Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:02337/12.7BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:03/11/2021
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Cristina Travassos Bento
Descritores:IVA; FACTURAS FALSAS; ÓNUS DA PROVA; QUESTÃO NOVA
Sumário:- O Relatório de Inspecção Tributária (RIT) e respectivos anexos constituem uma informação oficial, nos termos do artigo 76º nº 1 da Lei Geral Tributária (LGT) e 115º, nº 2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), pelo que o mesmo faz fé em juízo, quando devidamente fundamentado.

II - A Fazenda Pública pode valer-se em sede judicial da factualidade que apurou no procedimento administrativo, sem ter de reproduzir essa prova em tribunal.

III - Tal não significa que se os factos apurados pela AT e aí afirmados forem impugnados na petição inicial, o tribunal esteja dispensado de valorar a respectiva prova. A circunstância de os fundamentos aduzidos no RIT constarem do probatório em nada colide com a eventual prova que a Impugnante possa fazer nos autos, em sentido contrário àqueles.

IV - A conjugação do nº 1 do artigo 640.º e n.º1 do art.º 712º, actual 662.º do CPC afasta a possibilidade de o Tribunal de recurso com competência em matéria de facto efectuar um novo julgamento. Consequentemente, tais normativos fazem recair sobre o/a Recorrente o ónus de, primeiro, indicar os concretos pontos de facto que pretende ver modificados e, segundo, indicar os concretos meios probatórios constantes do processo, bem como a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

V - No caso de não serem observados os requisitos mencionados no artigo 640º do CPC, pelo/a Recorrente, o recurso no que tange à impugnação da matéria de facto, será imediatamente rejeitado, não sendo defensável que se lance mão do convite ao aperfeiçoamento em tal matéria.

VI - Como decorre do artigo 627º, nº 1 do CPC, anterior 676º, os recursos jurisdicionais são um meio processual específico de impugnação de decisões judiciais e como tal, o tribunal de recurso está impedido de apreciar questões novas, com excepção daquelas que sejam de conhecimento oficioso ou suscitadas pela própria decisão recorrida sob pena de se produzirem decisões em primeiro grau de jurisdição sobre matérias não conhecidas pela decisão recorrida.*
* Sumário elaborado pela relatora
Recorrente:F., Lda
Recorrido 1:Fazenda Pública
Votação:Unanimidade
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido de dever ser negado provimento ao recurso.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção do Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. Relatório
F., LDA, com NIPC (…), melhor identificada nos autos, veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que julgou improcedente a impugnação judicial por si deduzida contra a liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) relativa ao ano de 2007 e respectivos juros compensatórios, no montante global de € €514 892,53

A Recorrente terminou as suas alegações de recurso, formulando conclusões que se reproduzem, “ipsis verbis”:

I. Vem o presente recurso interposto da decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, que indeferiu a pretensão da Recorrente em ver anulada a liquidação de IVA do ano de 2007, do montante de € 514.892,53.
II. Considera a Recorrente que o Tribunal a quo deu não deu como provados factos essenciais, quando, na verdade, os mesmos se encontram devidamente demonstrados, quer por via dos documentos juntos aos autos, quer pela prova testemunhal produzida em sede de inquirição de testemunhas, quer ainda por força das normais legais.
III. A Recorrente impugna o facto 2, da matéria de facto assente, por entender que esse facto respeita a transcrições parciais de relatórios de inspeção tributária elaborados por Direção de Finanças distinta da que elaborou ação de inspeção à Recorrente.
IV. Essas transcrições constituem juízos de valor que outras Direções de Finanças retiraram de inspeções que encetaram a fornecedores de sucatas que se encontravam identificados como emitentes de faturas falsas, entre eles o fornecedor da Recorrente, mas que, como decorre da jurisprudência invocada, já existente sobre essa matéria (cfr. Acórdão do TCA Norte, de 07/12/2016, processo 01771/05BEPRT, disponível em www.dgsi.pt), o facto de determinado emitente estar indiciado como emitente de faturação falsa não sustentam a conclusão que faturas dele provindas correspondam a relações comerciais inexistentes.
V. Refere, ainda, que neste facto 2., a IT não fez qualquer relação entre os indicadores de fraude fiscal que imputa a F. e as concretas operações que este realizou com a Impugnante/Recorrente e que se encontram tituladas pelas faturas em causa.
VI. O erro de julgamento resulta então da errada análise que o Tribunal a quo fez dos documentos juntos aos autos, designadamente do RIT, que, em conjugação com as regras da experiência comum, que impunham decisão diversa, designadamente que os fornecimentos de F. à Impugnante/Recorrente eram possíveis.
VII. A reapreciação da prova gravada, pelo presente pretendida, tem como objetivo demonstrar que, ao contrário do que concluiu o Tribunal a quo ao considerar os depoimentos das testemunhas arroladas pela Impugnante irrelevantes para a fixação da matéria assente por não demonstrarem conhecimento relativamente às operações concretas em causa, tais depoimentos, também eles apreciados à luz das regras da lógica, da ciência e da experiência impunham decisão diversa.
VIII. Reportando-nos à ata de inquirição de testemunhas que decorreu no dia 25 de janeiro de 2018, resulta dos depoimentos das testemunhas arroladas e aí identificadas, o seguinte:
1. A testemunha A., ex trabalhador da Impugnante, confirmou que a atividade desta é de fundição, derrete lingotes para acertar a liga e revender, e compra sucata para derreter e vender (depoimento gravado no sistema integrado de gravação digital, de 00.03.34 a 00.04.24). Explicou a forma como se processavam as pesagens no armazém da Recorrente (sistema integrado de gravação digital, de 00.05.47 a 00.06.27), e referiu conhecer o F. de lá ir levar o material (sistema de gravação digital, de 00.09.20 a 00.09.41).
2. A testemunha F. demonstrou conhecimento direto sobre a atividade da Recorrente (sistema áudio, de 00.17 a 00.13.35), sobre a chegada das matérias-primas ao armazém da Recorrente, sobre as pesagens, sobre o F. como sendo fornecedor da Recorrente (sistema áudio, de 00.17.52 a 00.20.37), e ainda sobre os documentos e meios de pagamento utilizados na aquisição dos materiais (sistema áudio, de 00.17.52 a 00.20.37).
3. A testemunha J. prestou depoimento que se encontra gravado no sistema integrado de gravação digital, e confirmou que foi fornecedor da Recorrente desde os anos “oitenta e tal” até 2009, e decorrente do exercício da sua atividade, lhe vendeu sucatas não ferrosas. Referiu que conhecia o F. de o ver nas cargas e descargas da F. (sistema áudio, de 00.37.25 a 00.38.26), mas nunca teve relações comerciais com ele.
4. Finalmente, a testemunha F., fornecedor da Recorrente entre o final de 2006 até metade do ano de 2008, emitente das faturas desconsideradas na contabilidade da ora Recorrente, prestou o seu depoimento de forma isenta, segura, afirmando, aos costumes, que conhecia a Recorrente de ter tido relações comerciais e que, antes disso, não conhecia a gerência da empresa (depoimento prestado aos 47:47 minutos aos 48:26 minutos). Referiu que foi fornecedor da Recorrente (minuto 00.48.27), que os cheques eram todos nominativos e foram depositados nas contas bancárias que dispunha, à data (minutos de 00.56.56 a 00.57.12), esclarecendo sobre os locais onde dispunha de armazém (minuto 00.57.32 a 00.58.50).
IX. Os depoimentos das testemunhas são prestados sob juramento de honra.
X. Estes depoimentos abalam a constatação do Tribunal a quo, de que nenhuma testemunha demonstrou conhecimento relativamente às operações concretas em causa.
XI. Salvo o devido respeito, estes depoimentos denotam o seguinte:
Ø F. foi fornecedor da Recorrente no ano de 2007;
Ø Forneceu sucata e lingotes;
Ø Fazia chegar os materiais à Recorrente através de camiões, essencialmente do camião identificado nas guias de remessa, com a matrícula 84-DA-03, de cor vermelha, com capacidade para trinta e duas toneladas;
Ø Tinha instalações em Oiã e em Albergaria-a-Velha;
Ø Recebia, como pagamento pela venda das sucatas/lingotes, em cheques nominativos, que depositou nas contas bancárias que detinha (CGD, BCP, Santander Totta), contas que se encontram identificadas nos versos dos cheques onde apôs a sua assinatura.
XII. Todos os elementos de prova constantes dos autos, quer os documentais, quer os testemunhais, analisados à luz das regras da experiência pressupunham que o Tribunal a quo tomasse outra decisão.
XIII. Porém, desconsiderando todos os factos daí provenientes, e já aqui evidenciados, o Tribunal a quo fez um errado julgamento de facto, razão pela qual a sentença em recurso deverá ser anulada, e substituída por decisão que acolha os factos evidenciados que se extraem dos meios de prova carreados aos autos.
XIV. A Recorrente imputa, também, erro de julgamento de direito por considerar que a decisão recorrida viola a regra do ónus da prova que o artigo 74º da LGT estabelece.
XV. Na verdade, a fim de ver legitimada a sua atuação, à Autoridade Tributária competia fazer prova dos pressupostos da sua atuação, designadamente que existiam indícios sérios de que as operações referidas nas faturas não titulavam verdadeiras operações económicas.
XVI. Conforme expos, a jurisprudência salienta que das regras da experiência comum não se pode concluir que faturas provenientes de emitentes, ainda que estejam identificados como emitentes de faturação falsa, não correspondam a reais fornecimentos.
XVII. Neste sentido, vários acórdãos do TCA Norte, designadamente o tirado no processo 00599/10.3BEPNF, de 30.04.2015, e no processo 0148/05.1BEVIS.
XVIII. A sentença não apreciou circunstâncias que demonstrassem outros indicadores que porventura indiciassem comportamentos ilegais entre a Recorrente e o seu fornecedor, sobre as concretas operações em causa.
XIX. Nessa conformidade, ao contrário do vertido na sentença, a AT não logrou demonstrar o ónus que sobre si impendia de demonstrar factos índice suscetíveis de afastar a presunção de veracidade que impedia sobre as transações tituladas pelas faturas em causa, razão pela qual as liquidações deveriam ter sido anuladas.
XX. Mas ainda que assim não se entendesse, e uma vez que a IT não pôs em causa a atividade da Impugnante, sempre o artigo 20º do CIVA confere o direito à dedução do IVA sobre os bens adquiridos na medida em que os bens – sucata – são pertinentes aos fins próprios da atividade da Recorrente e foram destinados a serem utilizados no âmbito de operações tributadas (cfr., entre outros, o acórdão do TCA Sul, de 06/04/2017, processo n.º 07097/13 e o acórdão do TCA Sul, de 30/11/2017, processo n.º 1081/09.7BELRS, disponíveis em www.dgsi.pt). Ao abrigo desta norma também fica justificada a dedução do IVA em causa pela Recorrente, o que, com efeito, deveria ter determinado o Tribunal a quo a decidir pela anulação das liquidações em causa.
XXI. A Recorrente tem, pois, direito à dedução do IVA suportado nas aquisições constantes das faturas em causa nos termos do disposto no artigo 20º do CIVA.
XXII. A sentença recorrida violou o disposto nos artigos 74º e 75º da LGT e ainda o artigo 19, n.º 3 e artigo 20º, ambos do CIVA, razão pela qual deve ser anulada.

Pelo exposto, pugna pelo provimento do presente recurso, e, como consequência, pela revogação da douta sentença recorrida, com a necessária anulação da liquidação de IVA de 2007 impugnada.
Decidindo nos termos ora propugnados, farão Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, inteira Justiça.
*
A Recorrida não apresentou contra – alegações.
*
Após a subida dos autos a este Tribunal Central Administrativo Norte, foram os mesmos com Vista ao Exmo Procurador-Geral Adjunto que emitiu Parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
*
Dispensados os vistos legais, com a concordância das Exmas Juizes Desembargadoras Adjuntas, nos termos do artigo 657º, nº 4 do Código de Processo Civil (CPC), vem o processo à Conferência, para julgamento.
*
I.1 Objecto do recurso - Questões a apreciar e decidir:

A questão suscitada pela Recorrente delimitada pelas alegações de recurso e respectivas conclusões (nos termos dos artigos 608, nº 2, 635º, nº 4 e 5 todos do CPC “ex vi” artigo 2º, alínea e) e artigo 281º do CPPT) é a de saber se a sentença incorreu em erro do julgamento, de facto e de direito por a sentença recorrida haver decidido pela legalidade da actuação da administração tributária ao desconsiderar as facturas contabilizadas pela Recorrente no pressuposto de que as mesmas não titulavam operações efectivas e correctamente ter sido obstado a dedução do correspondente IVA.

II. Fundamentação

II.1. De Facto

II.1.1 No Tribunal a quo, o julgamento da matéria de facto foi efectuado nos seguintes termos:

1. Entre 03/10/2011 e 25/01/2012, a sociedade “F., Lda.”, registada com o C.A.E. 24540 (fundição de outros metais não ferrosos), ora Impugnante, foi objeto de uma fiscalização externa, de âmbito geral, ao ano de 2007, credenciada pela Ordem de Serviço n.º OI201002357, de 30/04/2010 – Cfr. fls. 1 e 2 do relatório de inspeção tributária constante do processo administrativo apenso.
2. Em 06/03/2012, foi elaborado o relatório final no âmbito da ação inspetiva referida em 1) do qual consta, além do mais, o seguinte:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

- cfr. o relatório de inspeção tributária constante do p.a. apenso.
3. No seguimento das correções aritméticas efetuadas, referidas em 2), foram emitidas, em nome da Impugnante, as seguintes liquidações:
N.º liquidaçãoProveniênciaPeríodoMontante (€)Data limite de pagamentoSituação
12019146070133.066,18
12019148070221.960,12
12019150070350.618,51
12019152070448.187,23
12019154LA IVA070580.092,3230/06/2012NÃOREG
12019156070644.662,59
12019158070713.213,31
12019160070821.234,45
12019162070932.684,72
12019164071046.841,76
12019166071138.857,77
12019114707016.595,12
1201914907024.310,20
1201915107039.768,68
1201915307049.130,49
12019155070514.921,31
12019157JC07068.168,97NÃOREG
1201915907072.371,88
1201916307083.565,70
1201916507095.641,47
1201916507107.941,28
1201916707116.455,71
– Cfr. fls. 18-20 do p.a. apenso.
4. As liquidações de juros compensatórios referidas em 3), apresentam a seguinte fundamentação:
«Juros compensatórios liquidados nos termos do n.º 1 do art. 96.º(*) do Código do IVA e do art. 35.º da Lei Geral Tributária, por ter sido retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto, por facto imputável ao sujeito passivo:
- Imposto em falta sobre o qual incidem os juros (…)
- Período a que se aplica a taxa de juro (…)
- Taxa de juro aplicável ao período – a equivalente à taxa de juros legais fixada nos termos do n.º 1 do art. 559.º do Código Civil
- Valor dos juros (…)
(*) Anterior art. 89.º do CIVA. Renumerado pelo Dec. Lei n.º 102/2008, de 20/06»
cfr. doc. 12 junto com a p.i..
5. Com referência ao ano de 2007, foi ainda emitida em nome da Impugnante a liquidação adicional de IVA n.º 12019168, referente ao período 2007/12, no montante de €4.819,04 e a correspondente liquidação de juros compensatórios n.º 12019169, no valor de €783,72, resultantes de regularização do sujeito passivo no decurso da ação inspetiva de imposto devido pela cedência de posição contratual quanto a bem do imobilizado corpóreo, que foram pagas em 19/06/2012 – cfr. os docs. 14 e 15 juntos com a p.i..
6. Em 14/09/2012, a presente impugnação deu entrada neste TAF – Cfr. fls. 1 dos autos.
*
Mais se provou, com interesse para a decisão, que:
7. Em correspondência com os valores mencionados nas faturas em causa nos autos, a Impugnante emitiu (61) cheques sobre o BES, BTA e BPN, à ordem de F., que foram, na sua quase totalidade - i.e., com exceção dos cheques n.º 1200000810(BTA), 3639862092, 2739862093, 1839862094, 0739862106 e 5939862111 (BPN) -, depositados/pagos ao balcão através de contas bancárias mantidas por este nas mesmas instituições bancárias - p.i.
8. No ano de 2007, F. era proprietário das seguintes viaturas:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

- cfr. o doc. 6 junto com a p.i..
9. No ano de 2007, F. estava inscrito na Segurança Social como empresário em nome individual tendo comunicado remunerações no montante de €5.665,87 e Jason Eduardo Antunes Ligeiro figura como seu empregado a partir de agosto desse ano - cfr. o doc. 7 junto com a p.i.
10. Com referência ao ano de 2007, F. apresentou declarações periódicas de IVA, em que declara os seguintes montantes:
PeríodoBase tributável (€)Crédito deImposto a entregar
Imposto (€)ao Estado (€)
2007/013.397.334,20458,13-
2007/022.959.303,35904,10-
2007/033.688.558,40-796,13
2007/044.546.484,63-3.402,58
2007/056.390.455,83409,80-
2007/064.738.118,29-266,17
2007/073.192.408,47-21,80
2007/08340.250,871.591,12-
2007/092.459.272,87281,89-
2007/102.082.497,282.723,76-
2007/111.173.620,23-2.181,73
2007/12176.108,20-2.892,59

- cfr. doc. 8 junto com a p.i..
11. Com referência ao ano de 2007, F. apresentou declaração modelo 3 de IRS em que declara vendas de €19.597.033,79 e o resultado líquido do exercício de €117.163,76 – cfr. doc. 9 junto com a p.i..
12. F. era possuidor do Alvará de Licença n.º 13/2008/CCDRC, para a gestão de resíduos, atribuído pela Agência Portuguesa do Ambiente, válido até 26/02/2013 – cfr. o doc. 5 junto com a p.i..
*
III.2 – Factos Não Provados
Todos os restantes, sendo com interesse, os seguintes:
1. Que a Impugnante tenha adquirido a F. os lingotes e sucatas mencionados nas faturas emitidas em nome deste, registadas na sua contabilidade - facto alegado no artigo 21.º da petição inicial.
2. Que as mercadorias mencionadas nas faturas em causa eram transportadas pelo F. e pelo seu irmão, Jason Eduardo Antunes Ligeiro, utilizando as viaturas SA-41-75, 84-DA-03 e 81-87-CJ – facto alegado no artigo 16.º da petição inicial.
*
III.3 – Motivação
A decisão sobre a matéria de facto, no que concerne aos factos provados, baseou-se na análise dos documentos juntos aos autos e dos constantes do processo administrativo apenso, conforme indicado em cada um dos respetivos itens do probatório, entre os quais se inclui o relatório de inspeção tributária, que constitui um documento autêntico, uma vez que é exarado por funcionário da AT, no exercício das respetivas funções, tendo força probatória plena relativamente aos factos afirmados como sendo praticados pela AT ou com base na perceção dos seus órgãos e que apenas pode ser ilidido com base na sua falsidade, nos termos da lei, valendo os juízos conclusivos aí considerados como elementos sujeitos à livre apreciação do Tribunal, segundo a sua prudente convicção, atenta a análise crítica e conjugada de todos os meios de prova (cfr. os artigos 370.º a 372.º do Código Civil e 76.º, n.º 1 da LGT).
Já no que concerne aos factos não provados, a decisão do Tribunal baseou-se na inexistência/insuficiência de prova produzida. Senão, vejamos:
Por um lado, para além dos documentos que haviam sido objeto de análise no relatório de inspeção tributária a Impugnante não apresenta qualquer outra prova documental da realização das transações em causa.
Com efeito, os documentos juntos com a petição inicial sob o n.º 3 – faturas, guias de remessa, recibos e tickets de pesagem – que dão suporte, do ponto de vista formal, aos custos contabilisticamente registados, não são factos, ou seja, por si só, não comprovam a materialidade das operações. Trata-se, pois, de documentos particulares cuja força probatória se circunscreve às declarações - de ciência ou de vontade - que deles constam como feitas pelo subscritor, não fazendo prova plena dos factos neles narrados como praticados pelo seu autor ou como objeto da sua perceção direta. Assim, a prova que poderá resultar de tais documentos limita-se à existência das declarações neles contidas, ou seja, que foram emitidas faturas de fornecimento de mercadoria à Impugnante e guias de remessa da mercadoria faturada à Impugnante e não que a mercadoria constante das faturas juntas tenha sido efetivamente adquirida e entregue e que o tenha sido por aquele concreto emitente.
De igual modo, e sendo certo que os 61 cheques juntos sob o documento n.º 4 foram emitidos à ordem de F., verificou-se que na sua grande maioria (à exceção de 6) os cheques em questão foram por pagos/levantados ao balcão em numerário (cfr. o item 7) dos factos provados), apesar de se tratarem de quantias significativas e sem que tal procedimento se mostre justificado, não permitindo demonstrar quem foi o verdadeiro beneficiário dos mesmos.

Aliás, foram precisamente as incongruências detetadas em tais documentos [v.g. a (in)capacidade de carga das viaturas mencionadas nos documentos de transporte em face das mercadorias alegadamente transportadas e da circunstância de as instalações do emitente não terem condições de acessibilidade para permitir efetuar cargas e descargas a partir de viaturas pesadas de mercadorias, a realização de vários transportes de mercadorias no mesmo dia e em horas aproximadas, com destino à Impugnante quando o emitente não possuía no seu quadro de pessoal qualquer motorista no período em causa e a coincidência entre os valores constantes dos tickets de pesagem emitidos pela
Impugnante na alegada descarga e os valores mencionados nas faturas/guias de remessa, quando o emitente não possuía báscula para pesagem das mercadorias à saída das suas instalações], em conjunto com outros elementos, que determinaram a não aceitação da dedutibilidade do IVA mencionado nas faturas.
Por outro lado, pese embora tenha sido apresentada prova testemunhal, a qual foi livremente apreciada pelo Tribunal, nos termos do que dispõe o artigo 396.º do Código Civil, atendendo, para tal efeito, à razão de ciência e credibilidade demonstrada por cada uma das testemunhas inquiridas, nenhuma prova foi apresentada sobre as concretas operações postas em causa pela Administração Tributária no sentido de infirmar as incongruências e perplexidades assinaladas no relatório de inspeção tributária e que permitisse demonstrar, de modo minimamente seguro, a sua efetiva realização pelo emitente em causa.
Assim, sendo expectável que as testemunhas A. e F., funcionários da Impugnante à data dos factos (e, no caso da 2.ª, também à data da inquirição), em virtude do exercício das suas funções (fundidor e empregada de escritório, respetivamente), possuíssem um conhecimento privilegiado dos negócios da Impugnante e dos factos a que foram inquiridos, os respetivos depoimentos não versaram sobre as concretas operações tituladas pelas faturas em causa, quedando-se pelo modus operandi genérico das operações de compra e venda de sucata e lingotes.
De igual modo, a testemunha J., fornecedor da Impugnante, não demonstrou possuir qualquer conhecimento (direto ou indireto) desses factos, tendo-se limitado a depor sobre o modo como eram efetuados os seus fornecimentos à Impugnante e a afirmar que encontrou o emitente em causa nas instalações da Impugnante e que o conhecia de lá, afirmação singela esta sem qualquer relevância para o efeito pretendido, pois nada revelou saber sobre os fornecimentos em causa.
Finalmente, o depoimento de F., na qualidade de emitente das faturas em causa, revelou-se, por um lado, genérico e evasivo, v.g. explicou, em geral, como se processava a sua atividade de comerciante de sucata, mas não informou quem eram os seus fornecedores de lingotes e apesar de referir que chegou a ter mais de 100 fornecedores, não soube indicar nenhum, e, por outro lado, revoltado e ressentido, já que responde por vários processos criminais relacionados com fraude fiscal, por faturação falsa, não tendo contribuído, de forma alguma, para a descoberta da verdade material.
Ora, o Tribunal apenas poderia concluir com a Impugnante que as ditas transações efetivamente ocorreram com aquele fornecedor e nas quantidades e qualidade da mercadoria mencionada nos documentos em questão, se tivesse sido produzida prova testemunhal que o corroborasse, o que, como se deixou explanado, não sucedeu.
No mais, dir-se-á que as restantes asserções constantes da petição inicial constituem meras considerações pessoais, suposições, juízos de valor, generalidades e/ou conclusões a extrair de factos não alegados (como é o caso, designadamente, da alegação constante do artigo 21.º da p.i.), que, por total ausência de consubstanciação, tão pouco estariam sujeitos a prova ou haveria que elencar nos factos não provados.
Por fim, da instrução da causa não resultaram demonstrados quaisquer outros factos com interesse para a decisão a proferir.”
*


II.2. O Direito

II.2.1 A sentença sob recurso julgou improcedente a impugnação da liquidação adicional de IVA, deduzida pela aqui Recorrente. Liquidação decorrente de correcções aritméticas efectuadas em sede de IVA, relativo ao ano de 2007, por dedução indevida de tal imposto, relativos a um conjunto de facturas emitidas a favor da impugnante, aqui Recorrente, por “F.”, que no entender da Administração Tributária (AT) não correspondiam a qualquer transacção.
Insurge-se a Recorrente contra a sentença proferida, desde logo, imputando-lhe erro de julgamento de facto, dado que o facto dado como provado no ponto 2 do probatório, respeita a transcrições parciais de relatórios de inspecção tributária elaborados por Direcções de Finanças distintas da que elaborou a acção de inspecção à Recorrente. Que essas transcrições constituem meros juízos de valor, pois o facto de determinado emitente estar indiciado como emitente de facturas falsas não sustenta a conclusão de que facturas dele provindas correspondam a relações comerciais existentes. Que a AT não fez qualquer relação entre os indicadores de fraude fiscal que imputa a F. e as concretas operações que este realizou com a impugnante e que se encontram tituladas pelas facturas em causa. E que o erro de julgamento decorre da errada análise que o Tribunal fez dos documentos juntos aos autos, designadamente do Relatório de Inspecção Tributária (RIT) que em conjugação com as regras da experiência comum impunham decisão diversa, designadamente que os fornecimentos de F. à impugnante eram possíveis. [Conclusões III a VI]
Saliente-se que o facto plasmado no ponto 2 da matéria de facto, dada como provada, se refere à transcrição do RIT. Como é sabido, sendo o RIT e respectivos anexos uma informação oficial, [nos termos do artigo 76º nº 1 da Lei Geral Tributária (LGT) e 115º, nº 2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT)], o mesmo faz fé, quando devidamente fundamentado. O que significa, como se referiu no recentíssimo acórdão deste TCAN de 28.01.2021, processo 3157/12.4BEPRT, “(…) que a Fazenda Pública não tem que repetir em juízo o esforço instrutório e probatório que desenvolveu em sede de procedimento administrativo. Ou seja, por força das normas do artigo 76º, nº 1 da LGT e do artigo 115º, nº 2 do CPPT, a Fazenda Pública pode valer-se em sede judicial da factualidade que apurou no procedimento administrativo, sem ter de reproduzir essa prova em tribunal.
Todavia, tal não significa que se os factos apurados pela AT e aí afirmados forem impugnados na petição inicial (nomeadamente por desconhecimento ou por oposição), o tribunal esteja dispensado de valorar a respectiva prova. A circunstância de os fundamentos aduzidos no RIT constarem do probatório em nada colide com a eventual prova que a Impugnante possa fazer nos autos, em sentido contrário àqueles. Em regra, o local apropriado para se efectuar tal juízo será na subsunção dos factos ao direito, momento em que o julgador (depois de dar como assente, na resposta à matéria de facto, o que a Administração Tributária concluiu, com fundamento no que apurou em sede inspectiva) aprecia a qualidade do respectivo discurso fundamentador e confirma se houve ou não erro sobre a suficiência dos pressupostos de facto da tributação. Assim, quando a impugnação do facto afirmado for feita por oposição, “o juízo sobre a ocorrência do facto afirmado pelos serviços de inspecção tributária depende da prova que for feita dos factos materiais que forem alegados pelo impugnante e da sua idoneidade para abalar os juízos de facto que o relatório ou as suas conclusões exprimam. Sendo tais factos alegados na petição e relevantes para a decisão, deve o juiz formular o juízo sobre a sua existência na resposta à matéria de facto e sobre a sua idoneidade na aplicação do direito aos factos” (cf. acórdãos, ainda inéditos, deste TCAN de 6/6/2012, lavrado in rec. 79/04.6 BEPNF e de 26.02.2015 lavrado in Rec.118/2002 TFPRT.32)(…)”.

Acresce referir, como plasmado no acórdão que vimos de citar que “(…) nada obsta a que a AT, na sua actividade inspectiva, acolha fundadamente os elementos apurados no âmbitos de outros procedimentos de fiscalização, proceda a uma análise comparativa e, numa leitura conjunta de tais dados com os elementos colhidos ex novo junto a entidade inspecionada, retire as conclusões que entenda pertinentes, tanto mais que, na situação dos autos, apurou-se que a relação comercial existente em a Recorrente e F. se estendeu entre 2007 e parte de 2008, não sendo despicienda a forma como este último girava comercialmente mercado e os termos em que a relação comercial estabelecida entre os dois operadores se desenvolvia, naquele período.(…)”.

Soçobram assim as conclusões de recurso.

II.2.2. Alega ainda a Recorrente que o tribunal a quo não deu como provados factos essenciais, quando os mesmos se encontram devidamente demonstrados, quer pelos documentos juntos aos autos, quer pela prova testemunhal produzida em sede de inquirição de testemunhas. Que a reapreciação da prova gravada, demonstra que ao contrário do que concluiu o Tribunal a quo ao considerar os depoimentos das testemunhas arroladas pela impugnante irrelevantes para a fixação da matéria de assente por não demonstrarem conhecimento relativamente às operações concretas em causa, tais depoimentos, também eles apreciados à luz das regras da lógica, da ciência e da experiência impunham decisão diversa. E referindo-se aos depoimentos das testemunhas, conclui que todos os elementos de prova constantes dos autos, quer documentais, quer testemunhais, analisados à luz das regras da experiência preesupunham que o tribunal a quo tomasse outra decisão. Devendo a sentença ser anulada e substituída por decisão que acolha os factos evidenciados que se extraem dos meios de prova carreados aos autos. [Conclusões VII a XIII]
Como decorre do artigo 627º do Código de Processo Civil “as decisões judiciais podem ser impugnadas por meio de recursos.”, ou seja, o recurso é o meio processual que se destina a impugnar as decisões judiciais, e nessa medida, o tribunal superior é chamado a reexaminar a decisão proferida e os seus fundamentos.
Mas, como tem sido jurisprudencialmente aceite, a garantia do duplo grau de jurisdição não subverte o princípio da livre apreciação das provas - cfr. art. 607º. O juiz a quo, na decisão sobre a matéria de facto, aprecia livremente as provas e decide segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, sendo que, na formação dessa convicção, não intervêm apenas factores racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que, em caso algum, podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, quando estes existam.
Daí que a convicção do tribunal se forme de um modo dialéctico.
É, pois, pela fundamentação invocada para a decisão que normalmente se afere a correcção do juízo crítico sobre as provas produzidas.
Assentando a decisão da matéria de facto, no presente caso, na convicção criada no espírito do juiz e baseada na livre apreciação da prova documental e testemunhal, a sindicância de tal decisão não pode deixar de respeitar a liberdade da 1ª instância, na respectiva apreciação.
Como se aponta no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 05/05/11 (processo 334/07.3 TBASL.E1), “O erro na apreciação das provas consiste em o tribunal ter dado como provado ou não provado determinado facto quando a conclusão deveria ter sido manifestamente contrária, seja por força de uma incongruência lógica, seja por ofender princípios e leis científicas, nomeadamente, das ciências da natureza e das ciências físicas ou contrariar princípios gerais da experiência comum (sendo em todos os casos o erro mesmo notório e evidente), seja também quando a valoração das provas produzidas apontarem num sentido diverso do acolhido pela decisão judicial mas, note-se, excluindo este.
Não basta, pois, que as provas permitam dentro da liberdade de apreciação das mesmas, uma conclusão diferente, a decisão diversa a que aludem os artºs 690-A nº 1 al. b) e 712º nº 1 al. a) e b), terá que ser única ou, no mínimo, com elevada probabilidade e não apenas uma das possíveis dentro da liberdade de julgamento.”
Sobre este entendimento do duplo grau de jurisdição, também já o Tribunal Constitucional se pronunciou (...): “A garantia do duplo grau de jurisdição não subverte, nem pode subverter, o princípio da livre apreciação das provas e não se pode perder de vista que na formação da convicção do julgador entram, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova e factores que não são racionalmente demonstráveis”, de tal modo que a função do Tribunal da 2.ª instância deverá circunscrever-se a “apurar a razoabilidade da convicção probatória do 1.° grau dessa mesma jurisdição face aos elementos que agora lhe são apresentados nos autos” Acórdão de 13.10.2001, in Acórdãos do T. C. vol. 51°, pág. 206 e ss..)”.
Tendo presente o agora exposto, compreende-se que a conjugação do nº 1 do artigo 640.º e n.º1 do art.º 712º, actual 662.º do CPC afaste a possibilidade de o Tribunal de recurso com competência em matéria de facto efectuar um novo julgamento. Consequentemente, tais normativos fazem recair sobre o/a Recorrente o ónus de, primeiro, indicar os concretos pontos de facto que pretende ver modificados e, segundo, indicar os concretos meios probatórios constantes do processo - artº 640º do CPC, que dispõe o seguinte:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
(…)”.
No caso de não serem observados os requisitos mencionados no artigo 640º do CPC, pela Recorrente, o recurso no que tange à impugnação da matéria de facto, será imediatamente rejeitado, não sendo defensável que se lance mão do convite ao aperfeiçoamento em tal matéria. (cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2014, p. 134 e seg).
No presente caso, a Recorrente assaca erro de julgamento à sentença, nomeadamente, quanto à apreciação feita dos depoimentos testemunhais. Todavia, apesar de referir as passagens dos depoimentos não indica que factos pretende ver dados como provados. Repare-se na letra da lei: « A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.»
Acresce ainda que, relativamente aos meios probatórios documentais, nada é referido.
Com efeito, trata-se da imposição de um ónus perfeitamente lógico e necessário. Em primeiro lugar, porque ninguém está em melhor posição do que a Recorrente para indicar a decisão que devia recair sobre as questões de facto impugnadas, bem como os meios documentais que a suportariam. Em segundo lugar, para permitir que a parte contrária conheça os argumentos concretos e devidamente delimitados da agora Recorrente, para os poder contrariar cabalmente, assim se garantindo o devido cumprimento do princípio do contraditório.
Sempre se diga que atenta a estrutura das alegações/conclusões formuladas pela Recorrente, o que se retira é que esta pretende discutir a convicção do julgador. Porém, da sentença a quo extrai-se com clareza que a convicção da Mma Juiz, na determinação da factualidade relevante para a decisão a proferir, fundou-se num exame crítico de toda a prova, na consideração do teor dos documentos juntos aos autos e ao processo administrativo apenso e na insuficiência/desconsideração da prova testemunhal produzida pela Recorrente, desde já se antecipando que não vislumbra este tribunal o invocado erro de julgamento.
Ainda que não tenha valorizado positivamente a prova testemunhal oferecida pela Recorrente, a Mma Juiz a quo deixou vertido na sentença recorrida as razões que a levaram a concluir no sentido em que o fez, nomeadamente, assinalando a razão de ciência das testemunhas e o teor dos respectivos depoimentos, mediante uma análise crítica dos mesmos, por confronto com os demais elementos carreados para os autos e constantes do RIT, notando, com propriedade, que as questões controvertidas careciam de uma prova mais precisa e rigorosa.
Destarte, não tendo sido respeitado o formalismo legal quanto à impugnação da matéria de facto, impõe-se rejeitar o mesmo quanto a este segmento de recurso.


II.3 O Direito

II.3.1 No presente recurso foi ainda imputado erro de julgamento de direito à sentença recorrida, relativamente ao erro sobre os pressupostos de facto das liquidações de IVA impugnadas, determinadas pela dedução indevida do IVA titulado pelas facturas nas quais figura como emitente F. e que, no entender da Administração Tributária, não correspondem a uma efectiva transacção.
Alega a Recorrente que tal decisão viola a regra do ónus da prova que o artigo 74º da LGT estabelece. E que a AT não logrou demonstrar o ónus da prova que sobre si impendia, de demonstrar os factos índice susceptíveis de afastar a presunção de veracidade que impendia sobre as transacções tituladas pelas facturas em causa. E que, não tendo a AT posto em causa a actividade da impugnante, sempre o artigo 20º do CIVA conferia o direito à dedução do IVA sobre os bens adquiridos na medida em que os bens - sucata – são pertinentes aos fins próprios da actividade da Recorrente e foram destinados a serem usados no âmbito de operações tributadas. [Conclusões XIV a XIX]
Para decidir como fez, concluiu-se na sentença recorrida que: “(…)os “factos-índice” recolhidos junto do emitente e da sociedade destinatária/utilizadora das faturas, aqui Impugnante, tal como acima descritos (…) analisados no seu conjunto e tendo em conta das regras da experiência são, em nosso ver, mais do que suficientes para permitir à Administração Tributária concluir no sentido de que os fornecimentos inscritos nas faturas em causa não tiveram lugar, não foram efetivos, reais e de que, por isso, estamos perante operações simuladas.
Em face de tudo o exposto, dir-se-á que a Administração Tributária demonstrou os pressupostos da sua atuação, satisfazendo o ónus da prova que lhe competia (…)”, e ainda que a “(…)a Impugnante não fez prova nos presentes autos de que adquiriu as mercadorias tituladas pelas faturas consideradas falsas pela Administração Tributária.
Assim, como se exarou, a este respeito, na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, os documentos que dão suporte, do ponto de vista formal, aos custos contabilisticamente registados, por si só, não comprovam a materialidade das operações, mas apenas demonstram que foram emitidas faturas referentes a mercadoria fornecida à Impugnante e não que a mercadoria constante das facturas tenha sido efetivamente entregue e que o tenha sido, nas referidas quantidades e preço.
No mais, não foi apresentada qualquer outra prova sobre os factos essenciais das concretas transações postas em causa pela Administração Tributária, nem as testemunhas inquiridas demonstraram ter conhecimento das concretas transações, de forma que permitisse ao Tribunal concluir, de modo minimamente seguro, que as operações subjacentes às faturas tiveram efetivamente lugar.(…)”
Apreciemos.
Relembre-se que está em causa o direito à dedução do IVA de facturas, emitidas por F., que a AT considerou que eram simuladas ou fictícias, ou seja, não titulavam qualquer operação.
O Imposto o Valor Acrescentado (IVA) é um imposto geral sobre o consumo de bens e serviços, plurifásico, na medida em que incide em todas as fases do circuito económico, e ainda indirecto, não cumulativo, dado que o apuramento do imposto é feito pelo “método subtrativo indirecto ou método das facturas, de acordo com o qual cada sujeito passivo entrega ao Estado em cada período de imposto a diferença entre o imposto liquidado nas operações realizadas e o imposto deduzido nas aquisições de bens e serviços adquiridos para o exercício da actividade tributada.(…) O IVA suportado é dedutível no momento em que se torna exigível, ou seja, por via de regra, na data de emissão da fatura” In “Imposto sobre o Valor Acrescentado” de Cidália Lança in Lições de Fiscalidade, 2012, coord de João Catarino e Vasco Guimarães, fls 289 e ss.
. Dito de outra forma, “assenta na subtracção sistemática do imposto dedutível àquele que é liquidado nas operações tributárias activas dos sujeitos passivos, mediante o mecanismo do crédito de imposto, desta forma erigido no pilar garantista da neutralidade fiscal (…)” In “Os aspectos formais do direito à dedução do IVA: A dedução do Imposto em operações simuladas”, de Alexandra Martins, Fiscalidade 22.

É reconhecido de forma unânime pela jurisprudência do TJUE que o mecanismo do direito à dedução é um elemento essencial do funcionamento do IVA tal como foi desenhado nas Directivas IVA, assumindo um papel fundamental de garantia da neutralidade do imposto e da igualdade de tratamento fiscal; Este princípio encontra-se vertido nas Directivas IVA, sendo sistematicamente invocado pela Comissão para se opor às legislações nacionais tidas por incompatíveis com as regras do Direito da União Europeia, bem como pelas administrações fiscais e pelos contribuintes dos diversos Estados membros, tendo sido, inúmeras vezes, aplicado pelo TJUE (cf. Francis Lefebre (auteur Francisco Xavier Sanchéz Galhardo) - Memento Experto, IVA: Jurisprudencía Comunitaria, Directiva 2006/112/CE, Actualizado a 31 de Diciembre de 2007, Ediciones Francis Lefebre, 2008, p. 68);
O direito à dedução tem como pressuposto que o sujeito passivo que suportou o IVA nas respectivas aquisições a montante irá realizar, a jusante, operações que irão conferir, nos termos do CIVA, o direito à dedução. Mas, para que tal direito à dedução possa ser exercido é necessário o preenchimento de pressupostos ínsitos no Código do IVA, sendo um deles, fundamental para a apreciação do presente caso, o referido no nº 3 do artigo 19º, onde se refere: “Não poderá deduzir-se imposto que resulte de operação simulada ou em que seja simulado o preço constante da factura ou documento equivalente”.
Ainda segundo Alexandra Martins, ob. cit.,”A razão de ser deste preceito resulta intuitiva. Sendo assíncrona a aparência criada pelo formalismo da factura e a factualidade sobre que incide, i.e., ocorrendo uma falsa representação da realidade, a viabilização do exercício do direito à dedução embateria contra os objectivos de cobrança exacta do imposto e de combate à evasão e fraude fiscais prosseguidos pelo sistema comum do IVA.
E de acordo com a jurisprudência emanada pelo TJCE, o exercício do direito à dedução limita-se ao imposto devido, ou seja, àquele que respeite a uma operação sujeita a imposto ou pago na medida em que era devido, não se estendendo ao imposto que seja tão-somente mencionado em factura, sem qualquer correspondência com uma operação determinada Acórdão Genius Holdings . (…)”.
Por outro lado e de acordo com o disposto no nº 1 do artigo 74º da Lei Geral Tributária (LGT) “O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”. Também a maioria da jurisprudência - cfr., entre outros, os Acórdãos do TCA de 27/01/04, no Proc. nº 6646/02 e de 11/03/03, no Proc. nº 6915/02 e os Acórdão do STA de 24/04/02, no Proc. nº 102/02, de 17/04/02, no Proc. nº 26.635, de 09/10/02, no Proc. nº 871/02 e 20/04/03 no Proc. nº 241/03 - , afirma que é à Administração Fiscal que cabe o ónus de prova da existência dos pressupostos do acto de liquidação adicional, ou seja, de demonstrar a factualidade que a levou a desconsiderar as aquisições cujo IVA foi deduzido. Só, então, passará a pertencer ao contribuinte o ónus de prova de que as operações se realizaram efectivamente.
Assim, compete, num primeiro momento, à Administração Tributária fazer prova de que estão verificados os pressupostos legais que legitimam a sua actuação, ou seja, sendo o juízo desta firmado na consideração de que as operações e/ou o valor mencionado nas facturas em causa não correspondem à realidade, haverá de demonstrar a existência de indícios sérios de que as operações referidas nas facturas, em si mesmas ou nalgum dos seus elementos, nomeadamente no preço, foram simuladas. Nesta tarefa, pode a Administração Tributária lançar mão de elementos obtidos com recurso à fiscalização cruzada, junto de outros contribuintes, para obter os referidos indícios, pelo que tais indicadores de falsidade das facturas não têm necessariamente que advir de elementos do próprio contribuinte fiscalizado.
Ora, o conforme João de Castro Mendes, os indícios são definidos como sendo aqueles factos que “permitem concluir pela verificação ou não verificação de outros factos, em virtude de leis naturais conhecidas pelos homens e que funcionam como máximas de experiência” (cfr. citação de José Luís Saldanha Sanches in “ A Quantificação da Obrigação Tributária”, 2ª edição, pág. 311.)
Logo, feita que seja essa prova, num segundo momento, compete ao sujeito passivo o ónus da prova dos factos que alegou como fundamento do seu direito a deduzir o IVA supostamente suportado, nos termos do artigo 19º, nº 1 do CIVA, não lhe bastando criar dúvida sobre a sua veracidade, ainda que fundada, pois, neste caso, o artigo 100.º do CPPT não tem aplicação.
Na verdade, o ónus consagrado no artigo 100.º, n.º 1, do CPPT, contra a AT (de que a dúvida quanto à existência e quantificação do facto tributário deve ser decidida contra a administração tributária: in dubio contra Fisco) apenas existe quando seja esta a afirmar a existência dos factos tributários e respectiva quantificação e não quando, como in casu, é ao contribuinte que compete demonstrar a existência e quantificação das aquisições cujo IVA alega ter suportado e que pretende deduzir em conformidade. Veja-se, neste sentido e sobre esta questão os doutos Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Norte de 24 01. 2008, proferido no Processo 01834/04 e do Supremo Tribunal Administrativo de 07.05. 2003 (Pleno), proferido no Processo 1026/02, e acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 24.01.2008, proferido no Processo 2887/04.
Entende a Recorrente, na situação sub judice, que a AT não aportou ao relatório indícios, violando assim as regras do ónus da prova.
É certo que a circunstância de as operações se encontrarem documentadas em factura e terem sido inscritas na contabilidade faz presumir a existência da operação. Todavia, tal presunção deixará de se verificar, quando, nomeadamente a contabilidade do contribuinte revelar indícios fundados de que não refletem ou impedem o conhecimento da matéria real do sujeito passivo. Assim, se a AT recolher indícios fundados de que os documentos de suporte apesar de formalmente correctos não refletem a verdadeira transacção (quanto aos sujeitos, objecto, dadtas e valores) cessa a presunção de veracidade das operações constantes de tais documentos.
Assim ao contrário do suscitado, a questão estará, não na interpretação do artigo 74º da LGT mas na valoração dos indícios recolhidos pela AT e em saber se o juízo que recaiu sobre a suficiência dos mesmos deve ser confirmado.
A Administração Tributária não se pode limitar, contudo, a uma fundamentação meramente formal do juízo que formula quanto à indevida dedução do IVA por parte do sujeito passivo (impugnante), constante das facturas desconsideradas. Exige-se-lhe, ainda, que demonstre o bem fundado desse juízo, provando os indícios que o sustentam, possibilitando, dessa forma, a conclusão de que é correcta a sua fundamentação material. Neste sentido e sobre esta matéria vide, ainda, o acórdão deste TCA Norte de 24.01.2008 proferido no recurso 01834/04.
Mas, também é jurisprudência unânime do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, que a prova dos indícios é suficiente para que a AT satisfaça o ónus da prova que sobre si impende.
Veja-se neste sentido, por todos, o Acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do STA, de 27.02.2019, no processo 01424/05 onde se determinou que “como decidido nos Acórdãos do Pleno desta Secção do STA de 16.03.2016, Acórdão 587/15, de 16.11.2016, recurso 600/15 e de 17.02.2016, recurso n.° 591/15 (acórdão fundamento), no qual se consignou:
«(...)Com efeito, como a jurisprudência do STA tem unanimemente afirmado, apesar de, atendendo ao princípio da legalidade administrativa, impender sobre a ATo ónus de provar a factualidade que a leve a desconsiderar fiscalmente (não aceitando a respectiva dedução) o montante do IVA incluído em facturas correspondentes a transacções qtte considere não se terem realizado, basta para legitimar essa actuação da AT (ao abrigo do n° 3 do art. 19° do CIVA) a existência de indícios sérios de que as operações tituladas por tais facturas não são verdadeiras, cabendo depois ao contribuinte demonstrar que o são.
E reiterando-se tal entendimento, é de concluir que cabe à AT «o ónus da prova da verificação dos pressupostos legais (vinculativos) da sua actuação, como factos constitutivos de tal direito, em termos daquele princípio da legalidade, segundo a sua actual compreensão, entendido não como mero limite à actividade da administração mas como fundamento de toda a sua actividade.
O que corresponde ao ensinamento de Vieira de Andrade in Justiça Administrativa, 2° edição, pág, 269: “há-de caber, em princípio à Administração, o ónus da prova da verificação dos pressupostos legais (vinculativos) da sua actuação, designadamente se agressiva (positiva e desfavorável); em contrapartida, caberá ao administrado apresentar prova bastante da ilegalidade do acto, quando se mostrem verificados estes pressupostos”» (ac. do STA, de 30/4/2003, no proc. n° 0241/03). (No qual se referenciam, igualmente, os ac.s de 24/4/02, rec. 102/02, de 17/4/02, rec. 26.635, de 9/10/02, rec. 871/02 e de 14/11/01, rec. 26.015.)
Na verdade, embora a regularidade formal da escrita constitua presunção da sua veracidade - estendida aos seus elementos de apoio (art. 75° da LGT) -, tal presunção cessa no caso da existência de indícios sérios de que as operações escrituradas se não realizaram. Daí que, como se disse, provando a A T a existência de indícios sérios e credíveis de que tais operações não são verdadeiras, cabe ao contribuinte o ónus da prova da veracidade das mesmas.
Sobre esta matéria escreveu-se no Acórdão do STA, de 24/4/2002, Rec. 0102/02: «Ora, como quem tem a seu favor uma presunção estabelecida na lei está dispensado da prova do facto presumido (cfr. os arts. 349° e 350° do CCivil), a recorrente, tendo a sua escrita organizada conforme as exigências legais, não precisa de provar que são verdadeiros os dados decorrentes.
A não ser que se verifiquem erros, inexactidões ou outros indícios fundados de que ela não reflecte a matéria tributável efectiva.
Quer dizer a presunção cessa quando, estando, embora, a escrita ou contabilidade organizada de acordo com a lei, enferme de erros ou inexactidões, ou haja “indícios fundados” de que, apesar da sua correcta organização, não reflecte a matéria tributável efectiva.
Cabe nesta previsão, claramente, o caso de a contabilidade, impecavelmente organizada, se avaliada do ponto de visto técnico-contabilístico, no entanto omitir operações efectuadas; e cabe o caso inverso - o de incluir operações não efectuadas. Este último é aquele que correntemente se vem chamando de ‘facturas falsas “, isto é, a contabilidade considera (e trata de forma contabilisticamente correcta) documentos emitidos na forma legal, mas que não correspondem a qualquer realidade, porque as operações que era suposto reflectirem, na verdade, não tiveram lugar.
E, aqui, a lei não exige senão “indícios fundados “, ou seja, não impõe à Administração a “prova provada” de que por detrás dos documentos não está a realidade que normalmente reflectem e comprovam, basta-se com indícios fundados para fazer cessar a presunção a favor do contribuinte. E a este, desprovido do escudo protector da presunção, não resta senão demonstrar a veracidade dos seus elementos contabilísticos, e respectivos suportes, destarte posta em crise, face àqueles ‘fundados indícios “.
De todo o modo, quando seja a Administração a praticar um acto, designadamente, um acto tributário de liquidação, fundado na existência de determinado facto tributário, por hipótese não revelado pela escrita do contribuinte, não deixa de ser ela a ter que provar tal existência, pressuposto da sua actuação. É isto corolário do princípio da legalidade administrativa, de acordo com o qual a Administração só pode agir se isso lhe permitir a lei, e não pode fazê-lo contra ela. Os pressupostos da sua actuação são, pois, factos constitutivos do seu direito a agir ct/a prova lhe compete, por isso que é o agente.
Porém, no caso vertente, a Administração Fiscal não actuou baseada na existência de qualquer facto tributário, nomeadamente, liquidando o correspondente imposto. Antes, obstou ao exercício, por parte da recorrente, do seu direito à dedução do IVA constante das facturas em causa, baseada no entendimento de que, face aos indícios recolhidos, não se teriam, realmente, realizado as operações comerciais que tais facturas, supostamente, titulavam.
Como assim, o caso, aqui, é diverso, também para os efeitos de saber a quem cabe provar a ocorrência dos factos em que assenta o direito à dedução: é a recorrente quem se arroga um direito que pretende exercer - o direito à dedução do IVA -, que não é reconhecido pela Administração Fiscal.
Destarte, não é a Administração que afirma um facto positivo com consequências tributárias - é o contribuinte que invoca o seu direito à dedução do IVA pago a montante. Por isso, é ele quem deve provar a verificação dos pressupostos em que assenta tal direito.
Conforme se diz no recente - 17 de Abril de 2002 - acórdão deste mesmo Tribunal, proferido no recurso n° 26635, “da conjugação das normas dos art.s 22° n°1 e 19° do CIVA resulta, assim, que não caberá à administração o ónus de prova da inexistência dos factos tributários cujo imposto considerou fundamentadamente deduzido ilegalmente por parte do contribuinte, mas que caberá ao próprio contribuinte o ónus de prova da existência dos factos tributários em que fundou a dedução que declarou. Digamos (..) que à administração cabe o ónus de prova da verificação dos requisitos estabelecidos no art. 82° n° 1 do CIVA para que possa liquidar adicionalmente o IVA respeitante a deduções indevidas, mas já não a existência dos factos contra ela afirmados pelo contribuinte, traduzidos na existência dos factos tributários e sua expressão quantitativa. Os requisitos legalmente estabelecidos para que seja permitida a dedução do imposto pago a montante não constituem, nesta óptica, também requisitos que estejam legalmente previstos enquanto requisitos de legitimação da actuação da administração.
Relativamente a esta matéria, a lei basta-se com um juízo administrativo de adequação entre os factos e valorações em que a administração diz, formalmente, suportar a sua decisão e o resultado desse juízo no sentido de se lhe afigurar ter sido declarado uma dedução superior à devida, e com a prova perante o tribunal da pertinência desse juízo ou seja, com a prova, perante o tribunal, da existência dos elementos que tornam possível ter como adequada a consideração por si feita de que o contribuinte declarou uma dedução superior à permitida pela lei”.
Neste aresto faz-se, aliás, uma exaustiva análise da questão do ónus probatório na matéria, concluindo-se, lapidarmente, no seu sumário, que “quando o acto de liquidação adicional do IVA se fundamente no não reconhecimento das deduções declaradas pelo contribuinte cabe à administração apenas a prova da verificação dos pressupostos legais que legitimam a sua actuação, constantes do art. 82° n° 1 do CIVA e ao contribuinte o ónus de prova da existência dos factos tributários que alegou como fundamento do seu direito de dedução do imposto nos termos do art. 19° do CIVA “.».
Também a nosso ver é esta a interpretação legal que resulta do disposto nos apontados normativos (n°3 do art. 19° e no n°1 do art. 82 do CIVA, art. 74° da LGT e 240° do CCivil), bem como no art. 36° (renumeração actítal) do CIVA, sendo que igualmente não se vislumbram razões que levem a conclusão diversa, sendo que a própria argumentação da recorrida (nas respectivas contra-alegações) acaba, no essencial, por apelar a uma interpretação do n° 3 do art. 19° do CIVA no sentido de que a AT deveria ter identificado, nas relações da Recorrida com os seus fornecedores, quer o intuito e o acordo simulatórios, quer o “animus nocendi” em desfavor do Estado.
E volvendo, então, à concreta situação dos autos, há, portanto, que concluir que a AT para proceder a correcções decorrentes da não aceitação da dedução do IVA mencionado nas facturas relativamente às quais considerou que as transacções nelas mencionadas não correspondem à realidade, não tinha de fazer prova da existência de acordo simulatório (existência de divergência entre a declaração e a vontade negocial das partes por força de acordo entre o declarante e o declaratário, no intuito de enganar terceiros — cfr. art. 240° do CCivil) para satisfazer o ónus de prova que sobre si impende. Antes lhe bastando provar a factualidade que a levou a não aceitar a respectiva dedução de imposto, factualidade essa que tem de ser susceptível de abalar a presunção de veracidade das operações constantes da escrita do contribuinte e dos respectivos documentos de suporte, só então passando a competir ao contribuinte o ónus de prova do direito de que se arroga (o de exercer o direito à dedução do IVA) e que não é reconhecido pela A1 ou seja, o ónus de prova de que as operações se realizaram efectivamente. »
No caso em apreciação a sentença entendeu que a AT havia recolhido “factos índice” que revelavam que as facturas contabilizadas pela aqui recorrente não correspondiam a afectivas prestações de serviços, nela se referindo, “(…)a Administração Tributária apoiou-se, desde logo, em diversos elementos recolhidos junto do fornecedor em causa, em inspeções levadas a cabo aos anos de 2005, 2006 e 2007, tendo por base a análise da contabilidade e respetivos documentos de suporte e, bem assim, quanto ao ano de 2007, a quebra do sigilo bancário, dos quais destacamos:
 em 2007, declarou, para efeitos fiscais, um valor total de vendas de sucata de € 19.596.635,27, sem que possuísse estrutura, organização, dimensão empresarial e capacidade financeira suscetível de o poder realizar;
 mais de 99,99% do valor total das suas compras foram registadas e declaradas com base em documentos emitidos em nome de sociedades e pessoas relativamente aos quais ficou demonstrado que não haviam realizado nem tinham quaisquer condições para realizar qualquer venda de sucata;
 as supostas compras e vendas foram todas declaradas como tendo sido pagas e recebidas a dinheiro;
 cumpriu as suas obrigações fiscais em termos declarativos, o que indicia uma intenção clara de dissimular o verdadeiro objetivo fraudulento da atividade, conferindo-lhe uma imagem de aparente normalidade;
 por via dos documentos de compras falsas que contabilizou para justificar as vendas, deduziu IVA que não foi entregue nos cofres do Estado;
Ademais, a Administração Tributária procedeu à notificação pessoal da Impugnante para esclarecer alguns aspetos relacionados com as aquisições subjacentes às faturas, cuja análise revela o seguinte:
 no âmbito do negócio, é tudo tratando pessoalmente, sem qualquer troca de correspondência, sendo do conhecimento da Impugnante que F. não dispõe de estrutura administrativa;
 as faturas emitidas por F. eram manuscritas com emissão na mesma data em que ocorreu o transporte, de acordo com as guias de transporte processadas e referiam o mesmo peso de mercadoria, sem alteração entre o momento da carga e a descarga, o que desacredita as operações na medida em que F. não dispõe de báscula para pesagem das mercadorias à saída das suas instalações nem existem indícios de que tenha recorrido a terceiros para efetuar a pesagem;
 os documentos emitidos por F. não indicavam um contacto telefónico;
 F. não tinha qualquer funcionário ao seu serviço, sendo que o seu irmão apenas figura como funcionário a partir de agosto de 2007, o que significa que, até tal data, era o emitente em causa que assumia pessoalmente as funções de vendedor, motorista, fiel de armazém, controlador de qualidade, prospetor de mercado, gestor de compras, administrativo e gestor financeiro para um volume de negócios que se cifrou em cerca de 19,5 milhões de euros com movimentos de mais de 7.000.000 kg, o que não se afigura verosímil por ser humanamente impossível;
 as instalações do emitente não possuíam condições de acessibilidade que permitissem a carga/descarga a viaturas pesadas de mercadorias ou mecanismos de fundição de lingotes;
 relativamente às viaturas indicadas nos documentos de transporte:
o O veículo ligeiro de mercadorias de marca IVECO e matrícula XX-XX-XX, com peso bruto de 14.500 kg, foi indicado, nas guias de transporte n.ºs 882 e 910, como tendo efetuado transportes de mercadorias com destino à Impugnante, com pesagem significativamente superior ao seu limite de capacidade (19.486 kg e 15.970 kg);
o Em 23/01/2007 e 21/02/2007 estão registados carregamentos com destino à Impugnante, efetuados em horas aproximadas de pesos quando poderiam ter sido transportados de uma só vez;
o Nos dias 21 e 29 de março de 2007, há registos da realização de três transportes no mesmo dia com destino à Impugnante, sem que F. disponha de pessoal para efetuar o transporte.
 entre abril e dezembro de 2007, saldos mensais de valor significativo em dívida ao emitente e faturas datadas de junho que apenas tiveram o seu pagamento efetuado em setembro, cerca de 3 meses depois, o que contraria a prática habitual neste setor;
 o único procedimento que a Impugnante adotou, a nível de controlo interno, foi a emissão de tickets de pesagem, inexistindo documentos de registo de entrada das mercadorias em armazém;
 inexistem registos de testes de pureza dos metais para posterior afinação/transformação com vista à venda dos metais a clientes.
Finalmente, apurou a Administração Tributária que o custo das vendas representa 94% do total dos custos incorridos pela Impugnante no exercício de 2007, sendo as vendas de €4.917.602,70 e as compras de €4.497.442,81 e que as compras a emitente F. representam 50% do total das compras efetuadas pela Impugnante. “
Como se afirmou no acórdão deste TCAN de 7.06.2018, no processo 1740/12.7BEPRT, que a aqui relatora subscreveu como 2ª adjunta, em que as partes foram as mesmas, tal como o relatório de inspecção que sustentou as liquidações impugnadas, neste de IRC, e no que nos ocupa de IVA, ambas referentes ao ano de 2007, sobre a questão em apreciação “(…) Ora, ainda que se pudesse considerar que, do ponto de vista formal, alguns destes indícios, analisados individualmente, não permitiam concluir pelo bem fundado juízo da administração tributária quanto à ocorrência da simulação dos serviços titulados por aquelas facturas, certo é que, concatenando os elementos recolhidos ao nível do emitente das facturas com os apurados na esfera da Impugnante, e analisando-os à luz das regras da experiência comum e da lógica, afigura-se-nos que os mesmos indiciam fortemente que as operações tituladas pelas facturas aqui em causa não são verdadeiras.
Os indícios recolhidos revelam objectivamente que o emitente das facturas F. não tinha capacidade para o fornecimento das quantidades declaradas nas facturas, como não tinha capacidade para o fornecimento de metais sob a forma de lingotes, que representava 87,01% do volume total dos negócios entre a Impugnante e aquele fornecedor (no valor total de € 2.368.344,50), e que exige que antes haja um processo de fundição.
Na verdade, e para além dos demais indícios, atendendo aos esclarecimentos prestados pela Impugnante de que as mercadorias eram sempre transportadas pela empresa vendedora e davam sempre entrada nas suas instalações, e uma vez que todas as guias de transporte e facturas indicam como local de carga as instalações do fornecedor sitas em Albergaria, ficou claramente apurado pela administração tributária que esse local não tinha condições em termos de acessibilidade para permitir cargas ou descargas a partir das viaturas pesadas de mercadorias, nem tinha quaisquer equipamentos, recursos humanos ou estrutura que lhe permitisse a transformação de sucata e de desperdícios de metais em lingotes; por outro lado, atenta a especificidade associada aos lingotes, em especial a necessidade de manufacturação, também apurou que não existe um único fornecedor nesse segmento que permita credibilizar as aquisições declaradas pelo F. e, consequentemente, as vendas deste para a Impugnante.
Deste modo, (…), é de concluir que os elementos neste referidos já permitem concluir pela existência de indícios objectivos de que as facturas emitidas por este fornecedor não titulam transacções reais.(…)”.
Acrescentaríamos apenas que, também, em face das características do mercado onde a Recorrente se encontra inserida comercialmente, que os factos apurados pela AT permitem concluir, com segurança, pela existência de indícios objectivos de que as facturas emitidas por este fornecedor não titulam transacções reais.
E continua o acordão que vimos de citar: “E perante este quadro indiciário que suporta a conclusão da administração tributária de que as facturas em causa não se reportam a operações verdadeiras (cumprindo, assim, o ónus da prova que, neste ponto, lhe competia), a Recorrente já não beneficiava da presunção de verdade (art. 75.º, n.º 2, da LGT), pelo que já não se poderia limitar, como fez, a remeter para os dados da sua contabilidade, impondo-se-lhe que fizesse a prova da veracidade das operações tituladas por tais facturas, demonstrando a efectiva realização dos custos contabilizados e cujo direito reclama (cf. art. 74.º da LGT).(…)”
Efectivamente, importava que a Recorrente tivesse efectuado uma detalhada comprovação da materialidade das operações em causa, pelo que se impunha que as testemunhas atestassem a realidade daqueles concretos fornecimentos, situando-os espacial e temporalmente, bem como que identificasse os respectivos intervenientes - recursos humanos e técnicos envolvidos, os bens em causa e as respectivas quantidades, etc. O que não se verificou. Tal como vertido na sentença, os depoimentos prestados resultaram em afirmações genéricas sem a necessária concretização, de forma a poder contrariar os factos índice apurados no âmbito do procedimento inspectivo. “(…), como é manifesto, se não há limitações quanto à admissibilidade de qualquer meio de prova (cf. art. 115.º, n.º 1, do CPPT, que corresponde ao art. 134.º do CPT), deve exigir-se grande rigor na prova da materialidade e/ou da dimensão das operações referidas em facturas relativamente às quais a AT recolheu indícios sérios e credíveis de que não lhe correspondem operações reais ou de que a dimensão das operações aí referidas (com repercussão no respectivo valor) não corresponde à realidade.” - cfr. Acórdão do TCA Norte de 11.03.2010, processo 02794/0.
Uma última nota para a prova documental junta aos autos. Também continuamos a concordar com a motivação efectuada pela sentença quando conclui pela manifesta insuficiência. Como ali se referiu” para além dos documentos que haviam sido objeto de análise no relatório de inspeção tributária a Impugnante não apresenta qualquer outra prova documental da realização das transações em causa.
Com efeito, os documentos juntos com a petição inicial sob o n.º 3 – faturas, guias de remessa, recibos e tickets de pesagem – que dão suporte, do ponto de vista formal, aos custos contabilisticamente registados, não são factos, ou seja, por si só, não comprovam a materialidade das operações. Trata-se, pois, de documentos particulares cuja força probatória se circunscreve às declarações - de ciência ou de vontade - que deles constam como feitas pelo subscritor, não fazendo prova plena dos factos neles narrados como praticados pelo seu autor ou como objeto da sua perceção direta. Assim, a prova que poderá resultar de tais documentos limita-se à existência das declarações neles contidas, ou seja, que foram emitidas faturas de fornecimento de mercadoria à Impugnante e guias de remessa da mercadoria faturada à Impugnante e não que a mercadoria constante das faturas juntas tenha sido efetivamente adquirida e entregue e que o tenha sido por aquele concreto emitente.
De igual modo, e sendo certo que os 61 cheques juntos sob o documento n.º 4 foram emitidos à ordem de F., verificou-se que na sua grande maioria (à exceção de 6) os cheques em questão foram por pagos/levantados ao balcão em numerário (cfr. o item 7) dos factos provados), apesar de se tratarem de quantias significativas e sem que tal procedimento se mostre justificado, não permitindo demonstrar quem foi o verdadeiro beneficiário dos mesmos.
Aliás, foram precisamente as incongruências detetadas em tais documentos [v.g. a (in)capacidade de carga das viaturas mencionadas nos documentos de transporte em face das mercadorias alegadamente transportadas e da circunstância de as instalações do emitente não terem condições de acessibilidade para permitir efetuar cargas e descargas a partir de viaturas pesadas de mercadorias, a realização de vários transportes de mercadorias no mesmo dia e em horas aproximadas, com destino à Impugnante quando o emitente não possuía no seu quadro de pessoal qualquer motorista no período em causa e a coincidência entre os valores constantes dos tickets de pesagem emitidos pela Impugnante na alegada descarga e os valores mencionados nas faturas/guias de remessa, quando o emitente não possuía báscula para pesagem das mercadorias à saída das suas instalações], em conjunto com outros elementos, que determinaram a não aceitação da dedutibilidade do IVA mencionado nas faturas.(…)”
Não tendo a Impugnante, agora Recorrente cumprido o ónus probatório que sobre si impendia, nenhuma censura pode ser assacada à a sentença recorrida.
Soçobram, assim as conclusões de recurso, neste segmento.

II.3.2 A Recorrente finaliza a sua divergência com a sentença recorrida alegando que, uma vez que a AT não colocou em causa a actividade da impugnante, sempre o artigo 20º do CIVA conferiria o direito à dedução do IVA sobre os bens adquiridos na medida em que os bens - sucata - são pertinentes aos fins próprios da actividade da Recorrente e foram destinados a serem utilizados no âmbito de operações tributadas. [Conclusões XX a XXI]
Desde já se sublinhe que o Recorrente não alegou na petição inicial tal fundamento. E assim, as questões suscitadas na p.i. foram configuradas, enquadradas, e consequentemente, apreciadas e decididas pelo Tribunal recorrido. Pelo que a questão agora suscitada é uma questão nova.
Como decorre do artigo 627º, nº 1 do CPC, anterior 676º, os recursos jurisdicionais são um meio processual específico de impugnação de decisões judiciais e como tal, o tribunal de recurso está impedido de apreciar questões novas, com excepção daquelas que sejam de conhecimento oficioso ou suscitadas pela própria decisão recorrida sob pena de se produzirem decisões em primeiro grau de jurisdição sobre matérias não conhecidas pelas decisões recorridas - assim, Jorge Lopes de Sousa, CPPT, anotado e comentado, Volume II, 2007, pág. 786.
Os recursos são meios para obter o reexame das questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores, e não a criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal e que se recorre – neste preciso sentido vejam-se Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, pag. 147, Cardona Ferreira, Guia dos Recursos em Processo Civil, pag. 187, Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, págs.80-81.
Também a jurisprudência é pacífica nesse sentido. Vejam-se, entre outros, os seguintes Acórdãos: do Supremo Tribunal Administrativo, de 13.03.2013, proc nº 0836/12; de 28.11.2012, recurso 598/12, de 27.06.2012, recurso 218/12, de 25.01.2012, recurso 12/12, de 23.02.2012, recurso 1153/11, de 11.05.2011, recurso 4/11, de 1.07.2009, recurso 590/09, 04.12.2008, rec. 840/08, de 30.10.08, rec.112/07, de 2.06.2004, recurso 47978 (Pleno), de 2911.1995, recurso 19369 e do Supremo Tribunal de Justiça, recurso 259/06.0TBMAC.E1.S1, todos in www.dgsi.pt.)

Razão pela qual, neste segmento, não se tratando de questão oficiosa ou suscitada pela própria decisão recorrida, não se conhece do presente recurso.

III - Decisão

Termos em que, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte em negar provimento ao recurso e manter a sentença recorrida na ordem jurídica.
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Custas pela Recorrente, em ambas as instâncias.
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Porto, 11 de Março de 2021

Cristina Travassos Bento
Maria Celeste Oliveira
Maria do Rosário Pais