Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:02242/20.3BEPRT
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:04/29/2021
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Rosário Pais
Descritores:COMPETÊNCIA MATERIAL; RECONHECIMENTO DO DIREITO A COBRAR TAXA
Sumário:I - Os Tribunais Administrativos e Fiscais têm competência para a apreciação de litígios que tenham por objeto a tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais.

II - Não se está perante um litígio de direito privado relativo a uma relação contratual de prestação de serviço de saneamento, se a reclamação das verbas em questão resulta da exigência imposta autoritariamente pela A., ora recorrente, da tarifa de ligação e de alegados “custos” à mesma associada como contrapartida do serviço prestado.

III. As questões suscitadas, mormente sobre a necessidade/legalidade da aplicação daquela tarifa, revestem uma natureza fiscal entendendo-se, como tal, todas as que emergem da resolução autoritária que imponha aos cidadãos o pagamento de qualquer prestação pecuniária com vista à obtenção de receitas destinadas à satisfação de encargos públicos do Estado e demais entidades públicas, bem como o conjunto de relações jurídicas que surjam em virtude do exercício de tais funções ou que com elas estejam objetivamente conexas.*
* Sumário elaborado pela relatora
Recorrente:Águas (...), SA
Recorrido 1: Herança Indivisa
Votação:Unanimidade
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os Juízes da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:
*

1. RELATÓRIO

1.1. Águas (...), S.A., devidamente identificada nos autos, vem recorrer do Despacho Liminar proferido pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto em 13.01.2021, que julgou verificada a exceção dilatória de incompetência em razão da matéria e, consequentemente, declarou aquele Tribunal, na jurisdição tributária, materialmente incompetente para conhecer da ação judicial tributária para reconhecimento de interesse legítimo em matéria tributária, intentada contra a Herança Indivisa Aberta por óbito de J., na qual pediu o reconhecimento do direito da A. a cobrar € 1.716,47, pelos meios comuns em direito permitidos, a título de taxas de instalação do ramal e de obrigatoriedade de ligação à rede pública de saneamento.

1.2. A Recorrente Águas (...), S.A. terminou as respetivas alegações formulando as seguintes conclusões:

«A) O presente recurso versa questões de direito, na medida em que as normas que servem de fundamento jurídico à douta Sentença Judicial, proferida pelo digníssimo Tribunal “a quo”, deveriam ter sido interpretadas e aplicadas de forma distinta.
B) A Autora entende que não se aplica ao presente pleito o disposto no art.º 4.º, n.º 4 da al. a) do ETAF, na redação dada pela Lei n.º 114/2019 de 12 de setembro, pois não estamos perante “litígios emergentes de relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos, incluindo a respetiva cobrança coerciva.”
C) Dever-se-á considerar a forma como a Autora configurou a ação, a causa de pedir e o pedido formulado-reconhecer o seu legitimo direito a obrigar à ligação dos imóveis à rede pública com prévio pagamento dos encargos daí decorrentes.
D) Ora, o invocado preceito legal, não se aplica ao caso sub judice, pois não se fundamenta o presente pleito em incumprimento contratual designadamente na prestação de recolha e tratamento e águas residuais.
E) Pretende-se o reconhecimento da existência do direito da recorrente a sujeitar a recorrida à obrigatoriedade de ligação e pagamento das taxas inerentes.
F) É pacificamente aceite que estamos perante taxas que assumem natureza tributária, não se tratando de taxas de consumo, ou preços decorrentes da contratação dos serviços públicos de água e saneamento (vide acórdão do TCAN de 28/06/2013 no Proc. n.º 2708/11.6BEPRT).
G) A prestação do serviço de recolha e tratamento de águas residuais só será possível após o pagamento dos encargos decorrentes da obrigatoriedade de ligação do imóvel à rede pública, já que tal obrigação é onerosa.
H) A Autora exerce os poderes decorrentes do Contrato de Concessão de Exploração e Gestão dos Serviços Públicos Municipais de Água e Saneamento de (...), celebrado com a Câmara Municipal de (...), por força do qual se obrigou a promover atividades de reparação, renovação, manutenção e melhoria de infraestruturas, equipamentos e instalações, inerentes ao normal funcionamento dos sistemas, de acordo com as exigências de um regular, contínuo e eficiente funcionamento de serviço público.
I) A Autora atua na prossecução de um interesse público, munida de poderes de autoridade e praticando atos de gestão pública, exercendo verdadeiros poderes administrativos.
J) Ora, o litígio em apreço resulta, prima facie, da exigência, imposta autoritariamente pela Autora, da adoção de uma determinada conduta que consiste na ligação à rede pública de saneamento e do consequente pagamento, de determinada quantia como contrapartida pela instalação dos ramais.
K) A obrigatoriedade de ligação à rede pública não implica a contratação, apenas significa que estão reunidas as condições para a prestação do serviço, quando o consumidor pretender.
L) Estamos, in casu, perante o exercício de um verdadeiro poder/dever, na medida em que a Concessionária tem autoridade para impor aos cidadãos a prática de um determinado ato, a obrigatoriedade de ligação à rede pública de água e saneamento e o pagamento de uma prestação pecuniária.
M) Destarte, a Autora não pretende, desde logo a cobrança dos montantes decorrentes da obrigatoriedade de ligação dos imóveis à rede pública existente, mas sim o reconhecimento de que o seu direito à cobrança é legítimo e legal, já que não se pode socorrer de outro meio (vide Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo no âmbito do Recurso n.º 615/16-30 (proc. N.º 3211/11.0BEPRT) e acórdão no Proc. n.º 239/2017.0BEPRT).
N) Aliás, nesse mesmo sentido e porque não estamos perante um litígio de consumo, vide a questão da prescrição do direito da Autora devidamente apreciada pelos tribunais, bem como do seu direito de ação, é o estabelecido no artigo 309.º do Código Civil, isto é o prazo ordinário de 20 anos que ora se invoca em benefício da Autora (Vide acórdão do TCAN de 25/10/2013, proc. 2499/10.8BEPRT e sentença do proc. 2337/16.8BEPRT, da Unidade Orgânica 4, do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto).
O) Atente-se que aqui está em causa uma relação de direito pública em que a Autora atua munida do seu poder de autoridade devendo exigir, face à existência de redes públicas de água e saneamento, dos proprietários do imóveis por elas abrangidos, estão obrigados a proceder à ligação, embora tal ligação seja onerosa e precedida dos respetivos pagamentos que se quer declarar legítimos (aliás, vide o disposto nos Art.º 19.º e 25.º da petição inicial).
P) Por conseguinte, não estamos no âmbito de uma relação de privada, tal como decorre da contratação, por livre iniciativa do utilizador destes serviços (aliás, esta iniciativa contratual só pode ocorrer depois de verificada a obrigatoriedade de ligação dos imóveis para que o serviço possa ser prestado).
Q) Não estamos perante, um contrato sinalagmático, translativo, nominado, comutativo e oneroso de prestação de serviços, no qual à prestação de um serviço corresponde o pagamento de um preço, onde se incluem tarifas fixas (tarifas de disponibilidade) e tarifas variáveis (volumes de água fornecida e tratada).
R) Estamos perante o exercício de um verdadeiro poder dever, que a Autora quer que seja legalmente reconhecido, para que o possa impor àqueles que estão abrangidos pelas redes públicas, sendo também reconhecido o seu direito à cobrança dos preços decorrentes de tais ligações de acordo com o tarifário em vigor e legalmente aprovado (não são tarifas de consumo!!).
S) Ao caso presente não é aplicável o disposto na Lei n.º 114/2019 de 19 de setembro desde logo porque a recorrida não titula qualquer contrato de saneamento, que se encontre incumprido.
NESTES TERMOS, e nos mais de Direito doutamente supridos pelos Ex.mos Senhores Juízes Desembargadores, requer que se dignem julgar o presente Recurso procedente, por provado, revogando a douta Sentença Judicial proferida pelo digníssimo Tribunal de 1.ª instância, no que concerne à declaração da incompetência material para declarar o reconhecimento do direito da recorrente a cobrar o valor de €1.716,47, pelos meios comuns em direito permitidos, a título de taxas decorrentes da instalação de ramal e obrigatoriedade de ligação.
V. Ex.as farão, assim, inteira e merecida
JUSTIÇA.»

1.3. A Recorrida Herança Indivisa Aberta por óbito de J. não apresentou contra-alegações.

1.4. Os autos foram com vista ao Ministério Público junto deste Tribunal.

Dispensados os vistos legais, com o prévio acordo dos Exm.ºs Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre apreciar e decidir, pois que a tanto nada obsta.

2. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO – QUESTÕES A APRECIAR

Uma vez que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da Recorrente, cumpre apreciar e decidir se o Despacho Liminar recorrido enferma de erro de julgamento de direito ao ter concluído pela incompetência material do TAF do Porto – área tribuária, para conhecer da presente ação.

3. FUNDAMENTAÇÃO
3.1. De facto

Com interesse para a decisão deste recurso, importa fixar a seguinte factualidade, que consta de documentos juntos aos autos:
1. Em 30.10.2001, foi celebrado o “Contrato de Concessão da Exploração e Gestão dos Serviços Públicos Municipais de Abastecimento de Água e Saneamento do Município de (...)” - Cfr. doc. 1, fls. 2, 3 e 4, junto com a PI;
2. O Cabeça de Casal da Herança de J. é titular do prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 6259 da União de freguesias (…) (anterior artigo 971 da freguesia de (…)), sito na Rua (…) – cfr. doc. 2, fls. 1 e 2, junto com a p.i.
3. A coberto dos ofícios com as referências DOCENV.4017.2017- Edital 141/149, datado de 29.12.2017, cujo aviso de receção foi assinado em 05/01/2018, e DOCENV.3670.2018, datado de 06.11.2018, cujo aviso de receção foi assinado em 13.11.2018, ambos dirigidos a J., foi este notificado para pagar o montante global de € 1.716,47, referente a “Rama de Drenagem de Águas Residuais”, “Câmara Ramal de Ligação” e “Preço de Ligação AR”, bem como para, após aquele pagamento, efetuar a ligação à rede pública da habitação identificada no ponto anterior - doc. 3, fls. 1 a 3, doc. 5, fls. 1 a 3, juntos com a p.i.

3.2. De Direito

A decisão recorrida assenta na seguinte fundamentação de direito:
«(…)
A competência do tribunal em razão da matéria afere-se de harmonia com a relação jurídica controvertida, tal como definida pejo autor no que se refere aos termos em que propõe a resolução do litígio, a natureza dos sujeitos processuais, a causa de pedir e o pedido.
Tal competência do fixa-se no momento da prepositura da ação, e afere-se em face do pedido e da causa de pedir invocada pela Autora na petição inicial, irrelevando qualquer juízo sobre o mérito da pretensão deduzida, cfr. artigo 5.º do ETAF e Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 18 de novembro de 2020, Processo n.º 02169/05, in www.dgsi.pt.
A competência dos tribunais administrativos e fiscais limita-se aos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, de acordo com o previsto nos artigos 1.º e 4.º do ETAF, que explicitam a previsão constitucional do artigo 212.º, n.º 3 da CRP.
A regra básica da atribuição de competência aos tribunais administrativos é a da apreciação de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas.
Por sua vez, o artigo 4.º, n.º 4, alínea e) do ETAF, na redação dada pela Lei n.º 114/2019, de 12 de setembro, veio dispor que estão excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal “a apreciação de litígios emergente das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva”.
O legislador pretendeu com a alteração legislativa realizada pela Lei n.º 114/2019, de 12 de setembro “clarificar determinados regimes, que originam inusitadas dificuldades interpretativas e conflitos de competência, aumentando a entropia e a morosidade, determinaram as alterações introduzidas no âmbito da jurisdição. Esclarece-se que fica excluída da jurisdição a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais. Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo”, cfr. o Anteprojeto de Proposta de Lei, disponível em http://www.smmp.pt/wp-content/uploads/Oficio-n-452-de-14-03-2018.pdf.
No caso em apreço, estamos perante um conflito relativo ao pagamento de serviços de fornecimento de água e de recolha e tratamento de águas residuais decorrentes do alegado contrato celebrado pelas partes, no âmbito da prestação de serviços públicos essenciais, em que se incluem os serviços de recolha e tratamento de águas residuais, de acordo com o artigo 1.º, n. º 2 da Lei n.º 23/96, de 26 de julho.
Aqui chegados, somos a concluir que o tribunal Tributário não é competente para apreciar os litígios emergentes das relações de consumo relativas às prestações de serviços públicos essenciais, mas sim os tribunais comuns [neste sentido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08 de setembro de 2020. Processo n.º 2080/19, e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08 de outubro de 2020, Processo n.º 40700/19].
(…)».

Sobre questão idêntica à que se suscita nos presentes autos já este TCAN teve oportunidade de se pronunciar, no recente acórdão de 15.04.2021, ainda não publicado, a cuja jurisprudência integralmente aderimos, tendo em vista a aplicação uniforme do direito e porque dela não vislumbramos razão válida para divergir, pelo que aqui acompanharemos a fundamentação nele vertida.

«Determina o art.º 212.º, n.º 3 da CRP que compete… aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais …",

Prevê o n.º 1 do art.º 1.º do ETAF queOS tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios compreendidos pelo âmbito da jurisdição previsto no art.º 4 deste estatuto...”.

Resulta do alínea a) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF, na redação da Lei n.º 114/2019 de 12 de setembro que que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto a tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais.

Prevê o n.º 4.º do art.º 4 do ETAF que: “Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:
a) (…)
e) A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva.”
(…)

E, por fim, preceitua o art.º 49.º do ETAF que: 1 - Sem prejuízo do disposto no artigo seguinte, compete aos tribunais tributários conhecer:
a) Das ações de impugnação:
i) Dos atos de liquidação de receitas fiscais estaduais, regionais ou locais, e parafiscais, incluindo o indeferimento total ou parcial de reclamações desses atos;
ii) Dos atos de fixação dos valores patrimoniais e dos atos de determinação de matéria tributável suscetíveis de impugnação judicial autónoma;
iii) Dos atos praticados pela entidade competente nos processos de execução fiscal;
iv) Dos atos administrativos respeitantes a questões fiscais que não sejam atribuídos à competência de outros tribunais;
b) Da impugnação de decisões de aplicação de coimas e sanções acessórias em matéria fiscal;
c) Das ações destinadas a obter o reconhecimento de direitos ou interesses legalmente protegidos em matéria fiscal;
d) Dos incidentes, embargos de terceiro, reclamação da verificação e graduação de créditos, anulação da venda, oposições e impugnação de atos lesivos, bem como de todas as questões relativas à legitimidade dos responsáveis subsidiários, levantadas nos processos de execução fiscal;
e) Dos seguintes pedidos:
i) De declaração da ilegalidade de normas administrativas emitidas em matéria fiscal;
ii) De produção antecipada de prova, formulados em processo neles pendente ou a instaurar em qualquer tribunal tributário;
iii) De providências cautelares para garantia de créditos fiscais;
iv) De providências cautelares relativas aos atos administrativos impugnados ou impugnáveis e as normas referidas na subalínea i) desta alínea;
v) De execução das suas decisões;
vi) De intimação de qualquer autoridade fiscal para facultar a consulta de documentos ou processos, passar certidões e prestar informações;
f) Das demais matérias que lhes sejam deferidas por lei..”.

Do cotejo dos normativos antecedentes […], resulta que os Tribunais Administrativos e Fiscais têm competência para a apreciação de litígios que tenham por objeto a tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais.

No caso em apreço, o que efetivamente está em causa é declarar o reconhecimento do direito de cobrar o valor de €[1.716,47], pelos meios comuns em direito permitidos, a título de taxas decorrentes da instalação de ramal e obrigatoriedade de ligação, a qual é obrigatória para os utilizadores, por força dos decreto-lei n.º 194/2009 de 20 agosto, Decreto Regulamentar n.º 23/95 de 23 agosto, decreto-lei n.º 379/93 de 5 novembro e pelo Regulamento de Distribuição de Águas Residuais do Município de (...).

A Autora atua na prossecução de um interesse público, munida de poderes de autoridade e praticando atos de gestão pública, nomeadamente a ligação à rede pública de água e saneamento e impondo à Ré o consequente pagamento, de determinada quantia como contrapartida pela instalação dos ramais.

Como refere a Recorrente não estamos perante um contrato de prestação de serviços no qual à prestação de um serviço corresponde o pagamento de um preço, onde se incluem tarifas fixas (tarifas de disponibilidade) e tarifas variáveis (volumes de água fornecida e tratada), mas sim perante o reconhecimento de uma relação jurídico administrativa tributária anterior à eventual prestação de serviços.

Não se trata da apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, pelo que não se aplica a alínea e) do n.º4 do art.º 4 do ETAF na redação da Lei n.º 114/2019 de 19 de setembro desde logo porque a Recorrida não é titular de qualquer contrato de saneamento, que se encontre incumprido.

A situação em apreço trata […] de um litígio a resolver […] no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais para as quais são competentes os Tribunais Administrativos e Fiscais.

Aqui chegados importa agora saber dentro da jurisdição dos Tribunais Administrativos e Fiscais a quem compete a sua decisão.

Como vem sendo entendimento dos tribunais superiores, que a causa de pedir e o pedido nesse domínio se enquadra não numa relação jurídica administrativa, mas, ao invés, numa relação jurídica fiscal visto estar em discussão a legalidade da interpretação e aplicação de disposições de direito fiscal, ou que se situa no campo da atividade tributária, logo são competentes os Tribunais Fiscais.
E este tem sido o entendimento do Tribunal de Conflitos, nomeadamente, no acórdão n.º 16/10 de 26.11.2010, no qual se refere que “(…) II.4. Por outro lado, como já acima aludiu e como também é assinalado pelo Ministério Público no seu referido parecer, o litígio em apreço resulta da exigência, imposta autoritariamente pela requerida, do pagamento de quantias como contrapartida pelo serviço público prestado (cf. citado art° 13°, n° 2, e ainda o art° 15°, ambos do DL n° 379/93).
Estamos, assim, perante uma questão fiscal, entendendo-se como tal, “todas as que emergem da resolução autoritária que imponha aos cidadãos o pagamento de qualquer prestação pecuniária com vista à obtenção de receitas destinadas à satisfação de encargos públicos do Estado e demais entidades públicas, bem como o conjunto de relações jurídicas que surjam em virtude do exercício de tais funções ou que com elas estejam objectivamente conexas” – cfr. citado acórdão deste TC de 2006.05.18 (Proc. n° 4/05), e vasta jurisprudência ali registada.
II.5. Pode pois concluir-se que a jurisdição competente para conhecer do litígio em apreciação é, assim, a jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais, concretamente os tribunais tributários, atento o disposto no art° 49º, n° 1, alínea e)-i) e iv), do ETAF vigente.(…)” Cfr. ainda os acórdãos do mesmo Tribunal n.ºs 17/10 de 9.11.2010 e 14/06 de 26.09.2006.

A este propósito, e relativamente à questão idêntica dos autos e em que é a mesma Recorrente também a Secção de Contencioso Administrativo, deste TCAN já se pronunciou no acórdão n.º 2708/11.6BEPRT de 28.06.2013, no qual se sumariou que:
I. Atendendo ao critério formal da fonte da obrigação, que é a lei, ao regime económico, que é de monopólio, à indispensabilidade do serviço e à sua natureza comutativa, a tarifa ou preço do serviço de abastecimento de água/saneamento terá a natureza de taxa, constituindo receita tributária.
II. Se, assim, importa ser considerado e quando o que está em discussão se prende não com uma relação jurídico privada de discussão em torno de incumprimento das obrigações decorrentes de contrato de fornecimento/prestação de serviço, mas, ao invés, de discussão quanto a alegadas ilegalidades praticadas no quadro relação jurídico pública, na sujeição e fixação/aplicação de determinado Regulamento de Taxas por parte da A. ao R., então, dúvidas não podem existir que se trata de questão fiscal para a qual o tribunal administrativo “a quo” carece de competência em razão da matéria.
III. Não se está perante um litígio de direito privado relativo a uma relação contratual de prestação de serviço de saneamento, sendo que a reclamação das verbas em questão resulta da exigência imposta autoritariamente pela A., ora recorrente, da tarifa de ligação e de alegados “custos” à mesma associados como contrapartida do serviço prestado.
IV. Ora as questões suscitadas, mormente, sobre a necessidade/legalidade da aplicação daquela tarifa revestem uma natureza fiscal entendendo-se, como tal, «todas as que emergem da resolução autoritária que imponha aos cidadãos o pagamento de qualquer prestação pecuniária com vista à obtenção de receitas destinadas à satisfação de encargos públicos do Estado e demais entidades públicas, bem como o conjunto de relações jurídicas que surjam em virtude do exercício de tais funções ou que com elas estejam objetivamente conexas».

Nesta conformidade, sentença recorrida incorreu em erro de julgamento, ao julgar verificada a exceção dilatória de incompetência em razão da matéria, deste Tribunal Administrativo e Fiscal, jurisdição tributária, e consequentemente declarar, o Tribunal, materialmente incompetente, e competentes os Tribunais Judiciais.».

Assim sendo, o presente recurso tem de ser julgado procedente, revogando-se o despacho de indeferimento liminar em crise, e ordenando-se a baixa dos autos ao Tribunal recorrido para prosseguimento e conhecimento das questões equacionadas pela Recorrente, se nada a tal obstar.


4. DECISÃO
Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em conceder provimento ao recurso, revogar o Despacho Liminar recorrido e ordenar a baixa dos autos à 1.ª instância para aí prosseguirem os seus demais termos, se a tanto nada obstar.
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Custas devidas pela parte vencida a final.
*
Porto, 29 de abril de 2021

Maria do Rosário Pais - Relatora
Tiago Afonso Lopes de Miranda - 1.º Adjunto
Cristina da Nova - 2.ª Adjunta