Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00690/19.0BEALM
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:05/29/2020
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Maria Fernanda Antunes Aparício Duarte Brandão
Descritores:ACÇÃO DE CONTENCIOSO PRÉ-CONTRATUAL, ARTIGO 70º, Nº 2, ALÍNEA G), DO CCP, PRÁTICAS ANTICONCORRENCIAIS
Sumário:I-Dúvidas não restam que em procedimentos de contratação pública anteriores ao procedimento dos Autos, procedimentos esses que incidiram, tal como o do autos, sobre a prestação de serviços na rede ferroviária nacional e em que figurava como entidade adjudicante a REFER e, depois, a ora Recorrida IP, foram cometidas por parte da Recorrida particular Futrifer graves infrações à Lei da Concorrência;

I.1-por isso mesmo, choca à consciência ético-jurídica que uma empresa que foi condenada com uma coima num processo de contra-ordenação pela prática de graves infrações à Lei da Concorrência, com prejuízo para o funcionamento transparente do mercado e com prejuízo para uma entidade adjudicante, um mês depois de ser condenada pela Autoridade da Concorrência ao pagamento de uma coima pela prática de tais infrações, venha a ser “premiada” pela mesma entidade adjudicante a quem quis prejudicar, com uma adjudicação de prestação de serviços que incidia igualmente sobre a rede ferroviária nacional;

I.2-a interpretação da Ordem Jurídica, neste caso, a interpretação do artigo 70º, nº 2, alínea g), do CCP, face ao Direito da União Europeia, não pode permitir um tal “prémio”, sob pena de se permitir a subversão dos objetivos da União previstos no nº 3, do artº 3º do “Tratado da União Europeia” (TUE), a saber, o mercado interno, o qual assenta numa economia social de mercado altamente competitiva e na adopção de uma política económica conduzida de acordo com o princípio de uma economia de mercado aberta e de livre concorrência - artigos 119º, nºs 1 e 2 e 120º do “Tratado de Funcionamento da União Europeia” (TFUE)..*
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:T., Lda.
Recorrido 1:Infra-Estruturas de Portugal, S.A.,
Votação:Maioria
Meio Processual:Impugnação Urgente - Contencioso pré-contratual (arts. 100º e segs. CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

RELATÓRIO
T.,, Lda., com sede na Zona Industrial, (…), (...), instaurou acção de contencioso pré-contratual contra a Infra-estruturas de Portugal, S.A., com sede na Praça (…), (…), pedindo a condenação desta à prática de acto devido no âmbito do procedimento concursal nº 497/2019, consubstanciado na adjudicação do contrato de aquisição de equipamentos a si.
Procedeu à indicação das seguintes Contra-interessadas: F,, S.A., com sede na Rua (…), (…); e M., S.A., com sede na Rua (…), (…).
Por sentença proferida pelo TAF de Viseu foi julgada improcedente a acção.
Desta vem interposto recurso.
Alegando, a Autora formulou as seguintes conclusões:
1ª O presente recurso jurisdicional é interposto da sentença do TAF de Viseu de 21/2/20 no segmento em que julgou improcedente a ação de contencioso pré-contratual intentada pela ora Recorrente contra o Recorrido IP SA por ter decidido não ter ocorrido a violação do art. 70º, nº 2, alínea g) do CCP por parte do acto de adjudicação proferido pelo Recorrido IP em 25/7/19;
2ª Assim, para a sentença recorrida, a exclusão de uma proposta com fundamento no art. 70º, nº 2, alínea g) do CCP – prática de actos contra as regras da concorrência, só pode ocorrer se tais actos tiverem sido praticados no procedimento adjudicatário, não fora dele;
3ª Porém, a sentença recorrida, no segmento sob censura, para além de ter revelado dúvidas por parte do julgador na interpretação do citado preceito, acabou por fazer uma interpretação do mesmo ignorando o Direito da União Europeia, pelo que, ao fazê-lo, acabou por violar este mesmo Direito;
4ª Deste modo, a questão a decidir no presente recurso jurisdicional é saber se, para efeitos de interpretação do art. 70º, nº 2, alínea g) do CCP face ao disposto no Direito da União Europeia, mais concretamente, face ao art. 57º, nº 4, alínea d) e nº 5, da Diretiva 2014/24/UE, a exclusão de uma proposta por violação das regras da concorrência por parte de um concorrente tem de ocorrer no próprio procedimento ou em momento anterior à sua abertura;
5ª Para tanto, em 1º lugar, é preciso registar que desde 2004 que os contratos públicos se regem pelo Direito originário da UE, representado actualmente pelo TFUE e pelos princípios gerais nele vertidos como a defesa das liberdades de circulação e da concorrência e pelo Direito da UE derivado, traduzido no conjunto de Diretivas sobre contratação pública;
6ª Em 2º lugar, tendo o DL que aprovou o CCP – DL nº 111-B/2017, de 31 de agosto, procedido à transposição da Diretiva 2014/24/EU através do seu art. 1º, nº 2, a interpretação do art. 70º, nº 2, alínea g), do CCP, terá de ser uma interpretação conforme ao Direito da União Europeia, incluindo a referida Diretiva;
7ª Em 3º lugar, porque apesar de o art. 57º, nº 4, alínea d) e nº 5 da Diretiva 2014/24/EU conter causas de exclusão dos concorrentes que são facultativas para os Estados-membros, a realidade é que o art. 70º, nº2, alínea g) do CCP, conforme o reconhece a doutrina, transformou aquilo que é uma causa de exclusão do concorrente no art. 57º, nº4 da Diretiva numa causa de exclusão da proposta;
8ª Por conseguinte, o que está em apreciação nos Autos não é uma situação de incumprimento da Diretiva 2014/24/UE por parte do art. 70º, nº2, alínea g), do CCP, mas, algo diferente, ou seja, sendo ele mesmo uma causa de exclusão do concorrente na Diretiva, tal implica que se terá de proceder à sua interpretação com o Direito da UE, quer o Direito originário quer o Direito derivado, como é agora o caso da Diretiva 2014/24/UE;
9ª Assim sendo, há que seguir o que já foi decido pelo nosso STA no seu Acórdão de 30/10/14, Procº nº 092/14, de que em consonância com o princípio da interpretação conforme ou compatível com o Direito da União, o intérprete e aplicador do direito nacional devem atribuir às disposições nacionais um sentido conforme ou compatível com as disposições europeias, sendo que todo o direito nacional aplicável deve ser interpretado em conformidade com o Direito da União;
10ª Impõe-se por isso, segundo o citado Acórdão, que os órgãos jurisdicionais façam tudo o que for da sua competência, tomando em consideração o direito interno, considerado no seu todo e aplicando os métodos de interpretação por este reconhecidos para garantir a plena efetividade dos normativos da UE que estejam em causa e chegar a uma solução conforme com a finalidade pelos mesmos prosseguida;
11ª Para tanto, importa desde logo ter presente que os objetivos da UE previstos no nº 3, do art. 3º do TUE são o mercado interno, o qual assenta numa economia social de mercado altamente competitiva e na adopção de uma política económica conduzida de acordo com o princípio de uma economia de mercado aberta e de livre concorrência – arts. 119º, nºs 1 e 2 e 120º do TFUE;
12ª Ora, tendo em conta o considerando 101 da Diretiva 2014/24/UE e o teor do seu art. 57º, nº 4, alínea d) e nº 5, parágrafo 2º, constata-se, sem dificuldade, através da sua interpretação literal, que as entidades adjudicantes podem excluir do procedimento concorrentes que tenham cometido actos contra a concorrência antes do procedimento;
13ª Assim é que, o próprio TJUE, pelo seu Acórdão de 18 de Dezembro de 2014, Procº nº 470/13 e em que estava em apreciação uma situação de exclusão fundada num comportamento anti-concorrencial do passado, adoptada fora do procedimento adjudicatório e sancionado pelo “Instituto Húngaro de defesa da concorrência”, considerou que a exclusão fundada numa falta grave em matéria profissional abrangia uma situação desta natureza;
14ª E mais referiu o TJUE no Acórdão ora citado que o art. 57º, nº4, alínea d) da Diretiva 2014/24/EU, prevê de forma clara tal causa de exclusão, sendo que tal observação foi feita a propósito de um caso em que a infração às regras da concorrência foi estranha ao procedimento pré-contratual onde o operador faltoso foi excluído;
15ª Acontece que a sentença recorrida deu como provado que a Recorrida F. foi condenada pela Autoridade da Concorrência ao pagamento de uma coima de 300.000 € pela prática de ilícitos anti-concorrenciais previstos na Lei nº 19/2012, de 8 de maio, ilícitos esses que, a dita Autoridade, não hesitou em qualificar como de muito graves;
16ª E tal condenação ocorreu em 26/6/19, ou seja, antes de ter sido elaborado o relatório final do júri em 17/7/19, ao que se seguiria o acto de adjudicação de 25/7/19;
17ª Ora, a alínea g) do nº 2, do art. 70º do CCP deve ser recrutada no caso de a conduta identificada pelo Júri se subsumir aos artigos 9º e 12º da Lei nº 19/2012, o que foi o caso;
18ª Assim sendo, com base na condenação da Recorrida particular F. por parte da Autoridade da Concorrência pela prática de ilícitos anti-concorrenciais e tendo em consideração quer o Direito originário da União quer o seu Direito derivado, como é o disposto no art. 57º, nº 4, alínea d) e nº 5 da Diretiva 2014/24/EU, a sentença recorrida não podia ter interpretado o art. 70º, nº 2, alínea d) do CCP no sentido de a causa de exclusão aí prevista só ser aplicada aos ilícitos anti-concorrenciais ocorridos no procedimento;
19ª E não colhe o facto de a sentença recorrida, porque teve dúvidas na interpretação do preceito, ter chamado em sua defesa um Acórdão do STA e a opinião de Pedro Gonçalves, pois tal Acórdão não é aqui aplicável e Pedro Gonçalves não deu uma resposta objetiva à questão em foco;
20ª Com efeito, Pedro Gonçalves, relativamente ao art. 57º, nº 4, alínea d) da Diretiva, emitiu uma opinião sem convicção e, sobretudo, sem fundamentação, pois ficou-se sem saber porque é que o ilustre administrativista optou por considerar que o preceito da Diretiva só se aplica a actos anti-concorrenciais verificados no procedimento;
21ª Deste modo, face ao disposto no art. 3º, nº 3, do TUE, nos artigos 101º, 119º nº 1 e 2 e 120º do TFUE, no considerando 101 da Diretiva 2014/24/UE e no seu art. 57º, nº4, alínea d) e nº5, ao que acresce a jurisprudência já conhecida do TJUE sobre este último preceito, tem de se considerar que a sentença recorrida procedeu a uma interpretação desconforme do art. 70º, nº2, alínea d), do CCP, face ao Direito da União Europeia;
22ª É que, face ao invocado Direito originário e derivado da UE e considerando que, de acordo com o TJUE, a concorrência é o valor mais destacado do Direito da Contratação Pública, da chamada interpretação conforme do art. 70º, nº2, alínea g), do CCP ao Direito da União resulta que a proposta da então concorrente F. tinha de ser excluída pelo júri do concurso em virtude de, três semanas antes da elaboração do relatório final, ter a ora Recorrida particular sido condenada ao pagamento de uma coima pela Autoridade da Concorrência pela prática de infrações muito graves à Lei nº 19/2012;
23ª Seria pois, completamente contrário ao Direito da União Europeia e ao valor mais elevado da contratação pública que é a concorrência, chocando abertamente com a consciência ético-jurídica, que, uma empresa condenada ao pagamento de uma coima de 300,000 € pela prática de graves infrações à Lei da Concorrência, viesse, um mês depois de conhecida a decisão condenatória, vir a ser ”premiada” com uma adjudicação no valor de 2.696,150,00 € por parte da entidade adjudicante a quem tinha querido anteriormente prejudicar em procedimentos de contratação pública que também incidiam sobre a rede ferroviária nacional;
24ª Quem é responsável pela prática de actos ilícitos anti-concorrenciais muito graves e, como tal, sancionada com coima por parte da competente autoridade da concorrência, não merece a confiança da entidade que procura no mercado um ente idóneo para com ela contratar tendo em vista a prossecução do interesse público, pelo que tem de ser afastado do procedimento em causa;
25ª Assim, em face das conclusões anteriores, a sentença ora recorrida, por uma errada interpretação do art. 70º, nº2, alínea d), do CCP, uma interpretação em desconformidade com o Direito da União Europeia, é ilegal por violação dos artigos 3º, nº3, do TUE, 101º, 119º, nºs 1 e 2 e 120º do TFUE e 57º, nº 4, alínea d) e nº 5, da Diretiva 2014/24/EU, não podendo assim ser mantida na Ordem Jurídica por este Venerando Tribunal;
26ª Por conseguinte, porque os Tribunais nacionais zelam pela aplicação do Direito da União Europeia na ordem interna dos Estados-membros e porque a concorrência assume-se como um valor central da ordem jurídica, de interesse público e tutelado pelo Direito Público, a sentença ora recorrida deve ser revogada com a consequente condenação do Recorrido IP SA a praticar o acto devido, a saber, o acto de adjudicação da aquisição de cavilhas e travessas de madeira de pinho cresotado à ora Recorrente,
Fazendo-se assim a
Devida e merecida
JUSTIÇA.

A Entidade Demandada ofereceu contra-alegações e concluiu:
A) – A Recorrente alega que a Sentença interpretou mal o disposto no art. 70º nº 2 alínea g) do CCP, pois que, em seu entender, e por força do direito comunitário, essa causa de exclusão específica abrange também necessariamente os casos passados de indícios de condutas anticoncorrenciais pelos concorrentes, ainda que de há vários anos, e não presentes ou indiciados na proposta do concorrente;
B) – Todavia, e ao contrário do que ela defende, da lei portuguesa não deriva isso: tais factos, exteriores à proposta do procedimento em causa, apenas nesta relevam se tiverem dado azo a uma decisão sancionatória que determine uma “proibição de participação” em concursos públicos futuros durante determinado período de tempo (tal como se dispõe na alínea f) do nº1 do art. 55º do CCP).
C) – Sanção acessória esta, de participação, que não existe e nunca existiu no caso presente.
D) – O legislador português nas duas normas referidas do CCP [ o art. 55º/1 f) – que prevê uma situação específica de “impedimento” para o concorrente apresentar propostas em concursos, por causa e factos passados; e o art. 70º nº 2 g) – que prevê a exclusão de “propostas” cuja análise revele indícios presentes de prática anti-concorrencial] deu aplicação plena às hipóteses consagradas na directiva europeia (art. 57º da 2014/14/EU).
E) – De resto, e como se sabe, a própria causa de exclusão prevista no nº 4 do art. 57º da Directiva, é uma causa não “obrigatória”, mas antes “facultativa”.
F) – Não é preciso, pois, e nem sequer é minimente correcto, interpretar a norma da alínea g) do nº 2 do art. 70º do CCP, com um alcance mais vasto do que aquele que resulta do seu sentido expresso e literal, e que se refere e aos indícios de prática anti-concorrencial revelados na própria proposta (ie, “resultantes da sua análise”).
G) – A norma europeia não obriga a uma leitura diferente dessa norma específica; e para os casos antigos ou passados – que não resultem da análise de proposta actual –, vale a regra e os mecanismos dos impedimentos de concorrer, previstos noutra sede.
H) – De facto, quanto ao “desenho” da causa facultativa prevista na alínea d) do nº 4 do art. 57.º da Directiva (2014/24/EU) – e que é invocado pela recorrente, e onde se funda toda a sua alegação –, é bom não esquecer que a própria directiva prevê, para ela, a necessidade de se fazer acompanhar tal previsão quando acolhida desse modo na legislação nacional, de eventuais mecanismos de minorar tais consequências (cf. considerando 102; e nºs 6 e 7 do mesmo art. 57º: “Qualquer operador económico que se encontre numa das situações referidas nos n.os 1 e 4 pode fornecer provas de que as medidas por si tomadas são suficientes para demonstrar a sua fiabilidade não obstante a existência de uma importante causa de exclusão. Se essas provas forem consideradas suficientes, o operador económico em causa não é excluído do procedimento de contratação”; e “7. Os Estados-Membros devem (...) determinar o período máximo de exclusão no caso de o operador económico não ter tomado medidas, como as especificadas no n.º 6, para demonstrar a sua fiabilidade. … esse prazo não pode ser superior a … três anos a contar da data do facto pertinente nos casos referidos no n.º 4”).
I) – Aliás, quanto ao próprio alcance específico da alínea d) do nº 4 do art. 57º da Directiva, que a Recorrente tanto invoca, Autores têm-se pronunciado no sentido de que “este fundamento se aplica apenas a ilícitos concorrenciais praticados no âmbito do procedimento específico” (cf. PEDRO GONÇALVES, Direito dos Contratos Públicos, 2ª ed., Almedina, 2018, pág. 659). Também, a posição, neste mesmo sentido de SÁNCHEZ GRAELLS, “Prevention and decorrence of bid rigging”, in G.M. Racca/C. Yukins, Integrity and efficiency in sustainable public contracts”, p.194, apud anterior, op. cit.).
J) No fundo, e bem, o legislador português procedeu, como se tem escrito (e sem crítica, a não ser agora a alegação da recorrente), a uma dicotomia quanto a este tema previsto nas directivas, abrangendo todas as hipóteses nela possivelmente contempladas (mesmo facultativas, e não-obrigatórias), e foi claro:
a) - se condutas anti-concorrenciais anteriores, cometidas fora do procedimento adjudicatório em causa, são vistas pela Autoridade da Concorrência e podem acarretar, para o concorrente, o impedimento legal de participar em procedimentos como esse: nos termos do art. 55º/1-f), do CCP;
b) - já se forem condutas, ou fortes indícios delas, reveladas na análise da própria proposta do concurso em causa, será motivo de decisão de exclusão dessa proposta e de comunicação para os devidos efeitos à autoridade da concorrência (art. 70º/2-g), do CCP).
K) – Com o devido respeito, a recorrente desvirtua o sentido das citações que faz de PEDRO SÁNCHEZ, na obra Direito da Contratação Pública, AAFDL, 2020, Vol. II. Na verdade, em lado nenhum da referida obra (e até nos locais de texto a que se reportam as citações feitas) o ilustre Autor afirma ou sufraga a tese de que a causa de exclusão aqui em causa (da alínea g/ do nº 2 do art. 70º do CCP) diga respeito a outras condutas anti-concorrenciais tomadas fora do âmbito do procedimento adjudicatório concursal que está em causa [como diz a lei: …” propostas cuja análise revele” esses fortes indícios…].
L) - Muito pelo contrário, nas páginas citadas da obra mencionada extrai-se claramente que o Autor sempre tem subjacente e se está a referir, quanto a essa hipótese legal de exclusão de propostas no concurso (da alínea g)), a condutas ocorridas no âmbito ou a propósito do procedimento concorrencial em causa.
M) - Por outro lado, nos próprios termos da directiva (nº 7 do artigo citado), e tal como nela vêm desenhados os efeitos das causas de exclusão, os Estado-Membros “devem em particular, determinar o período máximo de exclusão no caso de o operador económico não ter tomado medidas… para demonstrar a sua fiabilidade. … esse prazo não pode ser superior a …a três anos a contar da data do facto pertinente nos casos referidos no n.º 4”.
N) Assim, mesmo que, por hipótese em que se não concede, a interpretação da norma portuguesa da alínea g) do nº 2 do art. 70º tivesse de ser feita nos termos muito vastos que a Recorrente preconiza por força de uma invocada “exigência” do direito europeu, mesmo em tal hipótese…, então, por força do disposto expressamente nesse no nº 7, in fine, do mesmo artigo da Directiva, uma tal “exclusão” a decidir apenas pela entidade adjudicante no concurso nunca poderia derivar de factos outros, extra procedimento ocorridos em uma época distanciada de há mais de três anos...
O) – Ora, os factos aludidos nos autos, e que a recorrente invoca, reportam-se a um caso de há mais de três e quatro anos. Pelo que também por aí soçobraria a alegação da Recorrente.
P) – A interpretação da Recorrente é, pois, completamente forçada e inadequada. Se, como pretende a Recorrente, o júri tivesse um dever de propor a exclusão de propostas, e a entidade adjudicante de as excluir, por indícios de factos anticoncorrenciais mas ocorridos fora do âmbito do procedimento adjudicatório em causa, então… como se delimitariam estes no tempo (e em que procedimentos)? … de até quando para o passado? … A casos de há mais de 3 ou 4 ou 5 anos? …ou de 10 anos?
Q) – E, em um tal cenário, que possibilidades de defesa, relativamente às consequências disso ou a remédios (de que fala expressamente a Directiva, como algo de previsão associada necessária) estaria o concorrente dotado? Nada se diz. O que é mais uma comprovação, inequívoca, do quão desajustada é, agora, a interpretação pretendida pela Recorrente.
R) – Por outro lado, mesmo que a interpretação (ou “desenho”) da própria disposição comunitária específica em causa (o nº 4 alínea d) do art. 57º da directiva 2014/24/EU) fosse a mais ampla preconizada pela recorrente (e, como se viu, os Autores acima citados assim o não entendem), a verdade é que, seja como for, tal causa de exclusão europeia é meramente “facultativa”, e por isso, se “quem pode o mais, pode o menos”, também a norma interna do Estado-Membro pode perfeitamente prever uma tal possibilidade de exclusão da proposta ditada no concurso pela entidade adjudicante mas “reduzida” (na óptica da Recorrente) a situações em que os indícios anticoncorrenciais se verificam no próprio concurso em causa, revelados da análise da proposta nele apresentada.
S) – Para os demais casos, está a previsão do art. 55º/ f) do CCP – e suas consequências.
TERMOS EM QUE, e com o suprimento, deve ser julgado improcedente o presente recurso.
E assim far-se-á plena JUSTIÇA!

F. , S.A., contrainteressada, juntou contra-alegações, concluindo:
a) O objecto do presente recurso jurisdicional circunscreve-se à parte da Sentença recorrida na qual se deu por improcedente o vício de violação da alínea g) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP, de que padeceria a proposta da Contrainteressada F.;

b) A Recorrente, para fundar o seu recurso, invoca a necessidade de interpretação conforme da alínea g) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP com o disposto na alínea d) do n.º 4 e do n.º 5 da Directiva 2014/24/UE, no sentido de que estas normas comunitárias supostamente impõem que se considere abrangida na mencionada norma de exclusão de propostas do CCP qualquer infracção grave à Lei da Concorrência, não se cingindo a mesma aos indícios de falseamento da concorrência constatados no próprio procedimento concreto em análise (cf. conclusões 6.ª a 8.ª, 17.ª, 18.ª, 21.ª a 25.ª, das alegações da Recorrente);

c) O que não tem qualquer sustentação na lei comunitária e na lei nacional aplicáveis;

d) Como se demonstrou nestas contra-alegações, a Directiva 2014/24/UE – que veio substituir a Directiva 2004/18 /UE, em 2014 –, no respectivo artigo 57.º, n.º s 1, 2 e 4, conservou a dicotomia entre causas de exclusão obrigatória e causas de exclusão facultativa que se encontrava prevista nos n.º s 1 e 2 do artigo 45.º da anterior Directiva;

e) Com efeito, a Directiva 2014/24/UE, nos n.º s 1 e 2 do seu artigo 57.º, prescreve que as entidades adjudicantes devem excluir do procedimento qualquer operador que se encontre numa das circunstâncias aí previstas;

f) O que também significa que essas causas de exclusão aí previstas devem encontrar-se transpostas nas legislações dos diversos ordenamentos nacionais. E se, por hipótese, um desses ordenamentos não contemple todas as causas de exclusão obrigatória, deve ser feita uma interpretação conforme à Directiva nesse ponto;

g) Já no que respeita à segunda categoria de exclusões (de natureza facultativa), e que actuamente constam do n.º 4 do artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE, a mesma sempre foi interpretada – e continua a sê-lo – no sentido de que os Estados-Membros não estavam obrigados a acolher estes fundamentos de exclusão no seu ordenamento jurídico interno, dispondo antes de uma liberdade para decidir sobre se estes fundamentos de exclusão devem ser colocados à disposição das suas autoridades adjudicantes;

h) Do mesmo modo, a jurisprudência do TJUE sempre entendeu que os diversos Estados-Membros tinham a faculdade de transpor estas causas para os respectivos ordenamentos em termos menos rigorosos – nesse sentido, entre outros, ver o Acórdão de 9 de Fevereiro de 2006 (La Cascina) e o Acórdão de 10 de Julho de 2014 (Consorzio Stabile Libor Lavori Pubblici);

i) Do exposto decorre que as causas de exclusão (impedimentos) de natureza facultativa previstas nas várias alíneas do n.º 4 do artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE não são de adopção obrigatória nos diversos ordenamentos e que, no caso de um determinado Estado-Membro optar por não incorporar essas causas de exclusão no seu ordenamento, não poderá, em circunstância alguma, ser invocado o efeito directo dessas normas;

j) A causa de exclusão facultativa constante da alínea d) do n.º 4 do artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE não constava da anterior Directiva 2004/18/CE (mais concretamente, do respectivo artigo 45.º, n.º 2), nem foi objecto de transposição para o CCP, aquando da transposição da mencionada Directiva, em Agosto de 2017;

k) Na norma sobre impedimentos do Código já constava, sim – desde a redacção inicial de 2008 –, uma causa de impedimento no caso de o operador económico ter sido objeto de aplicação de sanção acessória de proibição de participação em concursos públicos prevista em legislação especial, nomeadamente no regime contraordenacional em matéria de concorrência (anterior alínea f do artigo 55.º do CCP) e que se manteve com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 111-B/2017 (cf. actual alínea f do n.º 1 do artigo 55.º do CCP);

l) À Contrainteressada F., como ficou provado nos autos, não foi aplicada, no âmbito do processo contraordenacional promovido pela AdC, qualquer sanção acessória de proibição de participação em procedimentos de contratação pública, tendo apenas sido objecto da aplicação de uma coima.

m) Por outro lado, mas não menos relevante, a alínea g) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP – relativa a uma causa de exclusão de propostas, e não de concorrentes –, consta do Código sem qualquer alteração de redacção, deste a sua versão inicial, em 2008, numa altura em que ainda não existia a norma da alínea d) do n.º 4 do artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE;

n) E note-se bem, o mencionado artigo 70.º do CCP diz respeito à exclusão de propostas, sendo que está em causa, no caso da alínea d) do seu n.º 2, a exclusão de proposta “cuja análise revele”: “a existência de fortes indícios de atos, acordos, práticas ou informações suscetíveis de falsear as regras da concorrência”;

o) Fica evidente, portanto, que não se trata de um impedimento geral derivado de comportamentos exteriores ao procedimento concreto, mas antes de uma infracção da concorrência revelada na própria proposta apresentada, no contexto do procedimento concreto;

p) Aliás, não pode ser outra a interpretação a dar à alínea d) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP, como também se demonstrou nestas alegações;

q) É que, quer a Directiva (no n.º 6 do artigo 57.º), quer o CCP (no artigo 55.º-A) prevêem, para todas as situações do n.º 4 do mencionado artigo 57.º sem excepção, a possibilidade de relevação desses impedimentos;

r) E, portanto, se por absurdo se considerasse que a norma da alínea g) do n.º 2 do artigo 70.º do Código pretenderia contemplar o impedimento da alínea d) do n.º 4 do artigo 57.º da Directiva, isso não jogaria com o regime imperativo de relevação (ou self-cleaning) de impedimentos previsto na Directiva e no CCP;

s) Conclui-se, assim, face a tudo o que ficou aqui invocado, que não pode proceder o fundamento do presente recurso jurisdicional, no sentido de que a Sentença a quo fez errada interpretação da alínea g) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP ao não fazer uma interpretação em conformidade com o disposto na alínea d) do n.º 4 e no n.º 5 do artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE;

t) Por último, a título subsidiário (e por mera cautela de patrocínio), mesmo que vingasse a tese (acima referida) de que a norma do artigo 57.º, n.º 4, da Directiva 2014/24/UE, permitiria que as entidades adjudicantes possam considerar as causas de exclusão facultativas aí previstas, mesmo nos casos em que o legislador não as incorporou no ordenamento nacional – como é o caso da causa prevista na respectiva alínea d) –, nem assim haveria fundamento para revogar a sentença recorrida;

u) É que, na verdade, essa seria uma mera faculdade da entidade adjudicante e, nesse caso, haveria que permitir a possibilidade de invocação por parte do operador económico de factos que pudessem levar à relevação do impedimento;

v) Ora, acontece que a entidade adjudicante (a Infraestruturas de Portugal) não considerou no caso concreto que existisse qualquer fundamento para considerar que a Contrainteressada F. se encontrava impedida de concorrer.

w) O que sempre constituiria fundamento para dar por improcedente o presente recurso jurisdicional.

Nestes termos, e nos demais de Direito, deve o presente recurso jurisdicional ser julgado não provado e totalmente improcedente, com todas as consequências legais.
Como é de
DIREITO E JUSTIÇA!
X
Em 21/02/2020 foi proferida a seguinte Decisão:
De Facto -
A) Ao longo dos meses de Janeiro de 2018 até Janeiro de 2020, a Ré levou a cabo acções de inspecção de várias linhas da via férrea, tendo sido identificadas milhares de anomalias em largos milhares de travessas de madeira, que carecem de acções de reparação e manutenção, muitas delas classificadas como tendo natureza urgente e muitas outras classificadas como carecendo de intervenção dita imediata (cfr. relatórios de inspecção juntos aos autos a fls. 3269 e seguintes);
B) A 21/01/2019, na II Série do Diário da República nº 14, foi publicado o anúncio de procedimento nº 497/2019, identificando a Ré como entidade adjudicante, o objecto do contrato como sendo a Aquisição de cavilhas e travessas de madeira de pinho creosotadas, indicando ainda como valor do preço base do procedimento o montante de € 2.979.200,00, o prazo de 9 meses para a execução do contrato, o prazo para a apresentação de propostas até ao 40º dia a contar da data de envio do anúncio e o critério de adjudicação como sendo o do melhor preço (cfr. documento junto com a petição inicial sob o nº 1);
C) Pela Ré foi elaborado Programa de Procedimento, do qual consta, designadamente, o
seguinte: “(…) Artigo 8º. Documentos da proposta. A proposta é constituída pelos seguintes documentos: 1. Documento Europeu Único de Contratação (DEUCP). 2. Documentos que, em função do objecto do contrato a celebrar e dos aspectos da sua execução submetidos à concorrência pelo caderno de encargos, contenham os atributos da proposta, de acordo com os quais o concorrente se dispõe a contratar: a) Proposta de preço elaborada de acordo com o modelo constante do Anexo I ao presente programa; os preços unitários não poderão ter mais que duas casas decimais; b) Declaração de Utilização de Instalações e Equipamentos, elaborada de acordo com o Anexo VI. (…) Artigo 13º. Assinatura das propostas. 1. A assinatura e a encriptação das propostas e respectiva documentação serão realizadas através de um certificado qualificado, o qual deverá ser atempadamente adquirido junto da entidade credenciada nos termos da legislação em vigor (cartão do cidadão, Digital Sign, Multicert). 2. A documentação que constitui a proposta deve ser assinada nos termos previstos na Lei nº 96/2015 de 17 de Agosto, sob pena de exclusão. 3.
Nos casos em que o certificado digital não possa relacionar directamente o assinante com a sua função e poder de assinatura, deve ser submetido à plataforma um documento electrónico oficial indicando o poder de representação e assinatura do assinante. (…)
Artigo 20º Prazo de apresentação dos documentos de habilitação pelo adjudicatário e outros necessários à celebração do contrato. 1. No prazo de 10 dias após a notificação da adjudicação, o adjudicatário deve apresentar os seguintes documentos: a) Declaração emitida conforme modelo constante do anexo II ao Código dos Contratos Públicos; b) Documentos comprovativos de que não se encontra nas situações previstas nas alíneas b), d), e) e i) do artigo 55º do Código dos Contratos Públicos; c) Certidão da Conservatória do Registo Comercial; d) Confirmar, se aplicável, os compromissos assumidos por terceiras entidades; e) Declaração relativa a trabalhadores imigrantes nos termos do Anexo V; f)
Prestar caução no montante exigido no artigo 19º do presente programa de concurso, devendo comprovar essa prestação junto da IP, no dia imediatamente subsequente. (…)
Anexo I. Modelo de proposta de preço. (…) 2. O preço contratual resulta do somatório do produto das quantidades a adquirir pelo preço unitário indicado na lista de preços unitários: (…) Travessas especiais: 1.900 m3; Trav. Mad. Pin. Creo. Vulg. VE Rect. 1,85x0,24x0,12 M: 29.000 unidades; Trav. Mad. Pin. Creo. Vulg. VL Rect. 2,80x0,26x0,13 M: 37.400 unidades; Travessas geminadas: 100 unidades; Cavilhas de Madeira: 40.000 unidades. (…)” (cfr. pasta 3 g) do PA);
D) Foi também elaborado o Caderno de Encargos, do qual constava, designadamente, o
seguinte: “(…) Cláusula 1ª Objecto. 1. O presente Caderno de Encargos (doravante designado por CE), contém as cláusulas a observar na execução do contrato relativo à
«Aquisição de cavilhas e travessas de madeira de pinho creosotadas». (…) Cláusula 2ª
Prazos. 1. A presente aquisição iniciar-se-á durante o ano de 2019 e tem um prazo de execução de 9 (nove) meses, com início na data da notificação do Tribunal de Contas. 2. O prazo para a entrega das travessas, é o proposto pelo concorrente na sua proposta, não podendo ser superior ao indicado no quadro seguinte:

AbreviaturaDesignaçãoPrazo de entrega
(dias)
ESPTravessas Especiais180
Vulg. Rect. VETrav Mad Pin Creo Vulg VE RECT150
Vulg. Rect. VLTrav Mad Pin Creo Vulg VL Rect150
GEMTravessas Geminadas180
-Cavilhas de Madeira60

(cfr. idem);
E) A C.. apresentou a sua proposta pelo valor global de € 2.696.150,00 (cf
pasta 3 k) do PA);
F) A 25/07/2019, o Conselho de Administração da Ré deliberou adjudicar o procedimento concursal ora em análise à C.., decisão esta que foi comunicada aos concorrentes a 05/08/2019 (cf pasta 3 r) do PA);
G) A 28/08/2019, entre a Ré e a C.. foi celebrado o contrato de aquisição de cavilhas e travessas de madeira (cfr. documento junto com o incidente sob o nº 3);
H) A petição inicial foi apresentada no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada a 02/09/2019 (cf fls. 1 e seguintes dos presentes autos);
I) A 24/09/2019, a Ré enviou à C.. um pedido de entrega de 12.000 unidades de travessas e cavilhas, com prazos de entrega entre Fevereiro e Junho de 2020 (cf Documento junto com o incidente sob o nº 2);
J) A Autora é a única operadora no mercado nacional com capacidade técnica para realizar a secagem artificial (cf acordo das partes);
K) A aquisição de travessas de madeira de pinho creosotadas, com recurso à secagem artificial, e com o prazo máximo de fornecimento de 3 meses, apresenta um sobrecusto de € 4,00 por unidade (cf documentos juntos pela Ré a fls. 3983 e seguintes).
De Direito -
Começa a Ré por alegar que, uma vez que se limita a Autora a peticionar, em sede de articulado inicial, a sua condenação à prática de acto devido, não procedendo efectivamente à impugnação, de forma directa, do acto de adjudicação que reputa de ilegal, não opera o efeito suspensivo automático legalmente previsto. Considera que, inexistindo na presente acção uma verdadeira e rigorosa “impugnação da adjudicação”, não está implicado o efeito suspensivo automático que o artigo 103º-A do CPTA associa a tais acções.
Em sede de contraditório, veio a Autora arguir que não assiste razão à Ré no que respeita à aduzida questão prévia, pugnando pela aplicação do efeito suspensivo automático aos presentes autos.
Vejamos.
Conforme dispunha o nº 1 do artigo 103º-A do CPTA, na redacção em vigor aquando da propositura da presente acção, “a impugnação de actos de adjudicação no âmbito do contencioso pré-contratual urgente faz suspender automaticamente os efeitos do acto impugnado ou a execução do contrato, se este já tiver sido celebrado.”
Se bem que, efectivamente, faça a lei menção expressa à impugnação de actos de adjudicação, tal não é suficiente para considerar que, caso a acção proposta tenha em vista a condenação da Ré à prática de acto devido, especificamente, a praticar o acto de adjudicação à Autora do procedimento concursal em análise, tal efeito não se produz.
Na realidade, e conforme melhor afirmado por Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha (Comentários ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, Coimbra, 2017, 4ª Edição, pág. 837), “(…) Embora o presente artigo associe, no nº 1, o efeito suspensivo automático à impugnação de actos de adjudicação, o preceito deve ser interpretado no sentido de poder ser aplicado às situações em que contra um acto de adjudicação seja deduzido um pedido de condenação à prática de acto devido, dirigido, em caso de procedência, a obter que o acto impugnado possa ser substituído por outro que seja favorável ao interesse do impugnante.
(…)”.
Sublinhe-se que, nos termos das previsões constantes dos artigos 66º e seguintes do CPTA, nas acções de condenação à prática de acto devido não deixa de se verificar a eliminação da ordem jurídica do eventual acto de indeferimento, eliminação essa que resulta directamente da pronúncia condenatória, sem que seja exigível à parte que deduza tal pedido autonomamente.
Tal solução é, aliás, a única que se compatibiliza com o estipulado na designada “Directiva Recursos” (Directiva nº 2007/66/CE do Parlamento Europeu e do Conselho), e que o legislador português procurou acolher com a nova redacção dada ao artigo 103º-A do CPTA (vide o preâmbulo do Decreto-Lei nº 214-G/2015, de 2 de Outubro).
Isto posto, dúvidas não existem que se produziu o efeito suspensivo previsto no nº 1 do artigo 103º-A do CPTA, repita-se, na redacção em vigor à data da propositura da presente acção, o que desde já se declara. Prosseguindo,
*
Assente a factualidade relevante, cumpre apreciar o incidente de levantamento do efeito suspensivo automático deduzido pela Ré.
Para tal, importa ter presentes as disposições do novo CPTA que regulam tal matéria.
Assim, determinava o artigo 103º - A do CPTA, na redacção em vigor à data da propositura da acção, que:
“1 – A impugnação de actos de adjudicação no âmbito de contencioso pré-contratual urgente faz suspender automaticamente os efeitos do acto impugnado ou a execução do contrato, se ele já tiver sido celebrado.
2 – No caso previsto no número anterior, a entidade demandada e os contra-interessados podem requerer ao juiz o levantamento do efeito suspensivo, alegando que o diferimento da execução do acto seria gravemente prejudicial para o interesse público ou gerador de consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos, havendo lugar, na decisão, à aplicação do critério previsto no nº 2 do artigo 120º. (…)
4 – O efeito suspensivo é levantado quando, ponderados os interesses susceptíveis de serem lesados, os danos que resultariam da manutenção do efeito suspensivo se mostrem superiores aos que podem resultar do seu levantamento.”
Com a entrada em vigor da Lei nº 118/2019, de 17 de Setembro, esta norma passou a ter a seguinte redacção:
“1 – As acções de contencioso pré-contratual que tenham por objecto a impugnação de actos de adjudicação relativos a procedimentos aos quais é aplicável o disposto no n.º 3 do artigo 95.º ou na alínea a) do n.º 1 do artigo 104.º do Código dos Contratos Públicos, desde que propostas no prazo de 10 dias úteis contados desde a notificação da adjudicação a todos os concorrentes, fazem suspender automaticamente os efeitos do acto impugnado ou a execução do contrato, se este já tiver sido celebrado.
2 - Durante a pendência da acção, a entidade demandada e os contra-interessados podem requerer ao juiz o levantamento do efeito suspensivo previsto no número anterior. (…)
4 - O efeito suspensivo é levantado quando, ponderados todos os interesses susceptíveis de serem lesados, o diferimento da execução do acto seja gravemente prejudicial para o interesse público ou gerador de consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos.”
De acordo com o previsto no nº 2 do artigo 13º da referida Lei nº 118/2019, de 17 de Setembro, as alterações introduzidas ao CPTA aplicam-se de imediato aos processos pendentes, pelo que considerará este Tribunal esta nova redacção apenas no respeitante ao juízo de apreciação que cumpre levar a cabo, isto é, na forma de ponderação descrita no nº 4 do artigo 103º-A do CPTA.
A tónica passim a residir no apuramento de eventuais consequências lesivas “claramente” desproporcionadas para outros interesses envolvidos, que já em que seja as mesmas “manifestamente” desproporcionadas, conforme advinha da anterior redacção.
Conforme ditado pelo normativo transcrito, impõe-se ao Tribunal que proceda a uma ponderação dos interesses que sairiam lesados com o efeito suspensivo automático decorrente da impugnação do acto de adjudicação no âmbito do contencioso pré-contratual urgente e dos inerentes danos, por forma a avaliar quais se mostram claramente superiores, decidindo em conformidade.
Para tal ponderação de interesses, e se bem que a lei ao mesmo já não faça referência, deve o Tribunal atender ao critério previsto no nº 2 do artigo 120º do CPTA, norma que determina o seguinte:
“Nas situações previstas no número anterior, a adopção da providência ou das providências é recusada quando, devidamente ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adopção de outras providências.”
Impõe, deste modo, o legislador uma cláusula de salvaguarda, ao permitir que, no interesse dos demais envolvidos no âmbito do processo pré-contratual urgente, possa ser levantado o efeito suspensivo automático, quando seja de entender que a manutenção deste efeito provocaria danos desproporcionados em relação àqueles que pretenderia evitar que fossem causados aos interesses da Autora.
Consequentemente, importa ao Tribunal formular um juízo de valor relativo, fundado na comparação da situação da Autora, titular de um interesse privado de natureza económica, e que este procura tutelar através dos presentes autos de contencioso pré-contratual, com a situação da Ré,
titular do interesse público de salvaguardar o cumprimento das suas atribuições. Assim, Conforme resulta da factualidade dada como provada, o procedimento concursal em causa nos presentes autos destina-se à celebração de um contrato público de “aquisição de cavilhas e travessas de madeira de pinho creosotadas”, tendo em vista levar a cabo acções manutenção e renovação da via férrea.
Desde logo ressalta à vista estar em causa, no presente concurso público, a prossecução de interesses públicos, quais sejam, o de assegurar e zelar pela manutenção permanente das condições de infra-estruturação e conservação da via, bem como a conservação da circulação ferroviária.
Ora, começou a Ré por arguir que, caso se mantenha o efeito suspensivo automático do procedimento concursal em análise, poderá ficar irremediavelmente em causa a segurança da circulação ferroviária. Alega, para tanto, que o fornecimento de tais travessas e cavilhas se destina a satisfazer necessidades de manutenção/reparação da via férrea reputadas de urgentes, conforme levantamento para o efeito realizado. Sublinha que as ditas travessas são fundamentais para a manutenção da designada “bitola da via”, e estão sujeitas a cargas intensas, que vão provocando a sua progressiva degradação, sendo que não dispões a Ré de peças suficientes para fazer face a todas as necessidades enfrentadas, especificamente no que respeita às travessas designadas de “especiais”, que tê tamanhos distintos e específicos, que não aqueles padronizados. Mais refere que o tempo de entrega de tais travessas varia entre os 150 e 180 dias, motivo pelo qual, aliás, e aquando da sua citação para a presente acção, havia já avançado com uma nota de encomenda dirigida à C.., para não atrasar ainda mais o início dos trabalhos. Por fim, refere que a não substituição das travessas já assinaladas como necessitando de intervenção, aliado ao facto de continuar a sua progressiva deterioração, potencia, a cada dia, a possibilidade da ocorrência de um acidente ferroviário de consequências imprevisíveis, em que o risco de perigo fatal para a integridade física dos passageiros é uma variável a considerar.
Em sede de resposta, veio a Autora alegar que dispõe a Ré, em stock, de mais de 10 mil unidades de travessas prontas a utilizar, mais afirmando que, no nosso país, já é possível realizar a secagem artificial desta madeira, num curto espaço de tempo, assim pugnando pela manutenção do efeito suspensivo.
No exercício do contraditório, arguiu a Ré que quem mais beneficia do efeito suspensivo operado pela propositura da presente acção de contencioso pré-contratual é a Autora, uma vez que é o único operador do mercado com capacidade técnica para proceder à secagem artificial, pelo que tem com esta celebrado contratos, por via de ajuste directo, para fazer face às necessidades imediatas de substituição de travessas. Mais reforça que, apesar da celebração de tais contratos por ajuste directa, as acções de manutenção e reparação identificadas como “urgentes” vão-se constante transformando em imediatas, atento a paulatina degradação da madeira, e que a aquisição de travessas de madeira com recurso à secagem artificial apresenta um sobrecusto de quatro euros por unidade, assim pugnando pelo deferimento do incidente.
Vejamos.
Como resulta da matéria de facto dada como provada, e no âmbito da realização de acções de inspecção e fiscalização, foram detectadas pela Ré dezenas de milhares de travessas de madeira e cavilhas carecidas de intervenção e substituição, acções estas de manutenção classificadas como urgentes.
Mais resulta do probatório coligido que o número total de unidades a adquirir por via da celebração do contrato de aquisição cujo procedimento concursal se discute nos presentes autos ascende a um número total de 108.400 (entre travessas regulares, travessas ditas “especiais” e cavilhas).
Ora, é facto notório que as travessas de madeira desempenham um papel fulcral na manutenção da “bitola da via férrea”, ou seja, na largura que medeia entre os carris, bem como no efectivo e conveniente assentamento destes. Por outro lado, é também notório que a madeira é um material perecível pelo que, ainda que sujeito a especiais tratamentos de preservação, tem uma duração de vida limitada. Por fim, é também claro e resulta da experiência comum que as travessas de madeira nas quais assentam os carris estão sujeitas a enorme tensão, assim contribuindo para a sua perecibilidade.
São aqui evidentes e de monta os interesses que se pretendem ver salvaguardados com o levantamento do efeito suspensivo automático, concretamente, a correcta e conveniente manutenção e conservação da via ferroviária em boas condições de circulação, assim garantindo a segurança do respectivo tráfego, seja de mercadorias seja de passageiros.
Invoca a Autora que dispõe a Ré, em stock, de mais de 10 mi, travessas de madeira, que possibilitam a satisfação das necessidades de reparação e substituição tidas como imperiosas e imediatas. Mais alega que já dispõe o nosso país da possibilidade técnica de proceder à secagem artificial de travessas, assim reduzindo consideravelmente o período de tempo necessário para o seu fornecimento, não sendo necessário aguardar pelos 150 dias ou 180 dias previstos no Programa de Procedimento.
Todavia, tal argumentação merece dois reparos.
Desde logo, e conforme sublinhado pela Ré, o recurso ao fornecimento de travessas de madeira advindas de secagem artificial pressupõe, conforme resulta da matéria de facto dada como provada, um sobrecusto na ordem dos € 4,00 por travessa, o que é, de per si, gerador de prejuízo para o interesse público. Por outro lado, e conforme também sublinhado pela Ré, não tendo sido posto em causa pela Autora em sede de resposta, esta é o único operador económico em Portugal com capacidade técnica para proceder à secagem artificial, pelo que se imporia, sem mais, a contratação exclusiva deste operador, que não de uma outra qualquer empresa.
Mas, de maior relevância, sublinhe-se que, ainda que disponha a Ré de cerca de 11 mil unidades de travessas em stock, tal número afigura-se como sendo manifestamente insuficiente para fazer face às necessidades de reparação e substituição apuradas aquando da realização de inspecções. Note-se que, atento tal apuramento, a celebração do contrato cujo procedimento concursal ora se discute tem em vista a aquisição de mais de cem mil unidades, contadas entre travessas especiais, travessas correntes e cavilhas. Ou seja, o alegado número em stock não seria suficiente para prover sequer 10% da totalidade das necessidades apuradas.
Para além do mais, sempre se diga que, apesar de ser possível acorrer, por via de ajustes directos, às necessidades classificadas de “imediatas”, aquelas reputadas “apenas” de urgentes transformar-se-ão, paulatinamente, e pelo mero decurso do tempo, em imediatas. Isto é, a premência na reparação de todas as situações detectadas nas acções de inspecção apenas parcelarmente se adia, não desaparecendo com tal subterfúgio.
Isto posto, afigura-se a este Tribunal que se está perante riscos para o interesse público demasiado sérios e ponderosos para que possam ser desconsiderados, não sendo suficiente para que se considere acautelada a segurança da via férrea a mera substituição, “pouco a pouco” e por recurso a ajustes directos, das situações já classificadas como de necessidade imediata, relegando para futuro as que já neste momento são classificadas como sendo de urgentes.
O interesse público susceptível de ser lesado, que se prende com a segurança da circulação ferroviária, de mercadorias e de passageiros (aqui ganhando enorme relevo poder estar em causa a segurança da vida humana), pode assim sair gravemente prejudicado com a manutenção do efeito suspensivo automático operado com a propositura da presente acção.
Recorde-se que o interesse da Autora na respectiva manutenção é estritamente económico, e facilmente mensurável, sendo o mesmo ressarcível no eventual vencimento de causa, o que já não sucede com o interesse público prosseguido pela Ré.
Consequentemente, dúvidas não restam que, ponderados os interesses em presença, o diferimento da execução do acto de adjudicação do contrato é gravemente prejudicial para o interesse público.
Isto posto, e face ao disposto no artigo 103º-A, nº 4, do CPTA, impõe-se decretar o levantamento do efeito suspensivo automático, o que desde já se declara.
*
Pelo exposto, em face aos fundamentos de facto e de direito que antecedem, julga-se procedente o incidente de levantamento do efeito suspensivo automático da presente impugnação do acto de adjudicação, mais se ordenando a continuação dos trâmites normais do concurso.

Desta Decisão também está interposto recurso.
Alegando, a Autora concluiu:
1ª A decisão ora recorrida, a decisão proferida pela Snrª Juíz do TAF de Viseu em 21/2/20 que decretou o levantamento do efeito suspensivo automático da ação de contencioso pré-contratual intentada pela ora Recorrente contra a ora Recorrida IP SA, padece de insuficiência no que concerne ao julgamento da matéria de facto constante da alínea a), dos factos dados como assentes;
2ª Daí que, nos termos do art. 640º, nº1, alíneas a), b) e c), do CPC, é impugnada a decisão relativa à matéria de facto em virtude de os relatórios de inspeção da linha férrea juntos aos Autos apenas terem identificado envelhecimento de fibras nas travessas em madeira, não tendo assim identificado problemas estruturais ou fraturas nas travessas;
3ª Deste modo, porque só a existência de problemas estruturais ou fraturas das travessas de madeira é que poria em causa a segurança da linha férrea ou a segurança dos passageiros, situação esta que não foi provada com os referidos relatórios, a decisão sobre a matéria de facto terá de ser alterada;
4ª Por conseguinte, deve ser alterada a alínea a) dos factos assentes com a seguinte redação:
- Ao longo dos meses de Janeiro de 2018 até janeiro de 2020, a Ré levou a cabo ações de inspeção de várias linhas da via férrea tendo sio identificadas milhares de anomalias em largos milhares de travessas de madeira (relatórios de inspeção juntos aos autos a fls. 3269 e seguintes);
5ª E devendo ainda ser aditada uma nova alínea à matéria de facto com a seguinte redação:
- As anomalias identificadas nas ações de inspeção foram envelhecimentos de fibra, não tendo sido detetadas situações de problemas estruturais ou de fraturas de travessas;
6ª Sem prejuízo da impugnação da matéria de facto, a realidade é que antes da decisão ora recorrida, a Snrª Juíz do TAF de Viseu, por decisão tomada em 31/1/20, já se tinha pronunciado sobre o incidente de levantamento do efeito suspensivo automático dos presentes autos, tendo decidido que os danos para o interesse público que efetivamente poderiam advir do não levantamento do efeito suspensivo seriam antes de natureza económica, que já não respeitantes à segurança da circulação ferroviária e dos respetivos passageiros;
7ª A decisão de 31/1/20 não foi sujeita a nenhum recurso jurisdicional pelo que transitou em julgado;
8ª Deste modo e porque a decisão ora recorrida, contrariamente ao que tinha sido decidido anteriormente em 31/1/20, veio, afinal, entender que o interesse público a ser lesado prende-se com a segurança da circulação ferroviária e dos passageiros, verifica-se assim haver contradição entre a decisão de 31/1/20 e a decisão ora recorrida, o que implica dar cumprimento ao art. 625º do CPC, dando-se prevalência à decisão que transitou em julgado em 1º lugar, a decisão de 31/1/20;
9ª E com tal prevalência o invocado interesse público na segurança da circulação ferroviária não pode ser tomado em conta por V. Exas, até porque, como se assinalou nas conclusões 1ª a 5ª, tal segurança nunca esteve em causa;
10ª No que concerne à interpretação e aplicação do artigo 103ºA do CPTA, a jurisprudência tem sido unânime em considerar que, atento o carácter excepcional do levantamento do efeito suspensivo automático nas ações de contencioso pré-contratual, o prejuízo para o interesse público só releva quando for qualificado como de gravemente prejudicial;
11ª Contudo, a decisão recorrida apenas se limitou a considerar que existe um prejuízo para o interesse público que decorrerá de um sobrecusto na ordem dos 4,00 € por travessa, sem, no entanto, o qualificar como um prejuízo gravemente prejudicial para o interesse público;
12ª Em face do exposto na conclusão anterior, o prejuízo invocado pela decisão recorrida não era suficiente para ter sido decretado o levantamento do efeito suspensivo automático dos autos;
13ª Também não colhe o que foi decidido pela decisão recorrida quando considerou não ser de tomar em consideração o interesse económico da ora Recorrente porque o eventual dano a tal interesse sempre seria ressarcível em momento posterior;
14ª Ora, tal não pode ser aceite dado que o disposto no art. 103º A do CPTA, interpretado em conformidade à Diretiva 2007/66/EC, visa garantir ao concorrente em procedimento de contratação pública não o ressarcimento de danos pela não adjudicação, mas sim que lhe seja permitido proceder à execução do contrato caso a decisão judicial venha a concluir que o mesmo devia ter-lhe sido adjudicado;
15º Por tudo o exposto, a decisão ora recorrida é ilegal por errada interpretação do nº 4 do art. 103º A, do CPTA, não podendo ser mantida na ordem jurídica pelo que deve ser revogada, fazendo-se assim a devida e merecida
JUSTIÇA.

A Entidade Demandada juntou contra-alegações e concluiu:
I. A Recorrente impugna o facto dado por provado sob a alínea A) dos factos assentes alegando que nos referidos Relatórios de Inspecção apenas se teriam identificado anomalias relacionadas com envelhecimento de fibras, não tendo sido detectados problemas estruturais ou fracturas, e que somente estas condições anómalas constituiriam risco para a segurança do transporte ferroviário.

II. Apesar de não serem apenas “problemas estruturais ou fracturas” que consubstanciam situações de risco para a segurança da circulação ferroviária, a verdade é que nos cerca de 570 Relatórios de Inspecção Principal a Aparelhos de Via constantes dos autos estão identificadas milhares de travessas “deterioradas sem garantia de aperto” e/ou “desquadradas”, que representam um gravíssimo perigo para a segurança da circulação ferroviária e dos passageiros, e que, por tal razão, estão assinaladas, nos respectivos Relatórios, como carecidas de acção imediata.

III. Aquelas milhares de anomalias − “sem garantia de aperto” e/ou “desquadradas” – que afectam criticamente milhares de travessas identificados nos referidos Relatórios, comprometem, de forma grave, o desempenho da infra-estrutura ferroviária em termos de fiabilidade e segurança, podendo daí resultar a ocorrência de acidentes com inerente RISCO DE VIDA para os passageiros, pelo que essas travessas em condição crítica para a segurança da circulação ferroviária carecem de intervenção imediata mediante acções de manutenção de natureza urgente.

IV. Sendo assim evidente, manifesto, e como tal deve ser dado por provado, como bem decidiu o Tribunal a quo, que foram “identificadas milhares de anomalias em largos milhares de travessas de madeira, que carecem de acções de reparação e manutenção, muitas delas classificadas como tendo natureza urgente e muitas outras classificadas como carecendo de intervenção dita imediata”, pelo que deve manter-se inalterado todo o conteúdo da alínea A) dos factos assentes, e sem quaisquer aditamentos.

V. A Decisão ora sob recurso não apresenta qualquer contradição com o Despacho de 31 de Janeiro de 2020.

VI. No referido Despacho de 31 de Janeiro de 2020 a Meritíssima Juiz não proferiu qualquer Decisão sobre o concreto e estrito pedido de levantamento do efeito suspensivo automático tendo apenas determinado que a Demandada IP viesse juntar aos autos documentos comprovativos da diferença de custos entre o fornecimento de travessas sujeitas a secagem artificial e sujeitas a secagem natural

VII. Em cumprimento do referido Despacho a IP fez essa comprovação da diferença de custos, e sublinhou ainda que não obstante a manutenção do efeito suspensivo automático causar também um dano de natureza económica, mantém-se plenamente actual e válido, e em plano principal, o dano que causa à segurança e fiabilidade da circulação ferroviária, susceptível de colocar gravemente em perigo a integridade física, e até a vida, dos passageiros.

VIII. Em função de todos os argumentos e elementos de prova carreados para o processo, a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo, por Decisão proferida em 21 de Fevereiro de 2020 (ora recorrida), decretou o levantamento do efeito suspensivo automático, sendo esta a primeira e única Decisão (de mérito) que o Tribunal a quo proferiu sobre o Incidente de levantamento do Efeito Suspensivo Automático, pelo que não pode, obviamente, verificar-se a alegada contradição que a Recorrente invoca, e, por conseguinte, não há que fazer quaisquer juízos de “prevalência” de decisões.

IX. Considera, ainda, a Recorrente que o Tribunal a quo fez uma errada interpretação do disposto no nº 4 do art. 103-A do CPTA que se consubstancia, segundo alega, no facto de a Douta Decisão recorrida ter decretado o levantamento do efeito suspensivo automático com fundamento num mero interesse público de natureza económica.

X. Porém, como suficientemente se demonstrou nestas Contra-alegações, tal não corresponde à verdade porquanto, do juízo de ponderação que o Tribunal a quo levou a cabo de todos os interesses (públicos e privados) susceptíveis de serem lesados, resulta evidente que os riscos para o interesse público decorrentes da manutenção do efeito suspensivo automático, e que não se resumem a meros interesses de cariz económico, são demasiado sérios e ponderosos para que possam ser desconsiderados.

XI. O prejuízo para o interesse público resultante da manutenção do efeito suspensivo automático – atendendo, por um lado, à natureza essencial que a disponibilidade, fiabilidade e segurança do transporte ferroviário assume no nosso quotidiano, e por outro, à possibilidade real de ocorrer um acidente ferroviário com consequências imprevisíveis, em que o risco de vida dos passageiros é uma variável a considerar – tem de ser qualificado de sério, intenso e grave, ao passo que o interesse da Recorrente é estritamente económico, facilmente mensurável e de fácil reparação.

XII. Assim, ponderados todos os interesses em presença susceptíveis de serem lesados, resulta evidente que o deferimento da execução do acto impugnado é gravemente prejudicial para o interesse público.

XIII. Pelo que devem ser julgados inteiramente improcedentes todos os argumentos aduzidos pela Recorrente, pois que o Tribunal a quo fez uma correcta interpretação, e aplicação, do disposto no nº 4, do art. 103º-A, do CPTA, não merecendo, também quanto a este ponto, qualquer censura.

TERMOS EM QUE, e com o suprimento, deve ser julgado improcedente o presente recurso.
E assim far-se-á plena JUSTIÇA!

A Contrainteressada, nas contra-alegações, concluiu:
a) Como se demonstrou nestas contra-alegações, nenhuma razão há para proceder ao aditamento do facto solicitado pela Recorrente nas suas alegações, e que resulta de mera interpretação sua sobre a prova documental junta aos autos pela Entidade Demandada;

b) Sendo certo que o que resulta evidente do probatório é que foram identificadas milhares de anomalias em largos milhares de travessas de madeira, que carecem de acções de reparação e manutenção, muitas delas classificadas como tendo natureza urgente e muitas outras classificadas como carecendo de intervenção dita imediata;

c) O que justifica a manutenção, nos exactos termos, da alínea A) da matéria assente, sem quaisquer aditamentos;

d) Não há qualquer contradição de julgados da decisão recorrida face ao despacho proferido em 31 de Janeiro de 2020;

e) Isto porque no despacho proferido em 31 de Janeiro de 2020 não foi tomada qualquer decisão no que respeita ao incidente de levantamento do efeito suspensivo, tendo-se o Tribunal a quo limitado a determinar à Entidade Demandada IP que viesse juntar aos autos comprovativos da diferença de custos entre o fornecimento de travessas sujeitas à secagem artificial e das sujeitas à secagem natural. Nada mais;

f) Sendo que a única decisão sobre o levantamento do efeito suspensivo foi a decisão recorrida, tomada com base nos elementos probatórios juntos aos autos pela Entidade Demandada;

g) Para pôr em causa a decisão de fundo do incidente de levantamento do efeito suspensivo automático, limita-se a Recorrente a invocar uma suposta errónea aplicação do disposto no artigo 103.º-A, porque o Tribunal a quo teria baseado o decidido unicamente num mero interesse público com natureza económica.

h) O que, como se demonstrou nestas contra-alegações, não corresponde à verdade dado que o Tribunal a quo procedeu a uma rigorosa ponderação entre os interesses públicos a acautelar por via do levantamento do efeito suspensivo automático (e que não se resumiam de todo a puros interesses económicos) e os interesses privados contrapostos, nos termos previstos no n.º 4 do artigo 103.º-A do CPTA;

i) Resultando evidente da prova produzida a prevalência do interesse público, que sairia gravemente prejudicado caso se mantivesse o efeito suspensivo do acto de adjudicação impugnado;

j) O que significa que nada há para assacar à decisão recorrida, que fez uma correcta interpretação e aplicação do disposto no n.º 4 do artigo 103.º-A do CPTA.

Nestes termos, e nos demais de Direito, deve o presente recurso jurisdicional ser julgado não provado e totalmente improcedente, com todas as consequências legais.
Como é de
DIREITO E JUSTIÇA!

O MP, notificado ao abrigo do disposto no artigo 146º/1 do CPTA, não emitiu parecer.
Cumpre apreciar e decidir.

FUNDAMENTOS
DE FACTO

Na sentença foi fixada a seguinte factualidade:
A) A 21/01/2019, na II Série do Diário da República nº 14, foi publicado o anúncio de procedimento nº 497/2019, identificando a Ré como entidade adjudicante, o objecto do contrato como sendo a Aquisição de cavilhas e travessas de madeira de pinho creosotadas, indicando ainda como valor do preço base do procedimento o montante de € 2.979.200,00, o prazo de 9 meses para a execução do contrato, o prazo para a apresentação de propostas até ao 40º dia a contar da data de envio do anúncio e o critério de adjudicação como sendo o do melhor preço (cf documento junto com a petição inicial sob o nº 1);
B) Pela Ré foi elaborado Programa de Procedimento, do qual consta, designadamente, o
seguinte: “(…) Artigo 8º. Documentos da proposta. A proposta é constituída pelos seguintes documentos: 1. Documento Europeu Único de Contratação (DEUCP). 2. Documentos que, em função do objecto do contrato a celebrar e dos aspectos da sua execução submetidos à concorrência pelo caderno de encargos, contenham os atributos da proposta, de acordo com os quais o concorrente se dispõe a contratar: a) Proposta de preço elaborada de acordo com o modelo constante do Anexo I ao presente programa; os preços unitários não poderão ter mais que duas casas decimais; b) Declaração de Utilização de Instalações e Equipamentos, elaborada de acordo com o Anexo VI. (…) Artigo 13º. Assinatura das propostas. 1. A assinatura e a encriptação das propostas e respectiva documentação serão realizadas através de um certificado qualificado, o qual deverá ser atempadamente adquirido junto da entidade credenciada nos termos da legislação em vigor (cartão do cidadão, Digital Sign, Multicert). 2. A documentação que constitui a proposta deve ser assinada nos termos previstos na Lei nº 96/2015 de 17 de Agosto, sob pena de exclusão. 3.
Nos casos em que o certificado digital não possa relacionar directamente o assinante com a sua função e poder de assinatura, deve ser submetido à plataforma um documento
electrónico oficial indicando o poder de representação e assinatura do assinante. (…)
Artigo 20º Prazo de apresentação dos documentos de habilitação pelo adjudicatário e outros necessários à celebração do contrato. 1. No prazo de 10 dias após a notificação da adjudicação, o adjudicatário deve apresentar os seguintes documentos: a) Declaração emitida conforme modelo constante do anexo II ao Código dos Contratos Públicos; b) Documentos comprovativos de que não se encontra nas situações previstas nas alíneas b), d), e) e i) do artigo 55º do Código dos Contratos Públicos; c) Certidão da Conservatória do Registo Comercial; d) Confirmar, se aplicável, os compromissos assumidos por terceiras entidades; e) Declaração relativa a trabalhadores imigrantes nos termos do Anexo V; f)
Prestar caução no montante exigido no artigo 19º do presente programa de concurso, devendo comprovar essa prestação junto da IP, no dia imediatamente subsequente. (…)
Anexo I. Modelo de proposta de preço. (…) 2. O preço contratual resulta do somatório do produto das quantidades a adquirir pelo preço unitário indicado na lista de preços unitários: (…) Travessas especiais: 1.900 m3; Trav. Mad. Pin. Creo. Vulg. VE Rect. 1,85x0,24x0,12 M: 29.000 unidades; Trav. Mad. Pin. Creo. Vulg. VL Rect. 2,80x0,26x0,13 M: 37.400 unidades; Travessas geminadas: 100 unidades; Cavilhas de Madeira: 40.000 unidades. (…)” (cf pasta 3 g) do PA);
C) Foi também elaborado o Caderno de Encargos, do qual constava, designadamente, o seguinte: “(…) Cláusula 1ª Objecto. 1. O presente Caderno de Encargos (doravante designado por CE), contém as cláusulas a observar na execução do contrato relativo à «Aquisição de cavilhas e travessas de madeira de pinho creosotadas». (…) Cláusula 2ª Prazos. 1. A presente aquisição iniciar-se-á durante o ano de 2019 e tem um prazo de execução de 9 (nove) meses, com início na data da notificação do Tribunal de Contas. 2. O prazo para a entrega das travessas, é o proposto pelo concorrente na sua proposta, não podendo ser superior ao indicado no quadro seguinte:
AbreviaturaDesignaçãoPrazo de entrega
(dias)
ESPTravessas Especiais180
Vulg. Rect. VETrav Mad Pin Creo Vulg VE RECT150
Vulg. Rect. VLTrav Mad Pin Creo Vulg VL Rect150
GEMTravessas Geminadas180
-Cavilhas de Madeira60

(…) Cláusula 3.ª Preço base. O preço máximo que a IP se dispõe a pagar pela execução de todas as prestações que constituem o objecto da presente aquisição de serviços é de €
2.979.200,00 (…) não incluindo o IVA. (…)” (cf idem);
D) No âmbito do presente concurso, foram apresentadas 5 propostas, inclusivamente àquelas da Autora e das C.. e M. (cf pasta 3 k) do PA);
E) A C.. apresentou a sua proposta pelo valor global de € 2.696.150,00, juntando os seguintes documentos: documento europeu único de contratação (DEUCP); proposta de preço; declaração de utilização de instalações e de equipamentos; certifica EN ISO14001; e certificado NP EN ISO 9001 (cf idem);
F) Do ido DEUCP apresentado pela C.. não constavam, designadamente, os códigos de acesso aos certificados de registo criminal, declaração de inexistência de dívidas à Segurança Social e à AT (cf idem);
G) Os documentos constantes da proposta apresentada pela C.. estavam assinados, por via de assinatura electrónica qualificada, por J., sendo que tal assinatura se referia a um certificado digital, emitido pela entidade designada “DigitalSign – Certificadora Digital, S.A.”, com o nº de série 6aa3196268d86cd78fb12d09dd500acf, válido até 08/08/2019, e relativamente ao qual foi emitida declaração, da qual consta nomeadamente o seguinte: “(…) 3) O Certificado Qualificado de Assinatura Electrónica emitido possui, neste caso, o perfil «Representação», para a emissão do qual a DigitalSign, em cumprimento do disposto no artigo 33.º do Regulamento eIDAS, e do artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 290-D/99, de 2 de Agosto, procedeu à verificação: 1. Da identidade do(a) requerente: J.; 2. Da qualidade de legal representante do(a) requerente da entidade F. – , SA; 3. Dos poderes do(a) titular do certificado (requerente) para actuar no âmbito do objecto de representação constante do certificado qualificado, concretamente os de assinar electronicamente em plataformas electrónicas de contratação em nome e representação da entidade F. – , SA, vinculando-a sozinho(a) em relação a terceiros, salvo limitações devidamente descritas no Certificado Digital Qualificado emitido. Pelo exposto, e nos termos da verificação referida supra, conclui-se que: Pela emissão do presente certificado qualificado de assinatura electrónica, J. poderá assinar em plataformas electrónicas de contratação, na qualidade de legal representante da entidade F. – , SA, vinculando-a sozinho(a), em relação a terceiros, sem necessidade de apresentar qualquer documento adicional para efeitos de comprovar os seus poderes de representação e vinculação da sociedade. (…)” (cf idem);
H) A 22/03/2019, o Júri do procedimento emitiu o Relatório preliminar, tendo admitido as propostas apresentas pela Autora e pela C.., mais tendo classificado a proposta apresentada por esta última em 1º lugar, atento adoptado o critério do mais baixo preço (cf pasta 3 p) do PA);
I) A 27/03/2019, a Autora remeteu ao Júri do procedimento a sua pronúncia quanto ao teor do relatório preliminar, e da qual consta, designadamente, o seguinte: “(…) 9º O Conselho de Administração da F. é composto por 5 (cinco) administradores: (i)
J.; (…). 10º A F. obriga-se com (a) a intervenção de dois administradores, ou (b) com a intervenção de um administrador, quando o Conselho de Administração o delibere e lhe confira poderes. 11º Os documentos que constituem a proposta, apresentada pelo Concorrente F., foram assinados apenas por um administrador, J., sem que tenha sido junto cópia da procuração/deliberação do Conselho de Administração a conferir-lhe poderes para individualmente representar a sociedade. 12º Pelo exposto, deverá a Concorrente F. ser excluída do procedimento, por não ter apresentado procuração/deliberação do Conselho de Administração que ateste os seus poderes para representar individualmente a sociedade e obrigar contratualmente a concorrente. (…) 15º Os documentos que instruem a proposta da F. foram electronicamente assinados por uma única pessoa, pelo administrador daquela sociedade, J., sendo que do certificado digital utilizado pelo mesmo, não resulta que detenha poderes para assinar e vincular individualmente a sociedade ao conteúdo da respectiva proposta. (…) 23º Compulsados os documentos juntos com a proposta apresentada pela Concorrente F., constatou a T., LDA que o DEUCP apresentado por esta concorrente tem a «Parte III: Motivos de Exclusão» incorrectamente preenchida, e a Parte IV: «Critérios de Selecção» não foi sequer preenchida (tem os dados em branco); motivo pelo qual não deverá ser aceite pelo Júri do Concurso, e a Concorrente F. deverá ser excluída do Concurso. 24º A F. não satisfaz o exigido na Parte III do DEUCP: «Motivos de exclusão», na medida em que não junta os links, nem códigos de acesso aos certificados de registo criminal, nem às declarações de inexistência de dívidas à Segurança Social e à Autoridade Tributária e Aduaneira. (…) 31º Pelo exposto, torna-se claro que a proposta da Concorrente F. não cumpre todos os requisitos definidos no Programa do Concurso e no Caderno de Encargos, devendo por isso ser excluída pelo Júri do Concurso.
(…)” (cf pasta 3 p) do PA);
J) A 09/07/2019, o Júri do concuro remeteu uma missiva à C.., na qual, ao abrigo do previsto no nº 3 do artigo 72º do CCP, solicita a esta a apresentação de documento oficial, legitimado pela assinatura dos seus legais representantes, conferindo poderes a J. para assinar e efectuar a inserção da proposta submetida no âmbito do concurso em causa (cf documento junto com a petição inicial sob o nº 8 e pasta 3 n) do PA);
K) A 11/07/2019, a C.. remeteu ao Júri do concurso cópia certificada da acta do seu Conselho de Administração nº 69/2017, de 20/03/2017, da mesma constando deliberação conferindo plenos poderes de representação e vinculação a J., mais remetendo informação prestada pela entidade “DigitalSign”, relativamente ao certificado da assinatura electrónica qualificada (cf documento junto com a petição inicial sob o nº 10 e pasta 3 n) do PA);
L) A 12/07/2019, a Autora enviou nova missiva ao Júri do concurso, manifestando a sua discordância quanto ao pedido de esclarecimentos dirigido à C.., uma vez que considerada que tal deficiência não poderia ser suprida por tal via (cf pasta 3 p) do PA);
M) A 17/07/2019, o Júri do concurso emitiu o Relatório Final, no qual propor a adjudicação da proposta apresentada pela C.., e no qual se pode ler, designadamente, o seguinte: “(…) 8.1. Análise à pronúncia do concorrente n.º 2 – T., LDA . O concorrente pronunciou-se sobre a admissão da proposta da F. – , SA mencionando que: (…). Analisada a pronúncia, o Júri efectuou o pedido de esclarecimento à proposta ref.ª 2488756/CL-BSV (em anexo), a solicitar nos termos do n.º 3 do artigo 72º do CCP que fosse apresentado um documento oficial, legitimado pela assinatura dos legais representantes da F. – SA, conferindo poderes a J. para assinar e efectuar a inserção da proposta submetida no âmbito do presente concurso. Em resposta ao pedido de esclarecimento foi apresentado pelo concorrente, cópia certificada da Acta do Conselho de Administração n.º 69/2017 de 20-03-2017 confirmando-se que o Administrador J. tinha plenos poderes para representar e vincular a F. – SA no âmbito do presente concurso à data da apresentação da proposta. Foi ainda mencionado pelo concorrente que: (…). Sobre as alegadas omissões e/ou preenchimento incorrecto do DEUCP o júri verificou que: a) os documentos exigidos pelo Programa de Procedimento constam da proposta, e os atributos, termos e condições exigidas de acordo com o Artigo 57.º do Código e Programa de Procedimento foram apresentados; b) a proposta não se revelou impossível de analisar, «(…) em virtude da forma de apresentação de algum dos respectivos atributos» dado que o atributo aqui em causa é o preço, nem tão pouco é relevante a Parte III e IV do DEUCP para a avaliação da proposta. c) O DEUCP consubstancia uma declaração do operador económico, o qual, sob compromisso de honra confirma que não se encontra em nenhuma das situações que possam implicar a exclusão do procedimento ao qual se apresenta. Já os documentos que permitem confirmar que um operador económico não se encontra em dívida para com a Segurança Social e, ou Autoridade Tributária são tão-somente requeridos ao Adjudicatário.
d) A parte IV do DEUCP não se aplica à avaliação de propostas e circunscreve-se à aferição de requisitos mínimos inerentes à capacidade técnica e financeira para análises de Candidatura em procedimentos concursais com fase de prévia qualificação. Face ao exposto, o Júri, mediante decisão unânime, entendeu manter o teor da análise e avaliação vertida no Relatório Preliminar, dado que não existe qualquer fundamento para a exclusão da proposta do concorrente n.º 1 – F. – , SA.. (…)” (cf Pasta 3 q) do PA);
N) A 25/07/2019, o Conselho de Administração da Ré deliberou adjudicar o contrato de aquisição de bens ora em discussão à C.., pelo preço contratual de € 2.696.150,00 (cf pasta 3 r) do PA);
O) A deliberação identificada em N) foi comunicada aos concorrentes a 05/08/2019 (cf idem);
P) Na mesma data, a Ré comunicou à C.. que dispunha de 10 dias para apresentar os documentos de habilitação exigidos no artigo 21º do Programa de Procedimento, bem como para prestar a caução exigida (cf idem);
Q) A 25/06/2019, J. renunciou à administração da C.. (cf documento junto com a petição inicial sob o nº 14);
R) A 09/08/2019, a C.. procedeu à apresentação dos documentos de habilitação idos no artigo 21º do Programa de Procedimento (cf pasta 3 t) do PA);
S) A 28/08/2019, entre a Ré e a C.. foi celebrado o contrato designado de “Aquisição de cavilhas e travessas de madeira de pinho creosotadas” (cf PA);
T) A petição inicial foi apresentada no TAF de Amada a 02/09/2019 (cf fls. 1 e seguintes dos presentes autos);
U) A 12/06/2019, e relativamente ao processo PRC/2016/6, movido contra a C.., pela Autoridade da Concorrência foi proferida decisão, da qual consta, designadamente, o seguinte: “(…) 3.1.5. Sanções acessória. 230. Nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 71.º da Lei n.º 19/2012, caso a gravidade da infracção e a culpa do infractor o justifiquem, a Autoridade pode determinar a aplicação de sanção acessória, que consiste na publicação, a expensas do infractor, de decisão de condenação proferida no âmbito do processo, no Diário da República e/ou num jornal de expansão nacional, regional ou local, após o trânsito em julgado. 231. Ainda nos termos da alínea b) do n.º 1 do mesmo artigo, a Autoridade pode privar, as empresas condenadas «do direito de participar em procedimentos de formação de contratos cujo objecto abranja prestações típicas dos contratos de empreitada, de concessão de obras públicas, de concessão de serviços públicos, de locação ou aquisição de bens móveis ou de aquisição de serviços ou ainda em procedimentos destinados à atribuição de licenças ou alvarás, desde que a prática que constitui contra-ordenação punível com coima se tenha verificado durante ou por causa do procedimento relevante», durante um período máximo de dois anos, contados da decisão condenatória, após trânsito em julgado. 232. Atentas as circunstâncias do presente caso e a proposta de transacção apresentada, conclui esta Autoridade pela desnecessidade de aplicação das referidas sanções acessórias à visada F.. (…) Decisão. Tudo visto e ponderado, o conselho de administração da Autoridade da Concorrência decide: Primeiro.
Declarar que a visada F., ao participar, entre o último trimestre de 2014 e 01.12.2015, em dois acordos entre empresas concorrentes com o objectivo de fixar o nível dos preços e repartir o mercado, no âmbito dos concursos públicos lançados pela /IP para a prestação de serviços de manutenção de aparelhos de via, na rede ferroviária nacional, via larga, cometeu duas infracções ao disposto no n.º 1 do artigo 9.º da Lei n.º 19/2012, bem como ao disposto no n.º 1 do artigo 101.º do TFUE. Segundo.
Aceitar, ao abrigo do artigo 27.º da Lei n.º 19/2012, a proposta de transacção da F., nos termos em que foi apresentada, fixando a coima a aplicar, para o efeito, em € 300.000 (trezentos mil euros) a pagar em prestações mensais iguais, pelo período de um ano, sem juros, devendo a primeira prestação ser paga no prazo máximo de 10 (dez) dias úteis após a notificação por escrito da presente decisão. Em conformidade, fixar em 10 (dez) dias úteis o prazo para que confirme por escrito que a presente Decisão, no que respeita à transacção, reflecte o teor da sua proposta, sob pena de a mesma ficar sem efeito, nos termos do disposto nos nºs 4 e 5 do artigo 27.º da Lei n.º 19/2012. Terceiro. Declarar que a F._DA é autor de dois ilícitos contra-ordenacionais previstos e punidos nos nºs 2 e 6 do artigo 73.º da Lei n.º 19/2012, por ter conhecimento e/ou ter tido participação activa nas práticas ilícitas que são imputadas à F., na qual ocupa ou ocupava cargo de administrador delegado, e por não ter adoptado qualquer diligência ou medida que impedisse a infracção ou a sua execução. Quarto. Aceitar, ao abrigo do artigo 27.º da Lei n.º 19/2012, a proposta de transacção de F._DA, nos termos em que foi apresentada, não sendo possível proceder à aplicação da coima correspondente, atendendo [Confidencial – Dados Pessoais], nos termos do n.º 4 do artigo 69.º da Lei n.º 19/2012. Em conformidade, fixar em 10 (dez) dias úteis o prazo para que confirme por escrito que a presente Decisão, no que respeita à transacção, reflecte o teor da sua proposta, sob pena de a mesma ficar sem efeito, nos termos do disposto nos nºs 4 e 5 do artigo 27.º da Lei nº 19/2012. (…) Sexto. Determinar que a eficácia da presente Decisão fica dependente da confirmação da mesma pelos visados F., F._DA e F._TA. (…)” (cf documento junto a fls. 3907 e seguintes dos presentes autos);
V) A decisão adoptada pela Autoridade da Concorrência convolou-se em definitiva a 26/06/2019 (cf idem).

DE DIREITO
Está posta em causa a sentença que ostenta este discurso fundamentador, na parte que ora releva:
Pretende a Autora, com a presente acção, que seja a Ré condenada a praticar o acto devido no procedimento nº 497/2019, consubstanciado na adjudicação do contrato de aquisição de cavilhas e travessas de madeira de pinho creosotadas à sua proposta, pelo valor de € 2.757.944,00.
Invoca, para o efeito, que está o acto de adjudicação ferido de anulabilidade, por incorrer em vícios de violação de lei. Mais invoca que a anulação de tal acto implica que seja a Ré condenada a praticar o acto devido substitutivo, qual seja, a exclusão da proposta apresentada pela C.., com a consequente colocação da sua proposta em primeiro lugar e adjudicando à Autora o contrato de aquisição de cavilhas e travessas de madeira.
Isto posto, atendendo ao objecto da lide, definido pela causa de pedir e pelos pedidos formulados, está o Tribunal em presença de um processo de contencioso pré-contratual, de condenação à prática de acto devido. De facto, e da concatenação do disposto nos artigos 66º e 67º do CPTA (aplicáveis ex vi artigo 102º, nº 1, do mesmo diploma legal), submete a Autora à apreciação judicial o bem fundado da sua pretensão material, in casu, a condenação da Ré a adjudicar o contrato de aquisição de cavilhas e travessas de madeira à proposta por si apresentada, que não a mera impugnação do acto administrativo de adjudicação de tal contrato à proposta apresentada pela C...
Todavia, revela-se de pertinente para a apreciação de tal pretensão o conhecimento prévio, pelo Tribunal, dos vícios imputados ao acto administrativo, que facilitarão a análise do pedido condenatório. Nestes termos, e por mera facilidade de análise e enquadramento jurídico, procederá o Tribunal, primeiramente, à apreciação de cada um dos fundamentos alegados no respeitante ao acto impugnado. Assim,
(….)
Da arguida violação da alínea g) do nº 2 do artigo 70º do CCP:
Por fim, vem a Autora arguir que, em data anterior à da elaboração do relatório final pelo Júri, foi publicitada pela Autoridade da Concorrência decisão de aplicação à C.. e a um dos seus administradores de coima, por violação da Lei da Concorrência em concurso público aberto pela próprio Ré, concretamente, por participação num cartel de cinco empresas de manutenção ferroviária. Invoca que, se bem que não seja tal situação prevista como um impedimento no CCP, a mesma sempre dará origem à exclusão da proposta, nos termos previstos na alínea g) do nº 2 do artigo 70º do CCP. Considera que, ao assim não ter decidido a Ré, incorreu em vício de violação de lei, pelo que é o acto de adjudicação anulável.
Em sede de contestação, veio a Ré IP alegar que nem o concurso nem a proposta apresentada pela C.. revelam quaisquer indícios de existirem, no respectivo âmbito, quaisquer condutas ou práticas susceptíveis de falsearem a concorrência. Sublinha que a decisão proferida pela Autoridade da Concorrência a 28/06/2019 se reporta a factos ocorridos nos anos de 2014/2015, sendo que só se verificará preenchido o previsto na alínea g) do nº 2 do artigo 70º do CCP se as situações indiciadoras de falseamento da concorrência se manifestem no próprio procedimento em causa, o que sucede no caso ora em análise. Por outro lado, alega que a Autoridade da Concorrência não procedeu à aplicação de qualquer sanção acessória de proibição de participação em concursos públicos, pelo que tampouco estava a C.. impedida de concorrer por operação do previsto na alínea f) do nº 1 do artigo 55º do CCP. Conclui, assim, não existir qualquer motivo de exclusão.
No mesmo sentido se pronuncia a C.. na sua contestação.
Cumpre apreciar e decidir.
Um dos princípios basilares que norteia a tramitação procedimental de formação de contratos públicos é precisamente o da concorrência. Procura o direito da contratação pública, precisamente, garantir a prevalência e primazia da igualdade de acesso e tratamento, por forma a possibilitar a maior abertura e abrangência de mercado possíveis. Estabelece, sem margem para dúvidas, o nº 1 do artigo 1º-A do CCP o seguinte:
“Na formação e na execução dos contratos públicos devem ser respeitados os princípios gerais decorrentes da Constituição, dos Tratados da União Europeia e do Código do Procedimento Administrativo, em especial os princípios da legalidade, da prossecução do interesse público, da imparcialidade, da proporcionalidade, da boa-fé, da tutela da confiança, da sustentabilidade e da responsabilidade, bem como os princípios da concorrência, da publicidade e da transparência, da igualdade de tratamento e da não-discriminação.”
O acolhimento de tal princípio reflecte-se em várias soluções normativas perfeitamente
identificáveis ao longo do CCP. Especificamente, e para o que ora nos importa, determina a alínea f) do nº 1 do artigo 55º do CCP que não podem ser candidatos, concorrentes ou integrar qualquer agrupamento, as entidades que tenham sido objecto de aplicação de sanção acessória de proibição de participação em concursos públicos prevista em legislação especial, nomeadamente nos regimes contra-ordenacionais em matéria laboral, de concorrência e de igualdade e não-discriminação, bem como da sanção prevista no artigo 460º, durante o período fixado na decisão condenatória.
Por outro lado, conforme prevê o nº 2 do artigo 70º do CCP,
“São excluídas as propostas cuja análise revele:
(…)
g) A existência de fortes indícios de actos, acordos, práticas ou informações susceptíveis de falsear as regras de concorrência.”
Ora, decorre do probatório coligido que, efectivamente, a 28/06/2019, ou seja, em momento anterior ao da elaboração do relatório final no procedimento concursal ora em análise, a Autoridade da Concorrência publicitou decisão que procede à aplicação de uma coima à C.., bem como a um dos seus administradores, por terem estes adoptado condutas violadoras da Lei da Concorrência, especificamente, a participação num cartel formado por cinco empresas de manutenção ferroviária que combinaram apresentar propostas acima do preço-base de um concurso lançado pela Ré, com o objectivo de levar esta última a pagar um valor superior ao que tinha estipulado para o concurso, em prejuízos dos recursos públicos. Foram ainda os visados condenados pelo facto de, num outro concurso, as mesmas cinco empresas terem combinado entre si repartir os lotes a concurso, assim manipulando os resultados e subvertendo a concorrência.
Resulta ainda do probatório coligido que tais condutas e factos remontam a 2014 e 2015,
tendo a C.. alcançado uma transacção com a Autoridade da Concorrência. Por fim, foi ainda dado como provado que não foi aplicada a esta empresa qualquer sanção acessória de proibição de participação em procedimentos concursais.
Isto posto, desde logo se adiante que não impendia sobre a C.. qualquer impedimento, nos termos do previsto na alínea f) do nº 1 do artigo 55º do CCP.
Dúvidas poderia colocar-se quanto à existência de uma causa de exclusão da proposta, à luz do transcrito artigo 70º, nº 2, alínea g), do mesmo diploma legal.
Todavia, desde logo se impõe uma resposta negativa. Efectivamente, e se bem que tal não decorre expressamente da redacção da indicada norma, tais indícios de eventual falseamento da concorrência deverão verificar-se em sede do próprio procedimento em análise, que não eventuais práticas anti concorrenciais.
Neste sentido se tem pronunciado, de forma clara, reiterada e unânime, a jurisprudência dos tribunais superiores portugueses. A título meramente exemplificativo, refira-se o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 28/01/2016, P. 01255/15, disponível em www.dgsi.pt.
Também Pedro Costa Gonçalves (Direito dos Contratos Públicos, Vol. 1, 3ª Edição, 2018, Almedina, fls. 719) afirma que tal motivo de exclusão deverá ser entendido como exigindo que os referidos ilícitos concorrenciais sejam praticados no âmbito do procedimento específico, que já não quanto a Práticas anteriores.
In casu, limitou-se a Autora a invocar, como práticas falseadoras da concorrência levadas a cabo pela C.., as descritas na decisão proferida pela Autoridade da Concorrência a 28/06/2019, e reportadas aos anos de 2014 e 2015, relativamente às quais foi já aplicada coima que aquela entidade julgou ser devida.
Não obstante, não provou, nem sequer alegou a Autora quaisquer indícios, eventualmente ocorridos ao longo do procedimento concursal ora em análise susceptíveis de falsearem as normas da concorrência, e praticados pela C.. ou por algum dos seus representantes.
Consequentemente, resta concluir que improcede tudo quanto veio aduzido pela Autora no que a esta matéria respeita.
*
Concluindo o Tribunal pela plena legalidade do acto de adjudicação posto em crise com os presentes autos, e tendo a C.. apresentado uma proposta por um preço mais baixo que aquele apresentado pela Autora, não assiste a esta o direito à prática de acto devido, consubstanciado na ordenação da sua proposta em 1º lugar e subsequente adjudicação do contrato público de aquisição de cavilhas e travessas de madeira de pinho creosotadas.
Face ao que vem dito, impõe-se concluir pela total improcedência dos presentes autos, o que desde já se declara.
X
Constitui entendimento unívoco da doutrina e obteve consagração legal o de que o objecto do recurso jurisdicional se encontra delimitado pelas conclusões extraídas da motivação, por parte do recorrente, não podendo o tribunal ad quem conhecer de matéria que nelas não tiver sido versada, com ressalva óbvia, dos casos que imponham o seu conhecimento oficioso.
Assim, vejamos:
O presente recurso jurisdicional é interposto da sentença de 21/2/2020 no segmento em que julgou improcedente a ação de contencioso pré-contratual intentada pela ora Recorrente contra o ora Recorrido IP SA por ter considerado e decidido não ter ocorrido a violação do artigo 70º, nº 2, alínea g), do CCP, por parte do acto de adjudicação proferido pelo Recorrido IP SA em 25/7/19.
Na óptica da Recorrente a sentença recorrida, por ter feito uma interpretação apressada do referido preceito legal, incorreu ela mesmo em ilegalidade por errada interpretação do mesmo face ao disposto no Direito da União Europeia, mais concretamente, face ao disposto no artigo 57º, nº 4, alínea d) e nº 5 da Diretiva 2014/24/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de fevereiro de 2014 relativa aos contratos públicos. Cremos que lhe assiste razão.
Conforme ficou provado na sentença recorrida - alínea U da fundamentação de facto, em 12/6/19 no Processo PRC/2016/6, movido pela AUTORIDADE DA CONCORRÊNCIA contra a Recorrida particular F. foi declarado e decidido que:
-Primeiro. A visada F., ao participar, entre o último trimestre de 2014 e 1/12/2015, em dois acordos entre empresas concorrentes com o objectivo de fixar o nível dos preços e repartir o mercado, no âmbito dos concursos públicos lançados pela /IP para a prestação de serviços de manutenção de aparelhos de via, na rede ferroviária nacional, via larga, cometeu duas infrações ao disposto no nº 1 do artigo 9º da Lei nº 19/2012, bem como ao disposto no nº 1 do artigo 101º do TFUE. Segundo. Aceitar, ao abrigo do artigo 27º da Lei nº 19/2012, a proposta de transação da F., nos termos em que foi apresentada, fixando a coima a aplicar, para o efeito, em € 300.00 (trezentos mil euros) a pagar em prestações mensais iguais, pelo período de um ano, sem juros, devendo a primeira prestação ser paga no prazo máximo de 10 dias úteis após a notificação por escrito da presente decisão.
E mais ficou provado - alínea V) da fundamentação de facto, que a decisão adoptada pela AUTORIDADE DA CONCORRÊNCIA convolou-se em definitiva a 26/6/2019, ou seja, antes do acto de adjudicação de 25/7/19;
Ora, face ao invocado vício de violação de lei por parte da ora Recorrente, o vício de violação do artigo 70º, nº 2, alínea g), do CCP em que incorria o acto de adjudicação ora em causa, dado a Recorrente ter entendido que, em face da decisão condenatória proferida pela AC contra a Recorrida particular F. por violação das regras da concorrência, o Júri tinha de excluir a sua proposta do procedimento, a sentença recorrida, ao interpretar o art. 70º, nº 2, alínea g), do CCP, veio dizer:
“E se bem que tal não decorre expressamente da redação da indicada norma, tais indícios de eventual falseamento da concorrência deverão verificar-se em sede do próprio procedimento em análise, que não eventuais práticas anti concorrenciais.”
Mais acrescentou que existiria uma reiterada e unânime jurisprudência dos tribunais superiores no sentido proposto para a interpretação do artigo 70º, nº 2, alínea g), do CCP, citando, como exemplo, o Acórdão do STA de 28/1/2016, no Procº nº 1255/15 e citando a opinião do Professor Pedro Gonçalves no seu “Direto dos Contratos Públicos, Vol. I).
Porém, não assiste razão à sentença recorrida, dado que, para além de não existir a dita jurisprudência reiterada e unânime em torno da questão ora em causa, na doutrina apenas Pedro Sanchez e Pedro Gonçalves se debruçaram sobre a interpretação do artigo 70º, nº 2, alínea g), do CCP, sendo que, como veremos, o Professor Pedro Gonçalves, face à causa de exclusão do concorrente prevista no artº 57º, nº 4, alínea d), da Diretiva 2014/24/UE, de idêntico teor à causa de exclusão da proposta prevista no art. 70º, nº 2, alínea g), do CCP, tem dúvidas sobre se a exclusão do concorrente por prática de ilícitos anti-concorrenciais diz respeito a práticas anteriores ou praticadas no procedimento.
Deste modo, a questão a decidir no presente recurso jurisdicional é saber se, para efeitos de interpretação e aplicação do artigo 70º, nº 2, alínea g), do CCP face ao disposto no Direito da União Europeia, mais concretamente, face ao artigo 57º, nº 4, alínea d) e nº 5, da Diretiva 2014/24/UE, a exclusão de uma proposta por violação das regras da concorrência por parte de um concorrente tem de se verificar no próprio procedimento ou fora dele.
Como se viu, a sentença recorrida limitou-se a interpretar e aplicar o artigo 70º, nº 2, alínea g), do CCP sem se preocupar em conformar tal interpretação com o Direito da União Europeia, mais concretamente, a Diretiva 2014/24/UE.
Ora, como nos relembra Nuno Cunha Rodrigues (“Contratação Pública e Concorrência”, AAFDL, 2019, pág. 90), a partir de 2004 “clarificou-se o enquadramento jurídico dos contratos públicos. Regem-se pelo Direito originário da União Europeia, representado actualmente pelo TJUE e pelos princípios gerais nele vertidos como a defesa das liberdades de circulação e da concorrência e pelo Direito da União Europeia derivado, traduzido no conjunto de Diretivas sobre contratação pública.
Assim, de acordo com o que decidiu o STA no seu Acórdão de 30/10/14, Proc. nº 092/14 Sumário
I - Mercê da interpretação firmada pelo «TJUE» no seu acórdão de 17.09.2014 [Proc. n.º C-341/13] e em aplicação dos princípios comunitários da primazia do Direito Europeu, da lealdade comunitária e da interpretação conforme aos Tratados e às normas jurídicas da União, o prazo de prescrição do procedimento visando a aplicação de sanções e a restituição de ajudas comunitárias irregulares, no âmbito da política agrícola comum, é de quatro anos nos termos dos arts. 01.º e 03.º do Regulamento (CE/EURATOM) n.º 2988/95.
II - Não existindo, no direito interno um prazo especialmente previsto para tal finalidade, deve ser aplicado o ido prazo, em detrimento do prazo geral da prescrição do art. 309.º do CC e do prazo de 05 anos previsto no n.º 1 do art. 40.º do DL n.º 155/92.

II - …., conforme vem sendo reiteradamente afirmado pelo TJUE do primado do Direito da União sobre o Direito nacional decorre a recusa de aplicação do direito nacional incompatível com o direito da UE, a supressão ou reparação das consequências de um ato nacional contrário ao Direito da União e a obrigação dos Estados-membros o fazerem respeitar, o princípio do efeito direto das normas europeias, o princípio da interpretação conforme e o princípio da responsabilidade do Estado por violação das obrigações europeias.
O primado dos tratados que regem a UE e das demais normas emanadas das suas instituições sobre o direito interno português sugere uma prevalência externa de todas as normas da União que, no entender de Gomes Canotilho e Vital Moreira se traduz num primado de aplicação por contraponto ao primado constitucional.
E em consonância com o princípio da interpretação conforme ou compatível com o Direito da União o intérprete e aplicador do direito nacional devem atribuir às disposições nacionais um sentido conforme ou compatível com as disposições europeias sendo que todo o direito nacional aplicável deve ser interpretado em conformidade com o Direito da União…impondo-se aos órgãos jurisdicionais nacionais que façam tudo o que for da sua competência, tomando em consideração o direito interno, considerado no seu todo, e aplicando os métodos de interpretação por este reconhecidos, para garantir a plena efetividade dos normativos da UE que estejam em causa e chegar a uma solução conforme com a finalidade pelos mesmos prosseguida.
Esta é, pois, a jurisprudência que tem sido firmada pelo TJUE, ou seja, ao aplicar o Direito nacional e, nomeadamente, as disposições de uma lei nacional especialmente aprovada para executar a diretiva…o órgão jurisdicional é obrigado a interpretar o seu Direito nacional à luz do texto e do objetivo da diretiva para atingir o resultado referido pelo actual artº 288º, nº 3. Isto significa que o particular tem o direito de exigir, perante os órgãos estaduais competentes, a aplicação da diretiva, não no sentido que a esta for dado pelo ato de transposição, mas no sentido que, de facto, resulte da letra e do espírito da diretiva. (Professor Fausto de Quadros, “Direito da União Europeia”, 3ª ed., Almedina, pág. 621);
Em face do exposto, vejamos, em 1º lugar, o que dispõe o artigo 57º, nº 4, alínea d), e nº 5 da Diretiva 2014/24/UE. Assim:
ARTIGO 57º
4. As autoridades adjudicantes podem excluir ou podem ser solicitadas pelos Estados Membros a excluir um operador económico da participação num procedimento de contratação, numa das seguintes situações:
d) Se a autoridade adjudicante tiver indícios suficientemente plausíveis para concluir que o operador económico celebrou acordos com outros operadores económicos com o objetivo de distorcer a concorrência.
5. …..
A qualquer momento do procedimento, as autoridades adjudicantes podem excluir ou ser solicitadas pelos Estados-Membros a excluir, um operador económico quando se verificar que o operador económico em causa, tendo em conta actos cometidos ou omitidos antes ou durante o procedimento, se encontra numa das situações referidas no nº 4.
Porque importante para a interpretação dos nºs 4 e 5 da Diretiva 2014/24/EU, importa ainda ter em conta o seu considerando nº 101, quando aí se diz que:
-As autoridades adjudicantes deverão, além disso, poder excluir os operadores económicos que se tenham revelado pouco fiáveis, por exemplo na sequência de infrações ambientais ou sociais, incluindo as regras em matéria de acessibilidade de pessoas com deficiência ou outras formas de falta profissional grave, como a violação das regras da concorrência… .
Em comentário a este artigo da Diretiva 2014/24/EU, refere José Azevedo Moreira (“Os motivos de Exclusão na Diretiva 2014/24/EU”, Revista de contratos públicos, Edição CEDIPRE, nº 13, Almedina, julho de 2016, págs. 43 e segs.) na verdade, não se afigura inteiramente claro se este fundamento de exclusão se dirige à deteção pela entidade adjudicante de quaisquer acordos ilícitos pretéritos, ainda que estranhos ao próprio procedimento adjudicatário, ou se, pelo contrário, a norma se refere à verificação de infrações jus-concorrenciais ocorridas no seio do próprio procedimento…
Contudo, parece duvidoso que, conforme já foi defendido na doutrina, a letra da diretiva exclua do âmbito deste impedimento as ofensas às regras da concorrência que tenham ocorrido no exterior do procedimento pré-contratual.
Seja como for, afigura-se que a verificação de quaisquer ofensas jus-concorrenciais passadas, estranhas ao procedimento adjudicatório em questão, sempre se encontrariam cobertas pela vasta amplitude da exclusão fundada na falta em matéria profissional. Para além da doutrina que no passado tem exprimido este entendimento, o TJUE já se pronunciou no sentido de que, atenta a ampla definição destas faltas oferecida pelo Acórdão Forposta, há que considerar que uma infração às regras da concorrência constitui uma causa de exclusão resultante do artigo 45º, nº 2, alínea d) da Diretiva 2004/18 - Acórdão de 18 de dezembro de 2014, proferido no proc. 470/13. No mesmo sentido, o considerando nº 101 da nova diretiva refere que as autoridades adjudicantes devem poder excluir os operadores económicos que se tenham revelado pouco fiáveis, por exemplo na sequência de infrações de obrigações ambientais ou sociais, incluindo(…) formas de falta profissional, como a violação das regras da concorrência.
Ora, como nos alerta este autor no seu comentário - nota de rodapé nº 43, pág. 57, o TJUE já fez referência a este novo motivo de exclusão na Diretiva 2014/24/UE também às infrações ocorridas fora do procedimento adjudicatório, precisamente o referido Acórdão de 18 de dezembro de 2014.
Citando o que foi aí escrito, diz-nos este autor que “no citado Acórdão estava em apreciação uma situação de exclusão fundada num comportamento anti concorrencial do passado, adoptada fora do procedimento adjudicatório e sancionado pelo “Instituto húngaro de defesa da concorrência”. Depois de salientar que a exclusão fundada numa falta grave em matéria profissional abrangeria uma situação desta natureza, o Tribunal refere ainda que o artº 57º, nº 4 alínea d), desta diretiva (a Diretiva 2014/24/UE) prevê de forma clara e precisa esta causa de exclusão. É de notar, pois, que o TJUE faz esta observação a propósito de um caso em que a infração às regras da concorrência foi estranha ao procedimento pré-contratual onde o operador faltoso foi excluído.
Em sentido próximo também se pronunciou o TJUE no seu Acórdão de 19 de junho de 2019, Proc. C-41/18 ao considerar que a faculdade de que qualquer autoridade adjudicante dispõe de excluir um proponente de um procedimento de contratação é particularmente destinada a permitir-lhe apreciar a idoneidade e fiabilidade de cada um dos proponentes como demonstram o artigo 57º, nº 4, alíneas c) e g) e o considerando 101 da Directiva 2014/24.
Com efeito, ambos os motivos de exclusão têm como fundamento um ingrediente essencial da relação do adjudicatário do contrato com a autoridade adjudicante, a saber, a fiabilidade do primeiro, no qual assenta a confiança que a segunda deposita naquele. É assim que o considerando 101, primeiro parágrafo, desta directiva enuncia que as autoridades adjudicantes podem excluir os operadores económicos que se tenham revelado pouco fiáveis, enquanto o seu segundo parágrafo toma em consideração, na execução dos contratos públicos anteriores, uma conduta ilícita que levante sérias dúvidas quanto à fiabilidade do operador económico.
E nos termos do artigo 57º, nº 5, da Diretiva 2014/24, as autoridades adjudicantes devem poder excluir um operador económico a qualquer momento do procedimento e não apenas após um órgão jurisdicional ter proferido a sua sentença, o que constitui um indício adicional da vontade do legislador da União de permitir à autoridade adjudicante efetuar a sua própria apreciação dos atos que um operador económico cometeu ou omitiu, antes ou durante o procedimento de contratação, numa das situações referidas no artigo 57º, nº 4, desta diretiva.
Deste modo, em face da jurisprudência do TJUE que já se conhece sobre o artigo 57º, nº 4 e nº 5 da Diretiva 2014/24, parece claro que a exclusão de um concorrente de um procedimento adjudicatório por factos praticados antes do procedimento, como sejam actos que constituam violação das regras da concorrência, seja um motivo de exclusão do concorrente por parte da entidade adjudicante;
Voltando ao caso concreto e à sentença recorrida, para além de a mesma ser completamente omissa na interpretação do artigo 70º, nº 2, alínea g), do CCP, face ao Direito da União Europeia, a mesma louva-se na opinião do Professor Pedro Gonçalves para decidir que a causa de exclusão da proposta prevista no referido preceito legal só se aplica a ilícitos concorrenciais praticados no âmbito do procedimento.
Importa, pois, ver com cuidado o que nos diz o autor que aí foi citado sobre a questão em causa.
Assim, diz-nos Pedro Gonçalves a propósito dos motivos de exclusão na Diretiva 2014/24/UE que não se encontram previstos no CCP que conforme se dispõe no artigo 57º, nº 4, alínea d), a autoridade adjudicante pode excluir um candidato ou concorrente se tiver indícios suficientemente plausíveis para concluir que o operador económico celebrou acordos com outros operadores económicos com o objectivo de distorcer a concorrência.
E acrescenta que “trata-se de um motivo de exclusão aditado em 2014. Não é claro se este fundamento de exclusão se aplica apenas em relação aos ilícitos concorrenciais praticados no âmbito do procedimento específico ou se abrange práticas anticoncorrenciais anteriores; parece-nos mais correta a primeira solução. (em “Direito dos Contratos Públicos”, 3ª ed., Vol. I, pág. 719).
Ora, muito embora Pedro Gonçalves reconheça que a causa de exclusão prevista no artigo 57º, nº 4, da Diretiva, é uma causa de exclusão facultativa, logo, não era obrigatório que a mesma constasse do Direito nacional, acaba por reconhecer que embora o CCP não preveja a situação como impedimento, no entanto, transforma aquilo que é uma causa de exclusão do concorrente na Diretiva em causa de exclusão da proposta. (Ob. cit. Pág. 659).
Sendo assim, quer isto dizer que o artigo 70º, nº 2, alínea g), do CCP, não se coloca numa situação de incumprimento da Diretiva, mas, em algo diferente ou seja, sendo ele mesmo uma causa de exclusão do concorrente da Diretiva 2014/24/EU transformada em causa de exclusão da proposta no CCP, e sendo o CCP a transposição da Diretiva para a ordem jurídica nacional - artº 1º, nº 2, do DL nº 111-B/2017, de 31 de agosto, tal implica que há que proceder à interpretação do artº 70º, nº 2, alínea g), em conformidade ao Direito da União Europeia, quer o Direito originário quer o Direito derivado.
Deste modo, e seguindo o Acórdão do STA de 30/10/14 atrás referido, o artº 70º, nº 2, alínea g), do CCP, por constituir uma causa de exclusão da proposta que na Directiva 2014/24/UE é uma causa de exclusão do concorrente, tem de ser interpretado de modo conforme ao Direito da União Europeia.
Assim, da interpretação dos artigos 119º, nºs 1 e 2 e 120º, do “Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia” - TJUE, onde se estipula que a ação dos Estados Membros e da União implica, nos termos dos disposto nos Tratados, a adoção de uma política económica…conduzida de acordo com o princípio de uma economia de mercado aberta e de livre concorrência, resulta que, conforme o reconhece o TJUE, a concorrência é o valor mais destacado do Direito da Contratação Pública (Pedro Sánchez, “Direito da Contratação Pública”, Vol. I, AAFDL Editora, 2020, pág. 74), pelo que a concorrência constitui um valor comum, central e prioritário para o direito da contratação pública (Pedro Gonçalves, “Direito dos contratos públicos”, Vol. I, 2ª ed., pág. 332).
O que está pois em causa no artigo 70º, nº 2, alínea g) do CCP, face aos artigos 119º, nºs 1 e 2 e 120º do TJUE e face ao artigo 57º, nº 4, alínea d) e nº 5, da Diretiva 2014/24/EU, é a possibilidade de as entidades adjudicantes poderem reagir à violação das regras da concorrência pelos concorrentes, quer as práticas anti-concorrenciais tenham tido lugar no procedimento quer tenha ocorrido anteriormente à abertura do procedimento.
A redação do parágrafo segundo do nº 5 do artigo 57º da Diretiva, não deixa margem para dúvidas quando aí se refere expressamente que “a qualquer momento do procedimento, as autoridades adjudicantes podem excluir…um operador económico quando se verificar que o operador económico em causa, tendo em conta os actos cometidos ou omitidos antes ou durante o procedimento, se encontra numa das situações referidas no nº 4 - acordos com o objectivo de distorcer a concorrência.”
Mas que actos ou práticas anti-concorrenciais estarão abrangidos pelo artigo 70º, nº 2, alínea g), do CCP?
De acordo com Pedro Fernández Sánchez (Ob. cit. Vol. II, pág. 275) em comentário a este preceito, a sua “redação evidencia, por um lado, a intenção legislativa de abarcar qualquer conduta anti-concorrencial: a exclusão pode justificar-se pela existência de actos isolados de um operador de mercado, de práticas concertadas de vários operadores ou, ainda, da obtenção de informações privilegiadas por parte de um ou mais operadores.
Todavia, a mesma redação evidencia, por outro lado, que a conduta que é objeto da exclusão não corresponde a uma qualquer prática que seja reputada como genericamente prejudicial para o decurso do procedimento concorrencial. A lei promove aqui uma remissão para as “regras da concorrência”, o que equivale a dizer que insere nesta alínea g) a porta para a entrada no procedimento da contratação pública dos métodos de controlo de ilícitos concorrenciais, isto é, punidos pela Lei da Concorrência - actualmente os artigos 9º a 12º da Lei nº 19/2012, de 8 de maio.
Em suma:
-a alínea g) do nº 2, do art. 70º será recrutada no caso de a conduta identificada pelo júri se subsumir aos artigos 9º a 12º da Lei nº 19/2012, de 8 de maio, sendo qualificada como ilícito concorrencial.
Foi precisamente o que se passou nos presentes Autos.
Com efeito, conforme resulta da matéria de facto dada como provada na sentença recorrida - alínea U, a AUTORIDADE DA CONCORRÊNCIA, no seguimento de processo contra-ordenacional (PRC/2016/6 -Ofício remetido ao TAF de Viseu em 17/1/20) e em que estavam em causa procedimentos de contratação pública de aquisição de serviços de manutenção de aparelhos de via, na rede ferroviária nacional, com as componentes de Manutenção preventiva Sistemática, Manutenção preventiva Condicionada e Manutenção Corretiva, apurou:
-Acordo de fixação do nível dos preços-
-Ponto 173, fls. 48. A F. participou num acordo para a fixação do nível dos preços da prestação dos serviços de manutenção de aparelhos de via, na rede ferroviária nacional, via larga;
-Ponto 174, fls. 48. A F., juntamente com as suas concorrentes, coordenou o seu comportamento para efeitos da sua participação em concursos lançados pela /IP, com o propósito de fixar o nível dos preços para a prestação dos serviços de manutenção de aparelhos de via, na rede ferroviária nacional, via larga;
-Ponto 175, fls. 49. A F., juntamente com as suas concorrentes, acordou apresentar acima do preço contratual máximo e/ou abster-se de participar nos concursos e contratos…com o objectivo de promover o aumento do preço contratual máximo, inicialmente estabelecido pela /IP para a prestação de serviços de manutenção de aparelhos de via, na rede ferroviária nacional;
-O acordo de repartição do mercado-
-Ponto 178, fls. 49. A F., juntamente com as suas concorrentes, coordenou o seu comportamento para efeitos da sua participação no procedimento e contratos nº….com o objectivo de repartir a prestação de serviços de manutenção de aparelhos de via, na rede ferroviária nacional, via larga, fixando, igualmente, o nível dos preços praticados no âmbito do identificado procedimento concursal;
-Ponto 182, fls. 50. A F. e as suas concorrentes, adotaram, em conjunto e conscientemente, um plano de ação comum no mercado nacional de prestação dos serviços de manutenção de aparelhos de via, na rede ferroviária nacional, via larga, em Portugal continental, condicionando reciprocamente a sua liberdade de ação e eliminando a incerteza dos respetivos comportamentos.
-Gravidade das infrações-
-Ponto 223, fls. 56. As infrações objeto do presente processo de contraordenação traduzem-se num acordo de repartição do mercado e num acordo de fixação do nível dos preços, com o objecto de impedir, restringir ou falsear, de forma sensível, a concorrência;
-Ponto 224, fls. 56. Nessas circunstâncias, conclui-se pela elevada gravidade das infrações cometidas pela F., tratando-se de restrições horizontais de tipo “cartel”, traduzidas na coordenação de condutas no mercado com o objetivo de repartir o mercado e fixar o nível dos preços o que pode afetar de forma especialmente gravosa o bom funcionamento do mercado;
-Ponto 226, a fls. 57. As infrações cometidas pela F. são, pois, qualificadas como infrações muito graves.
Assim, dúvidas não restam que em procedimentos de contratação pública anteriores ao procedimento dos Autos, procedimentos esses que incidiram, tal como o do Autos, sobre a prestação de serviços na rede ferroviária nacional e em que figurava como entidade adjudicante a e, depois, a ora Recorrida IP, foram cometidas por parte da Recorrida particular F. graves infrações à Lei da Concorrência.
Por isso mesmo, choca à consciência ético-jurídica que uma empresa que foi condenada com uma coima num processo de contra-ordenação pela prática de graves infrações à Lei da Concorrência, com prejuízo para o funcionamento transparente do mercado e com prejuízo para uma entidade adjudicante, um mês depois de ser condenada pela Autoridade da Concorrência ao pagamento de uma coima pela prática de tais infrações, venha a ser “premiada” pela mesma entidade adjudicante a quem quis prejudicar, com uma adjudicação de prestação de serviços que incidia igualmente sobre a rede ferroviária nacional - lê-se nas alegações e aqui corrobora-se.
A interpretação da Ordem Jurídica, neste caso, a interpretação do artigo 70º, nº 2, alínea g), do CCP, face ao Direito da União Europeia, não pode permitir um tal “prémio”, sob pena de se permitir a subversão dos objetivos da União previstos no nº 3, do artº 3º do “Tratado da União Europeia” (TUE), a saber, o mercado interno, o qual assenta numa economia social de mercado altamente competitiva e na adopção de uma política económica conduzida de acordo com o princípio de uma economia de mercado aberta e de livre concorrência - artigos 119º, nºs 1 e 2 e 120º do “Tratado de Funcionamento da União Europeia” (TFUE).
Assim, considerando que os objetivos da UE são muito relevantes na interpretação do Direito da União, na medida em que o Tribunal de Justiça interpreta com frequência as disposições dos Tratados à luz dos objectivos da União (Ana Maria Guerra Martins, “Manual de Direito da União Europeia”, Almedina, 2012, págs. 211 e 212) e considerando ainda que o Tribunal de Justiça tem decidido que toda a autoridade nacional deve, em caso de dúvida sobre o sentido de uma disposição nacional, interpretá-la à luz do Direito Comunitário (hoje Direito da União), retirando assim o TJUE do primado do Direito da União um princípio de interpretação do Direito Nacional conforme ao Direito da União Europeia (Ana Maria Guerra Martins, Ob. cit. pág. 499 e 500), o artigo 70º, nº 2, alínea g), do CCP, não pode ser interpretado como o interpretou a sentença recorrida.
Deste modo, repete-se, tendo ficado provado que, cerca de um mês antes de ter sido proferido o acto adjudicatório por parte do Recorrido IP, a Recorrida particular F. foi condenada pela Autoridade da concorrência com uma coima pela prática de ilícitos anti-concorrenciais, a saber, duas infrações ao disposto no nº 1 do artigo 9º da Lei nº 19/2012, bem como ao disposto no nº 1, do artigo 101º do TFUE, infrações estas que a Autoridade da Concorrência não hesitou em classificar de muito graves, impunha-se que o Júri do concurso do procedimento concursal nº 497/2019 e referente à celebração de um contrato de aquisição de cavilhas e travessas de madeira de pinho cresotado, tivesse que excluir a proposta da concorrente F..
Havendo dúvidas sobre se o preceito em causa se aplicava a ilícitos anti-concorrenciais praticados no procedimento ou praticados anteriormente ao mesmo, o Júri, perante uma decisão condenatória pela prática de ilícitos anti-concorrenciais muito graves, teria que interpretá-lo face ao disposto no Direito da União Europeia - artº 3º, nº 3, do TJUE, artigos 119º e 120º do TJUE, bem como do seu artigo 101º e artigo 57º, nºs 4 alínea d) e 5º, da Diretiva 24/2014/UE, incluindo o seu considerando 101, e, com tal interpretação, proceder à exclusão da proposta da F. pela prática comprovada de ilícitos graves anti-concorrenciais.
Como nos ensina Pedro Sánchez (Ob. cit. Vol. II, págs. 303/304, aqui trazido pela Autora) uma vez verificados os pressupostos que desencadeiam a estatuição de qualquer norma enunciadora de uma causa de exclusão, não assiste ao júri qualquer margem para optar por propor ou não propor a sua exclusão; nem assiste ao órgão competente para a decisão de contratar qualquer margem para impor ou não impor essa exclusão.
A manutenção da estabilidade das regras procedimentais sobre a qual se alicerça o bom funcionamento dos princípios da concorrência determina a prática vinculada de um acto administrativo de exclusão da proposta afetada por fundamento legal ou procedimental de exclusão.
Assim sendo, porque os Tribunais nacionais zelam pela aplicação do Direito da União Europeia na ordem interna dos Estados-membros (Ana Martins, Ob. cit. pág. 540), e porque a concorrência se assume como um valor cardinal da ordem jurídica, de interesse público e tutelado no âmbito do Direito Público (Pedro Gonçalves “Concorrência e Contratação Pública” in “Estudos em Homenagem a Miguel Galvão Teles”, Vol. I, Almedina, pág. 482), tem a sentença recorrida, por errada interpretação do art. 70º, nº 2, alínea g), do CCP face ao Direito da União Europeia, de ser revogada e, consequentemente, ser o Recorrido IP SA condenado a praticar o acto devido: o acto de adjudicação da aquisição de cavilhas e travessas de madeira de pinho cresotado à ora Recorrente.
Acolhendo-se, por inteiro, a leitura da Autora/Recorrente, naturalmente sucumbe o entendimento dos Recorridos, apesar do labor jurídico que também se reconhece às suas peças processuais.
X
Do recurso da Decisão atinente ao Incidente de levantamento do efeito suspensivo automático -
Antes de se entrar na argumentação da Recorrente, importa tecer algumas considerações introdutórias sobre o artigo 103º-A do CPTA, por forma a melhor se compreender o conteúdo do despacho.
Dispõe este artigo que “a impugnação dos atos de adjudicação no âmbito do contencioso pré-contratual urgente faz suspender automaticamente os efeitos do ato impugnando ou a execução do contrato, se este já tiver sido celebrado”.
Esta nova disposição resulta da transposição da Directiva nº 2007/66/CE, de 11 de dezembro, que veio introduzir alterações à “Directiva Recursos” (Directiva nº 89/665/CEE, de 21 de dezembro), visando “(…) melhorar a eficácia do recurso em matéria de adjudicação de contratos públicos, atento às deficiências que estas apresentavam, onde «figura, em especial, a inexistência de um prazo que permita interpor um recurso eficaz entre o momento da decisão de adjudicação e o de celebração do contrato em causa», o que «conduz a que as entidades adjudicantes, que pretendam tornar irreversíveis as consequências da decisão de adjudicação contestada, procedam rapidamente à assinatura do contrato” (cf considerando nº 4 da aludida Directiva).
A intenção dessa Directiva foi, assim, a de evitar a constituição de situações de facto consumado na pendência dos processos judiciais resultante de uma «corrida à assinatura» dos contratos” (Acórdão do TCA Sul de 28/10/2010, proc. 06616/10).
Refere António Cadilha que a “Diretiva 2007/66/CE teve por principal finalidade corrigir ou atenuar a situação (…) de défice de tutela jurisdicional dos participantes em procedimentos de contratação pública, em particular no que respeita à possibilidade de impugnação, em momento útil, do ato decisivo deste tipo de procedimentos (o ato de adjudicação).
Tal défice resultava de algumas deficiências que atingiam, em termos de configuração e eficácia, os sistemas de contencioso em matéria de contratação pública que vigoravam nos vários Estados-membros no início do processo de revisão da Diretiva “Recursos”. (…) A prática demonstrava que a «anulação de contratos públicos na sequência da anulação de atos pré-contratuais da entidade adjudicante era uma situação claramente excecional». A celebração e início de execução do contrato tendia a tornar material ou juridicamente irreversíveis as infrações ao direito da contratação pública - pelo menos no plano da reparação natural, por via da reconstituição da situação jurídico-procedimental existente antes de tais infrações” (Contencioso pré-contratual, in “Julgar”, 2014, pág. 208).
(No mesmo sentido, cf o mesmo autor e Carlos Cadilha, em O Contencioso Pré-Contratual e o Regime de Invalidade dos Contratos Públicos. Perspetivas Face à Diretiva 2007/66/CE (Segunda Diretiva «Meios Contenciosos», 2013, págs. 49, 53 e 54).
Importa ainda salientar que “o perigo de constituição de uma situação de «facto consumado», em caso de não suspensão do procedimento pré-contratual, encontra-se aqui, por definição, preenchido, já que, se o contrato for celebrado e executado na pendência da acção, se e quando for proferida sentença favorável ao autor, já não haverá qualquer procedimento pré-contratual para retomar nem qualquer contrato para executar; haverá antes uma impossibilidade de reconstituição da situação actual hipotética em que o autor se encontraria caso o acto ilegal não tivesse sido praticado, o que esvazia a tutela primária do autor e o remete para uma tutela meramente indemnizatória, secundária face à reparação natural” (Marco Caldeira, “Novidades no domínio do contencioso pré-contratual”, em O Anteprojecto de Revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais em Debate, 2014, pág. 173).
Por estes motivos, a regra consagrada no CPTA, após a revisão de 2015, é a de que a impugnação de ato de adjudicação faz suspender automaticamente os efeitos do ato impugnado ou a execução do contrato, se este já tiver sido celebrado. Só assim não será se “o diferimento da execução do ato for gravemente prejudicial para o interesse público ou gerador de consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos (…)” (artigo 103º-A/2).
Dito de outro modo, à luz do mencionado artigo 103º-A, a regra geral é a da proibição de execução do acto, só podendo tal efeito suspensivo automático ser afastado se se demonstrar que tal é gravemente prejudicial para o interesse público ou que os danos que resultariam da sua suspensão seriam claramente superiores àqueles que resultariam do seu levantamento.
É, pois, ao abrigo deste novo regime legal que deve ser entendido e apreciado, quer o requerimento apresentado pela aqui Recorrente, quer o despacho em apreço.
Vejamos:
A Recorrente insurge-se contra a Decisão proferida em 21 de fevereiro de 2020, que decretou o levantamento do efeito suspensivo automático previsto no art.º 103º-A do CPTA, dela tendo interposto recurso com os seguintes fundamentos:
a) A matéria de facto dada como provada sob a alínea A) deve ser alterada e aditado um novo facto;
b) Prevalência da Decisão contida no Despacho de 31/01/2020 sobre a Decisão (de 21.02.2020) que recaiu sobre o Incidente de Levantamento do Efeito Suspensivo Automático;
c) Ilegalidade da Decisão recorrida por errada interpretação do disposto no nº 4 do art. 103-A do CPTA.
Como se passa a demonstrar, não assiste razão à Recorrente em nenhum dos argumentos com que fundamenta este seu recurso.
A – Quanto à impugnação da matéria de facto:
Sob a alínea A) dos factos assentes o Tribunal a quo deu por provado que “Ao longo dos meses de Janeiro de 2018 até Janeiro de 2020, a Ré levou a cabo acções de inspecção de várias linhas da via férrea, tendo sido identificadas milhares de anomalias em largos milhares de travessas de madeira, que carecem de acções de reparação e manutenção, muitas delas classificadas como tendo natureza urgente e muitas outras classificadas como carecendo de intervenção dita imediata (cf. relatórios de inspecção juntos aos autos a fls. 3269 e seguintes)”.
A Recorrente impugna este facto (dado como provado) alegando que nos referidos Relatórios de Inspecção apenas se teriam identificado anomalias relacionadas com envelhecimento de fibras, não tendo sido detectados problemas estruturais ou fracturas, e que somente estas condições anómalas constituiriam risco para a segurança do transporte ferroviário.
Diga-se, desde já, que a Recorrente não tem qualquer razão quanto ao que alega, pelas seguintes duas razões principais:
Primeiro: não são apenas “problemas estruturais ou fracturas” que consubstanciam situações com potencial impacto crítico directo na fiabilidade e segurança da circulação ferroviária. Efectivamente tais situações carecem de intervenção correctiva urgente e, em alguns casos, imediata, por representarem um elevado risco de ocorrência de acidentes, mas existem muitas outras anomalias igualmente precursoras de acidentes ferroviários com consequências graves para a segurança (e a própria vida) dos passageiros.
Segundo: nos cerca de 570 Relatórios de Inspecção Principal a Aparelhos de Via constantes dos autos (fls. 3270 a 3790 do processo SITAF), elaborados com recurso a equipamento técnico especializado de avaliação da via (e não por inspecção visual como afirma a Recorrente), estão identificadas milhares de travessas em condição crítica para a segurança da circulação ferroviária, sendo que nenhuma das irregularidades/deformações aí identificadas está relacionada com envelhecimento de fibras.
Da análise desses cerca de 570 Relatórios de Inspecção Principal verifica-se, na verdade, que estão aí identificados milhares de travessas “deterioradas sem garantia de aperto” e/ou “desquadradas”, que representam um gravíssimo perigo para a segurança da circulação ferroviária e dos passageiros, e que, por tal razão, estão assinaladas, nos respectivos Relatórios, como carecidas de acção imediata.
De entre os vários constituintes da via-férrea, a “travessa” constitui um elemento fundamental para a segurança da circulação ferroviária e passageiros porquanto, entre o mais, é responsável pela fixação dos carris garantindo o correcto afastamento entre ambos, ou seja, garante a “bitola da via”, sendo que a ocorrência de variações na “bitola da via” (degradação da qualidade geométrica da via) é um grave precursor de acidentes ferroviários, sobretudo, por descarrilamento”.
Veja-se o grave descarrilamento de um comboio [felizmente] de mercadorias ocorrido no dia 2017-04-01 na Linha do Norte, próximo da Adémia que, como aponta o Relatório da investigação ao acidente elaborado pelo GPIAAF – Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários (consultável em http://www.gisaf.gov.pt/?lnk=1282ca70-b489-4691-8079-6d8f784788ec), teve precisamente por causa uma anomalia na geometria da via (a via deformou-se por insuficiente suporte das travessas) conforme se evidencia na “árvore causal do acidente” (cf pág. 139 do referido Relatório).
Como aí se conclui, o descarrilamento do comboio deveu-se a anomalia na geometria de via causada pelo insuficiente suporte das travessas (em resultado de travessas deterioradas sem garantia de aperto, travessas danificadas, travessas desquadradas, etc.)
O que antecede permite seguramente concluir que aquelas milhares de anomalias - “sem garantia de aperto” e/ou “desquadradas” - que afectam criticamente milhares de travessas identificados nos referidos Relatórios, comprometem, de forma grave, o desempenho da infra-estrutura ferroviária em termos de fiabilidade e segurança, podendo daí resultar a ocorrência de acidentes com inerente risco de vida para os passageiros… ;…pelo que essas travessas em condição crítica para a segurança da circulação ferroviária carecem de intervenção imediata mediante acções de manutenção de natureza urgente.
Sendo assim evidente, manifesto, e como tal tem de ser dado por provado, como bem decidiu o Tribunal a quo, que foram “identificadas milhares de anomalias em largos milhares de travessas de madeira, que carecem de acções de reparação e manutenção, muitas delas classificadas como tendo natureza urgente e muitas outras classificadas como carecendo de intervenção dita imediata”.
(Decidiu-se no Acórdão do STJ, de 10 de março de 2005, que a plenitude do segundo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto sofre naturalmente a limitação que a inexistência de imediação necessariamente acarreta, não sendo, por isso, de esperar do tribunal superior mais do que a sindicância de erro manifesto na livre apreciação das provas.
No mesmo sentido o Acórdão da RC de 09/03/2010: “O uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados.”
E, o Acórdão da RL de 31/03/2011: “A alteração da decisão sobre a matéria de facto - em função da reapreciação da prova - só deve ocorrer caso o tribunal recorrido haja incorrido em patente equívoco ou erro na apreciação das provas, erro esse resultante da patente desconformidade da decisão em relação aos meios de prova.”
Exarou-se, nesse Acórdão, o seguinte: “Saber se a decisão de facto deve ser alterada em função dessa reapreciação, não estando em causa a renovação dos meios de prova, é, conforme tem sido entendido por este colectivo, é algo que impõe que o Tribunal recorrido, em face do princípio da livre apreciação das provas, haja incorrido em patente equívoco, erro na sua apreciação, erro esse resultante da patente desconformidade da decisão em relação aos meios de prova.”
E, o Acórdão da RC de 28/06/2011 refere que “Na impugnação da decisão da matéria de facto do tribunal de 1ª instância, o objecto precípuo da cognição do Tribunal da Relação não é a coerência e racionalidade da fundamentação da decisão de facto, mas antes uma apreciação e valoração autónoma da prova produzida, labor que contudo se orienta para a detecção de qualquer erro de julgamento naquela decisão da matéria de facto. Por isso, não bastará uma qualquer divergência na apreciação e valoração da prova para determinar a procedência da impugnação, sendo necessário constatar um erro de julgamento.”).
Improcede, assim, a requerida alteração, e aditamento, da matéria de facto dada como provada na Decisão sob recurso.
Quanto à alegada prevalência da Decisão contida no Despacho de 31/01/2020 sobre a Decisão do Incidente Para Levantamento do Efeito Suspensivo Automático:
Alega a Recorrente que existem duas decisões contraditórias sob o mesmo pedido de levantamento do efeito suspensivo automático formulado pela Demandada IP: uma proferida em 31 de janeiro de 2020 e outra em 21 de fevereiro de 2020, às quais, porque contraditórias sobre a mesma pretensão, seria aplicável o disposto no artº 625º do Código de Processo Civil, prevalecendo, assim, a Decisão contida no Despacho de 31/01/2020.
Sucede, porém, que a Recorrente labora em equívoco.
Na verdade, no Despacho de 31 de janeiro de 2020 a Senhora Juíza não proferiu qualquer Decisão sobre o concreto e estrito pedido de levantamento do efeito suspensivo automático formulado pela IP.
É verdade que fora aí configurado como hipótese que os danos para o interesse público resultantes do efeito suspensivo automático poderiam ser, antes, de natureza económica consubstanciados na diferença de custo entre as travessas sujeitas a secagem artificial e sujeitas a secagem natural. Mas tal segmento do Despacho não configura qualquer decisão sobre o pedido de levantamento do efeito suspensivo automático (e muito menos para os efeitos ora pretendidos pela Recorrente).
Trata-se, apenas, de uma mera conjectura do Tribunal a quo, no contexto da qual a Senhora Juíza determinou que a Demandada IP viesse juntar aos autos documentos comprovativos da diferença de custos entre o fornecimento de travessas sujeitas a secagem artificial e sujeitas a secagem natural.
Em cumprimento do referido Despacho de 31.01.2020 a IP fez essa comprovação da diferença de custos, e sublinhou ainda que o adiamento (devido à manutenção do efeito suspensivo automático) das acções de manutenção urgentes necessárias realizar na rede ferroviária, cuja necessidade está suficientemente evidenciada nos Relatórios de Inspecção Principal juntos aos autos, faz aumentar drasticamente o número de situações graves carecidas de intervenção urgente que, por défice de manutenção, se vão transformando em situações perigosas carecidas de intervenção imediata. Concluindo que, não obstante a manutenção do efeito suspensivo automático causar também um dano de natureza económica, mantém-se plenamente actual e válido, e em plano principal, o dano que causa à segurança e fiabilidade da circulação ferroviária, susceptível de colocar gravemente em perigo a integridade física, e até a vida, dos passageiros.
Em função de todos os argumentos e elementos de prova carreados para o processo, a Senhora Juíza, por Decisão proferida em 21 de fevereiro de 2020 (ora recorrida), decretou o levantamento do efeito suspensivo automático, sendo esta Decisão a primeira e única decisão (de mérito) que o Tribunal a quo proferiu sobre o Incidente de levantamento do Efeito Suspensivo Automático, não pode, obviamente, verificar-se a alegada contradição que a Recorrente invoca, e, por conseguinte, não há que fazer quaisquer juízos de “prevalência”.
Desatendem-se, assim, estes argumentos aduzidos pela Recorrente.
C – Quanto à invocada ilegalidade da Decisão recorrida por errada interpretação do disposto no nº 4 do art. 103-A do CPTA:
A Recorrente considera que o Tribunal a quo fez uma errada interpretação do disposto no nº 4 do artº 103º-A do CPTA que se consubstancia, segundo alega, no facto de a Decisão recorrida ter decretado o levantamento do efeito suspensivo automático com fundamento no sobrecusto de 4,00 €/unidade das travessas de madeira sujeitas a secagem artificial relativamente às sujeitas a secagem natural, pois que, prossegue a Recorrente, este dano não é gravemente prejudicial para o interesse público, nem o Tribunal assim o qualificou, pelo que é fundamento insuficiente para sustentar a Decisão de levantamento do efeito suspensivo automático.
Ora, como resulta da sua análise, a Decisão sob recurso não decretou o levantamento do efeito suspensivo automático com fundamento num mero interesse público de natureza económica.
O Tribunal a quo, no juízo de ponderação de todos os interesses em presença susceptíveis de serem lesados, como prescreve o referido nº 4 do artº 103º-A do CPTA, teve em consideração, e assim o verteu na Decisão recorrida, que:
a) Da matéria de facto dada como provada resulta que, no âmbito da realização de acções de inspecção e fiscalização, foram detectadas dezenas de milhares de travessas de madeira e cavilhas carecidas de intervenção e substituição, acções, estas, de manutenção classificadas como urgentes.
b) São factos notórios que as travessas de madeira desempenham um papel fulcral na manutenção da “bitola da via férrea” bem como no efectivo e conveniente assentamento dos carris, que a madeira é um material perecível, pelo que, ainda que sujeito a especiais tratamentos de preservação, tem uma duração de vida limitada, e que as travessas de madeira nas quais assentam os carris estão sujeitas a enorme tensão, assim contribuindo para a sua perecibilidade.
c) São evidentes, e de monta, os interesses que se pretendem ver salvaguardados com o levantamento do efeito suspensivo automático, concretamente, a correcta e conveniente manutenção e conservação da via ferroviária em boas condições de circulação, assim garantindo a segurança do respectivo tráfego, seja de mercadorias seja de passageiros.
d) As cerca de 11 mil unidades de travessas em stock que a T., LDA afirma existirem, são manifestamente insuficientes para fazer face às necessidades de reparação e substituição apuradas aquando da realização de inspecções, devendo ter-se presente que a celebração do contrato cujo procedimento concursal ora se discute tem em vista a aquisição de mais de cem mil unidades, contadas entre travessas especiais, travessas correntes e cavilhas.
e) O recurso ao fornecimento de travessas de madeira sujeitas a secagem artificial pressupõe, conforme resulta da matéria de facto dada como provada, um sobrecusto de € 4,00 por travessa, o que é, de per si, gerador de prejuízo para o interesse público.
f) O interesse da Autora na manutenção do efeito suspensivo automático é estritamente económico, facilmente mensurável, e ressarcível no eventual vencimento de causa, o que não sucede com o interesse público da Demandada IP.
Perante este elenco de interesses (públicos e privados) susceptíveis de serem lesados concluiu, e bem, o Tribunal a quo, que se está perante riscos para o interesse público demasiado sérios e ponderosos para que possam ser desconsiderados.
Na verdade, o prejuízo para o interesse público resultante da manutenção do efeito suspensivo automático - atendendo, por um lado, à natureza essencial que a disponibilidade, fiabilidade e segurança do transporte ferroviário assume no nosso quotidiano, e por outro, à possibilidade real de ocorrer um acidente ferroviário com consequências imprevisíveis, em que o risco de vida dos passageiros é uma variável a considerar - tem de ser qualificado de grave, sério e intenso.
Ao passo que o interesse da Recorrente na manutenção do efeito suspensivo automático é estritamente económico, facilmente mensurável e de fácil reparação, o que não acontece com o interesse público prosseguido pela IP.
Assim, ponderados todos os interesses em presença susceptíveis de serem lesados, resulta evidente que o deferimento da execução do acto impugnado é gravemente prejudicial para o interesse público. Pelo que têm de ser julgados improcedentes os argumentos aduzidos pela Recorrente.
Efectivamente a Decisão recorrida, ao ter decretado o levantamento do efeito suspensivo automático com os fundamentos que desenvolvidamente apresentou, fez uma correcta interpretação e aplicação do disposto no nº 4, do artº 103º-A, do CPTA, não merecendo, também quanto a este ponto, qualquer censura.
Em suma:
Voltando ao preceito:
“Artigo 103.º-A
Efeito suspensivo automático
1-A impugnação de atos de adjudicação no âmbito do contencioso pré-contratual urgente faz suspender automaticamente os efeitos do ato impugnado ou a execução do contrato, se este já tiver sido celebrado.
2-No caso previsto no número anterior, a entidade demandada e os contrainteressados podem requerer ao juiz o levantamento do efeito suspensivo, alegando que o diferimento da execução do ato seria gravemente prejudicial para o interesse público ou gerador de consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos, havendo lugar, na decisão, à aplicação do critério previsto no nº 2 do artigo 120.º
3-No caso previsto no número anterior, o demandante dispõe do prazo de sete dias para responder, findo o que o juiz decide no prazo máximo de 10 dias, contado da data da última pronúncia apresentada ou do termo do prazo para a sua apresentação.
4-O efeito suspensivo é levantado quando, ponderados os interesses suscetíveis de serem lesados, os danos que resultariam da manutenção do efeito suspensivo se mostrem superiores aos que podem resultar do seu levantamento.”
Como temos entendido em situações semelhantes, a utilização das expressões “gravemente prejudicial para o interesse público” e “gerador de consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos” aponta manifestamente para a excepcionalidade do levamento do efeito suspensivo.
Parece evidente que o legislador pretendeu que o desvio à regra geral da suspensão dos efeitos do acto de adjudicação impugnado apenas ocorra quando a entidade demandada ou os contrainteressados aportem ao processo factos concretos que permitam demonstrar cabalmente que o diferimento da execução do acto seria gravemente prejudicial para o interesse público ou gerador de consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos.
E isto ao ponto de, em sede da ponderação de interesses determinada pelos nºs 2 e 4 do normativo em questão, se poder concluir que os danos que resultariam da manutenção do efeito suspensivo se mostram superiores aos que podem advir do seu levantamento.
Trata-se, portanto, de um critério mais exigente que a simples ponderação de danos, como indiscutivelmente resulta do disposto no nº 2 do artº 103º-B. Neste sentido, ensinam Mário Aroso e Carlos Cadilha: “Ora, se como se infere do mesmo nº 2, o levantamento do efeito suspensivo só pode ser concedido na condição de que “o diferimento da execução do ato seria gravemente prejudicial para o interesse público ou gerador de consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos”, o juiz só pode levantar o efeito suspensivo quando, na comparação do peso relativo dos interesses em presença, conclua que os danos dele decorrentes para o interesse público ou para os interesses dos contrainteressados seria consideravelmente superiores àqueles que podem advir para o impugnante da celebração e execução do contrato, não sendo, assim, suficiente que o tribunal verifique que os danos que, para os interesses contrapostos aos do impugnante, resultariam da manutenção do efeito suspensivo sejam apenas superiores àqueles que, para o impugnante, podem resultar do seu levantamento.” (em Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos. 4ª edição, Coimbra, Almedina, 2017, pág. 844).
É ainda importante repetir que a consagração do efeito suspensivo automático no artigo 103º-A, há muito reclamado pela Doutrina, decorre da necessidade de transpor, de forma efectiva, para o ordenamento jurídico português a Directiva 2007/66/CE, que veio alterar a Directiva 89/665/CE, usualmente apelidada de Directiva Recursos.
Esse desiderato foi, aliás, manifestado de forma clara e expressa no próprio preâmbulo do DL 214-G/2015, de 2 de outubro, que refere:
“O aspeto mais relevante reside, no entanto, no novo artigo 103.º-A, que, no propósito de proceder finalmente à transposição das Diretivas Recursos, associa um efeito suspensivo automático à impugnação dos atos de adjudicação e introduz um regime inovador de adoção de medidas provisórias no âmbito do próprio processo do contencioso pré-contratual.”
Esta intenção do legislador reforça, naturalmente, a excepcionalidade do levantamento do efeito suspensivo, sob pena de total frustração dos ditames impostos pela referida Directiva, que visam evitar a situação de facto consumado e a irreversibilidade decorrente da celebração e execução material do contrato.
Como salienta o Professor Pedro Gonçalves, “…o eixo decisivo de preocupação das directivas reside na eficácia processual, em concreto, na possibilidade efectiva de uma impugnação de actos pré-contratuais antes da celebração ou do início da execução do contrato e de, nesse âmbito, se disponibilizarem meios idóneos e urgentes que impeçam que o contrato se celebre ou que comece a ser executado. O risco essencial que o direito comunitário procura prevenir é o da consolidação de uma situação irreversível decorrente da entrada em execução de um contrato, que inviabilize, de forma definitiva, a realização do interesse substantivo da empresa impugnante. Esta constitui, insiste-se, a preocupação fundamental das directivas-recursos.” (em Avaliação do regime jurídico do contencioso pré-contratual urgente, Cadernos de Justiça Administrativa nº 62, mar./abr. 2007, pág.5).
No mesmo sentido Cláudia Viana adianta: “… a finalidade das “directivas- recursos” é prevenir o “facto consumado” - no caso, o contrato celebrado -, procurando-se evitar, corrigir e sancionar, em tempo útil e oportuno, as decisões ilegais das entidades adjudicantes, sendo que a concessão de uma indemnização constitui uma solução subsidiária e excecional, pois, como sublinha o legislador europeu, os Estados membros devem garantir a aplicação do direito dos contratos públicos “sobretudo numa fase em que as violações podem ainda ser corrigidas” e, por isso, devem instituir processos de “recurso eficazes e, sobretudo, tão rápidos quanto possível.” (in A interpretação e aplicação do artº 128º do CPTA em conformidade com o direito europeu dos contratos públicos, Cadernos de Justiça Administrativa nº 91, pág. 59).
Ora, perante estas linhas de pensamento, bem se vê, que, contrariamente ao alegado, o Tribunal a quo fez correcta aplicação do disposto no artigo 103.º-A, não baseando o decidido unicamente num mero interesse público com natureza económica.
Procedeu, antes, a uma rigorosa ponderação entre os interesses públicos a acautelar por via do levantamento do efeito suspensivo automático (e que não se resumiam de todo a puros interesses económicos) e os interesses privados contrapostos, nos termos previstos no n.º 4 do artigo 103.º-A.
E, repete-se, resultando evidente da prova produzida a prevalência do interesse público, que sairia gravemente prejudicado caso se mantivesse o efeito suspensivo do acto de adjudicação impugnado, nada há para assacar à decisão recorrida, que assim será mantida na ordem jurídica.
Dito de outro modo, os factos provados evidenciam a necessária excepcionalidade da situação.
Ademais, à luz de uma ponderação de interesses, a questão que se coloca é saber se para o levantamento deste efeito suspensivo automático o legislador não pretendeu impor aqui um regime mais exigente. Isto é, não basta a simples ponderação de interesses, é necessário demonstrar, mais do que a prevalência do interesse público, que seria gravemente prejudicial e que a suspensão teria consequências claramente desproporcionadas. Pode-se suscitar dúvidas porque o nº 4 do mesmo artigo refere: “O efeito suspensivo é levantado quando, ponderados os interesses suscetíveis de serem lesados, os danos que resultariam da manutenção do efeito suspensivo se mostrem superiores aos que podem resultar do seu levantamento”, que é o critério do artigo 120º. Agora, a meu ver, no anteprojecto já existia este nº 4 e este nº 4 era um lapso, porque quando se via a parte das alterações introduzidas, quando foi republicado o nº 4 do art. 103º-B foi copiado por engano para o art. 103º-A. Infelizmente, esse lapso não foi corrigido. Portanto, eu julgo que devemos ignorar o nº 4 e ter noção que apesar de ser um critério de ponderação de interesses, não é o critério de ponderação geral. É um critério mais exigente.” (cf Ana Gouveia Martins, em Intervenção no colóquio “A Revisão do CPTA” subordinada ao tema “Meios pré-cautelares, cautelares e seus incidentes (comuns e em procedimentos de formação de contratos)”.
Na hipótese vertente, ao nível da ponderação dos interesses em presença tudo conduz ao levantamento do efeito suspensivo, como bem se julgou: O interesse público susceptível de ser lesado, que se prende com a segurança da circulação ferroviária, de mercadorias e de passageiros (aqui ganhando enorme relevo poder estar em causa a segurança da vida humana), pode assim sair gravemente prejudicado com a manutenção do efeito suspensivo automático operado com a propositura da presente acção.

DECISÃO

Termos em que:
a) se concede provimento ao recurso, revoga-se a sentença e julga-se procedente a acção, condenando-se a Entidade Demandada a praticar o acto devido: o acto de adjudicação da aquisição de cavilhas e travessas de madeira de pinho cresotado à aqui Recorrente;
b) nega-se provimento ao recurso do Despacho proferido em 21 de fevereiro de 2020.
Custas pelos Recorridos, na proporção de metade para cada um e, quanto ao incidente, a cargo da Recorrente.

Notifique e DN.

Porto, 29/05/2020

Fernanda Brandão
Hélder Vieira
Helena Canelas (vencida conforme declaração em anexo)


VOTO VENCIDO:
Subscrevo o acórdão quanto ao incidente de levantamento do efeito suspensivo automático. Voto, no entanto, vencida quanto ao julgamento de procedência da ação, que obteve vencimento no acórdão, já que confirmaria a sentença recorrida, na medida em que não julgaria verificada a causa de exclusão da proposta prevista no artigo 70º nº 2 alínea g) do CCP, nem a interpretação conforme da Diretiva 2014/24/EU, conduz, a nosso ver, a essa conclusão, pelas seguintes razões essenciais:
i) o que a Diretiva 2014/24/EU admite no seu artigo 57º, nº 4, alínea d) é que os Estados membros possam considerar a exclusão do concorrente ou da proposta quando ele não revele idoneidade profissional, designadamente, se tiver indícios suficientemente plausíveis para concluir que o operador económico celebrou acordos com outros operadores económicos com o objetivo de distorcer a concorrência;
ii) o referido acórdão do TJUE de 18 de dezembro de 2014, Processo C-470/13 proferido em sede de reenvio (pelo qual se decidiu que «Os artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE não se opõem à aplicação de normas nacionais que excluem da participação num procedimento de concurso público um operador económico que cometeu uma infração ao direito da concorrência, declarada por decisão judicial transitada em julgado, pela qual lhe foi aplicada uma coima......») o que apreciou foi a conformidade com o direito europeu de uma norma interna de um Estado membro que estabelecia, grosso modo, o afastamento de concorrente que tivesse sido objeto de condenação nos últimos 5 anos por práticas anticoncorrenciais; mas a nossa norma nacional (o artigo 70º nº 2 alínea g) do CCP) não prevê essa situação, pelo que a situação presente não é análoga, similar ou equivalente à que foi ali apreciada pelo TJUE;
iii) o que o nosso direito interno admite é a aplicação de sanção acessória, no âmbito do processo contraordenacional, de privação do direito de participação em procedimentos de formação de contratos cujo objeto abranja prestações típicas dos contratos de empreitada, de concessão de obras públicas, de concessão de serviços públicos, de locação ou aquisição de bens móveis ou de aquisição de serviços ou ainda em procedimentos destinados à atribuição de licenças ou alvarás, desde que a prática que constitui contraordenação punível com coima se tenha verificado durante ou por causa do procedimento relevante, durante um período máximo de dois anos, contados da decisão condenatória, após trânsito em julgado (artigo 71.º da Lei n.º 19/2012); mas como resulta do probatório, na situação dos autos não foi aplicada essa sanção acessória, pelo que a concorrente não estava impedida de participar no concurso e de nele ver admitida e apreciada a sua proposta;
iv) não se mostra verificada, no caso, a hipótese normativa do artigo 70º nº 2 alínea g) do CCP, nem foi, na verdade, alegado que a proposta da concorrente revelasse a existência de fortes indícios de atos, acordos, práticas ou informações suscetíveis de falsear as regras da concorrência, que é o que a norma exige.

Helena Canelas