Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00885/05.4BEPRT
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:03/25/2021
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Tiago Miranda
Descritores:IMPUGNAÇÃO
Sumário:I – Constitui preterição de uma formalidade essencial, insusceptível de ser suprida com recurso ao princípio do aproveitamento do acto administrativo, a violação do artigo 60º nº 7 da LGT que ocorre quando, na fundamentação do acto tributário de liquidação adicional de IRS, não se tenha apreciado a alegação prévia do contribuinte, de violação do princípio da Verdade Material (artigo 6º do RCPIT) por a AT, no procedimento inspectivo, não ter levado a cabo qualquer actividade de investigação, tendo baseado as suas conclusões exclusivamente no teor de um relatório elaborado no âmbito de um Inquérito Criminal e ou na acusação que encerrou este
Recorrente:Autoridade Tributária e Aduaneira
Recorrido 1:A.
Votação:Unanimidade
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os Juízes Desembargadores que compõem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:
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I - Relatório

A Fazenda Pública interpôs o presente recurso de apelação relativamente à sentença proferida em 16 de Maio de 2016 no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, que julgou procedente a impugnação, proposta por A., NIF (…), com domicílio profissional na Rua (…), contra os actos de liquidação adicional, por método aritmético, de IRS relativo aos anos de 2000 e de 2001, mais dos respectivos juros compensatórios, com os nºs 2004 5004336502 e 2005 5000039767, no valor total de 110 014,01 € 75.

Rematou a sua alegação com as seguintes conclusões:

CONCLUSÕES:
A. Vem o presente recurso interposto da douta sentença que julgou procedente a impugnação deduzida contra as liquidações de IRS nºs 2004 5004336502 e 2005 5000039767, dos anos de 2000 e 2001, por haver concluído que no procedimento de audição do impugnante houve incumprimento da formalidade prevista no nº 7 do art. 60º da Lei Geral Tributária (LGT) que, in casu, considerou essencial
B. Com a ressalva do sempre devido respeito, não pode a Fazenda Pública conformar-se com o doutamente decidido, porquanto considera que da prova produzida não é possível extrair a conclusão que serviu de base à decisão proferida, padecendo a mesma de erro de julgamento quanto à matéria de facto e de direito, por valoração errada dos elementos constantes dos autos e ausência da análise crítica das provas que lhe cumpria conhecer, e consequentemente, erro na aplicação do direito.
Vejamos,
C. O acto de liquidação controvertido tem na sua génese uma acção inspectiva, promovida na sequência do processo de inquérito nº 3127/00.5JAPRT-F da 6ª secção dos Serviços do Ministério Público dos Juízos Criminais do Tribunal de Instrução Criminal e DIAP.
D. Alega o impugnante nos presentes autos, que houve violação do dever de fundamentação, uma vez que, a Autoridade Tributária (AT) não se pronunciou sobre os factos suscitados em sede do direito de audição no âmbito do procedimento inspectivo.
E. Por sentença proferida neste Tribunal em 2011/07/05, foi decidido a anulação das liquidações em causa nos autos, por falta de fundamentação, face à ausência de apreciação dos argumentos do aqui impugnante.
F. A Fazenda Pública, inconformada com esta decisão, interpôs recurso, tendo sido entendido que “(…) a Administração Tributária não ponderou ou considerou os argumentos expendidos pelo contribuinte na audição prévia, (…)” e ainda, quanto à invocada irrelevância da pronúncia do contribuinte e do princípio do aproveitamento do acto, que “(…) necessário era então verificar se os argumentos e/ou elementos que o ora recorrido juntou aos autos em sede de audição prévia eram, ou não, irrelevantes para a decisão final a tomar (…)”, concluindo que, os autos padeciam de défice instrutório, ordenando a remessa a este Tribunal para determinar as diligências de prova necessárias e proferir nova decisão.
G. Na sentença de que se recorre, foi julgada procedente a impugnação e foram anuladas as liquidações em crise, por se considerar que, (…) a Autoridade Tributária fez tábua rasa dos argumentos apresentados na audição prévia, omitindo qualquer valoração e apreciação dos mesmos na fundamentação da decisão final (…)”, e que, “ (…) não obstante a Autoridade Tributária ter formalmente dado início ao procedimento de audição do interessado, do ponto de vista material deparamo-nos com o incumprimento da formalidade inserta no artº 60º, nº 7, da LGT, que se revela, no caso, essencial, o que torna inaplicável o princípio do aproveitamento do acto administrativo.”,
H. Concluindo que, “(…) estando a Autoridade Tributária obrigada a apreciar os argumentos aduzidos em sede de audição prévia, a omissão dessa apreciação acarreta a anulação, por vício de forma, do respectivo procedimento e das liquidações que dele resultaram. (…)”.
I. Com tal decisão não se conforma a Fazenda Pública, ressalvado o respeito devido por melhor opinião, como se passa a expender:
J. Para existir a omissão de uma formalidade legal essencial, que tenha como sanção a nulidade, é necessário que tal formalidade esteja prescrita na lei e que tenha sido realmente omitida.
K. Com efeito, não existe qualquer violação de formalidade legal essencial, pelo facto de a AT não tecer considerações sobre o conteúdo do direito de audição exercido pelo impugnante, quando neste não vêm aduzidos quaisquer novos elementos.
L. Em primeiro lugar, porque nos termos do nº7 do art. 60º da LGT, apenas fala em “elementos novos suscitados na audição do contribuinte”, não em simples alegações, considerandos, etc,
M. em segundo lugar, porque o aqui impugnante não trouxe aos autos elementos novos que tivessem de ser tidos em conta na fundamentação da decisão.
N. Por outro lado, porque o facto de não terem sido tecidas considerações, não significa que essa audição não tenha sido tida em consideração na decisão final.
O. Que considerações poderia a AT tecer sobre o que disse o impugnante, se na verdade, ele “nada disse”?
P. Com efeito, a AT está obrigada a pronunciar-se de forma fundamentada sobre todas as questões suscitadas no exercício de audição, que devam ser ponderadas na decisão final.
Q. Da análise ao relatório, resulta que a AT não se pronunciou de forma expressa sobre os argumentos invocados pelo impugnante em sede de direito de audição, mas, salvo o devido respeito por melhor opinião, no caso em crise, a omissão de pronúncia não assume efeito invalidante do acto impugnado, uma vez que, os argumentos invocados pelo impugnante no âmbito do exercício do direito de audição prévia, são irrelevantes para fazer inverter o sentido da decisão final.
R. De facto, analisado o requerimento mediante o qual o impugnante exerceu o seu direito de audição, constata-se que este limita-se a tecer considerações acerca da actuação da AT, sem contudo, trazer para o procedimento inspectivo quaisquer argumentos e/ou elementos susceptíveis de influenciar o conteúdo ou sentido da decisão.
S. Contrariamente ao que vem invocado na petição inicial, o impugnante não invocou factos novos, nem juntou quaisquer documentos demonstrativos de que não recebeu qualquer quantia das leiloeiras ou de terceiros, invocando apenas, que, os elementos recolhidos no processo de inquérito criminal, são insuficientes para legitimar a actuação da AT.
T. Com efeito, o impugnante não carreou para o procedimento inspectivo quaisquer elementos factuais ou jurídicos novos sobre os quais a AT se tivesse de pronunciar.
U. A douta sentença de que se recorre, acolheu a tese do impugnante, porém não apreciou que elementos novos o impugnante diz ter trazido aos autos na audição, concluindo que “(…) não ficou demonstrado inequivocamente que se tivesse sido apreciada a audição prévia apresentada pelo aqui impugnante o procedimento inspectivo teria tido o desfecho que teve e as liquidações teriam sido elaboradas nos termos em que o foram.”
V. Importa referir que é à AT que incumbe provar a verificação dos pressupostos legais que a autorizam a proceder a correcções aritméticas à matéria tributável, demonstrando factualidade susceptível de abalar a presunção de veracidade das declarações dos contribuintes.
W. In casu, a AT alicerçou as conclusões vertidas no relatório da inspecção nos elementos obtidos no âmbito do processo de inquérito criminal, onde se apurou que o impugnante no exercício das funções de liquidatário judicial e no âmbito dos processos de falência,
recebeu importâncias em numerário, a título de comissões, importâncias essas, depositadas em contas bancárias tituladas pelo impugnante.
X. Salvo o devido respeito por opinião diversa, nada impede a AT de aproveitar as provas produzidas em processo criminal que possam assumir relevância para efeitos fiscais.
Y. A análise a tais elementos indicia que o impugnante auferiu a título de comissões os montantes que lhe vêm imputados pela AT.
Z. Que outras diligências instrutórias deveria a AT promover para apurar a verdadeira situação tributária do impugnante?
AA. É certo que, nos termos do art. 58º da LGT, a AT tem o dever de averiguar a verdade material, promovendo todas as diligências necessárias para o efeito, mas isso, não desonera os contribuintes do dever de colaboração na produção de provas.
BB. Deste modo, perante a proposta de correcções à matéria tributável, o impugnante bem podia, desde logo, demonstrar o desacerto da actuação da AT, aproveitando o exercício do direito de audição prévia, para juntar elementos de prova que considerasse necessários.
CC. O impugnante, melhor que ninguém, é conhecedor da proveniência das quantias depositadas nas suas contas bancárias e tem acesso aos documentos comprovativos, e não o fez.
DD. Por outro lado, em momento algum do procedimento tributário, nomeadamente, aquando do exercício do direito de audição, o impugnante concretiza quais as diligências probatórias que deveriam ser realizadas pela AT para o apuramento da sua situação tributária.
EE. Assim, decidindo o Tribunal a quo como decidiu, a douta sentença recorrida enferma de erro de julgamento na matéria de facto e de direito, uma vez que, não fez a devida apreciação da situação em causa nem a devida aplicação do direito aos factos.
Termos em que,
Deve ser concedido provimento ao presente recurso jurisdicional, com as legais consequências.

Notificado, o Recorrido não respondeu à alegação.

O Digníssimo Procurador-geral Adjunto neste Tribunal emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso, redutível à seguinte citação:
Dispõe o artigo 60° n°7 da LGT:
“Os elementos novos suscitados na audição obrigatoriamente em conta na fundamentação da decisão.”
Interpretando a lei, esta impõe que sejam suscitados elementos novos, ou seja, que se traduzam numa novidade para o decisor, no caso a AT, que deles não conhecia por não constarem do relatório ou que só agora lhe foram trazidos pelo recorrido, em sede de direito de audição.
A inspecção tributária teve como base os “factos e elementos probatórios recolhidos no processo de inquérito n° 3127/00.5.JAPRT-F, remetido polo DIAP do Porto” v. fls. 22 do PA apenso, constando desse relatório que o recorrido recebeu comissões em numerário - v. fls. 24.
Igualmente constam nos autos cópias, quer da certidão onde se demonstra que foi deduzida acusação contra A. v. fls. 48 e segs. do PA, quer do relatório pericial completar elaborado pelo Departamento de Perecia Financeira e Contabilística da Directória do Porto da Polícia Judiciária- v. fls. 43 e segs. do processo principal, de documentos que o recorrido conhece.
No caso em apreço, o que A. veio dizer no direito de audição, além de considerandos e generalidades (v. fls 220 e segs), foi que a AT deve obter documentos que comprovem o recebimento de comissões que não recebeu comissões, e que nada se refere ao local, modo e quem as pagou.
Ou seja, não traz qualquer novidade, no sentido de trazer factualidade nova ao processo que não fosse de si já conhecida, dado já constar dos documentos acima referidos, que as comissões eram pagas em numerário, sendo que os devidos contornos dessa actividade criminal que é imputado ao recorrido (designadamente o modo, o local e quem as pagou) terá de ser apurada em outra sede, que não a tributária, mas antes a penal.
Face a tal, em nosso entender, o exposto pelo recorrido no requerimento de fls. 220 e segs., era irrelevante para a decisão final que a AT tomou relativamente às liquidações adicionais ora impugnadas.
O recurso merece provimento.

Dispensados os vistos, nos termos do artigo 657º nº 4 do CPC, cumpre apreciar e decidir.

II- Questões a decidir

Conforme jurisprudência pacífica, o âmbito do recurso é delimitado pelo objecto das conclusões das alegações, interpretadas, como é lógico, em função daquilo que se pretende sintetizar, isto é, o corpo das alegações.

Assim sendo, a única questão que cumpre resolver consiste em saber se a sentença recorrida errou no julgamento, violando o princípio do aproveitamento do acto administrativo ao concluir que na fundamentação dos actos impugnados não fora feita apreciação dos elementos novos suscitados pelo inspeccionado e que, dado o teor da pronúncia, tal incumprimento da formalidade prevista no artigo 60º e especialmente no nº 7 deste artigo, não se degradava em falta de formalidade não essencial.

III - Apreciação do objecto do recurso
A fundamentação da sentença recorrida em matéria de facto é a seguinte:
1. FACTOS PROVADOS
Com relevância para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:
A) Entre 01/10/2004 e 12/10/2004, a coberto das ordens de serviço n. os 33478/95, 33479/95, 33480/95 e 33481/95, o ora Impugnante foi alvo de um procedimento inspectivo interno levado a cabo pelos serviços de inspecção tributária da Direcção de Finanças do Porto, que incidiu sobre os anos de 2000 e 2001 – cfr. fls. 23 do processo administrativo (PA) apenso aos autos.
B) O procedimento inspectivo mencionado na alínea antecedente teve na sua génese uma certidão extraída do processo de inquérito n.º 3127/00.5JAPRT, que correu termos no DIAP do Porto e onde foi constituído arguido o aqui Impugnante – cfr. fls. 22, 47 e 48 do PA apenso aos autos.
C) Notificado do projecto de conclusões do relatório de inspecção, o Impugnante exerceu audição prévia, em 22/10/2004, nos termos e com os fundamentos constantes de fls. 220 a 223 do processo físico, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
D) Concluída a acção inspectiva, a Autoridade Tributária procedeu a correcções de natureza meramente aritmética à matéria tributável de IRS dos anos de 2000 e 2001, nos montantes de € 47 929,99 e € 191 149,51, respectivamente, no pressuposto de que o Impugnante, no exercício da sua actividade de liquidatário judicial, tinha recebido comissões de empresas que intermediaram a venda das massas falidas – cfr. relatório de inspecção inserto a fls. 21 a 27 do PA apenso aos autos, cujo teor se dá por reproduzido.
E) Na sequência das correcções mencionadas na alínea antecedente, foram emitidas em nome do Impugnante e com referência aos anos de 2000 e 2001, as liquidações adicionais de IRS n.ºs 2004 5004336502 e 2005 5000039767 e respectivas liquidações de juros compensatórios, onde se apurou um valor total a pagar de € 110 014,01 – cfr. fls. 79 e 80 do PA apenso aos autos, cujo teor se dá por reproduzido.
F) A presente impugnação deu entrada no Serviço de Finanças do Porto 6 em 20/04/2005 – cfr. fls. 4 do processo físico.
G) A falta de pagamento das liquidações de IRS de 2000 e 2001 aqui impugnadas deu lugar à instauração dos processos de execução fiscal n.ºs 3182200501053493 e 3182200601005448, tendo o Impugnante prestado garantia nestes processos em 24/08/2005 e 31/03/2006, respectivamente, o que determinou a sua suspensão – cfr. fls. 127 e 260 do processo físico, cujo teor se dá por reproduzido.
2. FACTOS NÃO PROVADOS
Inexistem, com relevância para a decisão da causa.
Motivação:
A convicção do Tribunal quanto aos factos dados como provados resultou da análise dos documentos juntos aos autos, os quais não foram impugnados

Da fundamentação de direito da Sentença recorrida, importa reter os seguintes segmentos, que a encerram, no que à sobredita questão concerne:

“Tal como resulta do acórdão do TCA Norte de 31/05/2012, a sentença proferida em 05/07/2011 foi confirmada na parte em que considerou que as liquidações impugnadas padeciam de falta de fundamentação, por ausência de apreciação dos argumentos expendidos pelo Impugnante em sede de audição prévia no âmbito do procedimento inspectivo. Com efeito, resulta do referido acórdão que “(…) a Administração Tributária não ponderou ou considerou os argumentos expendidos pelo contribuinte na audição prévia, tanto mais que no relatório inspectivo após dizer que foi cumprida aquela formalidade e transcrever os argumentos nela expendidos, passa-se de imediato à proposta de decisão, seguida de decisão, sem que se diga o que quer que seja sobre a ponderação dos argumentos aduzidos naquela sede”, concluindo que “(…) nada permite sequer indiciar que o funcionário inspector tenha analisado e apreciado o direito de audição exercido.” Todavia, o citado aresto também entendeu que não era possível, sem mais, anular as liquidações impugnadas com base na preterição desta formalidade legal, pelo que “(…) necessário era então verificar se os argumentos e/ou elementos que o ora Recorrido juntou aos autos em sede de audição prévia eram, ou não, irrelevantes para a decisão final a tomar (as liquidações impugnadas)”.
Ora, tendo sido junta aos autos a referida audição prévia exercida pelo aqui Impugnante, impõe-se, então, em cumprimento do determinado no acórdão do TCA Norte, verificar se esta pronúncia era ou não susceptível de influenciar a decisão tomada pela Autoridade Tributária.
Com efeito, estando assente (por decisão transitada em julgado) que a Autoridade Tributária não ponderou os argumentos apresentados em sede de audição prévia, importa indagar se tais argumentos eram susceptíveis de influenciar a decisão final do procedimento inspectivo, que está na génese das liquidações impugnadas. E sendo a resposta negativa, terá então de se concluir, como entendeu o TCA Norte, que a referida omissão se degradou na preterição de uma formalidade legal não essencial, sem efeito invalidante da decisão, face à aplicação do princípio do aproveitamento do acto administrativo.
A este respeito, a jurisprudência do STA vem entendendo que a audiência dos interessados se destina essencialmente a permitir a sua participação nas decisões que lhes digam respeito, contribuindo para o cabal esclarecimento dos factos e uma mais adequada e justa decisão, constituindo a omissão dessa audição a preterição de uma formalidade legal que conduz à anulação dessa decisão, a menos que seja manifesto que a decisão viciada só podia, em abstracto, ter o conteúdo que teve em concreto. De facto, o STA tem formado uma sólida orientação no sentido de que os vícios de forma não impõem, necessariamente, a anulação do acto a que respeitam e que as formalidades procedimentais essenciais se podem degradar em não essenciais se, apesar delas, foi dada satisfação aos interesses que a lei tinha em vista ao prevê-las. Consequentemente, e tendo em conta que a audiência prévia dos interessados não é um mero rito procedimental, a formalidade em causa (essencial) só se podia degradar em não essencial (não invalidante da decisão) se essa audiência não tivesse a mínima probabilidade de influenciar a decisão tomada, e se se impusesse, por isso, o aproveitamento do acto (neste sentido, veja-se o acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do STA de 22/01/2014, processo 0441/13).
Revertendo para o caso sub judice, importa então verificar se estavam reunidos os pressupostos para a aplicação do princípio do aproveitamento do acto.
Na audição prévia apresentada na sequência da notificação do projecto de conclusões do relatório de inspecção, o aqui Impugnante alegou que o referido projecto “(…) parte de uma errada base de qualificação jurídica dos rendimentos (…) Desde logo por trilhar o caminho da qualificação jurídica de rendimentos sem um suficiente lastro de informações, considerando como definitivas as informações emergentes do processo crime (…)” , alegando ainda que “(…) é absolutamente falso que (…) tenha recebido qualquer quantia seja das entidades leiloeiras seja de terceiros, (…) não existindo nenhum documento de que resulte comprovadamente a percepção de quaisquer quantias pelo contribuinte” e que “(…) a AF não desenvolveu qualquer actividade investigatória, tendo-se limitado a importar do processo crime os factos (…), devendo a AF obter documentos que comprovem o efectivo recebimento das quantias que determinam a intenção da AF tributar o contribuinte”. Mais alegou que “(…) dizendo-se apenas que o contribuinte recebeu em dinheiro, sem dizer o local, modo, quem pagou em que condições o contribuinte não se pode defender”. E conclui requerendo a reformulação do projecto de relatório de inspecção.
As liquidações aqui impugnadas resultam de uma alegada omissão de rendimentos (supostamente ilícitos), cuja obtenção foi detectada no âmbito de um inquérito criminal que correu termos contra o aqui Impugnante.
Ora, atento o teor da audição prévia apresentada pelo Impugnante, que negou o recebimento dessas quantias e requereu a junção ao procedimento inspectivo dos documentos que comprovassem esse efectivo recebimento, de forma a permitir o exercício do direito de audição, impendia sobre a Autoridade Tributária o dever de apreciar e valorar tal audição, ponderando a eventual realização das diligências complementares solicitadas (previstas no art.º 104º do Código de Procedimento Administrativo [CPA]2), de modo a suprir eventuais omissões e insuficiências da instrução.
Acontece que, no caso vertente, a Autoridade Tributária fez tábua rasa dos argumentos apresentados na audição prévia, omitindo qualquer valoração e apreciação dos mesmos na fundamentação da decisão final (que determinou a correcção da matéria tributável de IRS), violando, dessa forma, o disposto no art.º 60º, n.º 7, da LGT, que impõe que os elementos novos suscitados na audição dos contribuintes sejam tidos em conta obrigatoriamente na fundamentação da decisão. E em face do pedido (abstractamente pertinente) de completamente da instrução, também nada disse.
Neste circunstancialismo, não é possível concluir, com segurança, pela irrelevância do exercício do direito de audição sobre o conteúdo decisório do acto, ou seja, não ficou demonstrado inequivocamente que se tivesse sido apreciada a audição prévia apresentada

Nos termos do artigo 662º do CPC, este Tribunal adita aos factos provados os seguintes facto:
H) O relatório inspectivo não contém qualquer referência ao expendido pelo impugnante em sede de audiência prévia. Cf. fs. 21 a 29 do P.A.
I) A instrução do procedimento inspectivo que resultou nas liquidações impugnadas consiste e esgota-se em cópias de extractos do despacho de arquivamento e de acusação proferido pelo MP no inquérito penal nº n.º 3127/00.5JAPRT. Cf. o PA.

Posto isto, enfrentemos a questão de direito supra enunciada.

O Mº Juiz recorrido, cautelosamente, concluiu que em face do teor da pronúncia prévia do Contribuinte não era possível concluir com segurança pela irrelevância do silêncio sobre a sua pronúncia prévia, na fundamentação dos actos impugnados, de modo a degradar em não essencial a preterição material do direito à audiência prévia, já dada por assente em acórdão deste TCA, transitado em julgado, outrora proferido nestes mesmos autos.

Por nossa parte, visto o que se conclui dos factos provados, designadamente a total ausência de actividade investigatória ou instrutória própria no procedimento inspectivo, pela AT, que se bastou com os termos de uma acusação penal, não tendo porfiado por qualquer prova do ali afirmado, e o teor da pronúncia prévia do Impugnante, designadamente na parte em que este nega o recebimento das alegadas comissões, e, sobretudo, naquela outra em que alega precisamente a inexistência de qualquer actividade de averiguação própria por parte da AT, não temos reserva alguma em concluir que a pronuncia prévia carecia de umas ponderação e pronúncia expressa e especificada da AT.

Aliás, assistia razão ao Impugnante quanto à alegação de omissão investigação por parte da AT, pelo que esta não só poderia como deveria sobrestar na emissão do relatório final e proceder outrossim a uma verdadeira investigação, designadamente instruindo o procedimento com esses documentos em que a o MP terá assente a sua decisão de encerrar o inquérito penal com acusação contra o aqui impugnante, e fazendo ela mesma a apreciação de tais provas.

Este Tribunal Central, com efeito, tem vindo a julgar uniformemente que viola o princípio da busca da verdade material, explicitado no artigo 6º do RCPIT (Regime Complementar do Procedimento de inspecção Tributária e Aduaneira, aprovado pelo DL nº 413/98 de 31 de Dezembro) o acto tributário lesivo baseado em procedimento de inspecção que apenas tenha sido instruído com o relatório de um órgão de policia criminal contido num inquérito penal e ou mesmo com a acusação penal respectiva, sem recolha de prova alguma dos factos aí dados como suficientemente indiciados, designadamente as provas documentais ai eventualmente recolhidas Como exemplos mais recentes indicam-se os ac. de 11/2/2021, no processo 604/05.5BEPRT, ainda inédito, e o ac. de 8/10/2020 no processo 512/19.2BEMBL, já acessível em www.dgsi.pt., e a sua apreciação critica.

Assim sendo, e na continuidade lógica do já decidido no acórdão deste Tribunal Central anteriormente proferido nestes autos, impõe-se concluir:
- Que a desconsideração dos elementos carreados para o procedimento na pronúncia prévia do Impugnante não foi inócua para o devir do procedimento inspectivo e para a determinação dos actos tributários a emitir com fundamento nele;
- Que, portanto, a preterição, pela AT, do dever expresso no nº 7 do artigo 60º da LGT inquinou as liquidações impugnadas de anulabilidade;
- Que, portanto, o recurso da AT não merece provimento.

Dispositivo

Pelo exposto, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal em negar provimento ao recurso.
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Custas pela Recorrente: artigo 527º do CPC.
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Porto, 25/3/2021

Tiago Afonso Lopes de Miranda
Cristina Maria Santos da Nova
Ana Paula Coelho dos Santos