Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00683/15.7BECBR
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:04/21/2016
Tribunal:TAF de Coimbra
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:SENTENÇA POR REMISSÃO;
CONCURSO PARA IMPLEMENTAÇÃO DE UM SISTEMA INFORMÁTICO A INTERLIGAR COM OUTRO JÁ INSTALADO; PRINCÍPIO DA IGUALDADE; PRINCÍPIO DA CONCORRÊNCIA; ARTIGO 94º DO CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS DE 2002; ARTIGO 154º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2013; N.º 4 DO ARTIGO 1º E NOS N.ºS 1 E 4 DO ARTIGO 49º DO CÓDIGO DE CONTRATOS PÚBLICOS.
Sumário:1. O artigo 94º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos de 2002 não veda em absoluto a decisão por remissão: apenas manifesta a preferência do legislador por essa forma mais expedita de decidir nos casos, mais simples, aí previstos.

2. Também o artigo 154º do Código de Processo Civil de 2013 não veda a remissão para outra decisão do mesmo ou de outro Tribunal; proíbe apenas a remissão, como regra, para os articulados das partes.

3. O que se mostra fundamental é garantir que a fundamentação por remissão satisfaça a exigência de uma ponderação e reflexão autónomas por parte de quem decide.

4. Verificando-se que as normas do caderno de encargos de um concurso exigem a todos os concorrentes a interoperabilidade das soluções propostas para a instalação de um sistema informático novo com o sistema informático já existente, sem fornecer nem assegurar o acesso da generalidade dos concorrentes aos dados técnicos do sistema informático já existente, criado pela contra-interessada, conclui-se que tais violam os princípios da igualdade e da concorrência no n.º 4 do artigo 1º e nos n.ºs 1 e 4 do artigo 49º do Código de Contratos Públicos, dado colocarem a contra-interessada numa clara e decisiva posição de vantagem.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:A... – Ambiente e Sistemas de Informação Geográfica, S.A.
Recorrido 1:Município de Mira;
Recorrido 2:AIRC
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Impugnação Urgente - Contencioso pré-contratual (arts. 100º e segs. CPTA) - Recurso Jurisdicional
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

A... – Ambiente e Sistemas de Informação Geográfica, S.A., veio interpor o presente RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, de 02.12.2015, pela qual foi julgada totalmente improcedente a acção de contencioso pré-contratual que deduziu contra o Município de Mira, e em que foi indicada como contra-interessada a AIRC.
Invocou para tanto, em síntese, que: a remissão feita na decisão recorrida para a decisão proferida no processo 339/15.8 CBR que assenta em factos diversos constitui, por tal, um clamoroso erro de julgamento, por violação, designadamente, dos n.ºs 2 e 5 do artigo 94º, ex vi dos artigos 100º, nº1, e 102º, nº1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos que manda aplicar as normas correspondentes aos factos provados no processo; em todo o caso, a decisão recorrida violou, por errada interpretação e aplicação ao caso concreto, as normas contantes dos artigos 3º e 10º do Código de Procedimento Administrativo, artigos 1º, n.º4, e 49º, nº1, do Código de Contratos Públicos, artigo 7º do Decreto-Lei nº 252/94, o princípio do primado do Direito Europeu e do artigo 8º, nº4, da Constituição da República Portuguesa, e o princípio da legalidade, consagrado no artigo 266º, nº2, da Constituição da República Portuguesa; a interpretação do artigo 9º do Código Civil que vingou na decisão recorrida é inconstitucional porque viola o princípio da separação de poderes, consagrado nos artigos 2º e 111º da Constituição da República Portuguesa, na medida em que permite que o Tribunal se substitua ao poder legislativo.

Apenas o Município recorrido apresentou contra-alegações, a defender a improcedência do recurso.

O Ministério Público neste Tribunal não emitiu parecer.

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Cumpre, pois, decidir já que nada a tal obsta.
*
I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:

1ª - A sentença proferida no processo nº 339/15.8BECBR foi proferida após diligências de prova que não ocorreram nos presentes autos e com base em factos provados que não se incluem naqueles que o Tribunal considerou provados na sentença recorrida.

2ª - O que se mostra particularmente evidente ao segmento da decisão em que o Tribunal se permitiu desaplicar regras e princípios essenciais da contratação pública, com base num suposto princípio da eficiência administrativa alegadamente prevalecente, cujo suporte factual radica nos factos provados 17 a 19 no processo nº 339/15.8BECBR que não se encontram entre os factos provados nestes autos, nem têm qualquer paralelo com estes.

3ª - A remissão para a decisão proferida naquele processo carece, nos presentes autos, do imprescindível suporte nos factos provados, configurando, como tal, um clamoroso erro de julgamento, por violação, designadamente, do artigo 94º, nº 2, ex vi dos artigos 100º, nº1 e 102º, nº1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos que manda aplicar as normas correspondentes aos factos provados no processo.
4ª - A fundamentação da decisão da questão de direito por mera remissão viola ainda o disposto no nº 3 da mesma norma, uma vez que a questão jurídica não é simples, não tão pouco foi objecto de decisão dos Tribunais de modo uniforme e reiterado.

5ª - A sentença recorrida considera que a única maneira de assegurar uma estrita igualdade de oportunidades dos concorrentes em matéria de condições de acesso e de adjudicação, era, com efeito, abrir um concurso para contratação do fornecimento e implementação de um novo sistema informático, de raiz, que abrangesse as utilidades ou aplicações e ferramentas já existentes e as novas, prescindido de todo o sistema informático já instalado.

6ª - Esta conclusão não encontra fundamento na factualidade provada nestes autos, de onde não resulta, de todo, que esta conclusão tenha validade.

7ª - Por outro lado, também não tem adesão à realidade material, já que o respeito pela igualdade e concorrência entre operadores se bastaria com a indicação dos modelos de dados dos sistemas de informação em uso, para que o novo contraente pudesse, ele próprio, desenvolver as ferramentas necessárias a assegurar a interoperabilidade daqueles com os novos sistemas a adquirir.

8ª - Essa indicação seria certamente fácil de obter junto do fornecedor dos sistemas em uso, a AIRC, uma vez que esta não se trata de uma empresa em busca do lucro, mas de uma associação de municípios de fins específicos, a quem cabe, à semelhança do que sucede com a entidade demandada, a prossecução do interesse público.

9ª - Toda a tese desenvolvida na sentença recorrida se baseia no errado pressuposto acima referido, da imprescindibilidade de substituição de todos os sistemas de informação em uso, que ficariam inutilizados, por um novo que integrasse aqueles e ainda as funcionalidades que se pretendem adquirir no âmbito do concurso sub judice.

10ª - Faltando àquele pressuposto a imprescindível sustentação factual e técnica, é evidente que tal implica o erro de julgamento subsequente de toda a decisão recorrida.

11ª - Ainda que assim não fosse, a sentença recorrida padece de graves erros de natureza jurídica que importa invocar.
12ª - O artigo 9º do Código Civil contém uma directriz hermenêutica fundamental no sentido de que se determinada solução foi positivada na lei, devemos presumi-la como acertada.

13ª - O que significa precisamente o contrário do que resulta da sentença recorrida, segundo a qual aquele preceito autorizaria o intérprete a afastar as soluções legalmente consagradas que reputasse como manifestamente desadequadas.

14ª - Esta interpretação do artigo 9º do Código Civil é inconstitucional porque viola o princípio da separação de poderes, consagrado nos artigos 2º e 111º da Constituição da República Portuguesa, na medida em que permite que o Tribunal se se substitua ao poder legislativo.

15ª - O artigo 10º do Código de Procedimento Administrativo apenas consagra um princípio disciplinador da organização e estruturação da Administração Pública, pelo que ao invocar aquele preceito como fundamento legal de um denso princípio regulador dos actos da administração que permite aferir e avaliar a respectiva eficiência económica e controlar a sua legalidade em função do respeito pelo dever de buscar as soluções mais económicas possíveis, a sentença recorrida faz dele interpretação errónea e sem o mínimo de respaldo na letra da lei.

16ª - O que a sentença recorrida faz é afastar os efeitos de uma norma legal, o artigo 49º, nº1 do Código dos Contratos Públicos e dos princípios da igualdade de e da concorrência, também com consagração legal expressa no art. 1º, nº 4, do Código dos Contratos Públicos, em função de um juízo seu sobre a razoabilidade, em termos de eficiência económica, que a aplicação daquelas regras teria na situação da vida regulada.

17ª - O que não é aceitável num Estado de Direito Democrático e viola de forma gritante o princípio da separação de poderes (artigos 2º e 111º da Constituição da República Portuguesa), já que configura uma clara invasão da esfera do poder legislativo, democraticamente legitimado.

18ª - Mas põe também em causa o fundamental princípio da legalidade (artigos 266º, nº2, da Constituição da República Portuguesa e artigo 3º do Código de Procedimento Administrativo, na versão aplicável), na medida em que legitima uma actuação administrativa desconforme com as normas legais aplicáveis, por razões de natureza e critério economicistas.

19ª - Havendo uma norma expressa, o artigo 49º, nº1, do Código de Contratos Públicos, considerada aplicável, não pode a mesma ser desaplicada com fundamento na sua antinomia, na situação concreta, com um princípio de fonte e hierarquia normativas idênticas, como é o caso do suposto princípio da eficiência económica (artigo 10º do Código de Procedimento Administrativo).

20ª - Acresce que os princípios da igualdade e concorrência, consagrados no artigo 1º, nº4, do Código dos Contratos Públicos, dos quais o artigo 49º, nº1 do Código dos Contratos Públicos, constitui concretização, constituem princípios fundamentais especiais da contratação pública.

21ª - Deste modo, no caso dos autos, em que está em causa a legalidade de um procedimento de contratação pública, seriam sempre prevalecentes, designadamente sobre o suposto princípio da eficiência económica.

22ª - Errou, pois, gravemente a sentença recorrida ao decidir o contrário.

23ª - A norma prevista no artigo 49º, nº1, do Código dos Contratos Públicos e os princípios da igualdade e concorrência consagrados no artigo 1º, nº4, daquele diploma têm lugar paralelo no Direito Europeu derivado que constitui a sua fonte, mais precisamente nas Directivas 2004/18/UE e 2004/24/UE.

24ª - Assim sendo, ao fazer prevalecer o princípio da eficiência económica sobre normas e princípios de direito europeu, a sentença recorrida incorre em clara violação do princípio do primado do Direito Europeu e do artigo 8º, nº4, da Constituição da República Portuguesa.

25ª - No juízo de ponderação da eficiência económica, a sentença recorrida pura e simplesmente ignorou factores relativos às perdas de eficiência e competitividade inerentes a uma adjudicação que perpetua a aquisição a um operador económico fora das regras do mercado, que se impõe como único adjudicatário possível, por dele depender a interoperabilidade com todos os sistemas de informação em uso na entidade adjudicante.

26ª - Impedindo a entidade adjudicante de beneficiar das vantagens de aquisição em mercado concorrencial, no que respeita à diversidade de soluções, qualidade das propostas e competitividade dos preços.

27ª - A omissão da ponderação destes factores redunda em erro de julgamento.

28ª - Afigura-se impertinente e juridicamente errado sustentar a legalidade das normas do caderno de encargos com fundamento no artigo 7º do Decreto-Lei nº 252/94, que não põe, minimamente em causa a violação do artigo 49º, nº1, do Código dos Contratos Públicos e dos princípios da igualdade e concorrência, como a sentença para a qual remete a decisão recorrida reconhece de forma clara e explícita.

29ª - Por outro lado, daquela norma não resulta a autorização da autora para descompilar os programas informáticos em uso, mas sim da entidade demandada.

30ª - A referida disposição confere a habilitação legal necessária à entidade adjudicante para, ela própria, aceder às informações necessárias a assegurar a compatibilidade com os actuais sistemas informáticos, de modo a poder fornecê-los aos concorrentes, colocando todos em condições de igualdade e plena concorrência.

31ª - O que deveria ter feito, ao invés de lançar um procedimento cujas regras favorecerem de forma clamorosa o fornecedor actual, em detrimento de todos os demais operadores económicos do espaço europeu.


*

II – Matéria de facto.

Ficaram provados os seguintes factos, sem reparos nesta parte:


A – O Réu candidatou-se no âmbito do COMPETE ao «Programa Operacional Factores de Competividade – Sistemas de Apoios à Modernização Administrativa», operação n.º 33131 – ma@gira, tendo apresentado o respectivo termo de aceitação da decisão de concessão de financiamento (cf. documento a folhas 109 a 125 do processo (físico) n.º 684/15.5BECBR que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido).

B – Por decisão da Agência de Modernização Administrativa, datada de 10.02.2015, foi permitida nova calendarização da operação referida na alínea anterior, com indicação de data de fim da operação em 30.09.2015 (cf. documento a folhas 128 a 132 do processo (físico) n.º 684/15.5BECBR que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido).

C – O réu promoveu procedimento referente à «Aquisição de website institucional e de aplicações SIG no âmbito do projecto de modernização administrativa (operação n.º 33131 – ma@gira)», para cujo Programa de Concurso e Caderno de Encargos aqui se remete (cf. documentos a folhas 10 a 41 do processo administrativo que aqui se dão, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzidos).

D – Em DR II Série foi publicado o Anúncio de Procedimento n.º 3067/2015, de 20.05.2015, tendo como objecto a “[…] Aquisição de solução de Business Process Management (BPM), Serviços Online e Balcão Único (Intranet e Atendimento), conector de integração com Sistemas de Informação Geográfica, bem como, de integração com a iAP - Plataforma de Interoperabilidade na Administração Pública (incluído conector de facturação electrónica) e com o Licenciamento Zero, Portal do Cidadão e Balcão do Empreendedor, no âmbito do projecto de Modernização Administrativa (Operação N.º 33131 - MA@MIRA) […]”.

E – Em 25.05.2015, a autora solicitou vários esclarecimentos junto do júri do concurso referido nas alíneas anteriores (cf. documento a folhas 45 a 48 do procedimento administrativo que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido).

F – Na sequência do pedido de esclarecimentos referidos na alínea anterior, o júri do concurso referido nas alíneas anteriores apresentou resposta datada de 04.06.2015 (cf. documentos a folhas 53 a 59 do processo administrativo que aqui se dão, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzidos).

G – A contra-interessada AIRC apresentou a sua proposta ao concurso referido nas alíneas anteriores (cf. documentos a folhas 62 a 85 do processo administrativo que aqui se dão, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzidos).

H – A autora – A... – Sistema de Informação Geográfica, S.A. apresentou a sua proposta ao concurso referido nas alíneas anteriores (cf. documentos a folhas 86 a 180 do processo administrativo que aqui se dão, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzidos).

I – Em 17.06.2015, o júri do concurso referido nas alíneas anteriores solicitou esclarecimento à Autora quanto ao conteúdo da sua proposta (cf. documento a folhas 181 do processo administrativo que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido).

J – Em 19.07.2015, a Autora respondeu o solicitado na alínea anterior (cf. documento a folhas 182 do processo administrativo que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido).

K – Em 25.06.2015, o júri do concurso referido nas alíneas anteriores solicitou esclarecimentos à Autora sobre o conteúdo da sua proposta (cf. documento a folhas 183 do processo administrativo que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido).

L – Em 29.06.2015, a autora respondeu o solicitado na alínea anterior (cf. documento a folhas 184 do processo administrativo que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido).

M – Por decisão do júri do procedimento referido nas alíneas anteriores datada de 09.07.2015 e plasmada em documento intitulado «Relatório Preliminar – artigo 146.º do Código dos Contratos Públicos» foi proposta a exclusão da proposta da autora e a adjudicação do concurso à ora contra-interessada (cf. documento a folhas 185 a 189 do processo administrativo que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido).

N – Em reunião do júri do procedimento referido nas alíneas anteriores, datada de 17.07.2015, foi aprovado o «Relatório Final», excluindo-se a proposta apresentada pela autora e propondo-se a adjudicação à contra-interessada de fornecimento de bens e serviços a que se refere o concurso supra indicado (cf. documento a folhas 190 do processo administrativo que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido).

M – Por despacho do Presidente da Câmara de Mira, datado de 17.07.2015, foi decidido adjudicar à contra-interessada os serviços referentes ao procedimento referido nas alíneas anteriores (cf. documento a folhas 191 do processo administrativo que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido).

N – Em 29.07.2015, a requerente, através do seu advogado, deu entrada neste Tribunal de uma petição inicial que, depois de distribuída, deu origem aos presentes autos (cf. folhas 2 a 32 do referido processo físico).


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III - Enquadramento jurídico.

A fundamentação da decisão recorrida por remissão para outra sentença; a violação do artigo 94º, nº 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

Conclui a recorrente a este propósito que: a sentença proferida no processo nº 339/15.8BECBR (para a qual a sentença ora recorrida remete) foi proferida após diligências de prova que não ocorreram nos presentes autos e com base em factos provados que não se incluem naqueles que o Tribunal considerou provados na sentença recorrida; o que se mostra particularmente evidente ao segmento da decisão em que o Tribunal se permitiu desaplicar regras e princípios essenciais da contratação pública, com base num suposto princípio da eficiência administrativa alegadamente prevalecente, cujo suporte factual radica nos factos provados 17 a 19 no processo nº 339/15.8BECBR que não se encontram entre os factos provados nestes autos, nem têm qualquer paralelo com estes; a remissão para a decisão proferida naquele processo carece, nos presentes autos, do imprescindível suporte nos factos provados, configurando, como tal, um clamoroso erro de julgamento, por violação, designadamente, do artigo 94º, nº 2, ex vi dos artigos 100º, nº1 e 102º, nº1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos que manda aplicar as normas correspondentes aos factos provados no processo; a fundamentação da decisão da questão de direito por mera remissão viola ainda o disposto no nº 3 da mesma norma, uma vez que a questão jurídica não é simples, não tão pouco foi objecto de decisão dos Tribunais de modo uniforme e reiterado.

Vejamos.

Dispõe o artigo 94º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, de 2002 (aplicável no tempo ao caso):

“1 - A sentença ou acórdão começa com a identificação das partes e do objecto do processo e com a fixação das questões de mérito que ao tribunal cumpra solucionar, ao que se segue a apresentação dos fundamentos e a decisão final.

2 - Os fundamentos podem ser formulados sob a forma de considerandos, devendo discriminar os factos provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes.

3 - Quando o juiz ou relator considere que a questão de direito a resolver é simples, designadamente por já ter sido apreciada por tribunal, de modo uniforme e reiterado, ou que a pretensão é manifestamente infundada, a fundamentação da decisão pode ser sumária, podendo consistir na simples remissão para decisão precedente, de que se junte cópia. A sentença começa por identificar as partes e o objecto do litígio, enunciando as questões de mérito que ao tribunal cumpra solucionar, ao que se segue a exposição dos fundamentos de facto e de direito, a decisão e a condenação dos responsáveis pelas custas processuais, com indicação da proporção da respectiva responsabilidade:”.

Desde logo, e quanto à fundamentação de Direito, estas normas, ao contrário do que sustenta a recorrente, não proíbem em absoluto, a contrario sensu, a fundamentação por remissão, fora das situações previstas no n.º 3.

O que deixa claro e expresso é a possibilidade de, nessas situações, mais simples, se proceder a uma decisão por remissão. Acaba por expressar a preferência do legislador, nestes casos, pela decisão mais célere e simples de decisão por remissão.

Em qualquer caso, não estabelece qualquer forma de invalidade, menos ainda de nulidade, para o incumprimento desse preceito, a entender-se que veda, nos demais casos aí previstos, a decisão por remissão.

O Tribunal Constitucional, tem julgado não inconstitucional, com grande amplitude, a fundamentação de decisões judiciais por remissão.

A título de exemplo, o acórdão n.ºs 151/99, de 09.03.1999:

“No entender dos recorrentes, a norma em causa seria inconstitucional por violação do artigo 205º, nº 1, da Constituição.

Determina o preceito constitucional invocado:

"As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei".

A exigência de fundamentação das decisões judiciais corresponde sem dúvida a um imperativo constitucional e constitui uma garantia integrante do conceito de Estado de Direito democrático.

Segundo o preceito constitucional invocado, a fundamentação das decisões judiciais está dependente da lei. O legislador ordinário goza de liberdade de conformação na definição do âmbito do dever de fundamentação, podendo garanti-lo com maior ou menor latitude.

Como este Tribunal sublinhou no acórdão nº 56/97 (publicado no Diário da República, II Série, nº 65, de 18 de Março de 1997, p. 3272 ss), a exigência constitucional nesta matéria limita-se a devolver ao legislador ordinário o encargo de definir o âmbito e a extensão do dever de fundamentar, conferindo-lhe ampla margem de liberdade constitutiva.

Tal não pode significar, evidentemente, discricionariedade legislativa susceptível de afastar o dever de fundamentar as decisões. Sobretudo quanto às decisões judiciais que tenham por objecto a solução do objecto do litígio, impõe-se a fundamentação ou motivação fáctica dos actos decisórios através da exposição concisa e completa dos motivos de facto, bem como das razões de direito que justificam a decisão.

A norma em apreciação, ao permitir que a decisão proferida em recurso remeta para a fundamentação da decisão impugnada, não implica qualquer desadequação constitucional. Na verdade, desta norma não resulta a dispensa de fundamentação da decisão do recurso. Por outro lado, só pode adoptar-se a forma "sumária" de julgamento aí prevista se existir confirmação integral do julgado na instância inferior, quer quanto à decisão, quer quanto aos fundamentos, e se houver unanimidade no julgamento do recurso.

Com esta alteração introduzida no Código de Processo Civil pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, teve-se fundamentalmente em vista simplificar a estrutura formal dos acórdãos. Com o regime estabelecido nesta norma, não é eliminada a fundamentação da decisão judicial, porquanto o que se passa é que o tribunal superior recebe ou perfilha os fundamentos indicados pelo tribunal inferior; é assim instituída uma forma célere e simplificada de apreciação, fundamentação e decisão dos recursos, à semelhança da que existe, por exemplo, no domínio do processo constitucional (artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional) e do processo penal (artigo 420º, nº 3, do Código de Processo Penal).

Não há portanto que censurar a norma do artigo 713º, nº 5, do Código de Processo Civil, pois dela não resulta qualquer violação do dever constitucional de fundamentação das decisões judiciais.”

Por seu turno impõe o artigo 154º do Código de Processo Civil de 2013 (aplicável no tempo ao caso), sob a epígrafe “Dever de fundamentar a decisão”:

“1 - As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.

2 - A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.”

Este preceito não veda a remissão para outra decisão do mesmo ou de outro Tribunal. Veda apenas a remissão, como regra, para os articulados das partes.

O que se mostra fundamental é garantir que a fundamentação por remissão satisfaça a exigência de uma ponderação e reflexão autónomas por parte de quem decide.

Como doutrinam Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, no Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1985, página 689, obra citada pelo Município recorrido, são de duas ordens as razões pelas quais que a lei exige a motivação das decisões judiciais:

«A primeira, baseada na função dos tribunais como órgãos de pacificação social, consiste na necessidade de a decisão judicial explicitar os seus fundamentos como forma de persuasão das partes sobre a legalidade da solução encontrada pelo Estado.

Não baste neste ponto, que o tribunal declare vencida uma das partes; é essencial que procure convencê-la, mediante a argumentação dialéctica própria da ciência jurídica, da sua falta de razão em face do Direito.

A segunda liga-se directamente à recorribilidade das decisões judiciais.

A lei assegura aos particulares, sempre que a decisão não caiba na alçada dos tribunais, a possibilidade de impugná-la, submetendo-a à consideração de um tribunal superior. Mas, para que a parte lesada com a decisão que considera injusta a possa impugnar com verdadeiro conhecimento de causa, torna-se de elementar conveniência saber quais os fundamentos de direito em que o julgador a baseou».


Sobre esta matéria também se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 29.11.2006, processo 2796/06 (sumário):

“(…)

II – A circunstância de a remissão ser efectuada para anterior acórdão proferido pelo mesmo tribunal que, nessa parte, foi declarado nulo, não afecta a validade da fundamentação. Com efeito, o acórdão ferido de nulidade continua a ter existência jurídica, só que não produz os efeitos que lhe são próprios, designadamente o da imperatividade da decisão. Mas não deixa de continuar a valer como documento que atesta o modo como o tribunal, num determinado momento histórico, encarou e decidiu determinada questão e os seus fundamentos.”

Bem como o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 15.03.2009, no processo 055/09:

“Por isso, a questão que se coloca, a nível da existência ou não de nulidade de por falta de fundamentação, é a de saber se, apenas à face do que consta do texto do acórdão e do que ele revela sobre as razões por que se adoptou a posição que se adoptou, existe ou não essa nulidade.”

E ainda o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 05.02.2014, no processo 01846/13 (sumário):

I - Nada obsta a que a fundamentação jurídica da sentença remeta para o parecer proferido pelo representante do Ministério Público na impugnação judicial, sendo que a lei apenas proíbe a fundamentação das decisões judiciais por mera adesão aos fundamentos apresentados por alguma das partes.

II - Não ocorre nulidade por falta de especificação dos fundamentos de dívida exequenda se a sentença recorrida dá a conhecer as normas legais que aplicou na decisão, bem como a interpretação que fez das mesmas.”

Ora, no caso concreto, pela remissão feita para decisão anterior, a decisão recorrida permite perceber, com toda a clareza, quais os fundamentos jurídicos que serviram de base ao decidido. E que os mesmos são resultado de uma ponderação feita pelo Tribunal.

Saber se esses fundamentos jurídicos servem para os factos dados como provados ou não, é questão que se prende já com o acerto – ou erro – da decisão e não com o cumprimento da exigência de fundamentação.

Termos em que se julga não verificado este vício imputado à decisão recorrida.

2. O mérito da decisão recorrida; o erro no enquadramento jurídico dos factos provados; o princípio da eficiência; o artigo 10º do Código de Procedimento Administrativo; o erro de hermenêutica – o artigo 9º do Código Civil; os artigos 2º e 111º da Constituição da República Portuguesa; o n.º4 do artigo 1º e os n.ºs 1 e 4 do artigo 49º do Código de Contratos Públicos - os princípios da igualdade e da concorrência; no artigo 7º do Decreto-Lei nº 252/94; as Directivas 2004/18/UE e 2004/24/EU; o princípio do primado do Direito Europeu e do artigo 8º, nº4, da Constituição da República Portuguesa; o princípio da legalidade (artigos 266º, nº2, da Constituição da República Portuguesa e artigo 3º do Código de Procedimento Administrativo, na versão aplicável).

Invoca nesta parte a recorrente que: a sentença recorrida considera que a única maneira de assegurar uma estrita igualdade de oportunidades dos concorrentes em matéria de condições de acesso e de adjudicação, era, com efeito, abrir um concurso para contratação do fornecimento e implementação de um novo sistema informático, de raiz, que abrangesse as utilidades ou aplicações e ferramentas já existentes e as novas, prescindido de todo o sistema informático já instalado; esta conclusão não encontra fundamento na factualidade provada nestes autos, de onde não resulta, de todo, que esta conclusão tenha validade; por outro lado, também não tem adesão à realidade material, já que o respeito pela igualdade e concorrência entre operadores se bastaria com a indicação dos modelos de dados dos sistemas de informação em uso, para que o novo contraente pudesse, ele próprio, desenvolver as ferramentas necessárias a assegurar a interoperabilidade daqueles com os novos sistemas a adquirir; essa indicação seria certamente fácil de obter junto do fornecedor dos sistemas em uso, a AIRC, uma vez que esta não se trata de uma empresa em busca do lucro, mas de uma associação de municípios de fins específicos, a quem cabe, à semelhança do que sucede com a entidade demandada, a prossecução do interesse público; toda a tese desenvolvida na sentença recorrida se baseia no errado pressuposto acima referido, da imprescindibilidade de substituição de todos os sistemas de informação em uso, que ficariam inutilizados, por um novo que integrasse aqueles e ainda as funcionalidades que se pretendem adquirir no âmbito do concurso sub judice; faltando àquele pressuposto a imprescindível sustentação factual e técnica, é evidente que tal implica o erro de julgamento subsequente de toda a decisão recorrida; ainda que assim não fosse, a sentença recorrida padece de graves erros de natureza jurídica que importa invocar; o artigo 9º do Código Civil contém uma directriz hermenêutica fundamental no sentido de que se determinada solução foi positivada na lei, devemos presumi-la como acertada; o que significa precisamente o contrário do que resulta da sentença recorrida, segundo a qual aquele preceito autorizaria o intérprete a afastar as soluções legalmente consagradas que reputasse como manifestamente desadequadas; esta interpretação do artigo 9º do Código Civil é inconstitucional porque viola o princípio da separação de poderes, consagrado nos artigos 2º e 111º da Constituição da República Portuguesa, na medida em que permite que o Tribunal se se substitua ao poder legislativo; o artigo 10º do Código de Procedimento Administrativo apenas consagra um princípio disciplinador da organização e estruturação da Administração Pública, pelo que ao invocar aquele preceito como fundamento legal de um denso princípio regulador dos actos da administração que permite aferir e avaliar a respectiva eficiência económica e controlar a sua legalidade em função do respeito pelo dever de buscar as soluções mais económicas possíveis, a sentença recorrida faz dele interpretação errónea e sem o mínimo de respaldo na letra da lei; o que a sentença recorrida faz é afastar os efeitos de uma norma legal, o artigo 49º, nº1 do Código dos Contratos Públicos e dos princípios da igualdade de e da concorrência, também com consagração legal expressa no art. 1º, nº 4, do Código dos Contratos Públicos, em função de um juízo seu sobre a razoabilidade, em termos de eficiência económica, que a aplicação daquelas regras teria na situação da vida regulada; o que não é aceitável num Estado de Direito Democrático e viola de forma gritante o princípio da separação de poderes (artigos 2º e 111º da Constituição da República Portuguesa), já que configura uma clara invasão da esfera do poder legislativo, democraticamente legitimado; mas põe também em causa o fundamental princípio da legalidade (artigos 266º, nº2, da Constituição da República Portuguesa e artigo 3º do Código de Procedimento Administrativo, na versão aplicável), na medida em que legitima uma actuação administrativa desconforme com as normas legais aplicáveis, por razões de natureza e critério economicistas, havendo uma norma expressa, o artigo 49º, nº1, do Código de Contratos Públicos, considerada aplicável, não pode a mesma ser desaplicada com fundamento na sua antinomia, na situação concreta, com um princípio de fonte e hierarquia normativas idênticas, como é o caso do suposto princípio da eficiência económica (artigo 10º do Código de Procedimento Administrativo); acresce que os princípios da igualdade e concorrência, consagrados no artigo 1º, nº4, do Código dos Contratos Públicos, dos quais o artigo 49º, nº1 do Código dos Contratos Públicos, constitui concretização, constituem princípios fundamentais especiais da contratação pública; deste modo, no caso dos autos, em que está em causa a legalidade de um procedimento de contratação pública, seriam sempre prevalecentes, designadamente sobre o suposto princípio da eficiência económica errou, pois, gravemente a sentença recorrida ao decidir o contrário; a norma prevista no artigo 49º, nº1, do Código dos Contratos Públicos e os princípios da igualdade e concorrência consagrados no artigo 1º, nº4, daquele diploma têm lugar paralelo no Direito Europeu derivado que constitui a sua fonte, mais precisamente nas Directivas 2004/18/UE e 2004/24/EU; assim sendo, ao fazer prevalecer o princípio da eficiência económica sobre normas e princípios de direito europeu, a sentença recorrida incorre em clara violação do princípio do primado do Direito Europeu e do artigo 8º, nº4, da Constituição da República Portuguesa; no juízo de ponderação da eficiência económica, a sentença recorrida pura e simplesmente ignorou factores relativos às perdas de eficiência e competitividade inerentes a uma adjudicação que perpetua a aquisição a um operador económico fora das regras do mercado, que se impõe como único adjudicatário possível, por dele depender a interoperabilidade com todos os sistemas de informação em uso na entidade adjudicante; impedindo a entidade adjudicante de beneficiar das vantagens de aquisição em mercado concorrencial, no que respeita à diversidade de soluções, qualidade das propostas e competitividade dos preços; a omissão da ponderação destes factores redunda em erro de julgamento; afigura-se impertinente e juridicamente errado sustentar a legalidade das normas do caderno de encargos com fundamento no artigo 7º do Decreto-Lei nº 252/94, que não põe, minimamente em causa a violação do artigo 49º, nº1, do Código dos Contratos Públicos e dos princípios da igualdade e concorrência, como a sentença para a qual remete a decisão recorrida reconhece de forma clara e explícita; por outro lado, daquela norma não resulta a autorização da autora para descompilar os programas informáticos em uso, mas sim da entidade demandada; a referida disposição confere a habilitação legal necessária à entidade adjudicante para, ela própria, aceder às informações necessárias a assegurar a compatibilidade com os actuais sistemas informáticos, de modo a poder fornecê-los aos concorrentes, colocando todos em condições de igualdade e plena concorrência; o que deveria ter feito, ao invés de lançar um procedimento cujas regras favorecerem de forma clamorosa o fornecedor actual, em detrimento de todos os demais operadores económicos do espaço europeu.

Toda a argumentação jurídica da recorrente se centra na violação, por parte da decisão recorrida, dos princípios da igualdade e da concorrência, consagrados no n.º 4 do artigo 1º e nos n.ºs 1 e 4 do artigo 49º do Código de Contratos Públicos, por errada interpretação e aplicação ao caso concreto.

Daí que se justifique apreciar em conjunto todos os erros de fundo imputados à decisão recorrida e na óptica da interpretação e aplicação ao caso concreto destas normas e princípios do Código de Contratos Públicos.

Dito isto, vejamos.

Comecemos pelo princípio da concorrência.

O n.º 4 do artigo 1º do Código dos Contratos Públicos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de Janeiro, determina:

“À contratação pública são especialmente aplicáveis os princípios da transparência, da igualdade e da concorrência”.

Como se refere no acórdão do Tribunal de Contas n.º 40/2010, no processo n.º 1303/2010:

“A mais livre e intensa concorrência possível é indissociável dos “interesses financeiros públicos, já que é em concorrência que se formam as propostas competitivas e que a entidade adjudicante pode escolher aquela que melhor e mais eficientemente satisfaça o fim pretendido. Donde resulta que para a formação de contratos públicos devem ser usados procedimentos que promovam o mais amplo acesso à contratação dos operadores económicos nela interessados na certeza de essa concorrência permitirá que surja deste jogo concorrencial, as melhores propostas possíveis”.

Também a propósito deste princípio Maria João Estorninho, Curso de Direito dos Contratos Públicos, 2012, Almedina, p. 391 refere que o concurso público permite encontrar a melhor solução para o interesse público, uma vez que quantos mais interessados se apresentarem a querer negociar maior a possibilidade de escolha a entidade adjudicante terá e mais os concorrentes procurarão optimizar as suas propostas.

E para Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, Concursos e outros Procedimentos de Contratação Pública, 2011, págs. 185 a 187, o princípio da concorrência constitui “… a verdadeira trave-mestra da contratação pública uma espécie de umbrela principle …”, sendo que “… um procedimento concorrencial regulado pelo direito administrativo, realiza-se pública ou abertamente no mercado, através dele, dirigindo-se à concorrência aí existente, para que o maior número de pessoas ou empresas se interessem pela celebração do contrato em causa …”, garantindo-se a concorrência pela exigência de que “… dentro da modalidade escolhida os procedimentos de contratação pública sejam organizados de maneira a suscitar o interesse do maior (e melhor) número de candidatos ou concorrentes, abrindo-se tendencialmente a todos os que a eles queiram aceder (ou candidatar-se), sem quaisquer condições que tenham por efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência …”; salvo motivo justificado “… os requisitos de acesso ao procedimento não deverem ser definidos de tal maneira (vg., por referência ao número e valores das obras ou serviços iguais ou similares já prestados ou à proveniência dos bens a fornecer) que resultem numa limitação desproporcionada do mercado com capacidade para participar nesse procedimento …”.

Em síntese, sustenta Rodrigo Esteves de Oliveira em “Os princípios gerais da contratação pública, Estudos de Contratação Pública”, Tomo I, Coimbra Editora, 2008, página 66 e seguinte, «o princípio da concorrência é actualmente a trave-mestra da contratação pública».

Finalmente, importa reter o que se decidiu no acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte, de 16.12.2011, no processo n.º 00322/11.5 BEBRG, o princípio da concorrência “impõe, por um lado, que ninguém possa ser impedido de deduzir ou apresentar a sua candidatura em procedimento concursal pelo facto deste se mostrar disciplinado ou assente em exigências arbitrárias e, por outro lado, que cada candidatura apresentada seja avaliada de per si, ou seja, de acordo com os seus méritos e deméritos intrínsecos, sem que possam ou que sejam valoradas quaisquer situações, qualidades/características ou outros elementos de facto relativos aos candidatos/concorrentes ou que exijam pronúncias ou emissões de declarações de vontade de entes terceiros que aqueles candidatos/concorrentes não controlem ou não possam controlar e que condicionam a possibilidade de candidatura ou interfiram com os critérios de avaliação das propostas” (ponto IX do sumário).

E, mais adiante no mesmo acórdão: ”as entidades adjudicantes não podem, por exemplo, estabelecer requisitos de acesso ou de avaliação das propostas em termos tais de que resulte uma limitação desproporcionada e desigualitária quanto ao mercado habilitado a participar no procedimento ou então um condicionamento, ainda que potencial, dos resultados do próprio procedimento concursal. É que a definição dos factores de avaliação não poderá ser feita em abstracto sem qualquer ligação ao contrato que se visa vir a outorgar na sequência do procedimento de formação aberto, sendo que tal definição terá de considerar e de se ajustar ao objecto daquele contrato, na certeza de que na concretização dos requisitos terão sempre de estar presentes as exigências de proporcionalidade, de necessidade e de adequação à luz e atentos os termos do ulterior contrato, devendo ainda atentar nos deveres de prossecução do normal funcionamento do mercado e da protecção subjectiva dos potenciais concorrentes de molde a assegurar o mais amplo acesso aos procedimentos por parte dos interessados em contratar.”


O princípio da igualdade “impõe à entidade adjudicante uma conduta estritamente igual para todos os concorrentes e candidatos, impedindo-a de tomar medidas (directas ou indirectas) de discriminação (jurídica ou fáctica) que possam beneficiar ou prejudicar ilegitimamente (é dizer sem justificação suficiente) qualquer ou quaisquer deles” - Rodrigo Esteves de Oliveira, obra citada, página 92.

O cerne da questão aqui a dirimir centra-se em saber se o caderno de encargos ao exigir a todos os concorrentes a interoperabilidade das soluções propostas, com o sistema informático já existente, sem fornecer nem assegurar o acesso da generalidade dos concorrentes aos dados técnicos do sistema informático já existente, viola os princípios da igualdade e da concorrência no n.º 4 do artigo 1º e nos n.ºs 1 e 4 do artigo 49º do Código de Contratos Públicos.

Assim como, consequentemente, os actos de exclusão da autora e de adjudicação do contrato à contra-interessada, que têm como pressuposto, além de outros, é certo, mas este é essencial, a exigência em causa do caderno de encargos.

Extrai-se da decisão recorrida, de essencial, num primeiro passo, por remissão para a decisão proferida pelo mesmo Tribunal no processo nº 339/15.8BECBR:

Em abstracto, é de admitir que uma tensão dialéctica entre o princípio específico da contratação pública da concorrência (e o da igualdade, se se quiser) por um lado, e, por outro, este princípio autónomo da boa administração ou da eficiência económica da administração possa e deva ser suprida em favor daqueles primeiros, já que para a Administração, do Estado de Direito democrático e social os critérios de natureza económica não podem ser os prioritários, nem mesmo os primeiros ou principais a ter em conta. Aliás, pesa a favor de uma contracção do princípio da Eficiência o facto de no outro lado da balança estar a maior densidade de um princípio específico da contratação pública, insinuando como que uma derrogação do princípio geral pelo especial.

Porém, no caso sub judice seriam tão graves as consequências de uma primazia dos princípio da concorrência e ou da Igualdade, isto é, de se abrir o concurso para todo um sistema de raiz, com abandono do sistema já instalado, que se entende que o princípio da Eficiência e boa administração da Coisa Pública não só permitia como impunha ao Município abrir o concurso com o objecto com que o abriu, inclusive com a especificação técnica em crise, mesmo potenciando o que veio a acontecer, isto é, que um dos concorrentes a C.I. AIRC, fornecedor que fora do sistema informático existente, ficasse em vantagem relativamente ao acesso ao concurso e à adjudicação do contrato.

Não se trata de trocar a valiosa herança das garantias constitucionais e dos princípios inegociáveis da contratação pública, nacionais e europeus, designadamente esses da Concorrência e da Igualdade, pelo prato de lentilhas da economia de recursos públicos. Trata-se, sim, de não deixar morrer de sede a causa pública, à conta de uma “crença quase acrítica na bondade intrínseca das soluções legais ditadas pelo princípio democrático” , à beira dessa água fresca que um princípio fundamental da gestão da coisa pública, como o vindo a referir, dá a beber.

Isto exposto, está claro que a acção improcede quanto ao pedido inicial, de anulação da decisão de adjudicação e de condenação à retoma do procedimento sem as invalidades apontadas.[…]”

Depois, em fundamentação autónoma:

“Em acrescento ao definido na sentença supra referida e que aderimos, temos que chamar à colação que à Autora não estava legalmente vedada a criação e invasão do sistema já colocado em serviço para garantir a interoperacionalidade do novo sistema posto a concurso. Com efeito, a este propósito dispõe o art.º 7.º do DL n.º 252/94, de 20 de Outubro (com as alterações dadas pelos Decretos-Lei n.ºs 252/94 e 334/97) e na sequência da Diretiva n.º 91/250/CEE do Conselho, de 14 de Maio de 1991 que lhe serve de fonte:

Artigo 7.º

Descompilação

1 - A descompilação das partes de um programa necessárias à interoperabilidade desse programa de computador com outros programas é sempre lícita, ainda que envolva operações previstas nos artigos anteriores, quando for a via indispensável para a obtenção de informações necessárias a essa interoperabilidade.

2 - Têm legitimidade para realizar a descompilação o titular da licença de utilização ou outra pessoa que possa licitamente utilizar o programa, ou pessoas por estes autorizadas, se essas informações não estiverem já fácil e rapidamente disponíveis.

3 - É nula qualquer estipulação em contrário ao disposto nos números anteriores.

4 - As informações obtidas não podem:

a) Ser utilizadas para um acto que infrinja direitos de autor sobre o programa originário;

b) Lesar a exploração normal do programa originário ou causar um prejuízo injustificado aos interesses legítimos do titular do direito;

c) Ser comunicadas a outrem quando não for necessário para a interoperabilidade do programa criado independentemente.

5 - O programa criado nos termos da alínea c) do número anterior não pode ser substancialmente semelhante, na sua expressão, ao programa originário.

Assim, se é certo que pode, em tese, sempre haver uma tensão dialética entre os direitos de autor e as regras da concorrência, a verdade é que na presente situação, tal tensão aqui inexiste, uma vez que não há impedimento legal ou factual conhecido que impeça ou tivesse impedido que a Autora adaptasse a sua proposta às lícitas normas do caderno de encargos, contra as quais aqui se insurgiu. Deste modo, a Autora fazendo uso da prerrogativa da norma citada poderia ter apresentado propostas concretamente compatível com o sistema informático pré-existente e em funcionamento nos serviços do Réu.

Resumindo, na própria decisão recorrida se admite, num primeiro momento, a violação do princípio da igualdade e da concorrência nas normas reguladoras deste concurso que, no entanto, deveria claudicar no caso face ao princípio da eficiência e boa administração do erário público, dado que seria necessário, defende-se, abrir o concurso para todo um sistema de raiz, com abandono do sistema já instalado.

Para depois se concluir que no caso esse conflito de princípios acaba por não se verificar dado que à autora “não estava legalmente vedada a criação e invasão do sistema já colocado em serviço para garantir a interoperacionalidade do novo sistema posto a concurso.”

Não se pode concordar com tal entendimento.

Como acima se referiu, o princípio da concorrência é um princípio basilar da contratação pública.

A par do princípio da legalidade que preside a toda a actuação da Administração – artigo 266º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, e artigo 3º do Código de Procedimento Administrativo.

Todos os demais devem ser compaginados com estes princípios.

O procedimento pode ser transparente, imparcial, eficiente e até igualitário.

Se não respeitar normas imperativas e as regras da livre concorrência, é ilegal. A transparência, a eficiência a imparcialidade e a igualdade apenas se podem realizar num quadro de legalidade e livre concorrência.

Assim, desde logo, verificando-se que as normas do caderno de encargos ao exigirem a todos os concorrentes a interoperabilidade das soluções propostas, com o sistema informático já existente, sem fornecer nem assegurar o acesso da generalidade dos concorrentes aos dados técnicos do Sistema Informático já existente, criado pela contra-interessada, conclui-se que tais violam os princípios da igualdade e da concorrência no n.º 4 do artigo 1º e nos n.ºs 1 e 4 do artigo 49º do Código de Contratos Públicos, dado colocarem a contra-interessada numa clara e decisiva posição de vantagem.

Na verdade a AIRC estava manifestamente, à partida, numa situação de vantagem, decisiva, em relação a todos os potenciais e efectivos concorrentes, dado que dispunha em exclusivo dos dados do sistema já instalado – da sua autoria – necessários para assegurar a interoperacionalidade com o sistema posto a concurso.

Por outro lado, a alternativa a esta clara violação do princípio da igualdade e da livre concorrência não era, como se diz na decisão recorrida, abrir o concurso para todo um sistema de raiz, com abandono do sistema já instalado.

A solução encontrava-se no próprio preceito invocado na decisão recorrida - mas com um sentido diverso, oposto até -, o artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 252/94, de 20 de Outubro (com as alterações dadas pelos Decretos-Lei n.ºs 252/94 e 334/97), promulgado na sequência da Directiva n.º 91/250/CEE do Conselho, de 14 de Maio de 1991, e que permite a “descompilação das partes de um programa necessárias à interoperabilidade desse programa de computador com outros programas … for a via indispensável para a obtenção de informações necessárias a essa interoperabilidade”.

Este preceito, como defende a recorrente, não permitia à candidata invadir o programa instalado. Permitia, pelo contrário, ao Município demandado, ora recorrido, revelar e divulgar os elementos do programa instalado necessários para assegurar a interoperacionalidade com o sistema a instalar de forma a que todos os concorrentes ficassem em posição de igualdade.

As normas do caderno de encargos, na parte em análise, ao permitirem, como permitiram, a interpretação de que não era obrigatório facultar aos candidatos os elementos necessários a garantir, nas propostas, a interoperacionalidade dos sistemas, o instalado e o submetido a concurso, violam efectivamente o princípio da igualdade.

Isto sendo certo que é à entidade que lança o concurso que compete assegurar as condições de igualdade e de livre concorrência, e não, obviamente, aos concorrentes.

E, por outro lado, a necessária descompilação do sistema já instalado por parte do Município demandado, não só se mostrava legal, face ao disposto no artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 252/94, de 20 de Outubro, como os legítimos direitos da contra-interessada se encontravam suficientemente acautelados pelas garantias e tutela jurisdicional dos direitos de autor, salvaguardados nessa mesma norma.

A solução preconizada na decisão recorrida, de considerar válidas as normas em apreço do concurso e, logo, os actos de exclusão da autora e de adjudicação do objecto do concurso à contra-interessada, na prática, permite a perpetuação desta como contraente, desincentivando-a, na falta de concorrência, a oferecer o melhor preço para o produto em causa, o que, no final, redunda precisamente num prejuízo para o erário público.

Termos em que se impõe revogar a decisão recorrida, julgando a acção procedente.


*

IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em CONCEDER PROVIMENTO ao presente recurso jurisdicional pelo que:

A) Revogam a decisão recorrida.

B) Julgam a acção totalmente procedente, condenando o Município demandado nos termos peticionados.

Custas em ambas as instâncias pelo Município recorrido.


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Porto, 21.04.2016

Ass.: Rogério Martins
Ass.: Luís Garcia - com a seguinte declaração de voto:
“Sufrago em toda a linha o presente aresto, perante hipótese que, como emerge, não se confunde e se distingue daquela com que este TCAN foi confrontado, em Ac. de 19-02-2016, proc. nº 00339/15.0BECBR, e em que "ratione decidendi" aí também está circunstancialmente presente um apodítico juízo de facto aqui ausente.”
Ass.: Esperança Mealha - com declaração de voto idêntica à do Exmo. Sr. Desembargador Luís Migueis Garcia, para a qual remeto.