa e de ilicitude.”
PP. Bem como no Acórdão Tribunal Central Administrativo Norte proferido no processo n.° 00048/13.5BEVIS, de 18/09/2020: "II- Nas ações de responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos por factos ilícitos, funciona a presunção de culpa in vigilando estabelecida no n. ° 1, do art. ° 493. ° do Código Civil e no art. ° 10. °, n. °3 da Lei 67/2007. III- O art. ° 493. ° n. °1 do CC responsabiliza por culpa presumida quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel com o dever de a vigiar, relativamente aos danos por ela causados, sendo de integrar no conceito de coisa móvel ou de coisa imóvel, nos termos do art.° 493.°, n.°1 do CC, não só as faixas de rodagem, como as portagens, zonas de descanso, sinalização vertical diversa, as vedações e tudo o mais que esteja sob a alçada da concessão, recaindo sobre a concessionária a presunção de culpa quando, por falta de vigilância do imóvel, ocorra um acidente. IV- Não ilide a presunção de culpa decorrente da introdução de um javali numa via com as características do IP..., a concessionária que não alegue, nem prove, factos dos quais decorra que nenhuma culpa houve da sua parte, para o que não lhe basta alegar e provar que cerca de um mês antes da verificação do acidente efetuou a manutenção da rede de vedação do IP e que existia um sinal de perigo de animais selvagens a 750 m do local do acidente”.
QQ. No caso concreto, e não obstante a Recorrida ter alegado que as redes de vedação se encontram em bom estado de conservação, próximo do local onde ocorreu o embate, não pode deixar de salientar-se que, na verdade, a Recorrida permitiu a entrada na autoestrada do animal que esteve na génese do acidente. Tal implica a constatação de que a concessionária não fez tudo o que era adequado e que legalmente se lhe impunha, em termos do cumprimento das regras de segurança no âmbito da intromissão de animais nas autoestradas destinadas ao trânsito.
RR. É que, apesar de não se poder exigir à concessionária um patrulhamento e vigilância permanentes e simultâneos em todos os troços das autoestradas, deve exigir-se que, pelo menos, tais operações sejam efetivas e eficazes (com a colocação, por exemplo, de câmaras de vigilância, como já vem acontecendo em outras autoestradas de que a Recorrida é concessionária), de modo a detetar (em tempo oportuno) potenciais fontes dos riscos de circulação automóvel, a remover os obstáculos a essa circulação, e a evitar em qualquer caso a entrada de animais na autoestrada.
SS. Acresce que, conforme consta dos documentos juntos pela Recorrida, nesse mesmo dia 17 de abril de 2017, entre as 00:44 e as 01:28, em KM perto do qual se deu o acidente em causa, foi comunicada pela GNR a existência de dois canídeos na via, o que demonstra que não apenas o javali conseguiu entrar na via, mas também outros animais de porte.
TT. Assim, e em conclusão, entendem os Recorrentes que a Recorrida concessionária não fez prova do cumprimento das suas obrigações de segurança e vigilância da via, não tendo, como tal, ilidido a presunção estabelecida pelo art. 12.°, n.° 1, al. b) da Lei n.° 24/2007, como lhe cabia, devendo como tal ser considerada provada a culpa da Recorrida concessionária na produção do sinistro.
UU. Entendeu ainda o Tribunal a quo que os Recorrentes não cumpriram “o ónus que sobre si impendia, quanto ao valor dos danos e ao nexo de causalidade entre o facto e o dano, no que respeita a todo o peticionado”. No que diz respeito ao nexo de causalidade entre o facto e o dano, desde logo se dirá que resulta claro da prova testemunhal, da prova documental, e dos factos provados, que se deu um sinistro, nomeadamente um embate contra um animal de grande porte (javali), que inclusive faleceu com o impacto, numa autoestrada; diz a regra da experiência que, quando há um embate a velocidades normais em autoestrada (que podem chegar aos 120KM/hora), com um animal - em especial um animal de grande porte - há danos para os veículos envolvidos.
VV. No caso, retomamos o depoimento da testemunha CC (ficheiro de áudio “GravacaoAudiencias 20-01-2022 14-32-19”), que indicou em audiência: "[00:12:15] - Mandatário: E recorda-se dos danos que verificou no veículo? // [00:12:21] - CC: Não me recordo, mas posso ler o que tenho aqui escrito. Seriam os danos visíveis aqueles no para-choque, grelha, faróis e capo. // (...) // [00:17:27] - CC: O animal estava na berma e, por norma, é retirado por nós, por um local seguro. Se for de pequeno porte colocamos em outro local até ser retirado. Naquela altura recordo-me que era de grande porte porque tive dificuldade em puxá-lo da berma.”
WW. E ainda o depoimento da testemunha GG, (ficheiro de áudio "Gravacao Audiencias 20-01-2022 14-32-19”), que referiu: "[00:56:58] - Mandatário: Mas os danos são os mesmos, o veículo é o mesmo. Portanto... Pronto. Então, da elaboração do seu relatório o senhor atesta os factos que aqui estão. Então pergunto-lhe efetivamente considerou que face aos vestígios no local, fragmentos de plástico, está aqui no relatório, que os danos no veículo resultaram do embate... da presença de um javali na via. É assim? // [00:57:30] - GG: Sim. // (...) // [01:01:43] - GG: Essa parte já não presenciei. Estava lá o mecânico e depois nós continuamos a viagem... quando o veículo foi removido do local, do ponto de socorro. // [01:01:57] - Meritíssima Juiz: O veículo já não saiu de lá em movimento? Ou seja, teve que ser levado. // [01:01:59] - GG: Sim, sim. Depois fica lá o mecânico a providenciar que seja recolhido pelos colegas dele, não é. // (...) // [01:0344] - Mandatário: então não sabemos quanto tempo é que vocês estiveram no local... Ficou até a chegada do reboque, pelo o que parece a mim... Diz aqui no seu... Ficou até a saída do veículo... // [01:04:03] - GG: Mas eu recordo-me do reboque. Não coloquei aqui?”
XX. Não esquecendo ainda o Doc. 3 junto com a Petição Inicial, que se trata da participação da GNR, que "do acidente resultaram danos no veículo n. ° 1, em toda a parte frontal”, bem como que havia vestígios de plásticos no local, relatório este que foi exibido e confirmado pela testemunha GG (ficheiro de áudio “Gravação Audiências 20-01-2022 14-32-19”): “[00:55:37] - Meritíssima Juiz: No croqui que tem aqui no auto. Aparece aqui o javali, diz aqui javali sobre a berma. Local provável do embate do veículo via da direita. // [00:55:49] - GG: Sim. // (...) // [00:56:58] - Mandatário: Mas os danos são os mesmos, o veículo é o mesmo. Portanto... Pronto. Então, da elaboração do seu relatório o senhor atesta os factos que aqui estão. Então pergunto-lhe efectivamente considerou que face aos vestígios no local, fragmentos de plástico, está aqui no relatório, que os danos no veículo resultaram do embate... da presença de um javali na via. É assim? // [00:57:30] - GG: Sim.”
YY. Como tal, entendem os Recorrentes que resulta claro o nexo de causalidade entre o facto - embate com o javali - e os danos no veículo. Acresce ainda, como já aqui se referiu, os danos indicados no relatório junto como Doc. 5 coincidem com os danos referidos pelas testemunhas supra citadas, bem como o descrito no relatório junto como Doc. 3 na Petição Inicial - danos frontais.
ZZ. Ainda, sempre se dirá que o Tribunal tem livre apreciação da prova; no caso, está dado como provado que os Autores embateram num javali, na A..., sendo claro do testemunho e documentos indicados supra que existiram danos frontais; seguindo a regra do pensamento do homem médio, é claro que o embate, em autoestrada, na qual as velocidades permitidas chegam aos 120KM/hora, num animal de grande porte como um javali, causa necessariamente danos a um veículo automóvel, danos esses que vêm descritos no orçamento de reparação obtido pelos Recorrentes, tendo a reparação dos danos o valor de € 4.222,60, conforme Doc. 5 junto com a Petição Inicial.
AAA. Como já referido, juntaram ainda como Doc. 10, na sua petição inicial, um orçamento de reparação de, claramente, a parte da frente de dois telemóveis, e no que se refere à profissão dos Recorrentes, junto a Segurança Social nos autos extratos de remunerações dos Recorrentes, onde consta que residem em ..., e que ambos são trabalhadores por conta de outrem na a empresa “E... LDA.". Pela experiência do homem médio, um trabalhador de uma empresa de camiões não anda sempre com o referido camião de transporte, antes precisa de uma viatura para se deslocar até ao local onde se encontra estacionado o referido camião, em regra, junto da entidade patronal.
BBB. Assim, entendem os Recorrentes estar provado nos autos que são camionistas de profissão, por conta de outrem e residentes em ..., sendo o veículo automóvel indispensável para as deslocações para o trabalho - que, no caso dos Recorrentes, é apenas ligeiramente diferente de outras profissões, dado que se deslocam até onde se encontra o referido camião.
CCC. Acresce que, desde a data do acidente, em 2017, isto é, há quase cinco anos, que os Recorrentes tentam resolver a presente questão junto da Recorrida concessionária, não tendo procedido à reparação do veículo automóvel por entenderem, e bem, que não é da sua responsabilidade arcar com os referidos danos.
DDD. A demora na resolução do litígio, por recusa da Concessionária em assumir o sinistro, trouxe aos Recorrentes uma demora infindável para tentar encontrar justiça para a sua situação, atendo que a Concessionária assumiu, perante o Estado Português, deveres e obrigações que incumpriu.
EEE. De facto, da prova produzida em sede de audiência de julgamento, seja pelo que se pôde extrair dos documentos juntos aos autos, seja pelos depoimentos das testemunhas, não entendem os Recorrentes como pôde o tribunal a quo chegar a uma decisão de improcedência total da ação, declarando a postura da Recorrida concessionária como sendo suficiente para provar cumpridas as suas obrigações, quando estamos perante - pasme-se - um acidente contra um javali num auto-estrada!
FFF. Ora, conforme Acórdão do Tribunal Administrativo Central Norte, proferido no processo n.° 00951/14.5BEBRG, de 30/11/2017:
"1 - Como tem vindo recorrente e uniformemente a ser decidido pelos tribunais, mormente a partir da publicação da Lei n° 24/2007, nas situações de embate de veículos com animais nas autoestradas, a exclusão da obrigação de indemnizar as lesadas pelas concessionárias sempre pressuporia a demonstração que os animais haviam surgido na autoestrada de forma inesperada e incontornável nomeadamente através da intervenção de terceiro.
"2 - Não sendo conhecida a efetiva razão determinante da inusitada permanência dos animais, na faixa de rolagem! é a favor, do lesado/utente e não da concessionário que a respetiva dúvida terá de resolvida de acordo com o preceituado no n° 1 do artigo 12° da Lei n. ° 24/2007, conjugado com o n.° 1 do artigo 350. ° do Código Civil
“2 - O lesado por acidente de viação tem direito a ser indemnizado, incluindo por danos sofridos no veículo mesmo que não seja o seu proprietário verificados que esteiam os demais registos da responsabilidade civil. ”(negrito e sublinhados nossos).
GGG. Assim, entendem os Recorrentes que se encontra provado a existência dos factos, o nexo causal entre facto e danos, como a existência e valor dos danos causados ao veículo automóvel e aos Recorrentes, e, ainda, por não ter sido iludida a presunção, ilicitude e culpa da Recorrida, preenchendo assim os pressupostos necessários da responsabilidade civil extracontratual, conforme estabelecido nos artigos 483.° e ss do Código Civil, pelo que deve a Recorrida ser condenada ao pagamento dos valores peticionados aos Recorrentes. (…)”.
*
Notificada que foi para o efeito, a Recorrida BRISA CONCESSÃO RODOVIÁRIA, S.A., produziu contra-alegações, que rematou com o seguinte quadro conclusivo: “(…)
1 - Entende a Ré Brisa Concessão Rodoviária, S.A., acompanhando na integra douta sentença proferida pelo tribunal “a quo”, aqui recorrida, que a ação teve o resultado previsível, mediante as regras de direito a aplicar “in casu", tendo sido, salvo melhor opinião, feita uma correta aplicação das normas jurídicas atinentes, nomeadamente, à questão da responsabilidade civil, bem como, da respetiva repartição do ónus da prova, não tendo os AA., feito qualquer tipo de prova acerca dos danos supostamente sofridos, conforme lhes competia;
2- No entanto, da forma como foi configurado o recurso interposto pelos Autores, cabe referir que salvo o devido respeito por opinião diversa, consideramos ao contrário do invocado pelos Recorrentes, relativamente aos factos constantes dos pontos C) e D) dos factos provados, da douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo, não se verifica que os mesmos se encontrem incompletos e que o teor dos mesmos seja erróneo, em face da prova documental carreada para os autos, bem como, da prova produzida em audiência de discussão e julgamento;
3- A douta Sentença proferida pelo Tribunal “a quo", perante a matéria assente e os factos gravados em plena audiência de Julgamento apurou corretamente os factos, uma vez que dos depoimentos, de todas, as testemunhas, não se pode aferir da culpa da Ré Brisa Concessão Rodoviária, S.A., no sinistro em causa;
4 - Referem os Apelantes que a reformulação do mencionado ponto C dos factos dados como provados, se fundamenta no teor do depoimento da testemunha CC (testemunha comum a ambas a partes), na qualidade de Oficial de Mecânica da BO&M, ao serviço da Apelada II, mas não lhes assiste razão, nomeadamente, porque não fazem os recorrentes uma correta interpretação do teor do depoimento da aludida testemunha e por outro lado, omitem também qualquer referência aos depoimentos das testemunhas GG (Guarda Principal da GNR-BT) por aqueles arrolada para a audiência de discussão e julgamento, bem como da testemunha HH (...), arrolada pela aqui Apelada e que corroboram o cumprimento da obrigações de segurança por parte da concessionária no que tange à verificação do estado de conservação das vedações há data da ocorrência do sinistro;
5 - Como já se deixou dito em sede de alegações escritas deduzidas pela Apelada nos autos, em face da natureza do obstáculo em questão, a aludida testemunha CC referiu que procedeu à verificação das vedações que ladeia a A..., ao Km 58,300, de forma apeada e com a ajuda de uma lanterna, numa extensão total de 500 metros (250 metros para sul e para norte, em ambos os sentidos, a partir do local do suposto ponto de impacto no animal) e não detetou qualquer tipo de anomalia ou danos na infraestrutura que permitisse a entrada do referido javali nas vias de circulação;
6 - Tendo, assim, o Tribunal a quo conhecimento desta realidade factual antes da prolação da douta decisão ora colocada em crise;
7 - Assim, face ao depoimento da testemunha CC, o fato dado como provado sob o ponto C, da matéria factual dada como provada não deverá sofrer qualquer alteração na sua redação conforme é pretensão do Apelantes, pois em boa verdade e na sequência do aludido depoimento se alguma hipotética alteração tivesse de ser efetuada no aludido ponto C seria no sentido de dizer: “(…) e arrastou o javali para a valeta, tendo ainda verificado as vedações, numa extensão de 500 metros para cada lado, no total de um quilómetro de extensão, e não tendo detetado qualquer anomalia, o que foi corroborado por uma outra equipa de trabalhadores da concessionária que também se deslocaram ao local, durante o dia esse mesmo dia (…)”;
8 - Por outro lado, saliente-se em relação ao teor do ponto D, da matéria factual dada como provada e cuja reformulação da sua redação é agora requerida ao Digníssimo TCAN pelos Apelantes, baseia-se a mesma, nomeadamente, em conclusões erróneas da interpretação que os Autores tentam extrair do teor do doc. nº. 6 (pesquisa específica de incidências), junto com a Contestação deduzida nos autos pela Ré e são arredias à verdade material dos factos descritos no aludido documento, bem como da prova testemunhal produzida em audiência de discussão e julgamento;
9 - Uma vez que pela simples apreciação do teor do mencionado doc. n.° 6, junto com a Contestação pela Apelada, facilmente se conclui que a pretensão dos recorrentes não faz qualquer sentido. Na verdade, de acordo com a descrição constante da incidência n.° 17-1032898, do aludido doc. n.° 6, relativa à comunicação efetuada por um operador principal de uma barreira de portagem da concessão que recebeu uma informação da existência de um animal morto na via direita (constatou-se posteriormente que se tratava de um gato), cabe referir que a mencionada informação foi registada pela operadora de central de comunicações DD no Centro Operacional da BO&M, pelas 00h:05m, do dia 17/04/2017 (5 horas antes dos factos em discussão nos autos), na A..., no sentido Sul/Norte, mas ao km 72,650!! Ou seja, a cerca 14,350 quilómetros do local onde terão ocorrido os factos em apreço na presente lide;
10 - Por outro lado, fazem os Apelantes na defesa das suas pretensões no presente recurso, menção ao teor da incidência n.° 17-1032904, do aludido doc. n.° 6, relativa à comunicação efetuada pela GNR, registada pelo Centro Operacional da BO&M e que terá sido recebida pelas 00h:55m, do mesmo dia 17/04/2017, uma informação relativa à existência de dois cães (cerca 4 horas e 20 minutos antes dos factos em discussão nos autos), no sentido Sul/Norte, ao km. 58,300, da A...;
11- Acontece, porém, que em face de tal informação, a Ré enviou para o local de imediato, uma viatura da assistência Rodoviária da BO&M, em socorro e proteção, a fim de localizar e se possível remover os aludidos animais da via, estando também já no local uma viatura da GNR-BT. Animais esses, que não foram localizados posteriormente no perímetro da A..., nem pela aludida força policial, nem pelos serviços de assistência rodoviária, nomeadamente, ao Km. 58,300 (em ambos os sentidos), da A...;
12 - Não tendo por outro lado os mencionados animais de raça canina, estado na origem de qualquer sinistro que tenha ocorrido na A..., nem tal facto foi reportado à Ré por qualquer meio, ou à própria GNR-BT;
13- O que a Ré sabe, é que a existência de um javali na via não era do conhecimento da Concessionária (nomeadamente, através de qualquer tipo de informação que lhe pudesse ter sido transmitida por utentes que circulassem na via), da Assistência Rodoviária da BO&M ou da própria GNR-BT que patrulhavam a A..., em momento anterior ao da comunicação do incidente em apreço nos autos, como se encontra espelhado de forma correta no ponto D), da matéria factual dada como provada e constante da douta sentença proferida pelo Digníssimo Tribunal a quo;
14 - Na verdade, perante toda a prova produzida nos autos, o teor dos pontos C) e D) da matéria dada como provada não deve sofrer qualquer tipo de reformulação no que diz respeito ao seu conteúdo, sendo que tal pretensão por parte dos Recorrentes não altera em nada a ponderação da prova feita pelo Tribunal a quo, no que diz respeito á verificação da vedações que ladeiam a A... por parte dos serviços da Apelada, com vista à determinação do cumprimento das obrigações de segurança, nomeadamente, a vigilância adequada da via no local onde ocorreu o acidente em causa;
15- Refira-se por outro lado que, a douta Sentença recorrida, para além de ser uma peça tecnicamente bem elaborada, funda-se em facto verídicos indesmentíveis e surge na sequência lógica e totalmente aguardada da correta ponderação dos factos provados e não provados efetuada pelo Mm° Juiz do Tribunal “a quo” que efetuou o julgamento;
16 - Na verdade, em nosso entender, andou bem o Tribunal a quo quando considerou, como factos não provados, no seguimento de toda da prova testemunhal e documental produzida nos autos em sentido concordante com o constante da douta decisão tomada quanto as estas questões de particular importância (dos danos supostamente sofrido pelos AA.) que:
“(…)
- Que a oficina “L..., Lda., tenha orçamentado o custo de reparação do veículo sinistrado no valor global de € 4.222,60;
- Os Autores permaneceram sem viatura desde 17.04.2017;
- Os Autores tiveram que dispor de verbas e gastos extraordinários com o recurso a um veículo da sua propriedade, de marca ..., modelo ..., a gasóleo, até encontrarem outro veículo semelhante ao sinistrado para se poderem deslocar para o seu local de trabalho na ..., em ..., atento o facto de residirem em ..., uma vez que são camionistas de profissão, e que todas as semanas têm que fazer 600Km para carregar o camião, o que acarretou um custo de € 2.000,00, por o ... gastar cerca 7.5/81 por cada 100Km e o que possuíam, que gastava perto de 5,51, mais o custo de manutenção do ... e a necessidade de trocar pneus;
- E virtude do acidente, os Autores viram-se obrigados a recorrer à compra de um veículo de idênticas características do sinistrado, ou seja, um o..., para o que tiveram de dispor da quantia global de € 3.000,00, sendo de €1.580,00 o custo efetivo da viatura e a quantia de €1420,00 o custo que incorreram pelas reparações necessárias;
- Em virtude do acidente, os Autores ficaram ainda com os telemóveis danificados, uma vez que os mesmos se encontravam no tablier do veículo aquando do sinistro, e com o embate os ecrãs ficaram escuros, tendo a reparação sido orçamentada em € 282,90;
- O carro sinistrado mantém-se na oficina a aguardara conclusão da contenda
17- Na verdade, os Apelantes não suportaram a sua pretensão em qualquer tipo de prova testemunhal ou documental que permita atribuir-lhes qualquer indemnização;
18- Relativamente aos danos patrimoniais - danos no veículo (entre outros), os Autores, salvo melhor e douta opinião, não fizeram qualquer tipo de prova credível,
19- A mera existência de danos no veículo acidentado, bem como dos restantes danos patrimoniais reclamados pelo Apelantes só por si, não basta para que se encontre demonstrado o nexo de causalidade adequada entre a ação/omissão de uma qualquer putativa conduta por parte da Ré II e a verificação de tais danos;
20- Acresce ainda que, a motivação de facto relativamente à fundamentação da matéria factual dada por provada, em audiência de julgamento e constante da douta sentença ora colocada em crise pelos recorrentes, refere corretamente nas suas páginas 6 e 7, que: “(...) Importa evidenciar que o Réu e o interveniente acessório impugnaram o conteúdo dos documentos junto aos autos pelo Autor, não tendo o mesmo arrolado testemunhas que permitissem comprovar os factos relativos aos concretos danos sofridos em virtude do acidente, e respetivos valores, para além de que o veiculo sinistrado se encontra por reparar e o período de privação do uso. Nem os documentos juntos aos autos pelo Autor foram aptos a provar o nexo de causalidade relativamente ao sobredito acidente: o que também não resultou do depoimento das testemunhas. Sendo de evidenciar que o documento junto pelo Autor para comprovar o valor orçamentado para a reparação do carro não contém sequer qualquer identificação do seu emissor - sublinhado nosso;
21 - Ora, os Apelantes em audiência de julgamento e conforme já se deixou dito, não lograram provar e demonstrar, o nexo causal entre o facto ilícito praticado pela Apelada II e, a natureza, extensão e quantificação dos supostos danos por si sofridos;
22 - Assim, a presente ação, tal como aconteceu, só poderia estar condenada ao insucesso, não restando mais ao Tribunal "a quo" senão decidir como bem decidiu, porque os recorrentes não provaram como lhes competia, nomeadamente, os supostos danos sofridos pelo veículo SI, em virtude do sinistro em apreço nos autos;
23 - Ao invés, a Ré Brisa Concessão Rodoviária, SA, logrou fazer a prova de que cumpriu as suas obrigações e deveres;
24 - Na verdade, o mecanismo da responsabilidade civil em geral opera sempre da mesma forma; o facto (quer ilícito, quer proveniente duma atividade lícita) há de ligar-se ao agente por um nexo de imputação (de natureza subjetiva ou objetiva, respetivamente) e o dano ou prejuízo que por seu turno há de ligar-se ao facto por um nexo de causalidade (v. Dário Martins de Almeida, "Manual de Acidentes de Viação", 3a edição, 1987, pág. 50);
25 - Quanto à culpa, esta é a expressão dum juízo de responsabilidade pessoal da conduta do agente que, face às circunstâncias especiais do caso, deveria ter agido doutro modo, juízo de responsabilidade por o agente ter atuado ou deixado de atuar contra o dever que se lhe impunha, quer na atuação diferente, quer na atuação que não levou a cabo, tudo de acordo com as normas jurídicas, tomadas na sua função imperativa, estatuidoras de deveres, ainda que gerais (Prof. Antunes Varela, ob. cit. págs. 484 e 485; Prof. Pessoa Jorge, ob. cit., pág. 315);
26 - Só a verificação dos pressupostos atrás referidos faz marcar a obrigação de indemnizar;
27 - Assim, os AA. deveriam ter alegado e demonstrado, o que não fizeram, o nexo causal entre o facto ilícito e o dano, bem como, o próprio dano efetivo sofrido na sua esfera jurídica, para que a douta Sentença, ora recorrida, pudesse vir a condenar a Ré II no valor peticionado;
28 - Tendo presente os termos em que ação foi deduzida pelos recorrentes, quanto à responsabilidade da Ré, dúvidas não existem que nos autos estamos perante uma “operação material” regulada por normas de direito público já que se prende com a alegada omissão de zelo na manutenção, funcionamento e vigilância da autoestrada objeto da concessão (Base, n.° 1, al, a), Base II, Base VIII, Base XXXIII, Base XXXVI, Base XXXVII do anexo ao D.L. n.° 294/97, de 24-10), omissão essa no exercício de prerrogativas de pode público;
29 - Donde resulta, que compete ao lesados (aqui recorrentes) alegar e provar os factos caracterizadores do acidente, incluindo o facto causal do acidente (a respetiva dinâmica do acidente), os danos e o respetivo nexo de causalidade;
30 - Como bem decidiu o Digníssimo Tribunal “a quo", a fls. 14, da douta sentença ora colocada em crise: “(...) Consequentemente, tendo-se provado que a concessionária efetuara os patrulhamentos que lhe eram exigidos, e que tinha passado pouco tempo antes no local do acidente, não constatando a presença de qualquer animal, não podemos deixar de concluir que o Réu conseguiu ilidir a presunção de culpa, que o onera no cumprimento das obrigações de segurança a que estava adstrito, demonstrando que o acidente não se deveu à violação dos seus deveres de cuidado. Além do mais, o autor não cumprira o ónus que sobre si impendia, quanto ao valor dos danos e ao nexo de causalidade entre o facto e o dano, no que respeita a todo o peticionado. Posto isto e constituindo os pressupostos da responsabilidade civil de verificação cumulativa, o não preenchimento de um deles, torna desnecessário e prejudicado o conhecimento dos demais (...)”.- sublinhado nosso;
31 - Tento presente os factos provados, nomeadamente, os que decorreram da prova testemunhal efetuada em sede de audiência de discussão e julgamento, verifica-se que a Apelada II foi diligente na forma como efetuou a vigilância da autoestrada A... que lhe está concessionada, fazendo patrulhas regulares;
32 - A II só seria responsável se tivesse conhecimento da ocorrência e não diligenciasse pela remoção do animal (javali) ou se não efetuasse qualquer tipo de vigilância ou esta fosse insuficiente. O que não ocorreu no caso em apreço;
33 - Na verdade, a Apelada demonstrou e provou, em sede de audiência de discussão e julgamento, tal como foi mencionado pelo Tribunal “a quo” da douta sentença ora colocada em crise pelos Autores, que a sua atuação não se situa abaixo do nível médio de funcionamento exigido, em termo de vigilância e fiscalização;
34 - No caso dos autos, salvo melhor opinião, fez-se prova de uma adequada vigilância da via, nomeadamente, através do doc. n.° 5, junto com a Contestação;
35 - Provou-se, também, que no âmbito do seu patrulhamento normal, o Oficial de Mecânica DD ao serviço da Apelada, efetuou uma passagem em patrulhamento ao Km 58,300, no sentido ..., da A..., cerca de 14 minutos, antes da hora indicada pelos ora Recorrentes no Auto de Participação de Acidente de Viação, elaborado pela GNR-BT do Posto ... (doc. n.° 3, junto com a P.I.), como sendo aquela a que teria ocorrido o embate (05h:05m), não tendo sido detetada na ocasião, a presença de qualquer animal nas vias no mencionado ponto quilométrico, (cfr. ponto D), da matéria de facto dada como provada);
36 - Provou-se, ainda, que a Autoestrada A... é patrulhada pela Apelada II, durante 24 horas, todos os dias do ano, através de veículos da assistência rodoviária da BO&M (Brisa Operação e Manutenção, S.A.);
37 - A saber-se, norma alguma, legal ou contratual, obriga a II, como resultado, a garantir a ausência de obstáculos na sua área concessionada',
38 - À II como concessionária, compete tão-somente fazer um esforço razoável para assegurar a boa, segura e livre circulação nas autoestradas;
39 - Não se vislumbra um facto ilícito cometido pela II, pois não impende sobre a mesma, nem decorre do D.L. n.° 294/97, de 24-10, a obrigação de a todo o tempo e em toda a extensão da autoestrada assegurar que não existe qualquer obstáculo que possa dificultar, assustar os utentes ou pôr em perigo a circulação automóvel;
40 - Exige-se antes que “em termos razoáveis, em tempo oportuno e de modo eficaz, a II assegure a boa circulação nas autoestradas concessionadas, fazendo as reparações devidas, mantendo uma vigilância permanente (esta em termos realistas);
41 - Por tudo o exposto se conclui pela inexistência de responsabilidade da II no caso concreto, por não se provar culpa da mesma, em termos de não se ter provado qualquer anomalia no esquema de patrulhamento previamente estabelecido e que a concessionária é obrigada a manter em boas condições;
42- De facto, a Ré tem ao seu dispor meios efetivos de fiscalização que são compostas por veículos automóveis da Operadora BO&M que constantemente, 24 horas sobre 24 horas, circulam na autoestrada como foi dado como provado;
43- A II durante o dia efetua vigilância da área concessionada da Ré e regularmente vigia as vedações da área concessionada da mesma, como foi dado como provado na douta sentença;
44 - Nestas circunstâncias deve entender-se, como bem fez o Tribunal “a quo", que não se pode inferir duma conduta negligente ou violadora de qualquer obrigação de vigilância ou cuidado por parte da II e estando afastada aqui a aplicação da regra da presunção e inversão do ónus da prova no que concerne à culpa;
45 - Por tudo o exposto se conclui pela inexistência de responsabilidade da II no caso concreto, por não se provar culpa da mesma, em termos de não se ter provado qualquer anomalia no esquema de patrulhamento implementado na A..., há data e hora do sinistro, que estava a ser cumprido, integralmente, pela concessionária;
46 - Lendo-se as Bases anexas ao D.L. n.° 294/97, de 24-10, fácil é concluir que a responsabilidade da R. II será civil extracontratual subjetiva;
47 - Esta regula-se unicamente pelo princípio geral contido no art. 483°, do Código Civil, que estatui que aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito doutrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação;
48 - O mecanismo da responsabilidade civil em geral opera sempre da mesma forma; o ato (quer ilícito, quer proveniente duma atividade lícita) há de ligar-se ao agente por um nexo de imputação (de natureza subjetiva ou objetiva, respetivamente) e o dano ou prejuízo que por seu turno há de ligar-se ao facto por um nexo de causalidade (v. Dário Martins de Almeida, "Manual de Acidentes de Viação", 3a edição, 1987, pág. 50);
49 - Os AA. deveriam ter alegado e provado, o que não o fizeram, a existência de danos efetivos na sua esfera patrimonial, bem como, o nexo causal entre o facto ilícito e o dano, para que a douta Sentença, ora recorrida, pudesse vir a condenar a Ré II;
50 - Nos presentes autos, não se provaram os danos patrimoniais peticionados pelos AA., bem como, não se provou a culpa da Ré II na ocorrência do sinistro;
51 - Pelo contrário, a II demonstrou ter cumprido a sua obrigação de proporcionar aos utentes da via, as condições indispensáveis à circulação rodoviária, sendo a presunção referida elidida pela recorrida, como lhe competia ter feito, motivo pelo qual a II não pode ser responsabilizada pelos não provados danos hipoteticamente sofridos pelo veículo de matrícula ..-..-SI.
52 - Não ficou, portanto, provado que a conduta da Ré II, tenha sido culposa e ilícita;
53 - A Lei n.° 24/2007, de 18 de julho, veio definir os direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como autoestradas concessionadas, regulando diversamente a responsabilidade civil das concessionárias;
54 - No artigo 12°, da Lei 24/2007, de 18 de julho, o legislador veio fazer impender sobre a Ré o ónus de provar que cumpriu as suas obrigações de segurança;
55 - Com a publicação de tal Lei, nomeadamente o seu art. 12°, veio-se, no entanto, esclarecer duma vez por todas que as Partes Contratantes no Decreto-Lei n.° 294/97, de 24 de outubro e suas Bases Anexas, que regulam no essencial as relações jurídicas entre o concedente/Estado e a concessionária/II, sempre entenderam e estipularam que a Responsabilidade da Brisa Concessão rodoviária, S.A., seria extracontratual, impendendo sobre os lesados o ónus da prova dos pressupostos dos quais depende a responsabilidade da ora Recorrida/Ré pelos danos no veículo dos presentes autos;
56 - Aplicando-se ao caso a regra de inversão do ónus da prova quanto ao cumprimento das obrigações da concessionária, isto é, a presunção de culpa, face à matéria assente, conclui-se que se considera elidida a mencionada presunção, estando suficientemente demonstrado o cumprimento das obrigações que incumbiam à Ré II;
57 - Saliente-se que, nomeadamente, atenta a matéria de facto dada por provada sob os pontos C) e D), da douta sentença proferida pela Tribunal “a quo", comprovado fica que a recorrida II, observou os deveres que sobre ela impendiam de vigilância e de manutenção em condições de segurança da vedação da autoestrada A...;
58 -Tanto mais que não se afigura razoável, exigir à II que exerça uma fiscalização contínua e simultânea sobre toda a extensão da via, em termos de dever ser responsabilizada por situações anómalas cujo controlo momentâneo lhe pode escapar, como terá acontecido no caso em apreço, sem que tal seja imediatamente detetável pela Apelada;
59 - Na verdade, para que a recorrida II pudesse ser responsabilizada pela ocorrência do acidente em apreço, salvo melhor opinião, seria necessário alegar e provar que a Ré tinha tido - ou podia ter tido - conhecimento da existência de um obstáculo suscetível de causar perigo para a circulação e, apesar disso, não ter atuado prontamente de molde a remover, sinalizar ou avisar os utentes da via da sua existência;
60 - Ou que, não tendo efetuado o patrulhamento com a cadência necessária a vigiar convenientemente a autoestrada, tenha tido uma conduta omissiva;
61 - Da matéria de facto dada como provada não se vislumbra nenhum dos dois requisitos: nem a Ré II omitiu os atos de vigilância a que estava vinculada nem agiu com negligência por não ter previsto, como podia e devia, que um javali pudesse entrar e atravessar as vias que integram o lanço da mencionada à concessionada à II (A...);
62 - Nem sequer foi alegado, e consequentemente provado que, no decorrer do patrulhamento, os funcionários da Apelada haviam detetado previamente tal obstáculo na faixa de rodagem;
63 - Parece, por isso, razoável concluir que, no caso em apreço, conforme bem decidiu o Tribunal “a quo”, a Ré II elidiu a presunção de incumprimento prevista no art. 12°, n.° 1, al. b), da Lei n.° 24/2007, de 18-08: relativamente a este concreto dever de vigilância - evitar o atravessamento de animais nas vias da autoestrada - a recorrida cumpriu com diligência - que lhe era exigida no contrato de concessão, a mais não sendo obrigada;
64 -Reafirme-se que, os AA. não demonstraram ter a R. incumprido algum dos seus deveres, bem como, não foi demonstrado e provado que os Autores sofreram danos patrimoniais na sua esfera jurídica, nem qual foi o alcance dos mesmos. Nem que esses hipotéticos danos resultassem de uma ação ou omissão ilícita - não havendo razões para concluir pela existência de “culpa” da Ré II.
65 - Logo, a presente ação, por conseguinte, estava condenada ao insucesso, não restando mais ao Tribunal “a quo” senão absolver a Ré II do pedido formulado pelos AA.. Como tal aconteceu, por não ter resultado minimamente provado que a conduta da Ré tenha sido culposa e ilícita, defendendo a manutenção do decidido quanto à procedência parcial da presente ação (…)”.
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O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso, fixando os seus efeitos e o modo de subida.
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O/A Digno[a] Magistrado[a] do Ministério Público junto deste Tribunal Superior silenciou quanto ao propósito vertido no nº.1 do artigo 146º do CPTA.
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Com dispensa de vistos prévios, cumpre, pois, apreciar e decidir, já que nada a tal obsta.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A DECIDIR
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, de acordo com o disposto nos artigos 144.º n.º 2 e 146.º n.º 4 do C.P.T.A. e dos artigos 5.º, 608.º n.º 2, 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º do novo CPC ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA.
Neste pressuposto, as questões essenciais a dirimir consistem em saber se a sentença recorrida, ao julgar nos termos e com o alcance explicitados no ponto I) do presente Acórdão, incorreu em (i) erro de julgamento de facto, bem como em (ii) erro de julgamento de direito.
É na resolução de tais questões que se consubstancia a matéria que a este Tribunal Superior cumpre solucionar.
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III- DO MÉRITO DA INSTÂNCIA DE RECURSO
III.1 – DO[S] ERRO[S] DE JULGAMENTO DE FACTO
1. A primeira questão decidenda consubstancia-se em saber se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto nos pontos indicados pelos Recorrentes.
2. Vejamos.
3. A lei processual, para facultar a reapreciação da decisão matéria de facto, exige, desde logo, o cumprimento do ónus processual preconizado no artigo 640º do CPC.
4. De facto, e no que concerne à sua legal admissibilidade, ressuma com evidência do preceituado no nº. 2 do artigo 640º do CPC que, “sob pena de imediata rejeição do recurso”, deve o Recorrente “indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
5. Destaca-se, nesta problemática, o Acórdão produzido por este Tribunal Central Administrativo Norte de 04.12.2015, no processo nº. 418/12.6BEPRT, cujo teor ora parcialmente se transcreve:”(…)
Como resulta do art.º 640, nºs. 1, b) e 2, a), do CPC, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar (dá-se aqui uma “ênfase redundante” nas palavras de Cardona Ferreira in Guia de Recursos em Processo Civil, 5º edição, pág. 167), os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, sendo que quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Tem por objetivo responsabilizar as partes (princípio da auto-responsabilidade das partes), vedando-lhes a impugnação a decisão da matéria de facto como uma mera manifestação de inconformismo infundado – cfr. A. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 3ª edição, 2010, Almedina, p. 159 – bem como garantir, para além do contraditório, a cooperação processual entre as partes e o Tribunal.
Cfr. Ac. RL, de 26-03-2015, proc. nº 183/13.0TBPTS.L1-2 [destaque nosso]:
«(…) o art. 640.º do CPC fixa o ónus de alegação a cargo do recorrente que impugna a decisão relativa à matéria de facto.
Desse ónus, consta, designadamente, a especificação obrigatória dos concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados, dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou da gravação nele realizada e da decisão que, no entender do recorrente, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (art. 640.º, n.º 1, do CPC).
O estabelecimento desse ónus de alegação destina-se, fundamentalmente, a proporcionar o efetivo contraditório da parte contrária e, por outro lado, a facilitar a compreensão e decisão da impugnação pela Relação, que pode modificar a decisão de facto, nos termos do disposto no art. 662.º, n.º 1, do CPC.
O incumprimento de tal ónus de alegação implica, sem mais, a rejeição da impugnação da decisão relativa à matéria de facto (art. 640.º, n.º 1, do CPC).».
Conforme se sumaria no Ac. deste TCAN, de 22-05-2015, proc. nº 132/10.7BEPNF [destaque nosso]:
I) – Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente: (i) sob pena de rejeição, especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; (ii) sob pena de imediata rejeição na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados.
De igual forma no Ac. deste TCAN, de 28-02-2014, proc. nº 00048/10.7BEBRG [destaque nosso]:
I. Resulta do art. 685.º-B do CPC que quando se visa impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto o recorrente deve, obrigatoriamente, especificar, sob pena de rejeição do recurso, não só os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, como os concretos meios de prova constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizado, que impunham decisão diversa sobre a matéria de facto impugnada.
Igualmente no Ac. deste TCAN, de 22-10-2015, proc. nº 1369/04.3BEPRT, se lembra [destaque nosso]:
«Como já salientámos em casos idênticos (v. Acórdão do TCAN, de 22.05.2015, P. 1224/06.2BEPRT), as competências dos Tribunais Centrais Administrativos em sede de intervenção na decisão da matéria de facto encontram-se reguladas, por força da remissão do artigo 140.º do CPTA, nos artigos 640.º e 662.º do CPC/2013, que acolheram um regime que, de um lado, assume a alteração da matéria de facto como função normal da 2.ª instância e, do outro, não permite recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto, mas apenas admite a possibilidade de revisão de “concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências pelo recorrente” (v. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra, 2014, 130). Neste contexto, recai sobre o recorrente, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, o ónus de especificar, por um lado, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e, por outro, os concretos meios probatórios que, no seu entender, impunham decisão diversa da recorrida, quanto a cada um dos factos que entende que deviam ter sido dados como provados ou não provados, incluindo a indicação exata das passagens da gravação, no caso de depoimentos gravados (artigo 640.º do CPC) (…)”.
6. Em reforço deste entendimento, ressalte-se o expendido no Acórdão deste T.C.A.N. de 17.01.2020 [processo n.º 141/09.9BEPNF], consultável em www.dgsi.pt:
“(…) Sintetizando, à luz deste regime, seguindo a lição de Abrantes Geraldes António Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 4ª ed., 2017, pág. 155 sempre que o recurso de apelação envolva matéria de facto, terá o recorrente: a) em quaisquer circunstâncias indicar sempre os concretos factos que considere incorretamente julgados, com a enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; b) especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; c) relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos.
O cumprimento dos referidos ónus tem, como adverte Abrantes Geraldes, a justificá-lo a enorme pressão, geradora da correspondente responsabilidade de quem, ao longo de décadas, pugnou pela modificação do regime da impugnação da decisão da matéria de facto e se ampliasse os poderes da Relação, a pretexto dos erros de julgamento que o sistema anterior não permitia corrigir; a consideração que a reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida; a ponderação de que quem não se conforma com a decisão da matéria de facto realizada pelo tribunal de 1ª instância e se dirige a um tribunal superior, que nem sequer intermediou a produção da prova, reclamando a modificação do decidido, terá de fundamentar e justificar essa sua irresignação, sendo-lhe, consequentemente, imposto uma maior exigência na impugnação da matéria de facto, mediante a observância de regras muito precisas, sem possibilidade de paliativos, sob pena de rejeição da sua pretensão e, bem assim o princípio do contraditório, habilitando a parte contrária de todos os elementos para organizar a sua defesa, em sede de contra-alegações.
É que só na medida em que se conhece especificamente o que se impugna e qual a lógica de raciocínio expandido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a parte contrária a poder contrariá-lo em sede de contra-alegações.
A apreciação do cumprimento das exigências legalmente prescritas em sede de impugnação da matéria de facto deve ser feita à luz de um “critério de rigor” como decorrência dos referidos princípios de autorresponsabilização, de cooperação, lealdade e boa-fé processuais e salvaguarda cabal do princípio do contraditório a que o recorrente se encontra adstrito, sob pena da impugnação da decisão da matéria de facto se transformar numa “mera manifestação de inconsequente inconformismo”(…)”.
7. Deste modo, à luz de tudo o quanto se vem de expender, haverá que se entender que a lei processual, para facultar a reapreciação da decisão matéria da facto, exige que o Tribunal Superior seja confrontado com (i) os concretos pontos que, no entender do Recorrente, se mostram como incorretamente julgados; (i.1) a indicação do meio probatório que impõe decisão diversa da recorrida; (i.2) a definição da decisão que, no entender daquele, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas; e a (i.3) expressa de indicação com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso.
8. Cientes do que se vem de expor, importa agora analisar a situação sob apreciação aferindo do cumprimento do ónus processual supra sintetizados, e, mostrando-se necessário, do acerto da matéria de facto sob impugnação.
9. E, nesse domínio, dir-se-á que os Recorrentes fazem expressa referência aos pontos de facto que, no seu entender, se mostram como incorretamente julgados, motivando, na exigência de lei, tal entendimento, ou seja, com definição do meio probatório que impõe decisão diversa da recorrida, que define objetivamente, e com expressa de indicação com exatidão as passagens da gravação em que se fundam o seu recurso.
10. O que serve para concluir que cumprem adequadamente o ónus de impugnação preconizado no nº. 2 do artigo 640º do C.P.C, nada obstando, por isso, à reapreciação da matéria de facto impugnada no recurso quanto àqueles concretos factos e com base nos referidos elementos probatórios.
11. Importa, por isso, aferir do acerto [ou desacerto] da matéria de facto sob impugnação.
12. Do preceituado no nº.1 do artigo 662º do CPC, ex vi artigo 1º do CPTA, ressuma com evidência que este Tribunal Superior deve alterar a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
13. Na interpretação desta normação de lei ordinária, decidiu-se no aresto do Tribunal da Relação de Guimarães, de 02.11.2017, o seguinte:
“(…) o Tribunal da Relação, assumindo-se como um verdadeiro Tribunal de Substituição, que é, está habilitado a proceder à reavaliação da matéria de facto especificamente impugnada pelo Recorrente, pelo que, neste âmbito, a sua atuação é praticamente idêntica à do Tribunal de 1ª Instância, apenas ficando aquém quanto a fatores de imediação e de oralidade. Na verdade, este controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode deitar por terra a livre apreciação da prova, feita pelo julgador em 1ª Instância, construída dialeticamente e na importante base da imediação e da oralidade.
A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º, nº 5 do CPC) que está atribuído ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também, elementos que escapam à gravação vídeo ou áudio e, em grande medida, na valoração de um depoimento pesam elementos que só a imediação e a oralidade trazem. (...)
O princípio da livre apreciação de provas situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração: é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiência aplicáveis.
E na reapreciação dos meios de prova, o Tribunal de segunda instância procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção - desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria - com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância. (...).
Ao Tribunal da Relação competirá apurar da razoabilidade da convicção formada pelo julgador, face aos elementos que lhe são facultados.
Porém, norteando-se pelos princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e regendo-se o julgamento humano por padrões de probabilidade, nunca de certeza absoluta, o uso dos poderes de alteração da decisão sobre a matéria de facto, proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, pelo Tribunal da Relação deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados, devendo ser usado, apenas, quando seja possível, com a necessária certeza e segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Assim, só deve ser efetuada alteração da matéria de facto pelo Tribunal da Relação quando este Tribunal, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam para direção diversa e impõem uma outra conclusão, que não aquela a que chegou o Tribunal de 1ª Instância. Na apreciação dos depoimentos, no seu valor ou na sua credibilidade, é de ter presente que a apreciação dessa prova na Relação envolve “risco de valoração” de grau mais elevado que na primeira instância, em que há imediação, concentração e oralidade, permitindo contacto direto com as testemunhas, o que não acontece neste tribunal. E os depoimentos não são só palavras; a comunicação estabelece-se também por outras formas que permitem informação decisiva para a valoração da prova produzida e apreciada segundo as regras da experiência comum e que, no entanto, se trata de elementos que são intraduzíveis numa gravação. Por estas razões, está em melhor situação o julgador de primeira instância para apreciar os depoimentos prestados uma vez que o foram perante si, pela possibilidade de apreensão de elementos não apreensíveis na gravação dos depoimentos.
Em suma, na reapreciação das provas em segunda instância não se procura uma nova convicção diferente da formulada em primeira instância, mas verificar se a convicção expressa no tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que consta da gravação com os demais elementos constantes dos autos, que a decisão não corresponde a um erro de julgamento (…)”.
14. Posição que se acolheu no acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte de 27.11.2020, tirado no processo nº. 01291/14.5BEAVR:
“(…) Nesse domínio, impõe-se precisar que da conjugação do regime jurídico previsto nos arts. 637º, n.º 2, 640º, n.ºs 1 e 2, al. a), 641º, n.º 2, al. b) e 662º do CPC ex vi art. 1º do CPA, é pacífico o entendimento que perante o direito positivo processual vigente, sempre que esteja em causa a impugnação do julgamento da matéria de facto em relação a facticidade cuja prova ou não prova tenha sido sustentada em meios de prova submetidos ao princípio da livre apreciação, a 2.ª Instância tem de efetuar um novo julgamento, limitado à matéria de facto impugnada, procedendo à efetiva reapreciação da prova produzida, considerando os meios de prova indicados pelo apelante no recurso, assim como, ao abrigo do princípio do inquisitório, outros que entenda pertinentes, tudo da mesma forma como o faz o juiz da 1ª Instância, formando a sua convicção autónoma, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova e recorrendo a presunções judiciais ou naturais, embora esteja naturalmente limitado pelos princípios da imediação e da oralidade, “devendo alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência” Abrantes Geraldes, ob. cit., págs. 273 e 274; Acs. STJ de 14/01/2012, Proc. 6823/09.3TBRG.S1; RG. de 01/06/2017, Proc. 1227/15.6T8BRGC.C1, in base de dados da DGSI.
No entanto, para que ao tribunal ad quem seja consentido alterar o julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância, nos termos do art. 662º, n.º 1 do CPC, não basta que a prova indicada pelo apelante, conectada com a restante prova constante dos autos, a que o tribunal ad quem, ao abrigo do princípio da oficiosidade, entenda dever socorrer-se, consinta esse julgamento de facto diverso, mas antes que o determine, isto é, que o “imponha”.
Essa exigência legal fixada pelo mencionado n.º 1 do art. 662º decorre da circunstância de se manterem em vigor no atual CPC os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova.
Deste modo, apesar de serem de rejeitar as teses que defendem que a modificação da decisão de matéria de facto apenas está reservada para os casos de “erro manifesto” e, bem assim aquelas que sustentam não ser permitido à 2.ª Instância contrariar o juízo formulado pela 1ª Instância relativamente a meios de prova que são objeto do princípio da livre apreciação da prova, importa ter presente que os princípios da livre apreciação da prova, da imediação, da oralidade e da concentração se mantêm vigorantes e que como decorrência dos mesmos e da consideração que o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta, não se pode aniquilar, em absoluto, a livre apreciação da prova que assiste ao juiz da 1ª Instância, sequer desconsiderar totalmente os princípios da imediação, da oralidade e da concentração da prova, que tornam percetíveis a esse julgador, que intermediou na produção da prova, determinadas realidades relevantes para a formação da sua convicção, que fogem à perceção do julgador do tribunal ad quem através da mera audição da gravação áudio dos depoimentos pessoais prestados em audiência final. Como tal, os poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados, isto é, quando depois de proceder à audição efetiva da prova gravada e à análise da restante prova produzida que entenda pertinente, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direção diversa e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância.
Deriva do que se vem dizendo que após a 2.ª Instância ter feito esse seu julgamento autónomo em relação à matéria de facto impugnada pela apelante, “em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso”Ana Luísa Geraldes, “Impugnação e Reapreciação Sobre a Matéria de Facto”, in “Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, vol. IV, pág. 609 (…)”.
15. Reiterando esta linha jurisprudencial, tem-se, portanto, por assente que, perante a impugnação do tecido fáctico fixado em 1ª instância, impede sobre o Tribunal Superior a realização de um novo julgamento, encontrando-se a alteração do tecido fáctico fixado em 1ª instância apenas reservada para as situações em que a prova produzida imponha decisão diversa, o que não sucede quando o Tribunal ad quem, apreciada essa prova, propende antes para uma diferente convicção, contudo, não imposta pela prova produzida.
16. Realmente, inexistindo uma convicção inevitável quanto à prova produzida, o Tribunal Superior terá que conceder na prevalência da decisão proferida pela 1ª Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova.
17. Cientes destes considerandos de enquadramento, importa, então, analisar a situação sob apreciação aferindo do acerto da matéria de facto sob impugnação.
18. Assim, e entrando em tal tarefa, dir-se-á que os Recorrentes pugnam pela alteração da decisão sobre a matéria de facto coligida nos autos, por entenderem que “(…) que os factos dados como provados pelo Tribunal a quo, nos pontos C e D dos factos provados, se encontram incompletos e erróneos, bem como a existência de determinados factos não considerados que deveriam constar dos factos provados, pelo que entende que a matéria de facto dada como provada/não provada pelo Tribunal a quo deverá ser alterada (…)”.
19. Realmente, os Recorrentes peleiam pela alteração das alíneas C) e D) – do seguinte teor:
“(…) C. Na sequência do acidente, o operador de central de comunicações da Brisa Concessão Rodoviária, SA, acionou pelas 05h:19m, um painel de mensagem variável com o intuito de avisar os utentes para a existência de acidente na via, e o trabalhador ao serviço da concessionária deslocou-se ao local do acidente e arrastou o javali para a valeta, tendo ainda verificado as vedações, numa extensão de 500 metros para cada lado, e não tendo detetado qualquer anomalia, o que foi corroborado por uma outra equipa de trabalhadores da concessionária que também se deslocaram ao local, durante o dia esse mesmo dia (cf. documento n° 3 junto aos autos com a contestação, e depoimento da testemunha DD e CC, que se dá aqui por integralmente reproduzido).” ,
para os seguintes termos:
“(…) C. Na sequência do acidente, o operador de central de comunicações da Brisa Concessão Rodoviária, SA, acionou pelas 05h:19m, um painel de mensagem variável com o intuito de avisar os utentes para a existência de acidente na via, e o trabalhador ao serviço da concessionária deslocou-se ao local do acidente e arrastou o javali para a valeta, tendo ainda verificado as vedações com recurso a uma lanterna, numa extensão de 250 metros para cada lado, e não tendo detetado qualquer anomalia, o que foi corroborado por uma outra equipa de trabalhadores da concessionária que também se deslocaram ao local, durante o dia esse mesmo dia (cf. documento n.º 3 junto aos autos com a contestação, e depoimento da testemunha DD e, que se dá aqui por integralmente reproduzido)”. D. Nos dias 16 e 17.04.2017, a Brisa Concessão Rodoviária, SA efetuou os seguintes patrulhamentos, não tendo detetado a existência do dito animal, tendo, contudo, lhes sido comunicada a existência de outros animais, nomeadamente de dois cães no mesmo KM do acidente entre as 00:55 e as 01:28 do dia 17.04.2017, que desapareceram no talude (cf. documentos n.ºs 5 e 6 junto aos autos com a contestação, e depoimento das testemunhas DD e EE, que aqui se dão por integralmente).
20. De igual modo, brigam pela alteração do probatório coligido no sentido de parte dos “factos não provados” passarem a integrar a “materialidade assente” nos seguintes termos:” (…)
I. Após o sinistro o veículo automóvel ficou imobilizado devido aos danos sofridos, tendo sido chamada viatura de reboque, sendo os danos no veículo em toda a parte frontal do mesmo, e tendo o custo de reparação aproximado de € visíveis na Do sinistro decorreram danos no veículo automóvel dos Autores, nomeadamente da parte fronteira do veículo, que consubstanciam o montante de € 4.222,60.
J. Em virtude do acidente, os Autores ficaram ainda com os telemóveis danificados, tendo a reparação sido orçamentada em € 282,90
K. Em virtude do acidente, os Autores viram-se obrigados a recorrer à compra de um veículo de idênticas características do sinistrado.
L. Os Autores, com residência em ..., são trabalhadores por conta de outrem na empresa E... LDA., utilizando o veículo automóvel nas suas deslocações até ao local de trabalho (…)”.
21. Apreciando.
22. É ponto assente, como se viu supra, que a alteração do tecido fáctico fixado em 1ª instância encontra-se exclusivamente reservada para as situações em que a prova produzida imponha decisão diversa.
23. Pois bem, no caso da alínea C) do probatório coligido nos autos, isso, claramente, não sucede.
24. De facto, é certo que a testemunha CC prestou depoimento a afirmar que a distância vistoriada pelos serviços da Ré foi, não de 500 metros, mas apenas de 250 metros.
25. Porém, também não é menos certo que a análise do documento nº. 4 junto com a contestação – denominada “...” e cuja cópia faz fls. 62 e seguintes dos autos digitais - é inequívoca na afirmação de que as vedações foram vistoriadas pelos serviços da Ré da distância de “(…) 500 metros para cada lado em ambos sentidos (…)”, o que foi, aliás, corroborado pelo depoimento prestado pela testemunha HH, na qualidade de funcionário da Ré.
26. Assim, estamos perante duas posições divergentes.
27. Como é sabido, a dúvida sobre a realidade de um facto resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita [cfr. artigo 414º do C.P.C.].
28. Assim sendo, nos termos desta normação, propendemos para o sentido acolhido pelo Tribunal a quo.
29. idêntica asserção, porém, já não é atingível no tocante à alínea D) do probatório.
30. Efetivamente, o documento nº. 5 junto com a contestação - cuja cópia faz fls. 62 e seguintes dos autos digitais -, dá-nos conta que os serviços da Ré registaram a seguinte incidência: “(…) existência de outros animais, nomeadamente de dois cães no mesmo KM do acidente entre as 00:55 e as 01:28 do dia 17.04.2017, que desapareceram no talude (…)”, o que foi, aliás, corroborado pela testemunha DD, na qualidade de funcionária da Ré.
31. Trata-se de uma representação documental da autoria da Ré, pelo que, à míngua de qualquer infirmação da mesma pelos meios processualmente admissíveis, deve concluir-se no sentido da sua verificação, e, qua tale, pela atendibilidade da alteração pretendida.
32. O que nos remete para o segundo fundamento de erro de julgamento de facto em análise, e que se prende com o tecido fáctico dado como “não provado” na sentença recorrida.
33. De facto, e em jeito de síntese, pretendem os Recorrentes a inclusão nos factos provados (i) dos alegados danos resultantes no veículo sinistrado; (ii) do alegado custo da reparação desses danos orçada em € 4,222,60; (ii) do alegado custo da reparação dos telemóveis dos Recorrentes orçada em € 282,90; (iii) da alegada necessidade de aquisição de uma nova viatura automóvel de características idênticas ao sinistrado; e ainda da (iv) alegada situação dos Recorrentes serem trabalhadores por conta de outrem na empresa E... LDA., utilizando o veículo automóvel nas suas deslocações até ao local de trabalho.
34. Ora, quanto a estas representações materiais, importa, desde logo, ter em atenção que os Autores, aqui Recorrentes, juntaram aos autos, de entre outros, (i) diversos registos fotográficos do veículo sinistrado, (ii) o registo da participação de acidente, e ainda (iii) o orçamento de reparação do veículo sinistrado.
35. É certo que tais documentos foram impugnados pela Ré e pela Interveniente Acessória.
36. O que significa que não fazem prova plena dos factos que documentam.
37. Considerando, porém, o depoimento prestado pelas testemunhas (i) CC e GG [na parte relativa aos danos visíveis do veículo sinistrado] e (ii) a circunstância de nenhuma outra prova tendo sido produzida suscetível de infirmar o conteúdo de tais elementos, este Tribunal Superior entende atribuir relevância probatória ao citado acervo documental, ao abrigo do (i) princípio da livre apreciação [cfr. art.ºs 347º, 373º a 376º do Código Civil].
38. Assim, e em função da teoria da causalidade adequada, deverá ter-se como provado que o veículo automóvel de matrícula ..-..-SI, como consequência do acidente descrito nos autos, sofreu danos na sua parte dianteira, cuja reparação orça o montante de € 4,222,60.
39. A mesma convicção positiva, porém, já não é atingível no tocante à invocada (i) deterioração dos telemóveis dos Recorrentes e (ii) a privação de uso como consequência do acidente descrito nos autos e os custos daí emergentes para os Recorrentes.
40. De facto, não se divisa a existência de qualquer lastro probatório capaz de acionar a aquisição processual da materialidade referida no sobredito ponto (i), sendo ainda de referir que a temática em torno da privação de uso e custos daí emergentes carecia igualmente de melhor densificação e justificação, só alcançável mediante a prestação de prova documental e testemunhal capaz de ultrapassar as dificuldades acima assinaladas, o que, claramente, não sucedeu.
41. Nestes termos, e ao abrigo de tudo o quanto se vem de expor, procede parcialmente o primeiro fundamento de recurso em análise.
*
42. Ponderado o acabado de julgar e o que demais se mostra fixado na decisão judicial recorrida temos, então, como assente o seguinte quadro factual: “(…)
A. AA é proprietária do veículo de matrícula ..-..-SI (cf. documento n.º 1 junto aos autos com a petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
B. No dia 17.04.2017, quando circulava cerca das 05h05 na Auto-Estrada A..., e do quilómetro 58,300, o veículo de matrícula ..-..-SI, conduzido por BB, embateu num javali que surgiu na via de tráfego, tendo comparecido no local do acidente, os serviços da concessionária e a GNR, que elaborou a participação de acidente de viação, com o teor que se dá aqui (cf. documento n.º 4 junto aos autos com a petição inicial e depoimento da testemunha JJ e KK, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido):
[Dá-se por reproduzido o documento/imagem constante do acórdão]
C. Na sequência do acidente, o operador de central de comunicações da Brisa Concessão Rodoviária, SA, acionou pelas 05h:19m, um painel de mensagem variável com o intuito de avisar os utentes para a existência de acidente na via, e o trabalhador ao serviço da concessionária deslocou-se ao local do acidente e arrastou o javali para a valeta, tendo ainda verificado as vedações, numa extensão de 500 metros para cada lado, e não tendo detetado qualquer anomalia, o que foi corroborado por uma outra equipa de trabalhadores da concessionária que também se deslocaram ao local, durante o dia esse mesmo dia (cf. documento n.º 3 junto aos autos com a contestação, e depoimento da testemunha DD e CC, que se dá aqui por integralmente reproduzido).
D. Nos dias 16 e 17.04.2017, a Brisa Concessão Rodoviárias efetuou os seguintes patrulhamentos, não tendo detetado a existência do dito animal, tendo, contudo, lhes sido comunicada a existência de outros animais, nomeadamente de dois cães no mesmo KM do acidente entre as 00:55 e as 01:28 do dia 17.04.2017, que desapareceram no talude.
[Dá-se por reproduzido o documento/imagem constante do acórdão]
E. A Brisa Concessão Rodoviária, S.A. detém as obrigações constantes das Bases anexas ao Decreto-Lei n.º 294/97, de 24 de outubro, competindo-lhe de acordo com as Bases XXXIII e XXXVI assegurar as boas condições de segurança à circulação, estudar e implementar os mecanismos necessários para garantir a monitorização do tráfego, a deteção de acidentes e a consequente e sistemática informação de alerta ao utente, e nos termos da Base XLIX, serão da inteira responsabilidade da concessionária todas as indemnizações que, nos termos da lei, sejam devidas a terceiros em consequência de qualquer atividade decorrente da concessão (cf. Decreto n.º 247/97, de 24 de outubro, que se dá aqui por integralmente reproduzido).
F. Entre a Brisa Concessão Rodoviária, SA e a seguradora Fidelidade fora celebrado contrato de seguro correspondente à apólice n.º ...98, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido (cf. documento junto aos autos com a contestação, que aqui se dá por integralmente reproduzido).
G. Em 24.07.2018, deu entrada neste Tribunal, via sitaf, de petição inicial, que originou os presentes autos (cfr. fls. dos autos, que se dão aqui por integralmente reproduzidas).
H. Em 30.07.2018, a Brisa - Concessão Rodoviária, SA foi citada para contestar a presente ação (cf. fls. dos autos, que se dão aqui por integralmente reproduzidas) “(…)”.
I. Do embate referido na sobredita alínea B) resultaram danos materiais na parte dianteira do veículo ..-..-SI, que cuja reparação foi orçada em € 4,220,60.
*
III. 2 – DO ERRO DE JULGAMENTO DE DIREITO
43. Os Autores intentaram a presente ação administrativa visando a efetivação de responsabilidade extracontratual da Ré por facto ilícito e culposo, brevitatis causae, por danos havidos num veículo automóvel de matrícula ..-..-SI decorrente de atravessamento de animal na faixa onde circulava, cuja ocorrência imputa àquela, por violação dos deveres de fiscalização, conservação e vigilância das condições de circulação da via concessionada.
44. O T.A.F. de Braga como sabemos, julgou esta ação totalmente procedente, consequentemente, absolvendo a Ré.
45. Escrutinada a constelação argumentativa espraiada na fundamentação de direito da sentença recorrida, é para nós absolutamente cristalino que, no mais essencial, o juízo de improcedência da pretensão deduzida pelos Autores junto do T.A.F. de Braga escorou-se no entendimento de que, estando em causa um acidente de viação decorrente de atravessamento de javali na A..., recaía sobre a Ré a presunção de incumprimento da obrigação de assegurar das condições de circulação em segurança, a qual a Ré logrou elidir.
46. Estribou-se ainda na convicção entendeu que o Autor não cumprira o ónus que sobre si impendia, quanto ao valor dos danos e ao nexo de causalidade entre o facto e o dano, no que respeita a todo o peticionado, não se mostrando, por isso, verificado um dos pressupostos de responsabilidade civil.
47. Vêm agora os Recorrentes, por intermédio do recurso sub juditio, colocar em crise a decisão judicial assim promanada.
48. Realmente, patenteiam as conclusões alegatórias que os Recorrentes insurgem-se contra o assim decidido, por manter a firme convicção de que “(…) se encontra provado a existência dos factos, o nexo causal entre facto e danos, como a existência e valor dos danos causados ao veículo automóvel e aos Recorrentes, e, ainda, por não ter sido iludida a presunção, ilicitude e culpa da Recorrida, preenchendo assim os pressupostos necessários da responsabilidade civil extracontratual, conforme estabelecido nos artigos 483.º e ss do Código Civil (…)”.
49. Adiante-se, desde já, que, após exame dos argumentos esgrimidos pelos Recorrentes e bem vistos os contornos fácticos da situação trazida a juízo, que o presente recurso irá proceder parcialmente.
50. Explicitemos pormenorizadamente esta nossa convicção.
51. À data do acidente em causa nos autos [17.04.2017], vigorava já o regime jurídico dos direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como autoestradas concessionadas e outros tipos de rodovias ali determinadas, aprovado pela Lei nº 24/2007, de 18 de julho [cf. respectivo art.º 14º].
52. Tal diploma, independentemente da existência de portagens e do pagamento de taxa pela utilização da autoestrada concessionada, e considerando também os itinerários principais e os itinerários complementares, estabeleceu as condições de segurança, informação e comodidade exigíveis para os utentes, sem prejuízo de regimes mais favoráveis estabelecidos ou a estabelecer [respectivo art.º 1º].
53. Nos termos do art.º 12º da citada Lei nº 24/2007, “1- Nas autoestradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respetiva causa diga respeito a: a) Objetos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem; b) Atravessamento de animais; c) Líquidos na via, quando não resultantes de condições climatéricas anormais. 2 - Para efeitos do disposto no número anterior, a confirmação das causas do acidente é obrigatoriamente verificada no local por autoridade policial competente, sem prejuízo do rápido restabelecimento das condições de circulação em segurança. 3 - São excluídos do número anterior os casos de força maior, que diretamente afetem as atividades da concessão e não imputáveis ao concessionário, resultantes de: a) Condições climatéricas manifestamente excecionais, designadamente graves inundações, ciclones ou sismos; b) Cataclismo, epidemia, radiações atómicas, fogo ou raio; c) Tumulto, subversão, atos de terrorismo, rebelião ou guerra”.
54. Desta previsão legal resulta que a concessionária de autoestrada em que se verifique um sinistro rodoviário causado por objetos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem, atravessamento de animais e líquidos na via, neste último caso quando não resultantes de condições climatéricas anormais, está onerada com uma presunção de incumprimento das obrigações de segurança que lhe cabe observar.
55. Esta presunção, porque presume o incumprimento de um certo dever, constitui, simultaneamente, uma presunção da ilicitude de certo facto e uma presunção de culpa, na medida em que revela a inobservância do especial dever de diligência que onera a concessionária [artigo 487º, nº 2, do Código Civil].
56. Volvendo ao caso recursivo em análise, cabe notar que se mostra provado, de entre outro tecido fáctico, cerca das 05h05, do dia 17.04.2021, ocorreu um acidente de viação na A... decorrente do atravessamento de um javali em que foi interveniente o veículo automóvel de matrícula ..-..-SI.
57. Ora, é ponto assente [até porque as partes não discutem tal questão] que a manutenção e fiscalização da segurança rodoviária competem aos concessionários, nas vias concessionadas, o que serve para dizer que era sobre a Ré que impendia a obrigação de manutenção da via pública em condições de segurança de circulação.
58. Na verdade, enquanto concessionária, são impostas à Recorrente múltiplas obrigações no sentido de manter padrões de qualidade rodoviária elevados, bem como o dever de assegurar boas condições de segurança.
59. E se assim é, em face da factualidade apurada nos autos, resulta claro que o Réu incumpriu a sua função de regulação e controlo, incorrendo, por omissão, na prática de um ato ilícito por omissão, de modo que, verificado está o pressuposto relacionado com a ilicitude.
60. Esta ilicitude, porém, só é relevante se estiver associada a uma conduta censurável, isto é, estiver associada à culpa, o que significa que a violação das referidas normas, dos princípios gerais ou do dever geral de cuidado não é, por si só, suficiente para fazer nascer a obrigação de indemnizar já que esta só nascerá quando essa violação for culposa, isto é, quando decorrer de um comportamento que podia e devia ter sido evitado e que só não o foi por razões merecedoras de censura.
61. E isto porque “agir com culpa significa atuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito. E a conduta do lesante é reprovável quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo.” [A. Varela, “Das Obrigações em Geral, 3.ª ed., vol. I, pg. 571]
62. A qual “é apreciada nos termos do art.º 487.º do Código Civil” [art.º 4.º do DL 48.051], isto é, na falta de outro critério legal, “pela diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias de cada caso.” [art.º 487.º/2 do CC].
63. Não se podendo, pois, falar de autonomização da ilicitude relativamente à culpa em sede de responsabilidade civil extracontratual, importa analisar se o comportamento da Ré infringiu as normas legais ou regulamentares e as regras de cuidado a que devia obediência e, ocorrendo essa infração, se ela se deveu a razões juridicamente reprováveis.
64. Examinado o probatório coligido, verifica-se que dimana claramente do mesmo, de entre outro tecido fáctico, que o condutor do veículo de matrícula ..-..-SI, quando circulava na autoestrada A..., ao Km 58,300, foi embatido por um javali que surgiu na via de tráfego.
65. Dos factos considerados provados temos, pois, que, em substância, ocorreu a colisão do veículo automóvel visado nos autos contra um animal de grande porte que se atravessou na via onde circulava.
66. No quadro em apreço, é evidente que, no plano naturalístico, a causa direta do acidente descrito nos autos foi o aparecimento súbito, na faixa de rodagem, deste animal de grande porte.
67. Convém realçar que a Ré não conseguiu demonstrar que a culpa na verificação do acidente se tivesse ficado a dever ao comportamento do condutor do veículo automóvel sinistrado, não legitimando a matéria de facto dada como provada a referência a qualquer elemento nesse sentido.
68. Permanece, por isso, intocável, a presunção de culpa da Ré estabelecida por força do estatuído no nº. 3 do art. 10º da Lei 67/2007.
69. Cumpre, todavia, apurar se terá a Ré logrado ilidir tal presunção de culpa.
70. Para o cabal esclarecimento desta matéria, cumpre convocar a norma vertida na Base XXXVI do Decreto-Lei n.º 294/97 de 24 de outubro, que estabelece que “A concessionária será obrigada, salvo caso de força maior devidamente verificado, a assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nas autoestradas …” (n.º 2), bem como a “implementar os mecanismos necessários para garantir a monitorização do tráfego, a deteção de acidentes e consequente e sistemática informação de alerta do utente” (n.º 3).
71. Atenta a norma transcrita, importa referir, primeiramente, que as obrigações impostas à Ré pela norma referida, não se referem a meras obrigações de meios, mas antes de uma obrigação reforçada de meios.
72. Em sustento da nossa posição, invoca-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de março de 2013, no processo 201/06.8TBFAL.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt, que refere que “(…) Sem embargo aquele dever de cuidado que incide sobre condutores de veículos, importa não olvidar também que à permissão genérica de, em tais rodovias, se poder conduzir, em regra, até à velocidade máxima de 120 km/h subjaz o cumprimento da obrigação de assegurar a manutenção das condições de segurança estruturais e operacionais que permitam a condução segura à velocidade consentida, integrando o sinalagma do pagamento de uma taxa de portagem. (…) São os concessionários que dispõem de maior facilidade de identificação dos perigos ou de apuramento das circunstâncias que rodeiam acidentes devido a obstáculos existentes na via, tarefa que naturalmente é dificultada ou praticamente impossibilitada aos utentes e terceiros. (…)”.
73. Baseia-se assim o STJ no nível de exigência no cumprimento das obrigações de segurança para apontar a existência de uma obrigação reforçada de meios, não considerando legítima a argumentação pela concessionária da impossibilidade de prever todos e quaisquer acidentes.
74. Deverá aqui operar uma avaliação razoável das circunstâncias concretas apuradas.
75. Procurando fixar o padrão de diligência exigível a uma concessionária pela especificidade das situações elencadas no nº 1 do artigo 12º da Lei nº 24/2007, observaremos que o funcionamento da presunção aí estabelecida apenas é afastado nas circunstâncias especificadas nos n.º 2 e 3 do mesmo, ou seja, em “casos de força maior, que diretamente afetem as atividades da concessão e não sejam imputáveis ao concessionário, resultantes de: a) Condições climatéricas manifestamente excecionais, designadamente graves inundações, ciclones ou sismos; b) Cataclismo, epidemia, radiações atómicas, fogo ou raio; c) Tumulto, subversão, atos de terrorismo, rebelião ou guerra”.
76. Com o propósito de esclarecer o teor da expressão “caso de força maior” em matéria de acidentes de viação decorrentes do atravessamento de animais na faixa de rodagem, convoca-se para a questão decidenda o teor do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30.10.2033, tirado no processo nº. 04A1299: “(…)
O aparecimento de um cão de elevado porte na faixa de rodagem da autoestrada constitui reconhecido perigo para quem ali circula. Cabe à Brisa evitar essa (e outras) fonte de perigos, essa anormalidade. Não pode pôr-se a cargo do automobilista a prova da negligência da Brisa ou da origem do cão porque não foi a prestação dele que falhou nem ele tem a direção efetiva, o poder de facto sobre a autoestrada (como um todo, incluindo vedações, ramais de acesso e áreas de repouso e serviço.
Como acima ficou dito, só o «caso de força maior devidamente verificado» exonera o devedor (a concessionária) da sua obrigação de garantir a circulação em condições de segurança e, na hipótese de inexecução, do dever de reparar os prejuízos causados.
Isto significa, no essencial, que «não será suficiente (ao devedor, a Brisa) mostrar que foi diligente ou que não foi negligente: terá de estabelecer positivamente qual o evento concreto, alheio ao mundo da sua imputabilidade moral, que não lhe deixou realizar o cumprimento».
Essa prova só terá sido produzida quando se conhecer, em concreto, o modo de intromissão do animal. A causa ignorada não exonera o devedor, nem a genérica demonstração de ter agido diligentemente (…)”.
77. Em reforço deste entendimento, ressalte-se o expendido no teor do aresto do S.T.J., de 09.09.2008, tirado no processo 08P1856, em que se afirma:“(…)
Para afastar a presunção de incumprimento que sobre si impende, deveria, pois, a R. provar, em concreto, que o canídeo surgiu de forma incontrolável para si ou foi colocado na autoestrada, negligente ou intencionalmente, por outrem.
Isto é, sempre que há um acidente devido a um cão (ou outro animal) que se introduziu numa autoestrada, presume-se o incumprimento da concessionária. Esta só afastará essa presunção se demonstrar que a intromissão do animal na via, não lhe é, de todo, imputável, sendo atribuível a outrem (…)”.
78. Bem como o teor da jurisprudência firmada no Acórdão da Relação do Porto, 11.01.2011, proc. Nº 4196/08.5TBSTS.P1, em que se refere:“(…)
Em causa estão, (…), certas vias especiais, destinadas ao trânsito rápido, proporcionando a quem as utiliza uma expectativa de circulação em segurança a velocidades até 120 km/hora, sem que lhe seja exigível um estado de alerta permanente perante a possibilidade de repentino surgimento de obstáculos na via, provocando perigo de despiste, tais como animais a atravessá-la.
Quando, apesar da existência de vedações, um cão se introduz na autoestrada, existe, em princípio, um incumprimento concreto por parte da concessionária, porquanto, nos termos do contrato que celebrou com o Estado, ela se comprometeu, além do mais, a assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nas autoestradas.
E tal presunção de incumprimento subsistirá sempre que, como no caso vertente, seja ignorada a razão da introdução do animal na via. É manifesto que a entrada de um cão na autoestrada pode acontecer por qualquer meio, incluindo ser aí largado por um utente.
Mas, enquanto não for conhecida a efetiva razão do sucedido, é a favor do lesado/utente, e não da concessionária que a respetiva dúvida terá de resolver-se, de acordo com o preceituado no n.º 1 do art.º 12º da Lei n° 24/2007, conjugado com o n.º 1 do art.º 350.º do C.Civil”.
79. Posição que se acolheu no recentíssimo aresto deste Tribunal Central Administrativo Norte de 17.04.2020, no Procº. n.º 01952/15.1BEPRT: “(…)
A presença de um qualquer animal, nomeadamente de um cão, numa autoestrada é sempre um fator de grande risco, já que aos veículos é permitido, em regra, atingir a velocidade de 120 Km/h, ainda que no local em questão o limite fosse de 100km/h, quando é certo que a Recorrente também não demonstrou que a autoestrada estava efetivamente vedada em condições de segurança, ou seja, que tivesse procedido à instalação de mecanismos que permitissem evitar situações como a dos autos.
Não sendo conhecida a efetiva razão determinante do inusitado atravessamento do animal na faixa de rodagem, é a favor do lesado, e não da concessionária, que a respetiva dúvida terá de resolver-se, de acordo com o preceituado no n.º 1 do artigo 12.º da Lei n.º 24/2007, conjugado com o n.º 1 do artigo 350.º do Código Civil (cfr. neste sentido o Acórdão do TRP, de 04.07.2013, P. 3238/11.1TBGMR.P1).
(…)
Como se sumariou no Acórdão deste TCAN, de 03.05.2007, no Processo n.º 00814/04.2BEBRG, “(…) a ilisão de uma presunção "juris tantum" só é feita mediante a prova do contrário, não sendo bastante a mera contraprova, pelo que o "non liquet" prejudica a pessoa/parte contra quem funciona a presunção.
Sobre o R. impende o ónus de provar a adoção de todas as providências que, segundo a experiência comum e as regras técnicas aplicáveis, fossem suscetíveis de evitar o perigo, prevenindo o dano, o qual não se teria ficado a dever a culpa da sua parte, ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.
Para se ter como ilidida a presunção de culpa do R. não basta a simples prova, em abstrato, de que o mesmo desenvolve ou dispõe de funcionários ou dum corpo técnico que têm por função proceder à fiscalização e reparação das vias sob sua jurisdição, pois tem de ser demonstrado quais são as providências desencadeadas em relação à via pública em questão, a fim de que o Tribunal possa aferir se aquele «organizou os seus serviços de modo a assegurar um eficiente sistema de prevenção e vigilância de anomalias previsíveis», exercendo uma «adequada e contínua fiscalização».
Aliás, se dúvidas houvesse, já o Tribunal Constitucional se pronunciou relativamente à interpretação do artigo 12.º/1 da Lei n.º 24/2007, no sentido da sua não inconstitucionalidade, afirmando que “na aceção segundo a qual em caso de acidente rodoviário em autoestradas, em razão do atravessamento de animais, o ónus de prova do cumprimento das obrigações de segurança pertence à concessionária e esta só afastará essa presunção se demonstrar que a intromissão do animal na via não lhe é, de todo, imputável, sendo atribuível a outrem, tendo de estabelecer positivamente qual o evento concreto, alheio ao mundo da sua imputabilidade moral que não lhe deixou realizar o cumprimento” (Cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 596/2009 e n.º 629/2009) (…)”.
80. Reiterando toda esta linha jurisprudencial, que se entende ser inteiramente aplicável às situações de animais de grande porte, como é o caso dos javalis, e cotejando o tecido fáctico coligido nos autos, entendemos ser forçosa a conclusão de que não foi ilidida a presunção de culpa que impendia sobre a Ré no que concerne à produção do sinistro dos autos.
81. Na verdade, não conseguiu a R. provar a forma como o dito javali entrou na autoestrada, por forma a imputar a sua proveniência a terceiros ou a caracterizá-lo como sendo ou resultante de um caso fortuito, e que não podia ter adotado conduta diferente daquela que adotou, isto é, não logrou a R. provar factualidade de onde se possa concluir que cumpriu as exigências de diligência na sinalização e remoção dos obstáculos existentes na via, e, por conseguinte, não foi ilidida a presunção de incumprimento que sobre si impendia relativamente ao aludido dever de vigilância, não tendo resultado provados factos suficientes que permitam concluir que a mesma atuou com a diligência que lhe era exigida.
82. Nesta medida, e definido que está o sinistro e estabelecido o nexo de imputação com a conduta do R., realiza-se a previsão do art. 7º, nº. 1 da Lei nº. 67/2007, de 31.12, impondo-se agora extrair a correspetiva consequência legal, ou seja, apurar os danos resultantes da violação e determinar a medida da correspondente obrigação de indemnizar que impende sobre o lesante.
83. Constitui princípio geral do nosso direito positivo, consagrado no artigo 562° do Código Civil que a obrigação de indemnizar se oriente no sentido da reconstituição da situação que existiria na esfera do lesado se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação [teoria da diferença].
84. Mas, determinar os danos decorrentes do facto em causa implica uma operação mental tendente a estabelecer o nexo de causalidade entre os danos verificados e a lesão sofrida, a qual se deverá nortear pelo critério da causalidade adequada, subjacente ao artigo 563.° do Código Civil, de acordo com o qual, “a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”.
85. À luz desse critério, só serão de considerar os danos que, cumulativamente, constituam efeito natural, necessário da lesão e consequência normal da mesma, desencadeada por um processo factual típico, dentro das regras da experiência comum.
86. Ora, a este propósito, cumpre notar que os danos patrimoniais sofridos pelos Autores derivados do acidente descrito nos autos traduzem-se apenas, in casu, ao custo de reparação do veículo automóvel visado nos autos.
87. O montante dos danos sofridos pelo Recorrentes, em consequência do acidente, perfaz, assim, o montante de € 4,222,60, ao que acrescem juros de mora vencidos desde a data do trânsito em julgado desta decisão, nos termos do estatuído nos art.º s 804.º, 805.º, n.º s 1 e 3, e 806.º, todos do Código Civil.
88. Deste modo, não tendo sido este também o caminho trilhado na sentença recorrida, é mandatório concluir que esta não fez correta subsunção do tecido fáctico apurado nos autos ao bloco legal e jurisprudencial aplicável, sendo, portanto, merecedora da censura que a Recorrente lhe dirige.
89. Mercê de tudo o quanto ficou exposto, deverá ser concedido parcial provimento ao presente recurso jurisdicional, revogada a sentença recorrida, e julgada parcialmente procedente a presente ação, condenando-se a Ré a pagar aos Autores a quantia de € 4,222,60, ao que acrescem juros de mora vencidos desde a citação, nos termos do estatuído nos art.º s 804.º, 805.º, n.º s 1 e 3, e 806.º, todos do Código Civil.
90. Ao que se provirá em sede de dispositivo.
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IV – DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Administrativa deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202º da CRP, em CONCEDER PARCIAL PROVIMENTO ao presente recurso, revogada a sentença recorrida, e julgada parcialmente procedente a presente ação, condenando-se a Ré a pagar aos Autores a quantia de € 4,222,60, ao que acrescem juros de mora vencidos desde a citação, nos termos do estatuído nos art.º s 804.º, 805.º, n.º s 1 e 3, e 806.º, todos do Código Civil.
Custas a cargo dos Recorrentes e Recorrida, na proporção do decaimento.
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Porto, 11 de novembro de 2022,
Ricardo de Oliveira e Sousa
Rogério Martins
Luís Migueis Garcia