Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01170/10.5BEAVR
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:01/31/2014
Tribunal:TAF de Aveiro
Relator:Pedro Marchão Marques
Descritores:DESPACHO DE REVERSÃO; GERÊNCIA.
Sumário:i) A garantia do duplo grau de jurisdição não subverte o princípio da livre apreciação das provas (cfr. art. 655.º, n.º 1 do CPC, actualmente o art. 607.º, n.º 5) já que o juiz aprecia livremente as provas e decide segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, sendo que, na formação dessa convicção, não intervêm apenas factores racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que, em caso algum, podem ser importados para o registo escrito, para a gravação vídeo ou áudio;
ii) Na reapreciação da matéria de facto ao tribunal de recurso apenas cabe um papel residual, limitado ao controle e eventual censura dos casos mais flagrantes, como sejam aqueles em que o teor de algum ou alguns dos depoimentos prestados no Tribunal a quo lhe foram indevidamente indiferentes, ou, de outro modo, eram de todo em todo inidóneos ou ineficientes para suportar a decisão a que se chegou.
iii) A determinação da responsabilidade subsidiária por dívidas tributárias afere-se à luz do regime legal em vigor à data em que as dívidas se constituíram (cfr. artigos 12.º do Código Civil e 12º da Lei Geral Tributária).
iv) Tanto no âmbito do CPT como no da LGT, para se afirmar a responsabilidade subsidiária dos gerentes por dívidas tributárias exige-se a demonstração de que os mesmos exerceram tal gerência de modo efectivo ou de facto.
v) É sobre a Administração Tributária, enquanto exequente e como titular do direito de reversão, que recai o ónus de alegar e provar os factos integradores do efectivo exercício da gerência, não existindo qualquer presunção legal que imponha a conclusão de que quem tem a qualidade de gerente de direito exerceu a gerência de facto.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:M...
Recorrido 1:Fazenda Pública
Decisão:Concedido provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. Relatório

M...(Recorrente), com os demais sinais nos autos, não se conformando com a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro que julgou improcedente a oposição por si deduzida, na qualidade de responsável tributário subsidiário, na execução fiscal n.º 3417199601004735 e ap., originariamente instaurada contra a A... – Veículos Automóveis, Lda., por dívidas de IVA dos anos de 1994, 1995 e 1996, no valor global de EUR 5.935,02, dela veio interpor o presente recurso, formulando, a final, as seguintes conclusões:

I. Tendo em conta os elementos probatórios válidos constantes dos autos, foram erradamente julgados não provados os factos alegados em 11. e 12. da petição inicial, devendo a douta decisão ser alterada em sentido contrário, de conformidade com o disposto no artº 712º, nº 1, al. a) do C.P.C.;

II. A aplicação do Artº 13º do CPT ao caso depende da verificação de o Oponente ter exercido efectivas funções de gestão na pessoa colectiva que é a devedora principal, cabendo à Administração Fiscal o ónus da prova de tal facto;

III. Tendo em conta o elenco dos factos julgados provados, através de nenhum deles se afigura se deva concluir o exercício da efectiva administração ou gestão por parte do Oponente, pelo que, no caso, foi erradamente interpretada e aplicada a norma do Artº 13º do C.P.T, bem como a do Artº 342º do C. Civil.

Deve, por conseguinte, ser revogada a douta sentença e substituída por outra que julgue a oposição procedente e provada, com todas as legais consequências.

Assim se fazendo Justiça,

A Recorrida, Fazenda, não apresentou contra-alegações.



Neste Tribunal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, defendendo a improcedência do recurso.


Colhidos os vistos legais, importa apreciar e decidir.


I. 1. Questões a apreciar e decidir:

As questões suscitadas pelo Recorrente, delimitadas pelas alegações de recurso e respectivas conclusões (art.s 660.º, n.º 2, 664.º e 684.º, n.º s 3 e 4 todos do CPC ex vi art. 2.º, al. e), e art. 281.º do CPPT), traduzem-se em apreciar:

- Se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento de facto e de direito ao ter considerado que o executado ora Recorrente foi gerente de direito e de facto da devedora originária.



II. Fundamentação

II.1. De facto

É a seguinte a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro:

1. Em 2/7/1996 foi instaurado contra “A... – Veículos Automóveis, Lda.”, CF nº 5…, o Processo de Execução Fiscal nº 3417199601004735, com vista à cobrança de créditos de IVA, referentes a 1994, 1995 e 1996, acrescidos de juros, no montante global de € 5.935,02.

2. A sociedade comercial “A... – Veículos Automóveis, Lda.” foi citada, em 30/1/97, no Processo de Execução Fiscal identificado em 1.

3. A sociedade comercial “A... – Veículos Automóveis, Lda.”, em 31/1/97, apresentou o pedido de pagamento em prestações das dívidas fiscais identificadas em 1, ao abrigo do regime instituído pelo DL nº 124/96, de 10/8, de que foi excluída por despacho de 2/6/2006, notificado em 9/6/2006.

4. A quantia referida em 1 não se encontra paga.

5. Em 1/4/1992, no 2º Cartório Notarial de Aveiro, foi outorgado o contrato de constituição da sociedade comercial “A... – Veículos Automóveis, Lda.”, na qual figura como outorgante o oponente, nomeado gerente, conforme documento de fls. 25/31 que se dá por reproduzido.

6. Na Conservatória do Registo Comercial de Santa Maria de Aveiro, pela Ap. 12/19920414 foi registada a constituição da sociedade comercial “A... – Veículos Automóveis, Lda.”, na qual figura como sócio e gerente M..., ora oponente, com uma quota no valor de € 100.757,18.

7. Na Conservatória do Registo Comercial de Santa Maria de Aveiro, pela Ap. 01/20000424 foi registada a cessação de funções de órgão social da sociedade comercial “A... – Veículos Automóveis, Lda.”, dos gerentes M...e F....

8. Dá-se por reproduzido o documento de fls. 19/24 que consubstancia certidão da sentença proferida no Processo de Oposição, instaurado por F..., em relação à reversão determinada em Processo de Execução Fiscal no qual a sociedade comercial “A... – Veículos Automóveis, Lda.” assumiu a veste de executada.

9. Dá-se por reproduzido o documento de fls. 32/33 que consubstancia a declaração de inscrição no registo/início de actividade, relativo à devedora principal, datado de 7/4/1997, e no campo destinado à identificação do representante legal ostenta o nome do oponente e a designação “gerente”.

10. Dá-se por reproduzido o documento de fls. 79/83 que consubstancia certidão extraída do Processo nº 98/97.7TBAVR/B, que correu termos no Tribunal Judicial de Aveiro, donde resulta que a devedora originária, aí exequente, nada recebeu do executado.

11. Dá-se por reproduzido o documento de fls. 93 que consubstancia cópia das declarações prestadas por F..., na qualidade de responsável subsidiário pelas quantias devidas pela sociedade comercial “A... – Veículos Automóveis, Lda.”, donde consta que este declarou que, além dele, também era gerente da executada M..., ora oponente.

12. Dá-se por reproduzido o documento de fls. 120/122 que consubstancia cópia do despacho de exclusão da devedora originária do regime estatuído no DL nº 124/96, de 10/8, notificação efectuada e aviso de recepção assinado em 19/6/2006.

13. Dá-se por reproduzida a informação de fls. 34/35, datada de 22/10/2009, donde consta, além do mais, que na sequência dos ofícios dirigidos aos tribunais verificou-se que os créditos da devedora originária são incobráveis.

14. Por despacho de 26/10/2009, lavrado no Processo de Execução Fiscal aludido em 1, que se encontra a fls. 37, e se dá por reproduzido, foi determinada a notificação do oponente para exercício do direito de audição prévia em relação ao projecto de reversão da execução.

15. A Administração Tributária, em 26/10/2009, remeteu ao oponente o ofício que consta a fls. 39, que se dá por reproduzido.

16. Por despacho de 16/9/2010, lavrado no Processo de Execução Fiscal aludido em 1, que se encontra a fls. 40, e se dá por integralmente reproduzido, foi determinada a reversão da execução contra o oponente, na qualidade de responsável subsidiário.

17. O oponente foi citado, na qualidade de executado, por ofício que consta a fls. 42 e se dá por reproduzido, remetido ao oponente por carta registada com AR, assinado em 28/9/2010.

18. A presente oposição foi apresentada em 29/10/2010.

FACTOS NÃO PROVADOS

Nada mais se provou com interesse para a decisão a proferir, nomeadamente não se provou que a devedora originária possuísse bens penhoráveis à data, nomeadamente créditos superiores a € 100.000,00, que o oponente não identificou cabalmente quanto aos montantes e devedores, tendo-se apurado que a sociedade comercial intentou acções para cobrança de créditos de clientes e nada recebeu, tratando-se de créditos incobráveis. De igual modo, não se provou que o oponente nunca exerceu funções de gerente de facto, nem controlava os movimentos financeiros, nada pagou nem recebeu, não movimentou contas bancárias da sociedade, não fazia compras nem vendas, não admitia pessoal nem lhe dava ordens ou instruções, não atendia fornecedores nem fazia encomendas dada a ausência de prova credível, e a existência de elementos que apontam em sentido contrário, nomeadamente as declarações prestadas pelo outro sócio gerente.

O tribunal a quo alicerçou a motivação da decisão da matéria de facto nos seguintes termos:

A convicção do tribunal resultou da análise crítica da prova documental junta aos autos, e outra de conhecimento oficioso do Tribunal, dispensando a respectiva alegação, nos termos do artigo 514º Código de Processo Civil, e da análise crítica do depoimento da única testemunha inquirida, R..., filho do oponente, que prestou depoimento que contraria as mais elementares regras de experiência comum. Na verdade, esta testemunha declarou que o pai não trabalhava na sociedade em causa, e que só se deslocava às instalações da sociedade para lhe mostrar o edifício que ele construiu, “cumprimentava e vinha embora !...”, e nem sabia quanto custava um veículo Mercedes, tendo ficado alarmado ao ter conhecimento do preço de um veículo dessa marca. Declarou não saber se o pai recebia ou não dividendos da sociedade. Este depoimento viola manifestamente as regras de experiência comum e de normalidade da vida, sendo certo que o oponente detinha uma participação no capital social da sociedade que ascendia a € 100.757,18. Por outro lado, o outro sócio gerente, F..., assumiu que a gerência de facto era exercida por ele e pelo oponente.
Acresce que o oponente renunciou à gerência, facto levado ao registo apenas em 24/4/2000, e como declarado pela testemunha “porque alguma coisa correu mal”.



II.2. De direito

O Recorrente aponta erro de julgamento sobre a matéria de facto à decisão do Mmo. Juiz do TAF de Aveiro, afirmando que tendo em conta os elementos probatórios válidos constantes dos autos, foram erradamente julgados não provados os factos alegados em 11. e 12. da petição inicial, devendo estes serem dados como provados (conclusão 1. do recurso). Ou seja, pretende o Recorrente que seja levado ao probatório como factualidade assente que nunca teve qualquer intervenção nos actos de gerência, que não controlava nem interferia nos movimentos financeiros, que nada pagava ou recebia por conta dela, que não movimentava as contas bancárias da sociedade, não fazia compras nem vendas, não admitia pessoal nem lhe dava ordens ou instruções e não atendia fornecedores nem lhes fazia encomendas. Factualidade esta que, como se viu supra, o Tribunal a quo deu como não provada.

Nos termos do artigo 685.º-B do CPC (na redacção então aplicável), incumbe ao recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto o ónus de especificar, sob pena de rejeição:

a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; e

c) no “caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 522º-C, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição”.

Resulta pois do citado artigo 685.º-B do CPC a consagração de um ónus especial de alegação quando se pretenda impugnar a matéria de facto, o qual impende sobre o aqui Recorrente e que o mesmo satisfez. Com efeito, a Recorrente identifica os concretos factos que entende que deviam ter sido dado como provados, bem como quais os concretos meios probatórios constantes do processo que impunham decisão diversa da recorrida sobre os pontos da matéria de facto impugnada (art. 9.º das alegações de recurso). Ou seja, nesta parte, mostra-se devidamente cumprido o ónus de alegação consagrado no referido artigo 685.º-B do CPC.

Nesta sede, alega o Recorrente o seguinte:

A esses indícios adicionados do depoimento da testemunha ouvida em audiência gravada, como consta da respectiva acta, em que a testemunha (R...), que disse:

«O meu pai tinha a sua actividade fora daquela sociedade e nunca ali ia; não atendia clientes nem fornecedores, nem geria pessoal, ali não fazia nada; sei que me levou lá uma vez para visitar as instalações».

deveriam ter gerado a convicção e a decisão fundada no sentido de terem sido julgados provados os factos alegados em 11. e 12. da petição. Factos que, assim, foram julgados erradamente, podendo a decisão ser alterada por este Tribunal de recurso, ao abrigo do artº 712º, nº 1, al a) do C.P.C.. sem que contra isso tenha algum valor o facto de, num outro processo, que não no presente, sem exercício do contraditório, o verdadeiro gerente de facto, Dr. F..., ter referido que gerentes eram ele e o ora Oponente. Gerentes, obviamente sim, porque estavam nomeados no pacto e no registo, mas tal depoimento, só por si, e no dito enquadramento, é ambíguo e não susceptível de afastar que o Oponente não exercia a gerência de facto.

Os factos em questão foram dados como não provados pelo Tribunal a quo que, para tanto, considerou que da análise crítica do depoimento da única testemunha inquirida, R..., filho do oponente, aquele depoimento havia contrariado as mais elementares regras de experiência comum, tudo como explicitado na fundamentação da decisão da matéria de facto.

Está, pois, em questão uma divergência quanto à valoração dada ao depoimento da testemunha inquirida em Juízo. Ora, nesta sede importa desde logo ter presente que a garantia de duplo grau de jurisdição em matéria de facto (art.º 712.º do CPC, na redacção aplicável) deve harmonizar-se com o princípio da livre apreciação da prova (idem, art. 655.º, n.º 1).

Como se refere, a este propósito no Acórdão do STA de 18.03.2004, Recurso n.º 065/04: “A valoração do depoimento das testemunhas situa-se no domínio da livre apreciação da prova enunciada no artigo 655º do C.P.C., intimamente conexionado com o princípio da mediação. As respostas do tribunal colectivo não constituem proposições isoladas. O sentido da decisão sobre determinado ponto da matéria de facto pode ser extraído, por interpretação, no contexto das demais respostas e da respectiva fundamentação e em conjugação com a fonte de que emerge a formulação do respectivo quesito”.

De igual modo, se concluiu no Acórdão do STA de 19.10.2005, Recurso n.º 0394/05: “O Tribunal de recurso só deve modificar a matéria de facto quando a convicção do julgador, em 1ª instância, não seja razoável, isto é, quando seja manifesta a desconformidade dos factos assentes com os meios de prova disponibilizados nos autos, dando-se assim a devida relevância aos princípios da oralidade, da imediação e da livre apreciação da prova e à garantia do duplo grau de jurisdição sobre o julgamento da matéria de facto.
O art. 690-A do CPC impõe ao recorrente o ónus de concretizar quais os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e de indicar os meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida.

Este artigo deve ser conjugado com o 655° do C.P.Civil que atribui ao tribunal o poder de apreciar livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto. Daí que dos meios de prova concretamente indicados como fundamento da crítica ao julgamento da matéria de facto deva resultar claramente uma decisão diversa. É por essa razão que a lei utiliza o verbo “impor”, com um sentido diverso de, por exemplo, “permitir” [sublinhado nosso]. Esta exigência decorre da circunstância do tribunal de recurso não ter acesso a todos os elementos que influenciaram a convicção do julgador, só captáveis através da oralidade e imediação e, muitas vezes, decisivos para a credibilidade dos testemunhos. (‘É pacifico o entendimento dos Tribunais da Relação, neste ponto. Só deve ser alterada a matéria de facto nos casos de manifesta e clamorosa desconformidade dos factos assentes com os meios de prova disponibilizados nos autos, dando assim prevalência ao princípio da oralidade, da prova livre e da imediação - cfr. ANTONIO SANTOS ABRANTES GERALDES, in “TEMAS DA REFORMA DO PROCESSO CIVIL”, II volume, 4ª edição, 2004, págs. 266 e 267 e o Acórdão da Relação do Porto de 2003-01-09, na Internet, in www.dgsi.pt, JTRP00035485 e o Acórdão da Relação de Lisboa de 2001-03-27, in Colectânea de Jurisprudência, Ano XXVI-2001, Tomo II, págs. 86 a 88). Entendimento semelhante posto em causa no Tribunal Constitucional por ofensa da garantia do duplo grau de jurisdição, foi considerado conforme à constituição (...): “A garantia do duplo grau de jurisdição não subverte, nem pode subverter, o princípio da livre apreciação das provas e não se pode perder de vista que na formação da convicção do julgador entram, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova e factores que não são racionalmente demonstráveis”, de tal modo que a função do Tribunal da 2ª-. Instância deverá circunscrever-se a “apurar a razoabilidade da convicção probatória do 1° grau dessa mesma jurisdição face aos elementos que agora lhe são apresentados nos autos” Acórdão de 13.10.2001, in Acórdãos do T. C. vol. 51°, pág. 206 e ss..)” [sublinhado nosso].

Ou seja, dos meios de prova concretamente indicados como fundamento da crítica ao julgamento da matéria de facto deve resultar claramente uma decisão diversa (cfr. também o Acórdão do STA de 6.07.2006, Recurso n.º 220/06, bem como, i.a., os Acórdãos deste TCAN de 8.03.2007, Processo n.º 110/06 e de 12.07.2013, Processo n.º 123/05.0BEVIS).

Como já defendia Alberto dos Reis (in Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, p. 137): “É já hoje lugar-comum a nota de que tanto ou mais do que o que o depoente diz vale o modo por que o diz, é que se as declarações contam, contam também as reticências, as hesitações, as reservas, enfim a atitude e a conduta do declarante no acto do depoimento (…).”

Com efeito, como se escreveu no referido Ac. deste TCAN de 8.03.2007: “Daí que a convicção do tribunal se forma de um modo dialéctico, pois, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas produzidas nos autos, importa atender também à análise conjugada das declarações produzidas e dos depoimentos das testemunhas, em função das razões de ciência, da imparcialidade ou falta dela, das certezas e ainda das lacunas, das contradições, das hesitações, das inflexões de voz, da serenidade, dos “olhares de súplica” para alguns dos presentes, da "linguagem silenciosa e do comportamento", da própria coerência de raciocínio e de atitude demonstrados, da seriedade e do sentido de responsabilidade evidenciados, das coincidências e inverosimilhanças que transpareçam no decurso da audiência de julgamento entre depoimentos e demais elementos probatórios.

Ao invés do que acontece nos sistemas da prova legal em que a conclusão probatória está prefixada legalmente, nos sistemas da livre apreciação da prova, como o nosso, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do discussão em sede de julgamento, com base apenas no juízo que se fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.

Note-se, contudo, que este sistema não significa puro arbítrio por parte do julgador. É que este, pese embora, livre, no seu exercício de formação da sua convicção, não está isento ou eximido de indicar os fundamentos onde aquela assentou por forma a que, com recurso às regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquele processo de formação da convicção sobre a prova ou não prova daquele facto, permitindo, desta feita, sindicar-se o processo racional da própria decisão.

Aliás, a nossa lei processual determina e faz impender sobre o julgador um ónus de objectivação da sua convicção, através da exigência da fundamentação da matéria de facto (da factualidade provada e da não provada), devendo aquele analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção (cfr. art. 653.º, n.º 2 do CPC).

É que não se trata de um mero juízo arbitrário ou de simples intuição sobre veracidade ou não de uma certa realidade de facto, mas antes duma convicção adquirida por intermédio dum processo racional, objectivado, alicerçado na análise critica comparativa dos diversos dados recolhidos nos autos na e com a produção das provas e na ponderação e maturação dos fundamentos e motivações, sendo que aquela convicção carece de ser enunciada ou explicitada por expressa imposição legal como garante da transparência, da imparcialidade e da inerente assunção da responsabilidade por parte do julgador na administração da justiça.

À luz desta perspectiva temos que se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da lógica, da ciência e da experiência, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção.

(…)

Para além disso e na sequência com que anteriormente fomos referindo importa ainda ter em atenção que pese embora a maior amplitude conferida pela reforma de processo civil a um segundo grau de jurisdição em sede de matéria de facto a verdade é que, todavia, não se está perante um segundo julgamento de facto (tribunal “ad quem” aprecia apenas os aspectos sob controvérsia) e nem o tribunal de recurso naquele julgamento está colocado perante circunstâncias inteiramente idênticas àquelas em que esteve o tribunal “a quo” apesar do registo da prova por escrito ou através de gravação magnética dos depoimentos oralmente prestados.
É que o Tribunal “ad quem” não vai à procura duma nova convicção, não lhe sendo pedido que formule novo juízo fáctico e sua respectiva fundamentação. O que se visa determinar ou saber é se a motivação expressa pelo Tribunal “a quo” encontra suporte razoável naquilo que resulta do ou dos depoimento(s) testemunhal(ais) (registados a escrito ou através de gravação) em conjugação com os demais elementos probatórios existentes ou produzidos nos autos.

Tal como tem sido jurisprudencialmente aceite, a garantia do duplo grau de jurisdição não subverte o princípio da livre apreciação das provas (cfr. art. 655.º, n.º 1 do CPC) já que o juiz aprecia livremente as provas e decide segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, sendo que, na formação dessa convicção, não intervêm apenas factores racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que, em caso algum, podem ser importados para o registo escrito, para a gravação vídeo ou áudio.
Será, portanto, um problema de aferição da razoabilidade, à luz das regras da ciência, da lógica e da experiência da convicção probatória do julgador no Tribunal “a quo”, aquele que, no essencial, se coloca em sede de sindicabilidade ou fiscalização do julgamento de facto pelo Tribunal “ad quem”.

Em conclusão, como a jurisprudência tem consistente e reiteradamente afirmado, na reapreciação da matéria de facto ao tribunal de recurso apenas cabe um papel residual, limitado ao controle e eventual censura dos casos mais flagrantes, como sejam aqueles em que o teor de algum ou alguns dos depoimentos prestados no Tribunal a quo lhe foram indevidamente indiferentes, ou, de outro modo, eram de todo em todo inidóneos ou ineficientes para suportar a decisão a que se chegou. Dito de outro modo, ao tribunal de recurso apenas e só é dado alterar a decisão sobre a matéria de facto em casos excepcionais de manifesto erro na apreciação da prova, de flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e essa mesma decisão.

De regresso ao caso dos autos, perante a factualidade alegada nos articulados e a justificação dada pelo TAF de Aveiro, justificando a concreta resposta dada à matéria de facto, temos que, no fundo, o Recorrente, não demonstra a existência de erro grosseiro de julgamento quanto à resposta que foi dada pelo Tribunal a quo e que pretende ver alterada. Antes, o que a sua tese evidencia, é apenas e só uma maneira subjectiva de tentar adequar a prova testemunhal efectuada, à sua pretensão adjectiva; ou seja, à inexistência de factos que importem a conclusão que silogística e justificadamente o Tribunal de 1.ª instância entendeu por adequada (que a factualidade alegada em 11. e 12. da p.i. não ficou provada). Na verdade, o Recorrente não dirigiu qualquer crítica específica quanto à formação da convicção do julgador, não lhe apontando qualquer erro, apenas veio insistir que do depoimento da testemunha resultava a afirmação distinta – inversa – da realidade dada como provada. O que o Recorrente pretende é discutir a convicção do julgador, o que claudica perante o supra expendido.

Assim, não se evidenciando erro grosseiro de julgamento, mas antes se mostrando a decisão suficiente e detalhadamente justificada (v. supra), entendemos que inexiste razão para alterar, com base na prova testemunhal aqui em causa, a resposta a dada pela 1.ª instância.

Improcede, pois, o recurso nesta parte.

Continua o Recorrente a imputar erro de julgamento à sentença recorrida, com fundamento em que perante a factualidade provada não resulta demonstrado o exercício efectivo das funções de administração ou gerência. Pelo que, tal não se verificando, foi erradamente interpretada e aplicada a norma do art. 13.º do CPT, a que corresponde actualmente o art. 24.º da LGT (conclusões II. e III. do recurso).

Comece por se deixar estabelecido que no que concerne aos pressupostos da responsabilidade subsidiária dos administradores, directores e gerentes de sociedades, tendo estes natureza substantiva, são definidos pela lei vigente ao tempo da respectiva ocorrência. Isto sem embargo da constatação de que no âmbito do CPT como no da LGT, para se afirmar a responsabilidade subsidiária dos gerentes por dívidas tributárias se exigir a demonstração de que os mesmos exerceram tal gerência de modo efectivo ou de facto (cfr., i.a, o ac. deste TCAN de 31.05.2012, proc. n.º 959/08.0BEBRG).

As dívidas em cobrança na execução fiscal contra a qual vem dirigida a presente oposição, reportam-se a liquidações de IVA respeitantes aos anos de 1994 a 1996. Pelo que, considerando que a responsabilidade dos administradores ou gerentes de sociedades de responsabilidade limitada pelas dívidas tributárias, após a vigência do Código de Processo Tributário (em 1 de Julho de 1991) e até à entrada em vigor da Lei Geral Tributária (em 1 de Janeiro de 1999), é aferida face ao disposto no artigo 13º daquele Código, dúvida não há em como às dívidas tributárias em execução é de aplicar o regime decorrente do artigo 13.º do CPT.

De acordo com o artigo 13.º do CPT: “Os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração nas empresas e sociedades de responsabilidade limitada são subsidiariamente responsáveis em relação àquelas e solidariamente entre si por todas as contribuições e impostos relativos ao período do exercício do seu cargo, salvo se provarem que não foi por culpa sua que o património da empresa ou sociedade de responsabilidade limitada se tornou insuficiente para a satisfação dos créditos fiscais”.

Resulta do citado normativos, desde logo, que a responsabilidade subsidiária é atribuída em função do exercício do cargo de gerente e reportada ao período do respectivo exercício. Ou seja, a gerência de facto constitui requisito da responsabilidade subsidiária dos gerentes, não bastando, portanto, a mera titularidade do cargo, a gerência nominal ou de direito.

Ora, é sobre a Administração Tributária, enquanto exequente e como titular do direito de reversão, que recai o ónus de alegar e provar os pressupostos que lhe permitem reverter a execução fiscal contra o gerente da devedora originária, designadamente, os factos integradores do efectivo exercício da gerência de facto, de acordo com a regra geral de quem invoca um direito tem que provar os respectivos factos constitutivos (art. 342.º, n.º 1, do CC). Como se disse no Acórdão deste TCAN de 22.02.2012, proc. n.º 207/07.0BEBRG, “não há qualquer presunção legal que faça decorrer da qualidade de gerente de direito o efectivo exercício da função e que faça inverter o referido ónus que recai sobre a administração tributária [a inscrição no registo comercial da nomeação de alguém como gerente apenas resulta a presunção legal (cf. art. 11.º do Código do Registo Comercial) de que é gerente de direito, não de que exerce efectivas funções de gerência] e só quem goza de uma presunção legal, escusa de provar o facto a que ela conduz (artigo 350.º, n.º 1, do CC)”. Ou como se afirmou no acórdão do STA (Pleno da Secção do Contencioso Tributário) de 28.02.2007, Recurso 1132/06, “a prova da gerência de direito não permite presumir, nem legal nem judicialmente, a gerência de facto, impondo-se ao exequente fazer a respectiva alegação e subsequente prova”.

Neste ponto foi o seguinte o discurso fundamentador da sentença recorrida:

No caso vertente resultou provado, que o oponente, no período a que se reportam os créditos em execução e mesmo anteriormente, detinha a qualidade de gerente, e alegou, mas não provou, que não exerceu de facto funções de gerente da sociedade devedora principal, sendo que o sócio gerente F... assumiu que a gerência de facto era desempenhada conjuntamente por ele e pelo oponente.

Na vigência do artigo 13º do Código de Processo Tributário, tal como actualmente sucede com o estatuído no artigo 24º da Lei Geral Tributária, é a gerência efectiva que releva para responsabilizar subsidiariamente quem exerceu tais funções.”

Ora, como está bom de ver, e embora tenha identificado pertinentemente o quadro normativo de referência, a sentença recorrida assentou a conclusão de que o oponente, ora Recorrente, era gerente de facto na prova efectuada da gerência de direito (gerência essa de direito que o oponente, aliás, não discute). Mais errou na configuração do ónus probatório no caso aplicável: não era o oponente que tinha que provar que não havia exercido de facto a gerência, era a Administração Tributária, enquanto exequente e como titular do direito de reversão, que tinha que alegar e provar os pressupostos que lhe permitiram reverter a execução fiscal contra o gerente da devedora originária, designadamente, os factos integradores do efectivo exercício da gerência de facto.

Por aqui se vê já que a sentença recorrida não se pode manter, pelo menos com esta fundamentação.

Vejamos então se do quadro factual existente se permite extrair a conclusão da prática pelo oponente e ora Recorrente de actos efectivos de gerência. E não pode.

Com efeito, nenhum facto do probatório contém referência mínima à existência de uma qualquer prática pelo oponente de actos efectivos de gerência. Lendo o despacho de reversão, cujo teor foi dado por reproduzido em 16., o que nele consta é o seguinte: “Dos autos, pelas diligências feitas, e das audiências prévias (…), constatou-se que à firma executada não são conhecidos bens susceptíveis de serem penhorados e exequíveis. Assim, proceda-se à reversão contra os responsáveis subsidiários senhores Francisco Manuel Vilarinho Costa (…) e M..., residente na Rua (…).” Nada vem referido, portanto, quanto à prática de actos efectivos de gerência. E mesmo considerando o provado em 11. (e admitindo esse facto apenas com o alcance de ser dada como provada a existência da referida declaração), certo é que na declaração aí referida, e dada por reproduzida, nada se diz para além de que “em 1997 também era gerente da executada o Sr. M..., o qual, durante o ano de 1998, em data que não posso precisar neste momento, renunciou à gerência” (sic). Ou seja, apenas vem evidenciada a gerência de direito, mas não a de facto.

Aliás, na contestação apresentada a Fazenda a propósito do exercício de funções de gerente, de facto, por parte do oponente, limita-se a afirmar que “provada que esteja a gerência de direito, dela se pode inferir, com base nos dados da experiência comum, e pela observação empírica dos factos, que com ela coincide a gerência de facto” (cfr. art. 29.º da contestação). Porém, já vimos que assim não é.

Assim, analisada a factualidade dada como assente na sentença recorrida, a par do seu discurso fundamentador, constata-se não ter sido dado como provado qualquer facto que consubstancie o exercício efectivo dos poderes de gerência parte do oponente e ora Recorrente. Como já referimos, a Fazenda Pública (a quem competia o ónus da prova dos pressupostos da responsabilidade subsidiária do gerente) nada alegou ou provou quanto ao efectivo exercício da gerência de facto por parte do oponente, pelo que sempre contra si teria de ser valorada a falta de prova sobre o efectivo exercício da gerência e, por outro lado, também não existem nos autos quaisquer elementos que permitam concluir pelo efectivo exercício da gerência de facto.

Assim sendo, o oponente não pode ser responsabilizado pelas dívidas tributárias ao abrigo do disposto no artigo 13º do CPT, por não resultar provado nos autos que tenha exercido a gerência de facto da sociedade devedora originária nos períodos a que se reportam tais dívidas, sendo, pois, parte ilegítima na execução fiscal.

Assim sendo, forçoso se impõe concluir que o recurso merece provimento, devendo a sentença recorrida ser revogada e, de acordo com os motivos expostos, ser a oposição deduzida julgada procedente.



III. Conclusões

Sumariando:

i) A garantia do duplo grau de jurisdição não subverte o princípio da livre apreciação das provas (cfr. art. 655.º, n.º 1 do CPC, actualmente o art. 607.º, n.º 5) já que o juiz aprecia livremente as provas e decide segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, sendo que, na formação dessa convicção, não intervêm apenas factores racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que, em caso algum, podem ser importados para o registo escrito, para a gravação vídeo ou áudio;

ii) Na reapreciação da matéria de facto ao tribunal de recurso apenas cabe um papel residual, limitado ao controle e eventual censura dos casos mais flagrantes, como sejam aqueles em que o teor de algum ou alguns dos depoimentos prestados no Tribunal a quo lhe foram indevidamente indiferentes, ou, de outro modo, eram de todo em todo inidóneos ou ineficientes para suportar a decisão a que se chegou.

iii) A determinação da responsabilidade subsidiária por dívidas tributárias afere-se à luz do regime legal em vigor à data em que as dívidas se constituíram (cfr. artigos 12.º do Código Civil e 12º da Lei Geral Tributária).

iv) Tanto no âmbito do CPT como no da LGT, para se afirmar a responsabilidade subsidiária dos gerentes por dívidas tributárias exige-se a demonstração de que os mesmos exerceram tal gerência de modo efectivo ou de facto.

v) É sobre a Administração Tributária, enquanto exequente e como titular do direito de reversão, que recai o ónus de alegar e provar os factos integradores do efectivo exercício da gerência, não existindo qualquer presunção legal que imponha a conclusão de que quem tem a qualidade de gerente de direito exerceu a gerência de facto.



IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte em:

- Conceder provimento ao recurso e revogar a sentença recorrida; e, em substituição,

- Julgar a oposição procedente e, em consequência, extinta a execução fiscal revertida contra o Recorrente.

Custas pela Fazenda Pública, não lhe sendo devido o pagamento da taxa de justiça nesta instância, já que não contra-alegou.

Porto, 31 de Janeiro de 2014

Ass. Pedro Marques

Ass. Pedro Vergueiro

Ass. Nuno Bastos