Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00319/22.0BEAVR
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:12/07/2022
Relator:Antero Pires Salvador
Descritores:COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO VERSUS TRIBUNAL TRIBUTÁRIO
QUESTÃO FISCAL
Sumário:Estando em causa uma questão fiscal, entendida esta como como abrangendo “ … todas as questões cuja resolução exige a interpretação e a aplicação de "questão fiscal" a que exija a interpretação e aplicação de quaisquer normas de direito fiscal, substantivo ou adjectivo, para resolução de questões sobre matérias respeitantes ao exercício da função tributária da Administração Pública” (Cfr. Acórdão do Plenário do STA, datado de 21/3/2012, in Proc. 0189/11), é competente o tribunal tributário, independentemente de estar em causa um acto administrativo e a apreciação das respectivas invalidades – ou seja, no caso, uma relação jurídica tributária que tem como objeto as contribuições para a segurança social em regularização no âmbito do pedido de adesão do Dec. Lei n.º 124/96, de 10/8 - Plano Mateus.
Recorrente:J..., L. DA
Recorrido 1:INSTITUTO da SEGURANÇA SOCIAL, IP – ISS-IP
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Foi emitido parecer no sentido da improcedência do recurso.
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Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, no Tribunal Central Administrativo Norte – Secção do Contencioso Administrativo:
I. RELATÓRIO
1.J..., L. DA, com sede na Rua ..., inconformada, veio interpor recurso jurisdicional da sentença do TAF de Aveiro, datada de 28 de Abril de 2022, que, no âmbito da Acção Administrativa que havia instaurado contra o “INSTITUTO da SEGURANÇA SOCIAL, IP” – ISS-IP -, na qual, no âmbito do plano de pagamento em prestações aprovado na sequência da adesão ao Dec. Lei n.º 124/96, de 10/8, pedia a anulação da decisão de rejeição do recurso hierárquico apresentado e ainda o reconhecimento do direito a beneficiar da redução da taxa aplicável no cálculo de juros de mora, julgou verificada a excepção dilatória de incompetência material do Juízo Administrativo Comum do TAF de Aveiro, e determinou competente o Juízo de Execução Fiscal e de Recursos de Contraordenacionais do mesmo TAF, ordenando em sequência a remessa dos autos à respetiva secção especializada.
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2. Nas suas Alegações, a Recorrente formulou as seguintes conclusões:
A – Está em causa nos presentes autos aferir se o litígio apresentado à consideração judicial deve ser apreciado pela jurisdição administrativa ou se, como decidido na sentença recorrida, deverá ser competente para o seu conhecimento o Juízo de Execução Fiscal e de Recursos Contraordenacionais;
B – A questão da competência dos tribunais administrativos é de ordem pública e o seu conhecimento deverá preceder o de qualquer outra matéria.
C – O artigo 212.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa consagra o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, referindo que aos tribunais administrativos e fiscais compete dirimir os litígios emergentes das relações jurídico-administrativas e fiscais e, na sua sequência, o artigo 1.º do ETAF define o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal em função dos litígios compreendidos pelo âmbito da jurisdição previsto no artigo 4.º do ETAF.
D – A alínea b), do n.º 1 do artigo 49.º A do ETAF determina que quando tenha havido desdobramento em juízos de competência especializada, nos termos do disposto no artigo 9.º-A, compete ao juízo de execução fiscal e de recursos contraordenacionais, conhecer de todos os processos relativos a litígios emergentes de execuções fiscais e de contraordenações tributárias e não consubstanciando o litígio em apreciação na presente ação um litígio emergente de um processo de execução fiscal (ou de contraordenação tributária), terá que ficar afastada a sua afetação ao juízo de competência especializada de execução fiscal e de recursos contraordenacionais.
E – A competência material do tribunal afere-se pela relação jurídica controvertida, tal como é configurada na petição inicial, ou seja, a competência, como pressuposto processual, determina-se pela forma como o Autor configura o litígio.
F – A presente ação foi interposta ao abrigo do disposto no artigo 37.º do CPTA com vista à impugnação da decisão que rejeitou o recurso hierárquico que havia sido deduzido pela recorrente, sendo formulado o pedido de anulação do mencionado ato, com fundamento nas invalidades apontada na petição inicial, sendo, ademais, peticionada a condenação do Réu à adoção dos atos e operações necessárias à reposição da legalidade, designadamente a reformular o recalculo do plano prestacional autorizado ao abrigo do Decreto-Lei n.º 124/96, de 10 de agosto, de acordo com o previsto no artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 73/99, de 16 de março, nos moldes legalmente devidos, ou seja, aplicando a taxa de 4,125% ao juro vincendo e não a taxa de 7,125%, que foi efetivamente aplicada, pagando à Autora (aqui recorrente) a importância paga a mais, acrescida de juros de mora. Sem prescindir, é ainda pedido que seja reconhecido o direito da Autora a ver aplicado no recalculo do plano prestacional a redução da taxa de juro aplicável em seis pontos percentuais, por força do estabelecido no artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 73/99, de 16 de março.
G – Sendo os pedidos formulados os antecedentemente enunciados, a causa de pedir reside nas invalidades imputadas à decisão impugnada.
H – Atenta a arquitetura da ação, tal como enunciada pala Autora – aqui recorrente – resulta sem margem para qualquer dúvida que a relação jurídica controvertida, tal como é configurada na petição inicial é uma relação jurídica administrativa. Para a recorrente, a decisão posta em causa no recurso hierárquico era ilegal, por violação do direito à audiência prévia previsto no artigo 121.º do CPA e também por erro nos pressupostos de facto e de direito, pretendendo-se que em sede de reapreciação pela entidade com tutela hierárquica, essa decisão fosse reformulada, em conformidade com o direito.
I – Com efeito, tendo o recurso hierárquico sido rejeitado, o meio próprio de reação contra o ato/decisão de rejeição, só poderia ser a ação administrativa, prevista e regulada no artigo 37.º do CPTA, designadamente enquadrada nas alíneas a), b) e f) do n.º 1 deste preceito.
J - Mesmo no âmbito de relações jurídicas tributárias, há situações cuja apreciação jurisdicional é acometida à jurisdição administrativa e não à jurisdição tributária.
K – A determinação do meio processual adequado e da jurisdição competente está dependente do conteúdo do ato impugnado, sendo que a decisão de rejeição de um recurso hierárquico, por apelo aos estabelecido no artigo 196.º do Código de Procedimento Administrativo, terá que ser – só poderá ser – apreciada pela jurisdição administrativa.
L – Nos presentes autos está em causa a apreciação da legalidade de um ato administrativo sobre matéria tributária – a decisão de rejeição do recurso hierárquico que havia sido apresentado pela recorrente – que não comporta a apreciação da legalidade de qualquer ato de liquidação ou de execução fiscal, como bem se apreende do pedido e da causa de pedir formulados pela Autora, aqui recorrente”.
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3. O Recorrido, “Instituto da Segurança Social, IP”, não apresentou contra-alegações.
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4. A Digna Magistrada do M.º P.º neste TCA, notificada nos termos do art.º 146.º n.º 1 do CPTA, pronunciou-se em douto e fundamentado Parecer, pela improcedência do recurso, sendo que as partes, notificadas deste Parecer, nada disseram.
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5. Sem vistos, mas com envio prévio do projecto aos Exmos. Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos, foram os autos remetidos à Conferência para julgamento.
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6. Efectivando a delimitação do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, sendo certo que o objecto do recurso se acha delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, acima elencadas, nos termos dos arts. 660.º, n.º 2, 664.º, 684.º, ns. 3 e 4 e 685.º A, todos do Código de Processo Civil, “ex vi” dos arts. 1.º e 140.º, ambos do CPTA.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. MATÉRIA de FACTO
A decisão recorrida, sem que, concretamente, fixe qualquer factualidade, tem o seguinte conteúdo:
“A competência dos tribunais administrativos em qualquer das suas espécies é de ordem pública, precedendo o seu conhecimento o de qualquer outra matéria, segundo o art.º 13º do CPTA, constituindo a incompetência do Tribunal uma exceção dilatória que importa a absolvição da instância da Entidade Demandada ou remessa do processo para o tribunal competente, nos termos dos art.ºs 14º, n.º 1, e 89º, n.ºs 1 e 4, al. a), do CPTA.
Do disposto no art.º 212º, n.º 3, da Constituição, e no art.º 4º, n.º 1, al. o), do ETAF, extrai-se que, na falta de norma especial que a atribua ou a exclua do âmbito da sua competência, a relação jurídica administrativa e fiscal constitui o critério residual para aferir se determinada ação deve ser proposta na jurisdição administrativa e fiscal ou na jurisdição comum.
Já no âmbito da jurisdição administrativa e fiscal existe o confronto de competências entre tribunais administrativos e tribunais tributários, diferenciando-se pela competência especializada em razão da matéria (Neste sentido, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, 2ª edição, 2016, pág. 189). Das diferentes disposições contidas nos art.ºs 44º e 49º do ETAF – entre uma definição ampla e genérica da competência dos tribunais administrativos e uma utilização de critérios mais restritos e precisos na definição da competência dos tribunais tributários – ressalta que os tribunais administrativos constituem como que uma espécie de tribunal comum da jurisdição administrativa, vocacionados para julgar todos os conflitos que a lei não cometa especificamente aos tribunais tributários.
Assim, sendo consabido que a relação jurídica tributária é uma espécie de um género mais abrangente, a relação jurídica administrativa, para saber se determinado litígio deva ser julgado pelo tribunal administrativo ou pelo tribunal tributário, importa aferir se o litígio emerge de uma relação jurídica tributária ou não.
O conceito de relação jurídica tributária encontra-se definido no art.º 1º, n.º 2, da LGT, como sendo as “as estabelecidas entre a administração tributária, agindo como tal, e as pessoas singulares e coletivas e outras entidades legalmente equiparadas a estas”, com o objeto especificado no art.º 30º do mesmo diploma, que inclui, entre o mais, o crédito e a dívida tributários e o direito a juros indemnizatórios.
Ora, afigura-se manifesto que nos presentes autos está em causa uma relação jurídica tributária que tem como objeto as contribuições para a segurança social em regularização no âmbito do pedido de adesão do DL 124/96, de 10.08 (Plano Mateus), uma vez que mais não constituem do que as prestações pecuniárias e coativas exigidas que se destinam ao funcionamento do sistema da Segurança Social – contribuições financeiras a favor de entidades públicas, na aceção do art.º 3º, n.º 2, da LGT – estabelecida entre o Demandado, integrante da administração tributária e a aqui Autora.
Assim sendo, estando em causa um litígio emergente de uma relação jurídica tributária, é o juízo de execução fiscal e recursos contraordenacionais, e não o juízo administrativo comum, o juízo materialmente competente para a presente ação, nos termos dos art.ºs 49º e 49º-A, n.º 1, al. b), do ETAF.
Por outro lado, o princípio do contraditório não exige que se ouça previamente o Autor sobre esta exceção, pois que, para além de tal princípio ser atuante no contexto das relações processuais “inter partes”, da evidência da sua verificação resulta manifesta a desnecessidade de abrir o contraditório (cf. art.º 3º, n.º 3, do CPC).” – sublinhado nosso.
2. MATÉRIA de DIREITO
Sem necessidade de grandes considerações, atenta a manifesta simplicidade da questão decidenda, importa apenas, em completa concordância com a assertividade da sentença recorrida, referir que não é o facto de estar em causa um acto administrativo e a apreciação das invalidades suscitadas na pi. pela A./Recorrente que se mostra materialmente competente o tribunal administrativo.
O que releva é a essência desse acto administrativo, que, afinal, nesta parte, a recorrente não questiona, de cuja apreciação se evidencia tratar-se um acto administrativo tributário, que, manifesta e objectivamente reveste uma questão fiscal/tributária, a apreciar contenciosamente, nos termos do art.º 97 n.º 1, al. p) do C.P.P.T..
Efectivamente, está em causa a impugnação de uma decisão da Vogal do Conselho Diretivo do “ISSocial – IP” que rejeitou o recurso hierárquico que havia sido apresentado pela recorrente, e, concomitantemente, de condenação do Instituto à prática do ato devido, ou seja, de admitir e apreciar o recurso hierárquico permitindo-se, nesta consonância, corrigir a taxa aplicável ao cálculo de juros de mora, que, alegadamente, a prejudicou, no âmbito do plano de prestações a que aderiu, vulgo, designado Plano Mateus.
Cumulativamente, sem prescindir, peticionou ainda a A./Recorrente o reconhecimento do direito a beneficiar da redução da taxa aplicável no cálculo de juros de mora vincendos prevista no art.º 9.º do Dec. Lei 73/99, de 16/3, de 10,125% para 4,125%, e não para 7,125%, no âmbito do plano de pagamento em prestações aprovado na sequência da adesão ao Dec. Lei 124/96, de 10.08.
Como refere a Digna Procuradora Adjunta no seu douto Parecer, por “questão fiscal” deverá entender-se, de harmonia com a jurisprudência firmada pelo STA, a que, de qualquer forma, imediata ou mediata, faça apelo à interpretação e aplicação de norma de direito fiscal com atinência ao exercício da função tributária da Administração ou à obtenção de receitas destinadas”, acrescentando ainda que “…Estamos, assim, perante questão daquela natureza quando se refira a uma resolução autoritária que negue direito a não pagamento ou que imponha aos cidadãos o pagamento de qualquer prestação pecuniária com vista à obtenção de receitas destinadas à satisfação dos encargos públicos do Estado ou de outras pessoas coletivas públicas, bem como o conjunto de relações jurídicas que com elas estejam objetivamente conexas ou teleologicamente subordinadas.
O conceito de questão fiscal tem oscilado jurisprudencialmente entre uma tese restritiva, em que é limitada às questões que emergem de resoluções autoritárias da Administração que imponham aos cidadãos o pagamento de quaisquer prestações pecuniárias com vista à obtenção de receitas destinadas à satisfação dos encargos públicos, e uma tese ampliativa, que destaca o seu carácter funcional e entende que o conceito deve abranger todas as questões cuja resolução exige a interpretação e aplicação de quaisquer disposições de direito fiscal, desde que se situe no campo da actividade tributária do estado.” (Cfr. Acórdão do STA de 11.03.1997).
Não obstante, “a tese ampliativa é a que é hoje seguida na jurisprudência e abrange todas as questões cuja resolução exige a interpretação e a aplicação de "questão fiscal" a que exija a interpretação e aplicação de quaisquer normas de direito fiscal, substantivo ou adjectivo, para resolução de questões sobre matérias respeitantes ao exercício da função tributária da Administração Pública” (Cfr. Acórdão do Plenário do STA, datado de 21-03-2012, processo n.º 0189/11).
Assim, conclui o M.º P.º que, nos presentes autos, “… se está perante uma questão fiscal, também a nosso ver, há que atentar no disposto no art.º 49.º, do TAF, que define a competência dos tribunais tributários, devendo o mesmo ser lido em consonância com o disposto no aludido art.º 97.º, n.º 1, al. p) do Código de Processo e de Procedimento …”
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Importa, sem mais e concluindo, em negação de provimento ao recurso, manter a decisão judicial do TAF.
III
DECISÃO
Nestes termos, acordam, em conferência, os juízes deste Tribunal em negar provimento ao recurso e assim manter a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Notifique-se.
DN.

Porto, 7 de Dezembro de 2022
Antero Salvador
Helena Ribeiro
Nuno Coutinho