Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00076/10.2BEVIS
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:02/28/2020
Tribunal:TAF de Viseu
Relator:Helena Ribeiro
Descritores:PODER DISCIPLINAR; AUTO POR FALTA DE ASSIDUIDADE; ILEGALIDADE; ILICITUDE.
Sumário:I-O poder disciplinar pertence á entidade empregadora, pelo que instaurar ou não instaurar um processo disciplinar é uma decisão que compete ao superior hierárquico do trabalhador, não constituindo um seu direito subjetivo, antes uma situação jurídica a que se encontra sujeito se tiver cometido alguma infração funcional.

II- Não assiste ao funcionário o direito de exigir o levantamento do auto por falta de assiduidade previsto no artigo 71.º do E.D., que não tem na sua ratio uma função de proteção ou de garantia dos direitos do funcionário, antes visa assegurar o bom e regular funcionamento do serviço público.

III- Para que se verifique o pressuposto da ilicitude necessário à afirmação da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito não basta que a conduta da administração seja considerada ilegal. É necessário que a norma violada pela administração tenha inscrito no seu âmbito de proteção o direito ou interesse cuja violação o lesado invoca como causador de danos na sua esfera jurídica.

IV- O funcionário que falta 654 vezes seguidas ao trabalho sem apresentar justificação não tem o direito de reclamar nenhuma indemnização á sua entidade empregadora em consequência daquela não lhe ter levantado um auto por falta de assiduidade logo após ter dado cinco faltas seguidas injustificadas ao serviço. A assiduidade é um dever do funcionário cuja obrigação de cumprimento se lhe impõe de per si . *
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:C.L.S.R.
Recorrido 1:ESTADO PORTUGUÊS
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

I.RELATÓRIO

1.1.C.L.S.R., intentou a presente ação administrativa comum contra o ESTADO PORTUGUÊS, pedindo a condenação do Réu a pagar-lhe, a título de danos morais. a quantia de 9.000€ (nove mil euros), a título de danos patrimoniais, a quantia de 7.000€ (sete mil euros), e juros legais desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Alegou, para o efeito, em síntese, que por Acórdão “deste Tribunal, comunicado à ora A. por notificação com data de 09.01.2007, foi julgada provada e procedente a Ação Administrativa Especial n.º 1001/04.5BEVIS intentada pela ora A. contra o Ministério da Educação e anulado o despacho de 22.04.2004 proferido pelo Ex.mo Sr. Secretário de Estado da Administração Educativa que manteve a pena de inatividade, graduada em dois anos, pena que lhe foi aplicada na sequência do processo disciplinar n.º «00/07/372-2002/GAJ, tudo conforme certidão que ora se junta como documento n.º 1 e doc. n.º 2 , que se dão aqui por integralmente reproduzidos para os devidos efeitos legais. (cfr. doc.s 1 e 2)…Este acto ilícito e, consequentemente, anulado pela douta Decisão ora junta trouxe à ora A. reais e efetivos danos, tanto morais, como patrimoniais, que só com a condenação do Estado no pagamento duma indemnização condigna, poderão de alguma forma ser indemnizados (...)».
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1.2.O Réu contestou, defendendo-se por exceção e por impugnação.
Na defesa por exceção invocou a prescrição do direito do direito à indemnização e em sede de defesa por impugnação alegou, em síntese, não se verificar o pressuposto da ilicitude da atuação da Administração, por não se verificar a necessária conexão de ilicitude entre as normas consideradas violadas pelo TAF de Viseu que levaram à anulação da sanção disciplinar de inatividade graduada em dois anos, aplicada à autora no âmbito do segundo processo disciplinar que lhe foi instaurado e os danos que a mesma alega ter sofrido na sua esfera jurídica, sinalizando que ilegalidade não significa ilicitude para efeitos indemnizatórios.
Pede a absolvição do Estado dos pedidos indemnizatórios formulados pela autora.
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1.3. Por despacho de 25.02.2013 (fls. 155 do suporte físico do processo) convidou-se a Autora a aperfeiçoar a petição inicial, o que aquela fez.
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1.4. A 09.12.20014 ( fls. 256 a 259 do suporte físico do processo) proferiu-se despacho saneador que julgou improcedente a exceção da prescrição.
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1.5. Em 20.03.2015 foi proferido despacho ao abrigo do disposto no artigo 596º do CPC ( fls. 267 a 268 do suporte físico do processo).
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1.6. Foi realizada audiência final, com cumprimento dos legais formalismos.
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1.7. Em 29.03.2016 o TAF de Viseu proferiu acórdão que julgou a presente ação improcedente, a qual consta do seguinte segmento decisório:
«Com os fundamentos expostos, o Tribunal decide julgar a ação improcedente e, em consequência, absolver o Réu ESTADO PORTUGUÊS do pedido.
Custas a cargo da Autora.
Registe e notifique.»
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1.8. Inconformada com a referida decisão, a Apelada interpôs recurso que motivou, terminando com a apresentação das seguintes conclusões:

«I. A ora Recorrente intentou a presente ação para efetivação de responsabilidade civil extracontratual por atos ilícitos contra o Estado Português, por entender que o ato ilícito, consubstanciado no despacho proferido, em 22.04.2004, pelo Ex.mo Senhor Secretário de Estado da Administração Educativa, que manteve a pena de inatividade, graduada em dois anos, que lhe foi aplicada na sequência do processo disciplinar n.º 10/07/372-2002/GAJ, anulado por Acórdão proferido em 04.01.2007, no âmbito do Processo n.º 1001/04.5BEVIS, pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, lhe trouxe reais e efetivos danos, tanto morais, como patrimoniais.

II. - Pese embora esta sua posição e a prova produzida nos presentes autos, entendeu o Mmº Tribunal a quo que, no caso sub iudice, não estamos perante um ato ilícito para efeitos de responsabilidade civil extracontratual, já que do mesmo não resultou ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos da A.; deste modo, não se verificando, in casu, a ilicitude como requisito da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, julga improcedente a presente ação.

III. - Ora, com o devido respeito, não se pode concordar com este entendimento. De facto, da parte da Administração houve falhas, falhas graves, que não só fundamentaram a anulação do ato que manteve à ora Recorrente a pena de inatividade, graduada em dois anos, como, efetivamente, das mesmas resultou a ofensa de direitos e interesses legalmente protegidos. Senão vejamos.

IV. – O Tribunal dá como provado, tal como foi feito pelo Acórdão proferido pelo TAF de Viseu, em 04.01.2007, que o ato que manteve a aplicação à ora Recorrente de uma pena de inatividade, graduada em dois anos, foi anulado por vício de violação de lei, designadamente, por violação do disposto no artigo 71º do ED, bem como, por violação dos artigos 14º e 48º do mesmo diploma (cfr. alínea E) da Matéria e Facto).

V.- Como é sabido, a ora Recorrente foi alvo de dois processos disciplinares e o segundo só foi instaurado depois de 654 dias de faltas, quando, o artigo 71º do ED, impunha que o imediato superior hierárquico da ora Recorrente levantasse auto por falta de assiduidade, quando esta deixasse de comparecer ao serviço durante 5 dias seguidos ou 10 dias interpolados sem justificação.

VI. - É também facto assente que foram instaurados dois processos disciplinares, quando, nos temos dos artigos 14º e 48º do ED, existindo uma única infração continuada, a ora Recorrente devia ter sido sujeita a um único processo e a uma única pena.

VII. - Ora, se a Administração não tivesse, conscientemente, “arrastado” a situação durante 654 dias, violando de forma manifesta e irrazoável o artigo 71º do ED, e não tivesse levantado dois processos disciplinares, violando de forma manifesta e irrazoável o artigo 14º e 48º do ED, a ora Recorrente não teria sofrido os danos invocados - aceites pelo R. e ora Recorrido e dados como provados – danos estes que são, entre outros, aqueles que normas como as que foram violadas pela Administração pretendem evitar.

VIII. - As normas violadas pela Administração com o comportamento sub iudice têm, efetivamente, na sua ratio a proteção de direitos ou interesses legalmente protegidos.

IX. - De facto, o artigo 71º do ED ao impor que seja levantado auto por falta de assiduidade, quando o funcionário ou agente deixe de comparecer ao serviço durante 5 dias seguidos ou 10 dias interpolados sem justificação, visa um controlo célere da assiduidade do funcionário ou agente, uma atuação premente da Administração.

X. - E ao fixar estes prazos curtos para a atuação da Administração, o legislador teve necessariamente presente o facto de estarmos no âmbito dum processo de natureza sancionatória e onde, por isso, devem ser dadas ao arguido todas as garantias e direitos legal, constitucionalmente consagradas, tal como plasmado no artigo 32º, n.º 10 da Constituição da República Portuguesa (CRP), bem como deve respeitar-se o direito do arguido a uma justiça célere, a uma decisão em prazo razoável, tal como constitucionalmente consagrado no artigo 20º, n.º 4 da CRP.


XI. - Por outro lado, importa ter presente que toda a participação disciplinar contém, necessária e objetivamente, ainda que a nível meramente indiciário, uma ofensa à honra e consideração do participado, por se traduzir na imputação de factos suscetíveis de se subsumirem a infrações disciplinares, pelo que, também nesta norma, que impõe a atuação da Administração em prazos curtos, está também subjacente a proteção do direito à honra do arguido (artigo 70º do Código Civil)


XII. - Acresce que, também, que da violação dos artigos 14º e 48º do ED resultou a ofensa de direitos e interesses legalmente protegidos da ora Recorrente. Estas normas, ao consagrarem o princípio da unidade da infração disciplinar e da unidade do procedimento, impunham que o juízo disciplinar se reportasse à globalidade do comportamento da ora recorrente, bem como a ora Recorrente tinha que ter sido sujeita a uma só pena disciplinar o que, não tendo acontecido, ofende manifestamente os seus direitos e garantias enquanto arguida.

XIII. - Ao violar esta normas, a Administração violou também os princípios “non bis in idem” e da economia processual, com repercussões diretas na esfera jurídica da ora Recorrente.

XIV. - Acresce ainda que, o ato sub iudice foi também anulado por violação do princípio da justiça e o princípio da proporcionalidade, princípios gerais da atuação administrativa e limite do poder discricionário, cuja essência não é mais que a proteção dos direitos e interesses legalmente protegidos de todos os administrados a decisões justas e proporcionais.

XV. - Por tudo o exposto, entende-se que da atuação da Administração, em violação dos artigos 71º, 14º e 48º do ED, bem como em violação do princípio da justiça e o princípio da proporcionalidade - que por isso levaram à anulação do ato por ela proferido – resultou manifestamente a ofensa de direitos e interesses legalmente protegidos da ora Recorrente, sendo, por isso, de concluir que no caso sub iudice estamos perante um ato ilícito para efeitos de responsabilidade civil extracontratual.

XVI. - Assim sendo, como efetivamente é, encontram-se preenchidos in caso todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, deve a Recorrente ser ressarcida nos termos peticionados, aceites e confessados pelo Recorrido.

XVII. - Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo fez uma errada interpretação da factualidade sub iudice e, por isso, uma incorreta aplicação de direito – violou designadamente os artigos 2.º, n.º 1, 6º do Decreto-Lei 48.051, de 21.11.1967, o artigo 483º do CC, e o artigo 22º da CRP - pelo que deve a Decisão proferida ser consequentemente revogada com todas as consequências legais.

Assim e confiando-se no douto suprimento de Vossas Excelências,
Deve ser dado provimento ao presente recurso, com todas as consequências legais.»
ASSI
*
1.8. O Apelado contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:

«1.º A recorrente pretende que a revogação da sentença recorrida que absolveu o Réu Estado Português seja substituída por outra em sentido contrário.

2.ºPara o efeito alega que, o Estado Português, incorre em responsabilidade civil extracontratual, pelos danos patrimoniais resultantes da ilícita atuação do Ex.mo Senhor Secretario de Estado da Administração Educativa.

3.º Porém, face à matéria dada como provada nos autos, não houve qualquer ilicitude, no facto ou factos imputados a tal serviço do Réu Estado Português.

4.ºCom efeito, a violação dos preceitos jurídicos não é, por si só, fundamento bastante da responsabilidade, quer se exija a violação de direitos subjetivos, quer a violação dum dever jurídico ou funcional para com o lesado, quer ainda uma falta da administração, faz-se intervir sempre um elemento qualificador e definidor de uma relação mais íntima do indivíduo prejudicado para com a administração do que a simples legalidade e regularidade do funcionamento dos órgãos administrativos.
5.º Este conceito de ilicitude em que quanto a ilegalidades apenas se consideram relevantes aquelas de que resultem ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos, é também o que veio a ser expressamente adotado pelo novo regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas aprovado pela Lei n.°67/2007 de 31 de Dezembro.

6.º A Autora violou continuamente o seu dever de assiduidade.

7.º A Autora no exercício das suas funções estava exclusivamente ao serviço do interesse público, tinha o dever geral de assiduidade, de comparecer regular e continuamente ao serviço, porém tal não aconteceu no período identificado no acórdão.

8.º A ilegalidade do despacho proferido pelo Ex.mo Sr. Secretario de Estado da Administração Educativa que manteve a pena de inatividade, graduada em dois anos, que foi aplicada à Autora na sequência do processo disciplinar n.º l0/07/372-2002/GAJ não constitui um ilícito para efeitos de responsabilidade civil extracontratual relativamente à Autora porque efetivamente a Autora incumpriu o seu dever de assiduidade.

9.ºNenhuma falta ou omissão houve dos serviços do Réu Estado Português que justifique a responsabilidade do Réu Estado Português e a sua subsequente obrigação de indemnizar a Autora.

10.º Não sendo pois ilícita a conduta do Ex.mo Sr. Secretário de Estado da Administração Educativa.

11.ºAtenta a matéria factual dada por provada concluiu a sentença recorrida e bem, que, no caso concreto, não se verificava os pressupostos essenciais e cumulativos de que depende a responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito que é a ilicitude do facto ou factos alegados imputados aos serviços do Réu Estado Português.

12.ºNa verdade, de acordo com a jurisprudência dos nossos tribunais superiores, a responsabilidade civil extracontratual do Estado e pessoas coletivas públicas por factos ilícitos praticados pelos seus órgãos ou agentes assenta nos pressupostos da idêntica responsabilidade prevista na lei civil, com as especialidades resultantes das normas próprias relativas à responsabilidade dos entes públicos.

13.º São esses pressupostos: - O facto omissivo ou ativo, a ilicitude. a culpa, o dano, lesão ou prejuízo de ordem patrimonial ou não patrimonial, produzido na esfera jurídica de terceiros e, o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
14.º A verificação de tais pressupostos é cumulativa, pelo que, a não verificação de qualquer um deles faz improceder a ação.

15.ºDe entre esses pressupostos, desde logo concluímos que não se verificam, tal como a sentença muito claramente o diz: -a ilicitude do facto.

16.ºAssim, não se verificando tal requisito, atento o carácter cumulativo dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, tal conduz-nos, inevitavelmente, ao afastamento da possibilidade de atribuição da pretendida indemnização e, por conseguinte, à improcedência da ação.

17.ºPor conseguinte, ao absolver o Estado Português, a sentença recorrida não violou os artigos 2.º, n.º l, 6 do D. Lei 42051 de 21/11/1 967, o artigo 483.º do CC e o artigo 22.º da CRP.

18.ºParece-nos, pois que, no caso concreto, bem andou a Meritíssima Juíza ao considerar não se verificarem os pressupostos essenciais à responsabilidade civil extracontratual e, em consequência, julgou improcedente por não provada a ação para efetivação da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, dela absolvendo o Estado Português.
Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se a douta sentença recorrida que absolveu o Réu Estado Português.»
*
1.9. Prescindindo-se dos vistos legais mas com envio prévio do projeto de acórdão aos juízes desembargadores adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
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II.DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO.
2.1. Conforme jurisprudência firmada, o objeto de recurso é delimitado em função do teor das conclusões do Recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso –cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) e artigos 608.º, n.º2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do NCPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPTA – e, por força do regime do artigo 149.º do CPTA, o tribunal ad quem no âmbito dos recursos de apelação não se queda por cassar a sentença recorrida, conquanto ainda que declare nula a sentença decide “sempre o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito”.
2.2. Nos presentes autos, a questão que a este tribunal cumpre ajuizar, cifra-se em saber se a decisão recorrida ao julgar improcedente o pedido de indemnização formulado pela autora/Apelante, por considerar não verificado o pressuposto da ilicitude, absolvendo o Estado português do pedido, viola o disposto nos artigos 2.º, n.º l, 6.º do D. Lei 42051 de 21/11/1 967, o artigo 483.º do CC e o artigo 22.º da CRP.
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III. FUNDAMENTAÇÃO
III.A DE FACTO
3.1. O Tribunal de 1.ª instância considerou provados os seguintes factos (não objeto de sindicância por parte da Apelante, que limitou o seu recurso à interpretação e aplicação do direito, como resulta nomeadamente da falta de qualquer referência - e cumprimento - ao ónus de impugnação previsto no art. 640.º, nº 1 do CPC):

«A) Em 22/04/2004, foi proferido pelo Exm.º Senhor Secretário de Estado da Administração Executiva um despacho que manteve a pena de inatividade, graduada em dois anos, que foi aplicada à A. na sequência do processo disciplinar nº 10/07/372-2002/GAJ (cf. documentos nºs 1 e 2 juntos com a p.i.).

B) Em 13/08/2004, a A. deu entrada no TAF de Viseu de uma ação administrativa especial, para anulação do despacho referido na alínea anterior, contra o Ministério da Educação (cf. fls. 1 e 76 dos autos 1001/04.5BEVIS).

C) Em 4/01/2007, foi proferido acórdão no processo identificado na alínea anterior, que dou aqui por integralmente reproduzido, o qual foi notificado à A. em 12/01/2007 (cf. certidão de fls. 259/275 dos autos; no artigo 1º da p.i. só é
referido que a notificação tem data de 9/01/2007).

D) Em 12/02/2007, transitou em julgado o acórdão referido na alínea anterior (cf. certidão de fls. 259/275 dos autos).
E) O ato referido em A) foi anulado por vício de violação de lei, destacando-se do Acórdão proferido e referido em C) o seguinte trecho «…Ao instaurar o segundo processo disciplinar quando a A. já contava 654 dias de faltas injustificadas, foi violado o disposto no artigo 71º do ED. Assim, desde que o funcionário ou agente dê mais de 5 faltas seguidas ou 10 interpoladas, e não as justifique, será processado auto por falta de assiduidade, constituindo um procedimento especial. (…), o acto impugnado violou os artigos 14º e 48º do Estatuto Disciplinar. (…) …».

F) A A. sofreu os danos peticionados na ação (cfr. confissão do R.)»
***

III.DO DIREITO.
3.2. Do Erro de Julgamento de Direto por Violação do Disposto nos artigos 2.º, n.º l, 6.º do D. Lei 42051 de 21/11/1 967, o artigo 483.º do CC e o artigo 22.º da CRP.
3.2.1. A autora/Apelante intentou a presente ação com vista a ser indemnizada pelos danos que alegou ter sofrido, com fundamento em responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, por a Administração ter arrastado no tempo a instauração de processo disciplinar, por falta de assiduidade, que apenas lhe foi movido após o computo de 654 dias de faltas seguidas que deu ao trabalho ( processo n.º 10/07/372-2002/GAJ), no âmbito do qual lhe foi aplicada a sanção disciplinar de inatividade graduada em dois anos, a qual, por decisão do TAF de Viseu, proferida em ação que intentou contra o Ministério da Educação e que aí correu termos sob o processo n.º 1001/04.5BEVIS, foi anulada com fundamento em violação dos artigos 71.º, 14.º e 48 do Estatuto Disciplinar e dos princípios da justiça, da igualdade e da proporcionalidade.
Mas sem razão, como entendeu o Tribunal de 1.ª instância.
Vejamos.
3.2.2. As razões que levaram o TAF de Viseu a anular o referido despacho e que constam do acórdão prolatado em 04.01.2007, foram, em síntese, as que se enunciam:
(i)«…do que fica provado resulta manifestamente que a Administração tinha conhecimento das faltas que estavam a ser dadas e deixou arrastar a situação até à decisão do primeiro processo disciplinar.
Ao instaurar o segundo processo disciplinar quando a A. já contava 654 dias de faltas injustificadas, foi violado o disposto no artigo 71.º do ED. Assim, desde que o funcionário ou agente dê mais de 5 faltas seguidas ou 10 alternadas, e não as justifique, será processado auto por falta de assiduidade, constituindo um procedimento especial»;
(ii) «Face ao princípio da unidade da infração vigente no direito disciplinar, a plúrima conduta do agente teria sempre de ser considerada globalmente, com reflexos ao nível da avaliação da culpa, o que não se verificou no caso vertente.
Termos em que deveria ter sido tomada em consideração a globalidade do comportamento da A. e sujeitá-la a uma única medida disciplinar.
Deste modo, o ato impugnado violou os artigos 14.º e 48.º do Estatuto Disciplinar»,
(iii) «A Autora alega que ao instaurar o processo disciplinar quando já contava 654 dias de faltas injustificadas, o acto impugnado é totalmente contrário aos princípios da igualdade, da justiça e da proporcionalidade.
(…) no caso vertente e pelo exposto supra, a administração não pautou a sua atuação por estes princípios.
Devendo, em consequência anular-se o ato impugnado por estar inquinado de vício de violação de lei».
3.2.3. Por outro lado, o discurso fundamentador da decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância, foi, como se pode ver pela leitura da sentença recorrida, que ora se transcreve, o seguinte:
««(…) Este conceito de ilicitude, em que, quanto a ilegalidades, apenas se consideram relevantes aquelas de que resultem ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos, é também o que veio a ser expressamente adoptado pelo novo Regime da Responsabilidade Civil extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, em que cujo art.9.º se refere que «consideram-se ilícitas as acções ou omissões dos titulares de órgãos, funcionários e agentes que violem disposições ou princípios constitucionais, legais ou regulamentares ou infrinjam regras de ordem técnica ou deveres objectivos de cuidado e de que resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos» e que «também existe ilicitude quando a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos resulte do funcionamento anormal do serviço, segundo o disposto no n.º 3 do artigo 7.º».
É este o entendimento que também aqui se adopta, pelo que é com base nele que há que apreciar o caso dos autos…».
No caso sub judice e acolhendo a jurisprudência citada, cumpre apurar se se está perante um ato ilícito para efeitos de responsabilidade civil extracontratual, se do mesmo resultou ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos da A.
Vejamos.
O segundo processo disciplinar foi instaurado à A. após 654 dias de faltas, conhecidas da Escola, porque aguardou a decisão do primeiro processo disciplinar.
O disposto no artigo 71º, nº 1, do ED [“Sempre que um funcionário ou agente deixe de comparecer ao serviço durante 5 dias seguidos ou 10 dias interpolados sem justificação, será pelo imediato superior hierárquico levantado auto por falta de assiduidade.”] impunha que o imediato superior hierárquico da A. levantasse auto por falta de assiduidade, quando a A. deixasse de comparecer ao serviço durante 5 dias seguidos ou 10 dias interpolados sem justificação.
Ora, não tendo sido levantado auto ou autos, dado o número de faltas dadas, nos termos de tal preceito, não se vislumbra que daí resultasse a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos da A., antes pelo contrário, continuando a A. a faltar ao serviço ininterruptamente, a conduta da Escola só a beneficiou, porque o estatuído no artigo 72º, nº 3, do ED, em última análise, poderia ter conduzido à sua demissão se a infração disciplinar inviabilizasse, na altura, a relação funcional.
Já o estatuído no artigo 14º [«1 - Sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 27.º, não pode aplicar-se ao mesmo funcionário ou agente mais de uma pena disciplinar por cada infracção ou pelas infracções acumuladas que sejam apreciadas num só processo. 2 - O disposto no número anterior é de observar mesmo no caso de infracções apreciadas em mais de um processo, quando apensados, nos termos do artigo 48.º.»] e no artigo 48º do ED [«Para todas as infracções cometidas por um funcionário ou agente será organizado um só processo, mas, tendo-se instaurado diversos, serão apensados ao da infracção mais grave e, no caso de a gravidade ser a mesma, àquele que primeiro tiver sido instaurado.»] tinham por finalidade a organização de um único processo disciplinar, para efeito de aplicação de uma única pena. Tais preceitos visavam a apreciação global do comportamento da A., todavia, a Administração esperou pela conclusão e aplicação de uma pena disciplinar no primeiro processo instaurado e só depois instaurou à A. o segundo processo disciplinar, por falta de assiduidade, que culminou com a manutenção da pena de inatividade, graduada em dois anos.
No primeiro processo disciplinar, onde apenas constavam 42 dias consecutivos de faltas injustificadas, foi aplicada à A. uma pena de inatividade, graduada por um ano.
No segundo processo disciplinar, cuja decisão foi anulada pelo tribunal, constavam 654 dias de faltas injustificadas, foi aplicada a mesma pena de inatividade, graduada em dois anos.
Apesar da Administração não ter apreciado globalmente a conduta da A. para efeitos disciplinares, observando as regras procedimentais consagradas no ED, dessa atuação não se vislumbra que tenha resultado uma ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos da A, pois tendo a A. efetivamente incumprido o seu dever de assiduidade, caso a apreciação do seu comportamento tivesse sido globalmente apreciada, fica-se sem se saber qual seria a pena disciplinar aplicada à A. nessas circunstâncias.
O Decreto-Lei nº 24/84, de 16/01 [revogado pelo artigo 5º da Lei nº 58/2008, de 9/09, a partir de 1 de janeiro de 2009] estabelecia o regime jurídico da responsabilidade disciplinar aplicável aos funcionários e agentes da administração central, regional e local, pelas infrações que cometessem (artigos 1º, nº 1 e 2º do ED).
Conforme resulta do Acórdão em questão, a A. violou continuamente o seu dever de assiduidade.
A A., no exercício das suas funções, estava exclusivamente ao serviço do interesse público (artigo 3º, nº 2, do ED), tinha o dever geral de assiduidade (artigo 4º, alínea g), do ED), de comparecer regular e continuamente ao serviço (artigo 4º, nº 11, do ED), porém, tal não aconteceu no período identificado no Acórdão.
Pelo exposto, a ilegalidade do despacho proferido pelo Exmº Senhor Secretário de Estado da Administração Executiva, que manteve a pena de inatividade, graduada em dois anos, que foi aplicada à A. na sequência do processo disciplinar nº 10/07/372-2002/GAJ, não constitui um ilícito para efeitos de responsabilidade civil extracontratual relativamente à A., porque efetivamente a A. incumpriu o seu dever de assiduidade.
Por conseguinte, tem-se por não verificada, in casu, a ilicitude como requisito da responsabilidade extracontratual do Estado relativamente à A..
Em conclusão, sendo os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas de verificação cumulativa, não existindo ilicitude, improcede o pedido.»
3.2.4. A Apelante não se conforma com a decisão recorrida que considera hostil aos seus interesses, por não lhe reconhecer o direito á indemnização peticionada.
Entende que a sentença recorrida, ao pôr o enfoque apenas no incumprimento do dever de assiduidade, descontextualiza e desvirtua a verdadeira realidade dos factos, qual seja, o grave acidente sofrido pela sua filha, que ainda hoje, praticamente 16 anos depois, lhe deixou sequelas físicas e psíquicas irreparáveis, tendo sido a única causa do não cumprimento do dever geral de assiduidade da sua parte, obrigando-a a prestar cuidados permanentes à sua filha e, assim, a afastar-se temporariamente das suas funções de docente.
Todavia, independentemente das faltas que deu ao serviço e da razão porque as deu, sustenta que houve falhas graves da Administração que fundamentaram a anulação da decisão disciplinar que lhe aplicou a pena de inatividade pelo período de dois anos, de que resultou a ofensa de direitos e interesses legalmente protegidos de que é titular.
Nessa sequência, entende que não teria sofrido os danos que foram aceites pelo Réu e, por isso, dados como provados, se a Administração não tivesse conscientemente “arrastado” a situação durante 654 dias, violando de forma manifesta e irrazoável o artigo 71.º do Estatuto Disciplinar (ED), e se não tivesse levantado dois processos disciplinares, violando de forma manifesta e irrazoável os artigos 14.º e 48.º do ED.
É que, de contrário, a Apelante:
(i) tinha tomado atempadamente consciência da situação em causa, justificado as suas faltas e tinha-se apresentado ao serviço, tal como fez logo que foi confrontada com o segundo processo disciplinar;
(ii) ao retomar o trabalho, tinha voltado a auferir o seu salário;
(iii) não tinha sido confrontada com um segundo processo disciplinar na altura em que estava a ver concluído o primeiro, já por si penoso e doloroso, onde era novamente arguida;
(iv) não tinha sido sujeita ao segundo processo disciplinar, a uma nova acusação, a uma nova instrução, à apresentação de nova defesa, a apresentar-se na Escola por mais vezes, não como docente, mas para ser ouvida como arguida, a ver a sua imagem pessoal e profissional, aos olhos de todos e publicamente, de novo, gravemente afetada, não tinha sido sujeita novamente, a um tortuoso percurso que, uma vez mais, não sabia como terminaria e quando teria o seu fim;
(v) não teria passado quatro anos de dúvidas, de indefinições, de noites mal dormidas, marcas indeléveis deixadas para sempre no seu património moral e psicológico, na sua história, nas suas recordações.
Mais sustenta que os danos sofridos são, entre outros, aqueles que as normas como as que foram violadas pela Administração pretendem evitar, que têm na sua ratio, a proteção de direitos ou interesses legalmente protegidos.
Na sua ótica, na ratio do artigo 71.º está o direito do arguido a uma justiça célere, o que não é cumprido quando só lhe é levantado processo depois de ter dado 654 dias de faltas, vendo-se confrontada com um volume de faltas que não seria o mesmo se a Escola tivesse cumprido a lei.
E diferentemente do que foi decidido pelo Tribunal a quo, entende que da violação dos artigos 14.º e 48.º do ED resultou a ofensa de direitos e interesses legalmente protegidos de que é titular, uma vez que, se aqueles dispositivos tivessem sido cumpridos, teria levado a que o juízo disciplinar se reportasse à globalidade do comportamento da Recorrente e a uma global e mais favorável avaliação da sua culpa e da gravidade da infração, para além de que, com esta atuação da Administração, foram também violadas as normas “non bis in idem”, para além dos princípios da justiça e da proporcionalidade.
Em conclusão, advoga que de tudo o que relatou, resultou a ofensa de direitos e interesses seus legalmente protegidos, estando-se perante um ato ilícito para efeitos de responsabilidade civil extracontratual, estando preenchidos os demais pressupostos, pelo que, a decisão recorrida violou os artigos 2.º, n.º1 e 6.º do D.l. 48.051, de 21.11.1967, o artigo 483.º do CC e o artigo 22.º da CRP, devendo ser revogada.
Por isso, pretende que a sentença sob recurso seja revogada e substituída por outra que reconheça o direito indemnizatório que peticiona.
*
3.2.5. Considerando que de acordo com o princípio geral da aplicação da lei no tempo (tempus regit actum), segundo o qual a lei só dispõe para o futuro (art.º 2º da Constituição da República Portuguesa e art.º 12º do Código Civil), a lei reguladora do regime da responsabilidade civil por atos de gestão púbica é a que vigorar à data em que tiver ocorrido o facto gerador de responsabilidade, à presente situação, aplica-se o regime da responsabilidade civil do Estado e demais pessoas coletivas no domínio dos atos de gestão pública, previsto no Decreto-Lei n.º 48.051, de 21.11.1967.
3.2.6. Prescreve o artigo 2.º do D.L. 48.051 que “O Estado e demais pessoas coletivas públicas, respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas aos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de atos ilícitos culposamente praticados pelos respetivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício”.
Este regime, entretanto alterado pela Lei n.º 67/2007, correspondia, em traços gerais, ao conceito civilístico de responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, consagrado no artigo 483.º, n.º1 do Código Civil. Cfr. Ac. do STA de 27.01.1987, in Ac. Dout. 311, 1384;
São seus pressupostos: a) o facto, comportamento ativo ou omissivo voluntário; b) a ilicitude, traduzida na ofensa de direitos de terceiros ou disposições legais destinadas a proteger interesses alheios; c) a culpa, nexo de imputação ético-jurídica do facto ao agente ou juízo de censura pela falta de diligência exigida a um homem médio ou a um funcionário ou agente típico; d) a existência de um dano, i.e., lesão de ordem patrimonial ou moral, esta quando relevante; e) o nexo de causalidade entre a conduta e o dano, segundo a teoria da causalidade adequada.
Estes pressupostos da responsabilidade civil, mantêm-se, com algumas alterações no Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, regulado pela Lei n.º 67/2007.
3.2.6. No âmbito deste instituto, é particularmente relevante atender ao que prescreve o artigo 6.º do mesmo diploma que contém uma definição de ilicitude de acordo com a qual “é ilícito o ato que viole normas legais e regulamentares ou princípios gerais aplicáveis, bem como aquele que viole as regras de ordem técnica e de prudência comum”.
O conceito de ilicitude considerado no referido artigo 6.º é mais amplo que o conceito de ilicitude consagrado na lei civil. Cfr. Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, 10º ed., vol. II, p. 1125; ac. Supremo Tribunal Administrativo de 10.05.1987, in Ac. Dout. 310, p. 1243 e segs.
Pese embora a literalidade deste preceito afirme a ideia de que «onde haja um acto ilegal aí mora, também, a ilicitude», a verdade é que assim não é, como aliás, tem vindo a ser considerado quer por avalizada doutrina, quer pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, que reiteradamente vêm afirmando que as noções de ilegalidade e de ilicitude não se confundem.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo que abandonou a interpretação do citado artigo 6.º no sentido da equiparação entre os conceitos de ilegalidade e de ilicitude, não é recente e em função dela verifica-se que o STA passou a acolher um conceito de ilicitude que aproxima a responsabilidade do Estado e demais entidades públicas da responsabilidade civilística, exigindo que a ilegalidade, para se afirmar o pressuposto da ilicitude para efeitos indemnizatórios, tenha de se traduzir na violação de direitos subjetivos do lesado ou, pelo menos, de interesses cuja proteção a norma violada se destina a proteger.
Importa notar que esta orientação já era afirmada pela melhor doutrina, de modo que, que podemos concluir que esta jurisprudência do Colendo STA seguiu a orientação da doutrina que há muito vinha advertindo não bastar a verificação de uma qualquer ilegalidade para que se afirme a ilicitude. vide J. Gomes Canotilho, in “ O problema da Responsabilidade Civil do Estado por Atos Lícitos”, Coimbra 1974, pág. 74 e segts e RLJ, ano 125, pág. 83 e segts; Rui Medeiros, in Ensaios Sobre Responsabilidade Civil do Estadi por Atos Legislativos, pág. 165 a 167;
A este respeito, escreve o professor GOMES CANOTILHO In ob. cit., pag. 74 e seguintes., que, embora reconhecendo que «no nosso direito positivo, facilmente se constata que o ilícito definido no artigo 6º do DL nº48.051 (…) é mais amplo que o ilícito civil definido no artigo 483º do Código Civil» não se deverá adotar uma «completa equiparação da ilegalidade à ilicitude», antes se devendo exigir uma «relação mais íntima do indivíduo lesado para com a administração do que a simples legalidade e regularidade do funcionamento dos órgãos administrativos» . Segundo este ilustre Professor, «a violação dos preceitos jurídicos não é, por si só, fundamento bastante da responsabilidade. Quer se exija a violação de direitos subjetivos, quer a violação de um dever jurídico ou funcional para com o lesado, quer ainda uma falta da Administração, faz-se intervir sempre um elemento qualificador e definidor de uma relação mais íntima do indivíduo prejudicado com a Administração do que a simples legalidade e regularidade do funcionamento dos órgãos administrativos».
Conforme se dá nota no referido Ac. do STA, de 07.11.2019, “esta «posição» é também defendida por outros autores, nomeadamente Margarida Cortez, e foi seguida em Pareceres do Conselho Consultivo da PGR - nº46/80 e nº183/81, in BMJ nº306 e nº316 - e sufragada por este STA, desde logo, e entre outros, nos arestos de «05.03.98», Rº30.840, e de «09.11.2000», Rº46.441.
São duas as «razões» fundamentais que sustentam esta tese: - por um lado, o entendimento de que - para efeitos indemnizatórios - nem toda a ilegalidade implica ilicitude, designadamente há ilegalidades veniais - como o vício de forma e a incompetência rationae personae - que não abrem direito a indemnização; - por outro lado, funda-se no princípio - presente designadamente na «1ª parte do nº1 do artigo 2º do DL nº48.051» - de que «os actos inquinados por vício de forma raramente poderiam ofender direitos particulares e, em princípio também não ofenderiam interesses protegidos por disposições legais destinadas a proteger tais interesses, já que as normas prescritivas de formas, em direito administrativo, raramente visariam proteger directamente interesses económicos dos particulares, muito menos visariam fazê-lo através da atribuição de uma indemnização».
Todavia, o Tribunal Constitucional já advertiu, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, para o perigo de uma interpretação demasiado restritiva do artigo 2º, nº1º, do DL nº48.051, ao decidir «julgar inconstitucional, por violação do princípio da responsabilidade extracontratual do Estado - consagrado no artigo 22º da CRP - a norma constante do artigo 2º, nº1, do DL 48.051, de 21.11.1967, interpretada no sentido de que um acto administrativo, anulado por falta de fundamentação, é insusceptível, absolutamente e em qualquer caso, de ser considerado um acto ilícito, para efeito de poder fazer incorrer o Estado em responsabilidade civil extracontratual por acto ilícito» [AC 154/2007 de 02.03.2007, Rº65/02].
E fê-lo, após ter relacionado a norma em causa - artigo 2º, nº1, do DL nº48.051 - com outras normas de direito ordinário - tendo em conta, apenas, o «direito vigente até à data do acórdão aí recorrido» [09.05.1995] - respeitantes a «determinadas consequências da anulação de actos administrativos com base, nomeadamente, em falta de fundamentação», em particular com determinadas regras relativas à execução, ou inexecução, da sentença anulatória, tendo concluído que a norma em causa - artigo 2º, nº1, do DL nº48.051 -, se interpretada no sentido de que um acto administrativo anulado por falta de fundamentação é insusceptível, absolutamente e em qualquer caso, de fazer incorrer o Estado em responsabilidade civil extracontratual por acto ilícito, levará - além do mais - a que «fique sem qualquer consequência uma eventual recusa ilegítima, por parte da Administração, da execução da sentença anulatória […]», o que não permite «cumprir a principal função do instituto da responsabilidade civil - a função reparadora - que especialmente garante aos particulares o ressarcir de danos causados por actos praticados pelos titulares dos órgãos, funcionários e agentes do Estado e das entidades públicas”.
A propósito desta questão, e com bastante interesse veja-se o Ac. do STA, de 23.10.2008, proferido no processo n.º 06665/08 no qual se sumariou a seguintes jurisprudência: « I - A administração não incorre automaticamente em responsabilidade civil, cada vez que pratica um acto administrativo ilegal.
II - Não é qualquer ilegalidade que determina o surgimento de um acto ilícito gerador de responsabilidade da Administração, como resulta da conjugação do art.º 6 do DL 48 051, de 21.11.67 com os art.ºs 2 e 3 do mesmo diploma.

III - Para haver ilicitude responsabilizante é necessário que a Administração tenha violado uma norma que proteja o direito ou interesse que o particular pretende ver satisfeito.
IV - À ilicitude interessa, pois, o conteúdo das normas violadas.
V - Só a violação de normas substantivas, que conformam o conteúdo dos actos administrativos, já que são elas que fixam a disciplina dos interesses público e privado, é, em princípio, geradora de ilicitude responsabilizante.
VI - Já não a violação de normas instrumentais, que não incidem directamente sobre o conteúdo dos actos administrativos, antes regulam aspectos organizatórios, funcionais e formais do exercício do poder”.
Seguindo esta orientação jurisprudencial do STA, é pois necessário que a norma violada revele a intenção normativa de proteção do interesse material do particular, para que se afirme a ilicitude como pressuposto necessário da responsabilidade civil, não bastando uma proteção meramente reflexa ou ocasional decorrente da norma violada. É necessário, pois, que se verifique a denominada “ conexão de ilicitude” entre as normas e/ou princípios violados e a posição jurídica protegida do particular, o que tem de ser visto caso a caso. Cfr. Acs. do STA de 08.05.1997, processo n.º 29943; de 14.03.2001, processo 046175; de 24.03.2004, processo 01690/02; de 14.02.08, processo 0749/7; de 14.07.08, processo 970/07; de 28.11.07, processo 0808/07; de 07.11.2019, processo 01457/04.6BEVIS
Trata-se, de também no domínio da responsabilidade civil extracontratual por fatos ilícitos decorrente de atos de gestão pública, apelar à teoria civilista do fim protegido pela norma, de que são ilustres arautos Schmidt e Larenz. Esta teoria coloca o acento tónico “na conexão de ilicitude, que falha quando o dano se produziu num circulo ou zona de interesses situados fora do horizonte de responsabilização da norma, donde decorre que para se verificar a responsabilidade civil é necessário que o interesse atingido se situe “na zona substantiva e não meramente adjetiva ou instrumental, do conjunto de situações jurídicas do administrado legalmente merecedoras de tutela”.
Em conclusão, como se refere no douto Ac. do STA, de 08.05.1997, proferido no Rec. 02994, de que foi relator o senhor Conselheiro Vitor Gomes “A violação de preceitos jurídicos por um determinado ato administrativo não é, por si só, fundamento bastante de responsabilidade pelos efeitos produzidos por esse ato. Embora qualquer vício determinante de invalidade do ato administrativo caia no conceito amplo de ilicitude que nos é dado pelo artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 48.051, é necessário que intercorra um nexo de causalidade entre a especifica ilegalidade cometida e a produção dos danos que, em concreto, o lesado quer ver ressarcidos. A violação das regras de produção formal das decisões administrativas não é abstratamente idónea para, só por si, atingir a situação jurídica material de quem está ou entra, por virtude desse ato, em relação com a administração”.
3.2.7. Na situação em juízo, transpondo estas orientações doutrinais e jurisprudenciais, em que nos revemos, para a decisão que temos em mãos, temos de concluir que a ilegalidade da decisão disciplinar que determinou a sua anulação por acórdão do TAF de Viseu não é de molde a preencher o conceito de ilicitude que é necessário como pressuposto sem o qual não se pode dar como verificada a pretendida condenação do Estado no pedido indemnizatório formulado pela Autora com fundamento em responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, tudo conforme melhor veremos.
3.2.8. Antes de mais, importa ter bem presente que o poder disciplinar pertence á entidade empregadora e o mesmo traduz-se na faculdade de o superior hierárquico punir o subalterno, aplicando as sanções previstas na lei para as infrações funcionais cometidas pelo trabalhador ao seu serviço.
A respeito do poder disciplinar, veja-se Freitas do Amaral para quem o poder disciplinar era considerado como um poder público de autoridade, conferido por lei a uma pessoa coletiva pública, com vista à aplicação de sanções não penais a outros sujeitos de direito, públicos ou privados, através da prática de um ato administrativo. Cfr. Diogo Freitas do Amaral, « O poder sancionatório da Administração Pública», in Estudos Comemorativos dos 10 anos da Faculdade de Direito da Universidade nova de Lisboa, Vol. I, Coimbra, 2008, p.216. Instaurar ou não instaurar um processo disciplinar é uma decisão que compete ao superior hierárquico do trabalhador. Não constitui um direito subjetivo do trabalhador, antes uma situação jurídica a que se encontra sujeito se tiver cometido alguma infração funcional.
Assim, conforme claramente se enuncia no acórdão deste TCAN, de 17.04.2015, processo n.º 02792/10.0BEPRT: “O exercício do poder disciplinar, nas mais diversas associações, grupos ou instituições que integram a sociedade, tem como finalidade assegurar a coesão do grupo, o seu prestígio, a confiança, de forma a potenciar a realização dos fins que cada associação visa prosseguir.
Este exercício, uma vez que é inerente ao funcionamento do próprio grupo, será exercido segundo critérios de oportunidade e / ou conveniência por parte do órgão disciplinador, dado que nem todas as eventuais infrações, ou violação das regras de convivência entre os vários membros do grupo, podem colocar em causa a sua coesão, o seu prestígio, ou seja, nem todas as eventuais infrações podem ter relevância disciplinar.
Estes critérios de oportunidade e /ou conveniência têm que naturalmente ser temperados com outros princípios, como seja o da legalidade, uma vez que há princípios e regras que cada grupo socialmente organizado terá que cumprir, não havendo, neste âmbito poderes totalmente discricionários.”
No mesmo sentido, veja-se também acórdão deste Tribunal, proferido no processo n.º 00121/04.0BEPRT de 28-09-2006, onde se escreve que: O poder disciplinar enquanto poder que se afirma e se traduz, muito sumariamente, na possibilidade de aplicar sanções (penas) corretivas ou expulsivas aos agentes e funcionários em consequência da violação de deveres que sobre os mesmos impendam, visa, em última análise, assegurar a coesão, o prestígio e a confiança no e do serviço administrativo e, assim, potenciar a realização dos fins que o mesmo visa prosseguir.
Tal poder disciplinar desdobra-se em duas faculdades, sendo, uma, a denominada “ação disciplinar” (competência para promover a averiguação dos factos que possam ser qualificados como infrações e eventual ulterior punição) e, outra, a “competência para aplicar sanções”. No caso em presença, face aos contornos apurados, situamo-nos claramente no âmbito da primeira. Ora tem sido entendimento uniforme ao nível jurisprudencial o de que a decisão administrativa de instaurar ou não instaurar procedimento disciplinar, com vista à eventual punição dos seus autores, depende de critérios de conveniência ou/e de oportunidade, e não só de legalidade, exercendo a Administração, nesta matéria, um poder com margem de discricionariedade [cfr., a este propósito, Acs. do STA de 26/06/1990 - Proc. n.º 27494 in: Ap. DR de 31/05/1995, págs. 4447 e segs., de 19/10/1995 – Proc. n.º 32609 in: Ap. DR de 30/04/1998, págs. 7838 e segs., de 02/07/1996 - Proc. n.º 38948 in: Ap. DR de 15/03/1999, págs. 4989 e segs., de 25 de Fevereiro de 1999 - Proc. n.º 37235 in: Ap. DR de 12/07/2002, págs. 1367 e segs.; ]. A este propósito atente-se na fundamentação do citado acórdão de 02/07/1996 que se passa a citar “(…) o poder disciplinar que se revela através da instauração daquele procedimento, é um poder instrumental: permite viabilizar a recondução do agente faltoso a um comportamento susceptível de assegurar a realização do fim público a cuja satisfação presidiu a criação do serviço onde exerce funções.
Daí que nem a toda a falta tenha de corresponder necessariamente um procedimento, pois compete à Administração, caso a caso, perante as circunstâncias de cada um deles, averiguar se o exercício concreto do seu poder disciplinar, através da instauração do respetivo procedimento é ou não suscetível de causar dano à própria disciplina dos serviços do que o resultante de eventual decisão de sentido contrário.
Por consequência, a concreta escolha administrativa é deixada à autoridade decidente que, nesse domínio, é livre de escolher os elementos que para o efeito considerar relevantes, em função das particularidades de cada caso. Trata-se, assim, de um poder discricionário legitimado, de certa forma, no disposto nos n.ºs 1 e 2 do art. 50.º do Estatuto Disciplinar, aprovado pelo DL n.º 24/84, de 16 de Janeiro, ao deixar ao critério da entidade competente para instaurar processo disciplinar decidir se há ou não lugar a procedimento disciplinar. (…)” (vide, no mesmo sentido, Ac. STA de 19/10/1995 – Proc. n.º 32609 in: Ap. DR de 30/04/1998, págs. 7838 e segs.) (sublinhados nossos)…»
E ainda, acórdão do STA, de 08.11.12, proferido no processo n.º 0896/12 no qual se refere que: «II – Compete à autoridade administrativa, em cada caso e perante o seu particular circunstancialismo, averiguar se o exercício do seu concreto poder disciplinar, através da instauração do respetivo procedimento ou da consequente punição dos faltosos, é ou não suscetível de causar maior dano à própria disciplina dos serviços do que a resultante de uma eventual decisão de cariz contrário.
III – Assim, não é contenciosamente sindicável a decisão da Administração, quanto à opção e oportunidade de instauração do procedimento disciplinar».

Como sustenta Raquel Carvalho «O poder disciplinar é uma competência e não um direito subjetivo do superior hierárquico. Isto significa que o exercício desse poder está balizado pelo principio da legalidade e por todas as demais condicionantes legais. Ou dito de outro modo, como ANA NEVES, existe uma “deverosidade funcional”. Há a vinculação ao fim de interesse público que funcionaliza o exercício do poder disciplinar» Cfr. Raquel Carvalho, in Comentário ao Regime Disciplinar dos Trabalhadores em Funções Públicas, Universidade Católica Editora, pág.100.
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3.2.9. Não restam dúvidas, em face das considerações efetuadas, que o poder disciplinar é uma competência da entidade empregadora que é quem decide, em face de infrações funcionais que conheça ou lhe sejam comunicadas, se instaura ou não processo disciplinar e finalidade prosseguida é a de, através das aplicação de sanções corretivas ou expulsivas aos agentes e funcionários em consequência da violação de deveres que sobre os mesmos impendam, garantir o regular funcionamento do serviço, assegurando “a coesão, o prestígio e a confiança no e do serviço administrativo”.
3.2.10. Logo, não tem razão a Apelante quando pretende que a disciplina legal do artigo 71.º do ED tem na sua ratio proteger o funcionário visando garantir-lhe uma justiça célere, como se aquele normativo consagrasse um direito do funcionário a que a sua entidade empregadora lhe instaure um processo disciplinar quando e sempre que constate que o mesmo deu mais de cinco faltas seguidas ao trabalho, quando do que se trata é de uma sujeição a que o trabalhador se encontra submetido quando dê mais do que cinco faltas seguidas ou dez interpoladas ao trabalho, sem justificação, no mesmo ano civil, em ordem a garantir o regular e adequado funcionamento do serviço público em cuja organização está inserido.
O levantamento do auto por falta de assiduidade previsto no n.º 1 do artigo 71.º do ED, não tem uma função protetora ou de garantia dos direitos dos funcionários mas do serviço público, determinando a instauração de processo disciplinar a fim do comportamento violador do dever de assiduidade por parte do funcionário, uma vez confirmado, ser disciplinarmente sancionado, podendo inclusivamente levar à demissão do funcionário, nos termos legais previsto no artigo 26.º do E.D.
Não assiste ao funcionário o direito de exigir o levantamento do auto por falta de assiduidade e, como é bom de ver, esse ato só poderá prejudicar o funcionário, e não, como sustenta a Apelante, traduzir-se num beneficio.
Sublinhe-se que as especialidades do processo por falta de assiduidade a que se referem os artigos 71º e 72º do ED têm em vista essencialmente particularidades decorrentes do desconhecimento do paradeiro do arguido, que o legislador terá intuído ser a regra para os casos de faltas ao serviço sem justificação, não representando maior proteção do arguido senão na medida em que permite o recurso ou a reabertura do processo, quando notificado o arguido após conhecimento do seu paradeiro.
Mas a disciplina do processo especial, até porque de natureza processual, não contende com os pressupostos substanciais da infração e da pena. Por isso, o nº 3 do artigo 72º, ao referir que, mostrando-se que a falta de assiduidade, em face da prova produzida, constitui infração disciplinar, o arguido será demitido, não dispensa a verificação daqueles pressupostos, incluindo o previsto na cláusula geral do nº 1 do artigo 26º do ED: que a infração inviabilize a manutenção da relação funcional, como é jurisprudência consolidada do STA – cfr. Acs. de 24.03.2004, proc. 0757/03, de 18.6.96, proc. 39.860, de 16.5.02, proc. 39.260, de 09.05.2002, proc. 048209, de 05.12.2002, proc. 934/20002 e de 01.4.2003, proc.1228/02.
3.2.11. No caso vertente, a entidade empregadora da Apelante não levantou o auto por falta de assiduidade, como previsto no nº 1 do artigo 71º do ED, mas a violação desse normativo não confere nenhum direito à Apelante de reclamar uma indemnização por prejuízos sofridos na sua esfera jurídica como consequência adequada dessa ilegalidade, desde logo, porque aquela não tem entre os seus fins, o de proteger direitos ou interesses do funcionário/Apelante.
Ademais, o não levantamento do auto por falta de assiduidade nos termos previstos no artigo 71.º, ao invés, de prejudicar, só beneficiou, a Apelante.

3.2.12. Enuncie-se que a argumentação da Apelante é um contra senso e está eivada de razões falaciosas.
Note-se que a Apelante assume que não foi assídua, incumprindo com um dever fundamental que impende sobre todo e qualquer funcionário/ servidor público e sobre os trabalhadores em geral.
O dever de assiduidade obriga os trabalhadores a, de motu proprio, uma vez fixado o seu horário de trabalho, comparecerem no local de trabalho, na hora estabelecida, naquilo que é o normal desenvolvimento duma obrigação contratual que vincula o trabalhador a manter-se disponível perante a sua entidade empregadora, durante o horário de trabalho.
De acordo com a definição do art.º 3.º, n.º11 do ED “ O dever de assiduidade consiste em comparecer regular e continuadamente ao trabalho”.
Na situação vertente, estamos perante o insólito da Apelante pretender, com base no seu próprio comportamento inadimplente, assacar uma responsabilidade à sua entidade empregadora por esta, em face desse seu comportamento incumpridor, não ter instaurado um processo disciplinar logo após o computo de cinco faltas seguidas injustificadas, e apenas o ter efetuado após registar 654 faltas seguidas injustificadas, argumentando que se aquela o tivesse feito antes teria cumprido o seu dever de assiduidade.
A Apelante parece ignorar que não é obrigação legal ou contratual da entidade empregadora andar atrás dos seus funcionários relembrando-lhes as suas obrigações contratuais, e que compete antes ao trabalhador, o dever funcional de observar de motu proprio as obrigações contratuais e os deveres que decorrem da lei, que sejam aplicáveis à sua relação laboral, eivada de normas imperativas na defesa da parte contratualmente mais fraca.
Do mesmo modo, saliente-se, também não é obrigação do trabalhador/funcionário andar a relembrar à entidade empregadora as obrigações contratuais e legais que sobre ela impendem perante o trabalhador, designadamente, a de que lhe incumbe pagar o salário aos seus trabalhadores/funcionários como contrapartida da sua disponibilidade jurídica perante o empregador, sob pena de os trabalhadores serem responsabilizados pelo não recebimento dos seus salários perante a entidade empregadora que não lhos assegurou, por eventuais danos que aquela venha alegar ter sofrido por não ter pago atempadamente esses salários, quiçá, ter aplicado essas verbas em finalidades que vieram a traduzir-se num mau investimento.
3.2.13.A posição da Apelante é um absurdo. Como vimos, o poder disciplinar não é um direito do trabalhador, mas um poder, no sentido de uma competência que assiste ao empregador, sendo ao mesmo que incumbe, perante comportamentos inadimplentes do trabalhador, exercer ou não a ação disciplinar, em função, evidentemente, da avaliação que faça sobre o incumprimento do trabalhador e a relevância da infração disciplinar para o serviço/ interesse público.
A Apelante queixa-se de lhe ter sido instaurado um segundo processo disciplinar apenas depois de atingido o número de 654 faltas seguidas injustificadas ao serviço, quando lhe devia ter sido instaurado um processo disciplinar logo que deu mais de 5 faltas seguidas e, por conseguinte, acrescentamos nós, vários processos disciplinares, um por cada cinco faltas seguidas injustificadas que desse ao serviço, pretendendo ser indemnizada por pretensos danos morais e patrimoniais por via de apenas lhe ter sido instaurado o segundo processo disciplinar depois de ter faltado 654 dias seguidos ao serviço sem apresentar justificação. E considera ser um direito que lhe fosse instaurado um processo disciplinar logo após ter atingido cinco faltas seguidas injustificadas ao trabalho e que, caso tal tivesse acontecido, não teria sofrido os danos que acabou por sofrer, porque, desde logo, não teria continuado a faltar e teria visto a possibilidade de ser punida com uma pena global considerando que estava em curso um outro processo disciplinar por violação do dever de assiduidade, ao invés, como sucedeu, de ter visto serem-lhe aplicadas duas sanções disciplinares.
Conforme é bom de ver, toda esta argumentação assenta no pressuposto de que é obrigação da entidade empregadora avisar os trabalhadores do dever de assiduidade que sobre eles impende e, bem assim, que a ação disciplinar é um direito dos trabalhadores e visa proteger os seus direitos e interesses, tudo pressupostos que não têm qualquer arrimo possível face ao quadro jurídico vigente, tal como já ficou, cremos, amplamente demonstrado.

3.2.14.Acresce que a falácia da argumentação da Apelante é notória uma vez que conforme é bom de ver, caso a entidade empregadora, no exercício da ação disciplinar, tivesse instaurado de imediato novo processo disciplinar quando ainda estava em curso o primeiro processo disciplinar e tantos outros processos quantas as infrações ao dever de assiduidade que aquela persistiu em incumprir, a mesma sofreria os incómodos inerentes aos vários processos disciplinares, e eventualmente, várias sanções disciplinares, cada vez, necessariamente, mais gravosas para a mesma, perante a persistência e reincidência nesse comportamento inadimplente, podendo inclusivamente um desses processos vir a culminar na pena de demissão, que é, aliás, a pena abstratamente prevista para violações ao dever de assiduidade ( vide art.º 26.º, n.º2, al.h) e 72.º, n.º3 do ED).
Logo, a invocada conduta da entidade empregadora traduzida na circunstância de não lhe ter instaurado um processo disciplinar decorridos cinco faltas seguidas ao trabalho, não prejudicou mas apenas beneficiou a Apelante, ou, dito por outras palavras, dessa omissão não podem ter decorrido quaisquer danos para a Apelante, que sejam sua consequência direta e adequada.
3.2.15. Reafirma-se, colocada assim a questão, que é a perspetiva em que deve ser colocada em face do quadro jurídico aplicável, não descortinamos quer, no comportamento ativo da entidade empregadora ao lhe instaurar apenas dois processos disciplinares, quer no omissivo traduzido em não instaurar outros processos disciplinares por cada cinco faltas seguidas sem justificação ou dez faltas interpoladas sem justificação, o requisito da ilicitude.
É que, para além do mais, as normas que foram consideradas violadas pelo acórdão proferido pelo TAF de Viseu, que anulou o despacho do membro do governo que lhe aplicou a pena de inatividade graduada em dois anos no âmbito do segundo processo disciplinar não contemplam na sua zona de proteção interesses como aqueles que a Apelante alega terem sido violados. O não cumprimento da norma do artigo 71.º do ED, ou seja, a não instauração de processo disciplinar com base em levantamento de auto por falta de assiduidade, por parte do superior hierárquico da Apelante após aquela ter dado cinco faltas injustificadas não tem como escopo substantivo a proteção do trabalhador mas a salvaguarda do bom funcionamento dos serviços que têm de poder contar com os seus trabalhadores para cumprir a sua missão.
Só remotamente poderia resultar dessa norma algum beneficio para o trabalhador, veja-se, quando não saiba que faltando ao serviço mais do que cinco dias seguidos sem justificação ou dez dias interpolados sem justificação, em cada ano, se sujeita a um processo disciplinar por violação do seu dever de assiduidade. Porém, mesmo nestas situações, importa não esquecer que nos termos do disposto no artigo 6.º do Código Civil «A ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nela estabelecidas».
No caso, tal como considerou a 1.ª instância, claudica o requisito da ilicitude que é pressuposto condicionante do nascimento do dever indemnizatório que a Apelante pretende exercer contra o Apelado.
3.2.16. Também diríamos que claudica o pressuposto do nexo de causalidade entre o comportamento ativo e omissivo da entidade empregadora traduzido na não instauração daqueles outros processos disciplinares que na perspetiva da Apelante aquele lhe devia ter instaurado e os pretensos danos que a Apelante terá sofrido em consequência desse comportamento ativo e omissivo do Apelado.
É que, quanto á segunda sanção disciplinar, a mesma foi revogada pelo TAF de Viseu por uma questão meramente procedimental e não substancial: em nenhum segmento daquela decisão se diz que a Apelante não tivesse efetivamente faltado injustificadamente ao trabalho e que, com isso, não tivesse incumprido o seu dever de assiduidade. Aliás, é a própria Apelante que o admite.
Sendo assim, a sanção disciplinar que lhe foi aplicada no âmbito do segundo processo disciplinar emergiu de um comportamento ilícito da própria Apelante e não de um qualquer comportamento ilícito da sua entidade empregadora.
Neste contexto, pese embora a anulação, não se afirma qualquer nexo entre os pretensos danos sofridos pela Apelante e a circunstância da sua entidade empregadora lhe ter levantado um processo disciplinar no âmbito do qual lhe aplicou a sanção disciplinar que veio a ser revogada, uma vez que, não fosse esse vício procedimental, o exercício dessa ação disciplinar era perfeitamente válido, e, por isso, licita.
3.2.17. Finalmente, quanto à omissão do exercício da ação disciplinar, dir-se-á que os pretensos danos sofridos pela Apelante, não são consequência direta e necessária do não exercício da ação disciplinar por parte do Apelado uma vez que desse não exercício apenas podem ter naturalmente decorrido benefícios para a Apelante. Se prejuízo houve, foi para o serviço público de educação, máxime para os alunos daquela escola, e não para a Apelante, que apenas beneficiou.
3.2.18. Finalmente, acrescente-se que estando em curso um processo disciplinar mal se compreende a alegação da Apelante segundo a qual não fora a circunstância da sua entidade empregadora não ter levantado imediatamente auto por falta de assiduidade perante cinco faltas seguidas injustificadas ou dez interpoladas perante o seu comportamento reincidentemente inadimplente teria posto termo a esse comportamento, como se o dever de assiduidade não fosse uma obrigação da própria, que de motu proprio, é seu dever cumprir sem necessidade da sua entidade empregadora lhe relembrar quais sejam essas suas obrigações, e como se a instauração e pendência de um processo disciplinar, com fundamento na violação por parte daquela do dever de assiduidade, já não constituísse uma advertência solene e suficiente de que estava a reincidir no incumprimento desse dever ao continuar a faltar ao serviço.

3.2.19. Diríamos que o absurdo da argumentação da Apelante é manifesto e inclusivamente, violador da boa-fé ao pretender ser indemnizada por pretensos prejuízos por via de ter sido anulada uma sanção disciplinar por vícios meramente procedimentais, quando a própria incumpriu efetivamente o dever de assiduidade a que estava obrigada e ao fundamentar essa pretensão indemnizatória perante o seu comportamento inadimplente, persistentemente reincidente, na não instauração de outros processos disciplinares como se a ação disciplinar fosse um direito seu, e lhe conferisse direitos subjetivos e quando dessa circunstância nunca lhe resultaram prejuízos mas, naturalmente, apenas benefícios.

3.2.20. Quanto ao argumento da pretensa situação mais favorável que lhe adviria da apensação dos dois processos disciplinares que lhe foram instaurados, o que não sucedeu, em violação dos artigos 14.º e 48.º do ED, importa sublinhar que se é certo que a mesma seria alvo de uma só pena disciplinar, por força da apensação dos processos, também não é menos verdade, por um lado, que a prática de infrações por parte do funcionário na pendência de um processo disciplinar constitui circunstância agravante da sua responsabilidade disciplinar –vide art.º 31.º, n.º1, al. g) e n.º 4 do ED- e, por outro lado, que não lhe tivesse sido aplicada a pena de demissão, conquanto é certo que as faltas de assiduidade eram abstratamente consideradas como puníveis com aquela grave sanção- vide art.º 26.º, n.º2, al. h) do E.D. e n.º 3 do art.º 72.º do E.D.

Resulta do que se vem dizendo que por claudicação do requisito da ilicitude e do nexo causal entre o facto (ativo e omisso da entidade empregadora) de onde a Apelante faz derivar os pretensos danos que sofreu, bem andou a primeira instância em concluir pela total improcedência da pretensão indemnizatória da Apelante, restando, pois, concluir pela total improcedência de todos os fundamentos de recurso aduzidos pela Apelante e confirmar a decisão de mérito explanada na sentença sob recurso.
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IV-DECISÃO

Nesta conformidade, acordam os juízes desembargadores desta secção administrativa do TCAN em julgar a presente apelação improcedente e, em consequência confirmar a sentença proferida, julgando a ação improcedente e absolvendo o Réu do pedido.
(ii) custas em ambas as instâncias pela autora – art.º 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
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Registe e notifique.
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Porto, 28 de fevereiro de 2020.

Helena Ribeiro
Conceição Silvestre
Isabel Costa