Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00210/13.0BECBR
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:04/21/2023
Tribunal:TAF de Coimbra
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:INTERVENÇÃO PROVOCADA; FASE JULGAMENTO; ARTIGO 547º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL;
“ACÇÕES PARA COBRANÇA DE DÍVIDAS”; ACÇÕES DECLARATIVAS; N.º 1 DO ARTIGO 17º-E DO CÓDIGO DE INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS;
CONTRATO DE SEGURO; PREJUÍZOS ABRANGIDOS;
Sumário:1. Se uma empresa foi logo indicada na petição inicial como responsável, enquanto empreiteira de uma obra, pela deslocação de terras e derrocada que deu origem ao rebentamento de uma conduta de água da Ré Águas de ..., evento do qual resultaram os danos cuja indemnização é pedida na acção e foi deduzido contra si pedido, embora de forma implícita, no pedido deduzido contra a sua seguradora e apenas não foi inicialmente por estar então declarada falida, justifica-se a sua intervenção, a pedido da segurado por estar de novo em actividade plena, embora submetida a um plano especial de revitalização, já em fase de julgamento, ao abrigo do disposto no artigo 547º do Código de Processo Civil.

2. Não se trata aqui de introduzir no processo uma pessoa estranha ao processo, factos novos a ela atinentes e novo pedido, mas antes de adequar o processo à realidade material reflectida no processo desde o início.

3. A expressão “acções para cobrança de dívidas” a que alude o n.º 1 do artigo 17º-E do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas, não abrange as acções declarativas.

4. O contrato de seguro, como qualquer contrato, não sendo um contrato de seguro obrigatório, cria direitos e obrigações apenas para as partes, pelo que a questão de determinar os prejuízos que estão ou não abrangidos pelo seguro é questão a que terceiro é alheio porque o que a seguradora não pagar deve pagar o tomador do seguro.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Maioria
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento aos recursos.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

A EMP01... L.da, Autora nos autos em epígrafe, interpôs RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, de 21.04.2020, pela qual foi julgada parcialmente procedente, a acção que intentou contra a AC – Águas de ..., EEM e a Companhia de Seguros EMP02..., SA, e em que foi admitida como interveniente principal EMP03..., L.da, para condenação no pagamento da quantia de 72.065€53, a título de indemnização, acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento, na parte em que absolveu as Rés Águas de ... e Companhia de Seguros EMP02..., bem como na parte em que absolveu a Interveniente EMP03... relativamente aos danos peticionados e não contemplados na parte condenatória do dispositivo.

Invocou, em síntese que: a decisão recorrida padece de erro no julgamento da matéria de facto, quer quanto aos factos provados quer quanto aos factos não provados, devendo ainda outros serem alterados; no pressuposto de que haverá alteração da matéria de facto, a Autora tem o direito de ser indemnizada, nos termos do artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 67/2007, de 31.12, normativo que a sentença de 1.ª instância violou.

Contra-alegou a Companhia de Seguros EMP02..., SA, na parte que lhe diz respeito neste recurso, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

A EMP03..., L.da também interpôs recurso da mesma sentença.

Invocou para tanto, em síntese, que: foi extemporaneamente requerida e aceite a sua intervenção principal provocada; foi violado pela decisão recorrida o disposto na no artigo 17º-E, n.º1, do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, por não ter sido aplicado na presente acção este preceito, com a consequente suspensão os autos e posterior extinção; para além de ser encontrar prescrito o direito de indemnização que contra si se exerce.

A AC – Águas de ..., EEM apresentou contra-alegações defendendo que deve ser negado provimento a ambos os recursos.

A Autora apresentou também contra-alegações, defendendo a improcedência do recurso da Interveniente EMP03...; em relação ao ataque que esta dirige à decisão que admitiu a sua intervenção provocada, defende que a mesma não foi objecto do recurso pelo que transitou em julgado.

O Ministério Publico neste Tribunal não emitiu parecer.

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Cumpre decidir já que nada a tal obsta.
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I.I. - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional da Autora EMP01..., L.da :

I. A autora impugna a sentença proferida nos autos na parte em que absolve as rés Águas de ... e Companhia de Seguros EMP02..., bem como na parte em que absolve a ré EMP03... relativamente aos danos não contemplados na parte condenatória do dispositivo.

II. O recurso versa matéria de direito e matéria de facto.

III. A recorrente consigna que tem interesse na apreciação de cada um dos fundamentos do recurso, independentemente da decisão que vier a ser proferida sobre os restantes fundamentos.

IV. Para efeitos de sistematização do requerimento de recurso, a recorrente trata fundamentalmente três questões:

a) A responsabilidade da ré AC - Águas de ..., EEM, recorrendo em matéria de facto e em matéria de direito;
b) A responsabilidade da ré Companhia de Seguros EMP02..., SA, recorrendo em matéria de direito;
c) A quantificação dos danos a ressarcir, recorrendo em matéria de facto e em matéria de direito.

Responsabilidade da ré AC - Águas de ..., EEM, recorrendo em matéria de facto e em matéria de direito

V. No que se refere à ré AC – Águas de ..., a recorrente impugna os factos provados 18 e 19 pretendendo que seja dado como provado o seguinte:

facto provado 18: “A ré Águas de ... procedeu à reparação da respectiva conduta, mas não reestabeleceu o fornecimento por não estarem garantidas as condições de segurança suscetíveis de evitar novas rupturas, designadamente entivação, aterro, escoramento e suporte da conduta”.
facto provado 19: “O canalizador da 1.ª ré que executou os trabalhos de reparação da conduta, avisou a EMP03... que a água seria novamente aberta depois de estarem executados os trabalhos referidos em 18, mediante contacto da construtora com a ré Águas de ... para o efeito”.

VI. Pretende ainda que se deem como provados os factos alegados em 11 e 14 do articulado de pi nos seguintes termos:

facto 11 da pi: “Na ocasião das ruturas, a conduta encontrava-se em vala aberta, sem qualquer proteção”.
facto 14 da pi: “Na ocasião da primeira rutura, os trabalhadores da ré Águas de ... puderam constatar que não existia proteção, nem tinham sido efetuadas operações de aterro ou entivação que garantissem a integridade da conduta”.

VII. Considerando que os factos impugnados giram em torno dos mesmos episódios de inundação estando interligados pela dinâmica e sucessão dos factos, a recorrente indica os fundamentos da impugnação de forma conjunta para os quatro factos, sendo certo que todos os fundamentos indicados valem com referência a cada um deles.

VIII. Assim, sustentam a impugnação da recorrente:

a) o documento de fls 359 consubstanciado no relatório de reclamação de 19.10.2011 onde se consigna o seguinte: “Informo que era o tubo que foi estripado de uma junta porque o empreiteiro anda a fazer um desaterro, foi colocada a junta no sítio e o empreiteiro ficou de escorar a conduta, depois liga para ir abrir a água”.
b) O depoimento da testemunha AA, técnico da Águas de ... que procedeu à reparação da rutura ocorrida no dia 19 de outubro de 2011, registado na gravação da sessão da audiência final do dia 15 de novembro de 2019 de 27:44 a 1:03:00, interessando em particular as passagens de 31:40 a 33:40 (descreve a reparação e o pedido de escoramento ao responsável da obra, explica o que é escorar e explica que só iria ligar a água depois de telefonarem a pedir, ou seja, depois de a vala estar nas devidas condições), de 43:10 a 48:25 (explica a nova ligação da água e explica ainda que a ligação “irregular” da água não pode passar despercebida às Águas de ... porque a conduta abastece outros clientes) e 59:30 a 1:01:43 (fala na possibilidade de ter sido o empreiteiro a conseguir fechar e abrir a água, ainda que irregularmente)
c) O depoimento da testemunha BB, técnico da Águas de ... que procedeu à reparação da rutura ocorrida no dia 5 de novembro de 2011, registado na gravação da audiência final do dia 15 de novembro de 2019 de 1:00 a 26:50, interessando em particular as passagens de 8:20 a 8:50 e 9:28 a 9:40 (explica a queda do lancil em cima da conduta), 10:10 a 10:35 (diz que a conduta estava solta, sem terra por cima e sem terra de lado) e 19:20 a 21:00 (diz que a água só deveria ter sido aberta se a conduta estivesse escorada)
d) O depoimento da testemunha CC, Diretor de Operação e Manutenção de Infraestruturas da Águas de ..., registado na gravação da audiência final do dia 15 de novembro de 2019 de 1:43:37 a 2:36:33, interessando em particular as passagens de 2:07:05 a 2:09:20, de 2:10:00 a 2:11:00 e de 2:20:50 a 2:23:40 (explica que, ainda que irregularmente, qualquer empreiteiro tem uma chave das que permitem abrir a água embora devesse ser um exclusivo das Águas de ... e refere ainda que não tem registo de ter sido feita a comunicação para ligação por parte da construtora, assim como não tem registo de qualquer reclamação por falta de água dos restantes consumidores abastecidos pela conduta)
e) O depoimento da testemunha DD, engenheiro da Águas de ..., registado na gravação da audiência final do dia 15 de novembro de 2019 de 2:40:10 a 3:38:23, interessando em particular as passagens de 3:15:00 a 3:21:46 (a testemunha esteve no local aquando da segunda rutura [a do dia 5 de novembro de 2011] e explica que a conduta só podia dar problemas no estado em que a encontrou por não estar agarrada, nem enterrada, referindo ainda que não se lembra de ver escoramento nenhum mas mesmo que houvesse uns “arames” isso seria manifestamente insuficiente, dado que a conduta não estava protegida e que o ideal seria escorar e entivar [esconder] a conduta) e 3:23:00 a 3:26:15 (refere ainda que na primeira rutura teria de haver um pedido do empreiteiro ou uma queixa de algum consumidor para que voltassem a deslocar-se ao local mas que, neste caso, a questão caiu no vazio, o que por vezes acontece, sendo certo que, na sequência da primeira rutura, água não foi aberta pelas Águas de ..., alguém abriu mas a testemunha refere não saber quem).

IX. Com o quadro fáctico supra, é manifesto que a Águas de ... atuou ilicitamente dado que se demitiu da obrigação de providenciar pelo bom estado de funcionamento do sistema público de distribuição de água.

X. Com culpa, dado que percebeu o estado em que a conduta se encontrava e nada fez no sentido de evitar que a mesma permanecesse em funcionamento, sabendo ou podendo saber com facilidade, que o fornecimento tinha sido irregularmente reestabelecido.

XI. Se o tivesse feito, interrompendo o fornecimento da água, a rutura não se teria verificado e a autora teria sido poupada aos danos que sofreu.

XII. Considerando que os factos a que reporta a ação ocorreram em novembro de 2011 e que, nessa data, vigorava uma versão dos estatutos da ré Águas de ... diferente da atual, a recorrente impugna o facto provado 8 pretendendo que o mesmo passe a ter a mesma redação com o seguinte complemento no final: “… ; até à alteração dos respetivos estatutos, a ré era uma pessoa coletiva de direito público, sob a forma de entidade empresarial municipal, dotada de personalidade jurídica e autonomia administrativa, financeira e patrimonial”, impugnação que fundamenta no teor dos documentos ... e ...0 (fls 370 e segs) juntos pela autora com o requerimento de 22 de fevereiro de 2017.

XIII. Quanto a esta matéria a sentença recorrida viola ou faz incorreta interpretação dos arts. 3.º e 7.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro.

Responsabilidade da ré Companhia de Seguros EMP02..., SA, recorrendo em matéria de direito e em matéria de facto

XIV. O seguro que se discute nos autos constitui um seguro de responsabilidade civil extracontratual pelos danos resultantes do exercício da indústria da construção civil.

XV. Resulta do documento que titula as condições particulares que se excluem: danos causados em bens do segurado; danos causados em bens do dono de obra; danos causados em bens de empreiteiros ou subempreiteiros; danos causados em prédios ou edifícios contíguos àquele em que decorre a obra; danos resultantes de cabos, condutas ou outras instalações subterrâneas (salvo no que se refere à própria reparação da conduta) e danos que resultem da falta de cumprimento de normas legais ou regulamentares, ou dos usos próprios da atividade bem como da não adoção das medidas de segurança aconselháveis.

XVI. Ou seja, do ponto de vista formal, não há qualquer dúvida quanto à celebração e vigência do seguro; não obstante, do ponto de vista substancial, a seguradora exclui a responsabilidade pelo ressarcimento de danos de mais provável verificação, respondendo apenas por danos excecionais, inusitados ou completamente imprevisíveis.

XVII. Em face do exposto, a sentença recorrida viola o disposto no art. 45.º do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de abril (Regime Jurídico do Contrato de Seguro) e o art. 18.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro.

XVIII. Ainda relativamente à responsabilidade da seguradora, a autora impugna o facto não provado g) (“Que a Autora tivesse dirigido à EMP02... pedido de indemnização pelos danos decorrentes na rutura de 05.11.2020”), pretendendo que esse facto seja dado como provado e fundamentando a impugnação no documento junto pela autora com o requerimento de 22 de fevereiro de 2017, concretamente documento n.º ... de fls 370 (comunicação de correio eletrónico que a seguradora dirige à autora em 29 de março de 2012, mediante a qual declina a responsabilidade pelo incidente).

XIX. É certo que surge mencionado como data do sinistro o dia 19 de outubro de 2011; mas essa referência prender-se-á com a circunstância de a inundação de 5 de novembro de 2011 ser consequente à do dia 19 de outubro de 2011, até porque a autora não teve danos (nem, evidentemente, os reclamou) relativamente ao primeiro episódio.

Da quantificação dos danos, recorrendo em matéria de facto e matéria de direito

XX. Quanto a este aspeto da sentença recorrida, a recorrente não compreende e impugna a decisão de dar como não provados os factos ali identificados como

c) (“Que as reparações a fazer no piso -1, em consequência da rutura no dia 5.11.2011 eram as constantes dos docs 3 a 10 da pi”) e

f) (“Que a autora tivesse de manter o outro edifício após a emissão da licença de utilização em janeiro de 2012 até dezembro de 2012, por causa da inundação, e os danos daí derivados [arts. 53.º a 67.º da pi]).

XXI. Estes danos e a sua quantificação resultaram de prova documental, designadamente dos docs juntos à pi com os n.os 3 a 13 quanto aos orçamentos do que deveria ser gasto para reparação completa, integral e definitiva dos danos infligidos no edifício e docs 13 a 39 quanto aos sobrecustos resultantes da necessidade de utilização do outro edifício. XXII.
Acrescem os depoimentos das seguintes testemunhas:

a) EE e Vale, eletricista e foi ao imóvel na sequência da inundação para orçamentar as reparações necessárias, ouvido na sessão da audiência final do dia 13 de novembro de 2019, cujo depoimento ficou gravado de 2:00 a 20:40, interessando em particular a passagem de 12:20 a 15:29 em que foi confrontado com os documentos ... a ... da pi tendo confirmado o respetivo teor
b) FF, ouvido na sessão da audiência final do dia 13 de novembro de 2019, cujo depoimento ficou gravado de 21:45 a 53:14, interessando em particular a passagem de 30:20 a 38:25 em que confirmou o teor do documento ... e referiu os danos do quadro elétrico que já estava concluído e que foi muito afetado e os danos, em geral, em toda a instalação elétrica e equipamento de automação, sendo necessária a utilização de um equipamento que designou por “analisador de energia” para aferir as condições de funcionamento de todos os componentes
c) GG, empreiteiro e foi chamado na sequência da inundação para orçamentar as reparações necessárias e proceder às mais urgentes, ouvido na sessão da audiência final do dia 13 de novembro de 2019, cujo depoimento ficou gravado de 1:19:10 a 1:40:37, interessando em particular as passagens de 1:29:00 a 1:30:30 e 1:34:20 a 1:37:35 em que confirmou o teor do documento ...2 junto à petição inicial como sendo o orçamento para a realização das obras necessárias, mesmo que lhe tenham pedido apenas as mínimas indispensáveis para utilização do edifício
d) HH, contabilista da autora, ouvida na sessão da audiência final do dia 13 de novembro de 2019, cujo depoimento ficou gravado de 1:41:26 a 2:18:21, interessando em particular as passagens de 1:51:10 a 1:52:00 (confirmou que fizeram apenas o mínimo indispensável e que muitas outras reparações não foram feitas, tendo os danos permanecido até hoje) e 1:58:00 a 2:02:06 (descreve a situação de duplicação de instalações, as circunstâncias que a motivaram e os custos ou constrangimentos dela advenientes, sendo certo que a parte da produção ou operacional, que deveria ter mudado para o edifício novo em dezembro de 2011, mudou apenas passado um ano porque, durante esse período, houve necessidade de fazer reparações e houve ainda um compasso de espera no sentido de saber se haveria ou não assunção de responsabilidades pela seguradora ou pela Águas de ...;
e) II, administrativa da autora, ouvida na sessão da audiência final do dia 13 de novembro de 2019, cujo depoimento ficou gravado de 2:22:51 a 2:54:40, interessando em particular as passagens de 2:29:18 a 2:38:12 (referiu que nem todas as reparações foram feitas porque a empresa estava sem liquidez, vinda de construir o edifício novo sem recurso a crédito bancário; mais referiu que a mudança não foi logo feita porque ficaram a aguardar a definição de responsabilidade até um ponto em que a duplicação de custos se tornou insustentável, acrescentando que a parte administrativa acabou por se mudar em abril de 2012 para os pisos 1 e 2 mas que a parte de produção ou operacional mudou apenas no final do ano para o piso -1
f) JJ, ouvido da sessão da audiência final do dia 13 de novembro de 2019, cujo depoimento ficou gravado de 2:55:30 a 3:21:29, interessando em particular a passagem de 3:02:58 a 3:21:29 em que corroborou as indicações anteriormente prestadas, mais acrescentando que a parte de produção da empresa opera com equipamentos de grandes dimensões e que era impraticável coloca-los nas novos instalações para os retirar posteriormente passado pouco tempo, se as obras arrancassem; por outro lado, essa operação acarretaria uma paragem na produção (se não houvesse garantia de localização alternativa) cenário que não se poderia colocar de modo nenhum, sob pena de colocar em risco a empresa.

XXIII. Os meios de prova indicados como fundamento do recurso valem para cada um dos factos impugnados.


XXIV. Os depoimentos das testemunhas foram sérios credíveis, perfeitamente enquadrados dentro do contexto de um edifício acabado de construir e dos constrangimentos associados ao incidente da inundação e ao processo de mudança de instalações.

XXV. A formalidade inerente à emissão de licença de utilização em nada contende com a veracidade das alegações da autora, dado que esse título formal e administrativo não percebe necessariamente a existência de um incidente como aquele que aqui se discute, nem sequer as suas repercussões.

XXVI. Em face do exposto, a recorrente não compreende e impugna a parte decisória da sentença quanto à desvalorização da posição em que ficou, pretendendo que lhe seja arbitrada indemnização mais consentânea com a prova efetivamente produzida mediante decisão que dê como provados os factos impugnados.

XXVII. No pressuposto de que haverá alteração da matéria de facto, a autora tem o direito de ser indemnizada, nos termos do art. 3.º, n.os 1 e 2 da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, normativo que a sentença de 1.ª instância violou.

I.II. - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional da EMP03..., L.:

1ª - Falecem em absoluto os fundamentos nos quais a sentença se escora para sustentar a condenação da Interveniente Principal, ora, Recorrente.

2ª - Ressalvado o devido respeito, e estando em causa, o julgado e não o Julgador, a verdade, é que a Mmª. Juiz do Tribunal “a quo”, equimozou o sentido profundo da coerência, apreensibilidade, operacionalidade e justeza dos meios e das soluções de que a actividade interpretativa se deve servir, para encontrar a justa solução do caso concreto.

3ª - Atentos os interesses disputados na lide e perscrutada, in casu, a oportunidade do chamamento requerida pela companhia de seguros EMP02..., surge, com a clareza do relâmpago, que o incidente suscitado de intervenção principal provocada, estaria, inelutavelmente, votado ao decesso, por flagrante extemporaneidade.

4ª - A requerente do chamamento, teria, imperiosamente, de exercer tal direito, sob pena da sua evidente preclusão, com o articulado de Contestação oferecido por si nos autos. O regime legal, é, ainda mais restritivo, quando o chamamento é promovido pelo R., pois, o momento da preclusão esgota-se com o articulado da Contestação, ou no prazo desta e que foi postergado.

5ª - A, ora, Recorrente, aquando do momento processual do seu chamamento à demanda, através de citação, estava sujeita a Processo Especial de Revitalização (PER), no âmbito do Processo n.º 3710/19.... do Juízo de Comércio de ..., J..., da Comarca de ....

6ª - O Tribunal “a quo” desconsiderou, em absoluto, os efeitos processuais do PER na acção declarativa em curso, e não retirou as consequências que efluem da norma constante do artigo 17º-E do CIRE, nomeadamente, no que tange à suspensão dos autos, enquanto decorressem as negociações e subsequente extinção, no caso de aprovação do Plano, como sucedeu com a Recorrente.

7ª - As acções declarativas incluem-se na hipotização plasmada no artigo 17º-E, n.º1 do CIRE.

8ª - Andou, pois, mal, diz-se com o devido respeito, que muito é, o Tribunal “a quo”, ao ter postergado o dever legal de suspender os autos contra a, ora, recorrente, na pendência do PER, assim, como andou mal, ao ter postergado o dever de extinguir a acção em curso contra a, ora, Recorrente, por força do plasmado no artigo 17º-E, n.º 1, in fine, do CIRE, atenta a aprovação do Plano de Recuperação, por Sentença homologatória transitada em julgado, em momento anterior à Sentença, ora, posta em crise.

9ª O direito de indemnização perseguido pela A. está coberto pelo manto prescricional, o que para os devidos efeitos, aqui, expressamente, se invoca, nos termos conjugados dos artigos 323º e 498º, ambos do CC.

10ª - Violou, assim, diz-se com o devido respeito a douta Sentença recorrida, o artigo 318º, alínea c) do CPC; o artigo 17º-E, n.º1 do CIRE e artigos 323º e 498º, ambos do CC.

*

II. Questões prévias (recurso da EMP03...).

1. A extemporaneidade da intervenção principal provocada; a impugnação do despacho que admitiu esta intervenção.

Como defende a Autora, agora Recorrente e Recorrida, a Interveniente não identificou como objecto do recurso a decisão que admitiu a sua intervenção, embora se insurja contra esse despacho, quer nas alegações quer nas conclusões das alegações, a propósito do acerto da sentença recorrida.

Sucede que o despacho em apreço admitiu a intervenção principal provocada invocando ao disposto no artigo 547º do Código de Processo Civil, ou seja, assumindo a natureza de um despacho destinado garantir a adequação formal do processo, o que o torna um despacho irrecorrível, nos termos do artigo 630º, n. º2, do mesmo diploma.

Não sendo decisão susceptível, sequer em abstracto, de ser objecto de recurso, nos termos em que foi tomada, também não se pode falar, em relação à mesma, de caso julgado formal – n.ºs 1 e 2, do artigo 620º, 628º e 630º, n.º1 e 2 do Código de Processo Civil.

Pelo que foi acertada a opção atacar esta decisão em sede de recurso da sentença proferida a final.

Vejamos, pois, o acerto do despacho.

Este é o teor do despacho, de 17.06.2019, que admitiu a intervenção principal provocada da empresa EMP03...:

“(…)
Em momento prévio ao início da audiência de discussão e julgamento, veio a Ré Companhia de Seguros EMP02..., considerando a alteração superveniente das circunstâncias que justificaram o não chamamento da sua Segurada EMP03... (quer da petição inicial, como em sede de Contestação e à data em que foi proferido o Despacho Saneador, uma vez que o processo de insolvência foi encerrado e a empresa se encontra em plena actividade veio requerer a sua intervenção a título a título principal, com litisconsórcio passivo, nos termos dos artigos 316.º e seguintes do Código de Processo Civil.

As demais partes não se opuseram à referida intervenção.

O Tribunal determinou a junção aos autos de documentos de forma a apurar qual a situação da chamada (vide Acta da audiência e fls. 388 e segs. dos autos, suporte físico).

Apreciando:

Segundo os termos do litígio desenhado pela Autora, a responsabilidade pelo sucedido, segundo a 1ª Ré Águas de ..., pertencerá á ora chamada que executou trabalhos de construção no lote adjacente ao da autora, e que o deslizamento de terras se ficou a dever aos trabalhos levados a cabo pela chamada e que seria a esta que competiria salvaguardar a integridade da conduta, sustentando as terras que compõem a vala ou procedendo ao respectivo aterro. Contudo segundo informação da Autora e da Seguradora, ora requerente, a mesma foi declarada insolvente. O que motivou a improcedência da excepção de preterição de litisconsórcio necessário passivo invocado pela Companhia de Seguros EMP02... S.A., conforme Despacho Saneador de fls. 283 a 285 dos autos, suporte físico.

Não obstante a possibilidade de ser demandada directamente a seguradora, nos termos do art, 140º, nº 2 do RJCS , segundo o qual “ O direito de o lesado demandar directamente o segurador verifica-se ainda quando o segurado o tenha informado da existência de um contrato de seguro com o consequente início de negociações directas entre o lesado e o segurador”, na medida em que se discute quem e em que condições realizou as obras na conduta em causa nos presentes autos, é de todo o interesse para a descoberta da verdade material que a empresa construtora venha a juízo, como parte principal, enquanto possível causadora dos danos peticionados pela Autora.

Assim, admite-se a sua intervenção nos termos do disposto no art. 316º,nº 1, 6º e 547º do CPC,

Face ao que vem sendo exposto, e nos termos conjugados do n.º 7 do artigo 10.º do CPTA (na versão precedente ao DL 214-G/2015, de 2.10) e do artigo 316.º, nº 1 do CPC, admite-se a intervenção principal provocada da EMP03..., Lda.

Consultado o portal de publicidade das insolvências, verifica-se que existe o PER em nome da chamada (proc. nº 3710/19...., tendo sido nomeado Administrador Judicial Provisório, com as funções previstas no art. 17º-D, nº 9 do CIRE.

Pelo que com cópia da petição inicial, das contestações, dos despachos precedentes, cite a EMP03..., Lda, na pessoa do legal representante na sua sede, para que, no prazo de 30 dias, venha contestar a presente acção, nos termos e para os efeitos do disposto do artigo 319.º do CPC.

Remeta cópia da p.i., das contestações e do presente despacho à Srª Administradora Judicial provisória (vide fls. 390 dos autos, suporte físico).

Custas do incidente, a cargo da Requerente.

Notifique as partes, para além da citação da chamada a intervir”.

Antes de mais importa referir que não se aplica ao caso o disposto no artigo 261º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, pois aqui se prevê a hipótese de uma decisão que julgue ilegítima uma das partes por não estar presente outra e ponha termo ao processo

Faz sentido que nesta hipótese – que aqui não se verifica – o prazo para requerer a intervenção da pessoa que assegura a legitimidade vá até ao trânsito em julgado da decisão, pois é com esta decisão que nasce a necessidade de fazer intervir terceiro.

No caso presente não houve qualquer decisão a julgar parte ilegítima uma das partes; pelo contrário, em despacho transitado no processo foi julgada improcedente esta excepção, tal como referido no despacho aqui em análise.

Por outro lado, ao caso pode chamar-se à colação apenas as disposições combinadas do n.º1 do artigo 316º, e alínea a) do n.º1 do artigo 318º, ambos do Código de Processo Civil, e não também as disposições combinadas da alínea ) do n.º 3 deste artigo 316º, e alínea c) do n.º1 deste artigo 318º, dado estar em causa uma situação de litisconsórcio necessário passivo.

E não há dúvida de que estava ultrapassada a fase dos articulados quando foi admitida a intervenção da EMP03..., a requerimento da sua Seguradora, Ré nos autos.

Sucede, porém, que não se trata aqui de um caso típico e linear de chamamento de terceiro à lide.

A EMP03... foi logo indicada na petição inicial como responsável, enquanto empreiteira de uma obra, pela deslocação de terras e derrocada que deu origem ao rebentamento de uma conduta de água da Ré Águas de ....

E o pedido contra si também foi deduzido, embora de forma implícita, no pedido deduzido contra a sua seguradora.

Apenas não foi demandada inicialmente por estar então declarada falida, tanto quanto foi informado nos autos.

Ou seja, a EMP03... foi logo indicada no articulado inicial como parte da relação material controvertida, do lado passivo, tendo a Autora invocado factos atinentes à sua responsabilidade (causa de pedir) e deduzido implicitamente o pedido contra a mesma (na pessoa da sua Seguradora).

Assim como a responsabilidade pela ruptura da conduta de abastecimento público de água foi definida como objecto do litígio e dos temas de prova do julgamento no despacho saneador lavrado em acta de 02.02.2017 a folhas 329 do SITAF:

“(…)
I. Objeto do litígio

Ao abrigo do disposto do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, passa-se a identificar o objeto do litígio nos seguintes termos:

O direito de a Autora exigir das Rés, o pagamento da quantia de 72.065,53€ (setenta e dois mil, sessenta e cinco euros e cinquenta e três cêntimos), acrescida de juros de mora vincendos à taxa legal desde a citação até integral pagamento; a título de indeminização, pelos danos patrimoniais sofridos com a alegada inundação ocorrida no seu edifício identificado no artigo 2.º da petição inicial, por rebentamento de conduta de abastecimento público de água que se encontrava à vista em vala aberta sem proteção ou contenção periférica, provocada pelo desabamento de terras.
*
II. Temas da prova

De acordo termos do preceituado na parte final do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, passa-se a enunciar os seguintes temas da prova:
1. Saber qual foi a situação, no tempo, no espaço, bem como o modus ocorrendi do rebentamento da conduta, bem assim a existência da inundação do prédio da Autora, incluindo a descrição do local e da construção em curso no lote adjacente e como se encontrava a conduta, sua natureza e aptidão, da descrição do desabamento de terras, se tal desabamento provocou o rebentamento da conduta, se esta conduta havia sofrido outros rebentamentos nas mesmas circunstâncias, a que nível dos pisos do edifício se verificou a inundação e sua extensão, quando a Autora detetou a inundação e denunciou a sua existência, bem assim quais os procedimentos que adotou para remover a água que possa ter inundado o edifício, durante quanto tempo se manteve a inundação, saber da existência de outras circunstâncias que possam ter contribuído ou provocado o rebentamento da conduta e eventual inundação do edifício da Autora, bem assim, também da ocorrência de outras circunstâncias que possam ter contribuído para a inundação do edifício.
2. Saber qual o cômputo efetivo e detalhado dos danos sofridos na esfera patrimonial da Autora, em consequência direta e necessária da alegada conduta ilícita e omissiva da Rés.
(…)”.

Invocando que a EMP03... estava de novo em actividade, a sua Seguradora, Ré nos autos a par da Águas de ..., solicitou a sua intervenção nos autos, do lado passivo da relação jurídico-processual, apurando-se que se encontrava submetida a um plano especial de revitalização.

Não se trata, portanto, de introduzir no processo uma pessoa estranha ao processo, factos novos a ela atinentes e novo pedido, mas antes de adequar o processo à realidade material reflectida no processo desde o início.

Mostra-se, pois, acertada a via processual utilizada pelo Tribunal recorrido para admitir a intervenção principal provocada, a prevista no artigo 547º do Código de Processo Civil, da adequação formal, ou seja, a adopção da “tramitação processual adequada às especificidades da causa” e adaptação do “conteúdo e a forma dos actos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo”.

Improcede, pois, este fundamento do recurso da Interveniente Principal, a EMP03....

2. A preterição de causa extintiva da lide; a aplicação do n.º1 do artigo 17º-E do C.I.R.E. às acções declarativas; a suspensão os autos e posterior extinção.

Dispõe o n.º 1 do artigo 17º-E do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas que o despacho de nomeação do administrador provisório em processo especial de revitalização de uma empresa “obsta à instauração de quaisquer acções para cobrança de dívidas contra o devedor e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto ao devedor, as ações em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação”.

Não se desconhece a divergência jurisprudencial sobre este assunto, bem resumida quer nas alegações da EMP03... quer nas contra-alegações da Autora.

Propendemos, no entanto, para o entendimento de que aqui apenas estão contempladas as acções executivas.

Cuja tese aparece brilhantemente resumida no acórdão da Relação de Lisboa de 25.08.2015, no processo n.º 7976/14.9T8SNT.L1-4, referido no artigo de Nuno Salazar Casanova, “Os efeitos processuais do PER e do PEAP nas acções declarativas de condenação” , página 59, na revista “Actualidad Jurídica Uría Menéndez”, n.º 49, 2018, página 59, ambos citados nas contra-alegações da Autora.

Transcrevemos aqui este acórdão, por o subscrevermos integralmente:

“(…)

Chegados aqui, interessa analisar, em função do quadro processual concreto que se nos depara, a questão que tem vindo a marcar a agenda da nossa doutrina e jurisprudência e que se prende com a interpretação do n.º 1 do art.º 17.º do CIRE acima transcrito, no que se refere à exata caracterização do que são ações para cobrança de dívida, pendendo a grande maioria dos Acórdãos dos nossos tribunais superiores que compulsámos[8], assim como a doutrina que encontrámos[9], para aí integrar, quer as ações executivas (sendo unânime a opinião doutrinária e jurisprudencial quanto a essa inclusão) como as ações declarativas, vendo-se, contudo, os nossos tribunais superiores na contingência de excluir algum tipo de ações dessa índole do âmbito de aplicação da referida norma (como é o caso, por exemplo e no quadro do direito laboral, das ações emergentes dos acidentes de trabalho e do procedimento cautelar de suspensão de despedimento coletivo[10]).

Tal posição maioritária suscita-nos sérias dúvidas quanto à interpretação jurídica que faz do n.º 1 do transcrito artigo 17.º-E do CIRE, muito embora se nos afigure que existem ações de cariz declarativo (ou de natureza equiparada) que ainda podem cair dentro do conceito de «ações para cobrança de dívidas contra o devedor», como é manifestamente o caso dos procedimentos cautelares de arresto[11] ou de outras medidas cautelares que visem também a apreensão judicial de bens, não somente pelo seu objeto (apreensão jurídica de bens, com vista à sua posterior conversão em penhora, numa futura e subsequente execução ou à sua futura entrega ao credor) como pela sua natureza e finalidade última (garantia geral das obrigações – art.ºs 601.º a 604.º e 619.º a 622.º do Código Civil)[12].

Temos para nós que uma noção aberta e abrangente de «ação para cobrança de dívida», que abarque todo o tipo de ações declarativas onde o devedor seja pecuniariamente demandado, como a que parece ser professada maioritariamente pela nossa doutrina e jurisprudência, não só se nos afigura não colher o assento pretendido na letra e espírito da norma em análise, como conduz, em muitos casos a resultados contrários aos fins perseguidos pelo legislador ou, no mínimo, contraproducentes e/ou absurdos, já para não falar das possibilidades de fraude, abuso de direito e conluio entre os maiores ou mais fortes credores, o devedor e ao administrador judicial provisório, com a inconsciente bênção judicial.

A expressão utilizada pelo legislador - «ação para cobrança de dívida» - tem de possuir um significado, alcance e sentido unívoco, inequívoco e jurídico, que não se satisfaz, na nossa modesta opinião, com a simples propositura de uma ação declarativa onde se procura, a final, a condenação do devedor - a revitalizar, por via do PER – no pagamento de uma qualquer quantia pecuniária.

Afigura-se-nos que a mera formulação de uma pretensão dessa índole no seio de uma ação judicial não confere ao autor a qualidade de credor e ao réu a qualidade de devedor, assim como aos montantes peticionados a natureza de dívidas que estão, por esse meio, a ser cobradas.

Quantos processos judiciais instaurados contra pessoas singulares e coletivas e onde são reclamadas importâncias pecuniárias, por vezes muito avultadas, alegadamente radicadas em incumprimento contratual ou em responsabilidade civil do demandado, não conhecem um total ou quase total improcedência, por razões de cariz substantivo ou mesmo adjetivo (comao, por exemplo, prescrição, caducidade, erro, pagamento, ónus da prova, etc.)?

Atribuir a tais ações judiciais a virtualidade de, pela sua mera existência, conferirem às partes envolvidas a qualidade de credores e devedores e às quantias reclamadas a natureza de dívidas a cobrar, designadamente para efeitos da sua inserção na lista de credores do PER, mediante reclamação ou ato unilateral do administrador judicial provisório, e da subsequente aprovação ou rejeição do correspondente plano de recuperação, parece-nos excessivo, perigoso e, em última análise, contrário aos fins perseguidos e prosseguidos pelo referido Processo Especial de Revitalização.

No que toca a esta problemática, não podemos deixar de reproduzir parte da fundamentação do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11/7/2013, processo n.º 1190/12.5TTLSB.L1-4, que foi relatado pelo Juiz Desembargador Leopoldo Mansinho Soares e se mostra publicado em www.dgsi.pt , onde se afirma o seguinte:

«Temos, pois, que o processo especial de revitalização visa permitir ao devedor que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização.

E, com respeito por entendimento distinto, não se vislumbra que a supra citada expressão “para cobrança de dívida” abranja as ações declarativas.

Desde logo, porque, a nosso ver, salvo melhor opinião, uma ação para cobrança de dívida não equivale, nem é sinónimo, de uma ação para cumprimento de obrigações pecuniárias.

Na realidade, o Autor de ação declarativa em que invoque a verificação de um crédito sobre outrem (tal como sucede com os aqui recorrentes que fundam a respetiva verificação na existência de contratos de trabalho que terão resolvido com justa causa; sendo certo que a Ré nega a existência dos invocados créditos, pois alega que o que manteve com eles foram contratos de prestação de serviços…) só é, efetivamente, declarado credor caso a ação proceda.

E existe sempre a possibilidade de que isso não aconteça….!!!

Esgrimir-se-á que em termos genéricos uma ação declarativa pode ser para cobrança de uma dívida…

Porém, nessa ação a dívida ainda não foi declarada.

Aliás, o processo tem exatamente essa finalidade.

Assim, à data em que a ação declarativa é intentada o que existe é um crédito potencial e não um crédito declarado (firmado).

A ação destina-se a proporcionar ao Autor um título executivo (vide artigos 45, n.º 1, 46.º, n.º 1 al a) e 47.º, n.º 1, todos do CPC e artigos 1.º, 2.º al a) e 50 do CPT [[13]]) que depois possa executar em sede própria; ou seja numa ação executiva, esta sim - indubitavelmente - para cobrança de uma dívida …

E, a nosso ver, com respeito por entendimento diverso, a existência e decurso de uma ação declarativa de condenação [[14]], como é o caso, em nada prejudica as negociações referidas na lei.

Por outro lado, caso a dívida venha ser declarada, através da competente condenação, com trânsito em julgado, passando, pois, o credor (in casu, os aqui Autores/recorrentes) a dispor de um título executivo é evidente que não se pode prevalecer dele em ação executiva, esta sim evidentemente destinada à cobrança de uma dívida existente (devendo caso a mesma venha ser instaurada a instância ser suspensa) e não meramente potencial e cujo decurso – esse sim - se afigura suscetível de afetar as mencionadas negociações (basta pensar em penhoras de móveis, imóveis, contas bancárias, etc…).

Agora, só por si, a definição da existência de um crédito e do seu real valor em sede declarativa (nomeadamente através de incidente de liquidação, sendo for caso disso) não se afiguram ter essa potencialidade.

E nem se esgrima com o disposto n.º 1.º do artigo 17.º -D, nomeadamente com o dever que impende sobre o devedor de depois de ser notificado do despacho a que se refere a alínea a) do n.º 3 do artigo 17.º - C do CIRE comunicar, de imediato e por meio de carta registada, a todos os seus credores que não hajam subscrito a declaração mencionada no n.º 1 do mesmo preceito, que deu início a negociações com vista à sua revitalização, convidando-os a participar, caso assim o entendam, nas negociações em curso e informando que a documentação a que se refere o n.º 1 do artigo 24.º se encontra patente na secretaria do tribunal, para consulta.

Será que tal lhe é exigível em relação a uma dívida cuja existência contesta?

Será que nesse caso deve convocar um credor cujo crédito não reconhece (ou seja entende que não existe, pois nada lhe deve….)?

A resposta, a nosso ver, é negativa.

Desde logo, porque se o fizer está implicitamente a reconhecer a verificação de uma dívida cuja existência, em rigor, não admite.

Por outro lado, se o fizer, em nosso entender, tal declaração deve ter implicações na ação declarativa (extinção da mesma por inutilidade superveniente… - vide artigo 287.º al e) do CPC), visto que não faz sentido que no PER admita a existência da dívida e na ação declarativa a continue a negar….

É certo que estamos perante Tribunais distintos.

Todavia a ordem jurídica é a mesma.

Assim, também sob esta perspetiva se afigura que a supra citada expressão não engloba as ações declarativas.

Esgrimir-se-á que o legislador no DL n.º 218/99, de 15 de Junho (cobrança de créditos por prestação de cuidados de saúde), assimila o regime de cobrança de dívidas à interposição de ações com natureza declarativa.

Na realidade, o diploma em causa no seu artigo 1.º estabelece o regime de cobrança de dívidas pelas instituições e Serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde em virtude dos cuidados de saúde prestados.

E no seu artigo 5.º estatui que nas ações para cobrança de dívida de que trata o presente diploma incumbe ao credor a alegação do facto gerador da responsabilidade pelos encargos e a prova da prestação de cuidados de saúde, devendo ainda, se for caso disso, indicar o número da apólice.

Porém, é sabido que não foi sempre assim.

De facto, anteriormente, o processo especial de cobrança de créditos do SNS contemplado no DL n.º 194/92, de 8 de Setembro, estava associado à cobrança de dívidas que se mostravam consubstanciadas em títulos executivos…!!!

Esse diploma no seu artigo 1.º estatuía que regulava a cobrança de dívidas de instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde.

E no seu artigo 2.º referia que as certidões de dívida a qualquer das entidades a que se referia o artigo anterior, por serviços ou tratamentos prestados consubstanciavam títulos executivos.

Ou seja, tal referência, só por si, afigura-se patentemente insuficiente para se poder concluir, sem mais, que a expressão “para cobrança de dívida” abrange, necessariamente, ações com natureza declarativa.

Por outro lado, cabe ainda salientar que em sentido oposto aponta, por exemplo, o preceito introduzido pelo DL n.º 183/2000, de 10 de Agosto (posteriormente revogado pelo artigo 4.º do DL n.º 38/2003, de 8 de Março) que em relação à citação por via postal simples referia “nas ações para cumprimento de obrigações pecuniárias emergente de contrato reduzido a escrito”.

E à latere sempre se dirá que o mesmo se dirá do disposto na denominada ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos e injunção contemplada no DL n.º 269/98, de 1 de Setembro.

Esse diploma [[15]], no seu artigo 1.º refere que se destina a aprovar o regime de procedimentos destinados a exigir cumprimentos de obrigações emergentes de contratos de valor não superior a € 15.000,00.

Assim sendo, a nosso ver, cumpre revogar a decisão recorrida e mandar seguir a presente ação nos moldes que se reputarem convenientes.

Desta forma, os Autores poderão ver (ou não) reconhecidos os seus créditos sem ter de esperar por uma negociação na qual em rigor nem sequer sabem se podem [[16]] ou não intervir….

Dessa forma, por outro lado, fica assegurada celeridade na definição dos seus efetivos direitos, bem como o seu direito constitucional (vide artigo 20.º da CRP) ao acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva [[17]].»

Também o já referido Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/4/2015, processo n.º 172724/12.6YIPRT.L1-7, em que foi relator o Juiz Desembargador Luís Espírito Santo tece as seguintes considerações acerca de tal matéria:

«Não obstante, a significativa jurisprudência [[18]] e doutrina [[19]] em sentido oposto, e ressalvado o muito respeito que naturalmente lhes é devido, afigura-se-nos que a expressão “ações para cobrança de dívidas/ações com idêntica finalidade” deverá ser interpretada no sentido de se circunscrever às ações de natureza executiva para pagamento de quantia certa, com exclusão das ações declarativas de condenação.

Justifica este entendimento a seguinte ordem de razões:

1ª – Relativamente ao argumento de que o legislador não distinguiu entre ações declarativas e executivas instauradas contra o devedor – não devendo o intérprete fazê-lo -, a sua fragilidade é óbvia: sintomaticamente, o legislador não aludiu a ações judiciais [[20]] contra o devedor; especificou “quaisquer ações para cobrança de dívidas”.

Ora, em termos técnico-jurídicos, o ato cobrança de dívida pressupõe a certeza, liquidez e a exigibilidade do crédito a satisfazer, delimitando-o da titularidade de um direito controvertido, a reclamar ponderada e definitiva dilucidação, o que só pode realizar-se em momento logicamente prévio ao da respetiva efetivação coerciva [[21]].

E onde o legislador especificou, discriminando, não deverá o intérprete generalizar, ampliando a mens legislatoris [[22]].

2.ª – Não se alcança nem se compreende a motivação subjacente ou o objetivo primordial que teriam levado o legislador, no âmbito do processo especial de revitalização, a impor automaticamente o efeito extintivo da instância relativamente a ações judiciais destinadas unicamente à definição e afirmação dos direitos/deveres das partes, e que não se encontram diretamente vocacionadas para a afetação/oneração do património do revitalizado [[23]].

Note-se que,

Enquanto na ação executiva assiste-se a uma concreta investida patrimonial [[24]] que atinge e onera a consistência do acervo de bens do devedor - cuja intangibilidade é fundamental para promover a sua desejada recuperação económica -, adensando as dificuldades no cumprimento dos compromissos assumidos perante os credores, na ação declarativa nada disso se passa.

Nesta há apenas lugar à apreciação e ao reconhecimento judicial das pretensões apresentadas, como é mister, não supondo atos de diminuição/oneração do património do responsável.

Assim,

Não se vê razão séria e fundada para provocar a abrupta e formalista finalização da instância, sem nada se ficar a saber acerca do conhecimento do mérito do peticionado.

Se é certo que o credor que obtenha decisão favorável na ação declarativa, na sequência do estatuído na norma em análise, ficará impedido de lançar mão da correspondente ação executiva contra o revitalizado, tal não é, a nosso ver, razão suficiente para lhe retirar o direito à afirmação judicial desse crédito – que lhe poderá ser útil em diversas circunstâncias [[25]].

3.ª – Não se descortina de que modo a pendência de uma ação declarativa poderá contender com as negociações entabuladas entre o candidato a revitalizado e os seus credores participantes nesse processo.

Tendo estes a absoluta segurança de que nenhuma ação de cobrança poderá correr contra o requerente da revitalização, assegurada se encontra a estabilidade necessária – e mais do que suficiente – para a concretização de um acordo satisfatório para os envolvidos [[26]].

Não se vê, ainda, que outro desiderato prosseguido pelo conjunto de normas reunido nos art.ºs 17.º-A a 17.º-I, do CIRE, possa ser sequer incomodado com a continuação e decisão a proferir na ação declarativa em que a parte se limita a fazer valer a tutela jurisdicional efetiva (que lhe é devida) quanto a uma pretensão substantiva que entende fundada e que legitimamente expõe em juízo.

4ª – Na correta interpretação das normas legais é essencial a busca da solução mais equilibrada, por cirurgicamente adequada à proteção dos interesses de todos os intervenientes, não os ofendendo desnecessariamente, promovendo ativamente, entre eles, uma situação de relativa paridade e evitando a nefasta produção de sacrifícios iníquos [[27]].

Neste sentido e contexto, não se poderão olvidar as consequências profundamente penosas para os titulares de créditos litigiosos que tenham sido, por hipótese, impugnados no âmbito do processo especial de revitalização e excluídos da lista definitiva apresentada pelo administrador provisório, os quais – por via do defendido efeito de extinção da respetiva instância declarativa – se veem remetidos para um exaustivo processo de repetição de esforços com vista ao reconhecimento do seu crédito, gerador de multiplicação de gastos, uma espécie de via sacra desesperante e totalmente incompreensível para o comum destinatário do sistema de justiça [[28]].

5.ª - Aos tribunais compete, enquanto dever funcional cimeiro, apreciar o mérito dos pedidos (principais e reconvencionais) formulados, sendo precisamente essa a sua atividade jurisdicional por excelência [[29]].

Às partes assiste, em princípio, o direito à pronúncia substantiva quanto às pretensões que visam ver reconhecidas em juízo.

Só muito excecionalmente, nas situações tipicamente enunciadas na lei, e fora de qualquer dúvida, poderá o Tribunal deixar conhecer do fundo da causa, optando por uma solução tabelar, cominatória ou estritamente formalista (sempre penalizadora, impenetrável, opaca).

6.ª – Analisando as particularidades da situação sub judice, nítida e gritantemente se evidencia a incoerência/inconsistência da interpretação que engloba as ações declarativas na previsão do artigo 17.º-E, n.º 1 do Processo Especial de Revitalização (PER), aditado ao CIRE pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril.

Com efeito,

Nos presentes autos, a requerida/revitalizada formulou contra a requerente um pedido reconvencional de montante superior ao apresentado por esta [[30]].

Ou seja, em sede de julgamento, deverá apurar-se e decidir-se quem deve a quem – se deve e quanto.

Em tese, a própria requerida pode vir a ser afinal reconhecida como credora da requerente e não o contrário.

Logo, perante esta possibilidade (em que estranhamente a apelada parece não acreditar ao pugnar pelo fim da lide), não faz o menor sentido o resultado extintivo da instância [[31]], ficando sem apreciação, explicação, nem definição, o enquadramento jurídico que as partes legitimamente discutiram nos articulados e para cuja demonstração apresentaram, em momento oportuno, as suas provas, acalentando a expectativa de uma resposta judicial [[32]].

Quedará tudo inútil, inconsequente, imprestável.

Seguindo a ótica oposta à que se propugna.

Todo o labor desenvolvido no âmbito da tramitação dos autos que se iniciaram em 14 de Dezembro de 2012 – há mais de dois longos anos -, direcionado à apreciação dos factos e aplicação do Direito, nada valerá, uma vez que nenhum resultado, objetivo e visível, nestas circunstâncias irá produzir.

As expectativas inevitavelmente geradas em torno da discussão de fundo sairão incompreensivelmente (para os intervenientes processuais) goradas, com óbvio prejuízo para a transparência na administração da Justiça e para o prestígio da própria instituição judiciária.

Todos os gastos suportados pela A. – matéria de ordem prática, não despicienda – ficarão inevitavelmente por sua conta [[33]], sem que exista qualquer verdadeira razão substantiva - primordialmente relevante - que justifique esta tão singular “ morte súbita “, com tão elevado preço a todos os níveis.

Isto sem que o processo especial de revitalização necessite, para a sua plena concretização, deste efeito processual drástico e, no plano do confronto e do equilíbrio dos interesses atendíveis, absolutamente injustificável.

7ª - O entendimento perfilhado dispõe de respaldo doutrinário e jurisprudencial.

Neste sentido, vide:

Isabel Alexandre, in “Efeitos Processuais da Abertura do Processo de Revitalização, II Congresso de Direito da Insolvência”, págs. 243- 246;

Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Martins, in “O Processo Especial de Revitalização”, págs. 95 a 109 [[34]].

Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de Justiça de 11 Julho de 2013 (relator Mansinho Soares), publicado in www.dgsi.pt [[35]].»


Tais Arestos colocam questões pertinentes a que a tese maioritária não logra responder ou solucionar, sendo, de facto, bizarro considerar como credor do devedor, para efeitos de aplicação do regime do processo de revitalização da empresa, um autor cujo réu nega dever alguma ou, pelo menos, parte da quantia peticionada por aquele, por motivos de cariz material ou adjetivo, numa postura formal contraditória e juridicamente equívoca, que, em nosso entender, não poderia ser desejada pelo legislador.

A lógica do regime legal em análise visa a paralisação temporária e a posterior extinção das ações judiciais que afetem diretamente o património da empresa a revitalizar, como meio necessário e adequado de assegurar a sua efetiva recuperação económica e financeira, o que aponta para as ações de cariz executivo onde se procede à penhora de bens e direitos do devedor ou para os procedimentos cautelares em que se determina a apreensão judicial preventiva ou conservatória desse mesmos ativos da empresa, mas já não reclama, em regra, a suspensão ou futura cessação de ações declarativas onde se procura a condenação daquela no pagamento dos montantes aí reclamados[36].

Nessa medida, afigura-se-nos que as ações para cobrança de dívidas do devedor se resumem às de natureza executiva e de índole cautelar, quando nestas últimas estejam em causa providências que impliquem a apreensão judicial de bens pertencentes ao requerido”.

Devendo qualquer interpretação ter um mínimo de correspondência com a letra da lei – n.º2 do artigo 9º do Código Civil -, não faria qualquer sentido a introdução do termo “para cobrança de dividas” se abrangesse indistintamente acções declarativas e executivas.

Bastaria o termo “acções”.

Daí a propensão para uma interpretação intermédia, de abranger acções executivas e declarativas, estas desde que respeitem a obrigações pecuniárias, em sentido estrito, isto é, desde que tenham por objecto uma prestação em dinheiro, excluindo-se dessa previsão as dívidas de valor (neste sentido, entre outros, o acórdão da Tribunal da Relação do Porto de 16.11.2015, no processo 8176/11.5TBMTS.P1, também referido no citado artigo de Nuno Salazar Casanova.

Ressalvado o muito respeito por esta posição, continua a esbarrar com o teor literal do texto.

O termo “cobrança”, no seu sentido comum, aponta claramente para a realização coerciva do direito e não para a discussão sobre a existência do direito. A “cobrança” segue-se, em termos conceptuais e legais, à fixação ou reconhecimento definitivos do direito.

Por outro lado, a integração das acções declarativas nesta previsão legal, contraria a própria natureza do processo especial de revitalização.

Como sustenta Nuno Salazar Casanova, no artigo citado, página 70:

“Se as acções declarativas fossem acções de cobrança de dívidas para efeitos do disposto nos artigos 17.º-E e 222.º-E do CIRE, deveríamos aceitar que o legislador pretendia que as mesmas se extinguissem com a aprovação do plano, o que não faz sentido na medida em que nem o PER nem o PEAP podem ou têm sequer a vocação para dirimir um conflito quanto à existência dos créditos”.

Nos termos do n.º1 do artigo 17.º-A do C.I.R.E.:

“O processo especial de revitalização destina-se a permitir ao devedor que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização”.

Não existindo sequer a possibilidade legal de no processo especial de revitalização ser declarado um direito de crédito, nenhuma implicação pode ter numa acção declarativa a homologação do plano de recuperação nesse processo.

Não se vê, assim, como pode a simples homologação de um acordo destinado a alcançar a revitalização de uma empresa originar a inutilidade superveniente da lide e, com isso, a extinção da instância, numa acção declarativa destinada a reconhecer um determinado crédito.

Como se refere também neste artigo, na mesma página 70:

.. suspender as acções declarativas implicaria, dada a equiparação do texto legal entre os efeitos impeditivo, suspensivo e extintivo, que as acções declarativas se extinguissem com a aprovação do plano, o que é um resultado que, paulatinamente, a doutrina e jurisprudência parecem reconhecer – e bem – como inaceitável”.

Outro argumento de monta consta da página 64 do mesmo artigo:

“Do ponto de vista sistemático, o diploma mais relevante é porventura a Lei n.º 8/2018, de 2 de Março, que cria o Regime Extrajudicial de Recuperação de Empresas (RERE). Isto porque o RERE é o mais recente instrumento extrajudicial pré-falimentar consagrado na legislação portuguesa. Ora, o RERE também se pauta pelos Princípios Orientadores da Recuperação Extrajudicial de Devedores aprovados pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 43/2011, de 25 de Outubro. E o que estabelece o RERE sobre a suspensão das acções relativas aos credores que pretendem aderir ao protocolo de negociação? Dispõe que o protocolo de negociação contém necessariamente um «acordo relativo à não instauração pelas partes, contra o devedor no decurso do prazo acordado para as negociações, de processos judiciais de natureza executiva, de processos judiciais que visem privar o devedor da livre disposição dos seus bens ou direitos, bem como de processo relativo à declaração da insolvência do devedor». Ou seja, o legislador parece ter interpretado o quinto princípio orientador precisamente no sentido de que os credores apenas devem comprometer-se a evitar as acções executivas, os processos judiciais que visem privar o devedor da livre disposição dos seus bens ou direitos, e os processos de insolvência, mas já não as acções declarativas. Bem se percebe que assim seja, pois só estas podem comprometer a recuperação do devedor

Retiramos ainda deste artigo, na página 70, as conclusões que se nos afiguram mais decisivas, além do que já foi citado:

“(…)

b) A razão de ser do período de stand-still é não permitir que as acções de cobrança de dívida inviabilizem a recuperação do devedor, o que desde logo exclui as acções declarativas uma vez que estas manifestamente não têm essa virtualidade:

c) Os ordenamentos jurídicos próximos do nosso e nos quais o legislador se inspirou não prevêem a suspensão das acções declarativas, mas fundamentalmente apenas das execuções;
(…)

e) A suspensão das acções declarativas provocaria atrasos de monta na definição da situação jurídica dos credores, fustigando-os com penosos e dolorosos atrasos sem que exista um interesse justificável, sendo por isso uma restrição intolerável e desproporcional dos seus direitos de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, constitucionalmente consagrados;

f) A suspensão das acções declarativas implica o cancelamento e reagendamento de diligências judiciais, perturbando o funcionamento dos tribunais e prejudicando o sistema judicial sem motivo justificado;

g) A suspensão das acções declarativas pode inclusivamente ser desfavorável aos interesses do devedor e da generalidade dos credores, uma vez que tanto um devedor empenhado e honesto como os credores interessados na recuperação dos seus créditos têm todo o interesse em definir a situação patrimonial do devedor o mais rapidamente possível, desde logo para aferir a viabilidade do plano.”

Do que se conclui que não estando aqui em causa a “cobrança” de uma dívida da EMP03..., mas apenas o reconhecimento do alegado seu dever de indemnizar a Autora, não se impunha declarar a suspensão da instância na acção, e menos, ainda declará-la extinta, por aplicação do disposto no n.º1 do artigo 17º-E do C.I.R.E.

Também neste fundamento improcede o recurso.

3. A prescrição do direito de indemnização.

Como refere a Autora, a prescrição não é de conhecimento oficioso, necessitando de ser invocada para poder valer como causa de extinção das obrigações, face ao disposto no artigo 303.º do Código Civil, e, por outro lado, deve ser invocada na contestação, como matéria de excepção que é, tendo em conta o disposto no artigo 573º do Código de Processo Civil.

A EMP03... foi citada, como a própria admite, para contestar por ofício de 20.09.2019, tendo optado por não apresentar contestação.

Ficando assim precludida a sua faculdade legal de invocar matéria de excepção na acção.

E em sede de recurso jurisdicional, como é aceite de forma pacífica, não é possível suscitar questões novas, face ao disposto no artigo 676º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 140º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos. Apenas podem ser tratadas questões que tenham sido invocadas ou suscitadas em primeira instância.

Salvo as de conhecimento oficioso relativamente ao objecto do recurso, o que não é o caso.

De todo o modo, à cautela, sempre se dirá que improcede esta excepção.

O prazo da prescrição só começa a correr quando o direito puder ser exercido – n.º 1 do artigo 306º do Código Civil.

No caso, e tendo em conta a situação de falência a que a EMP03... esteve sujeita, bem como as sucessivas decisões tomadas na presente acção, o arrogado direito da Autora só podia ter sido exercido contra a Interveniente após o despacho que a admitiu a intervir nos autos.

Pelo que o prazo de prescrição não chegou sequer a iniciar-se.

Termos em que, ainda que fosse de conhecimento oficioso em sede de recurso jurisdicional – e não é – sempre improcederia.

Também neste fundamento improcede o recurso da Interveniente.

*

III –Matéria de facto.

Determina o artigo 662º do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 140º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, sob a epígrafe “Modificabilidade da decisão de facto”, no seu n.º 1, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

Na interpretação do equivalente preceito do Código de Processo Civil anterior (o artigo 712º), foi pacífico o entendimento segundo o qual em sede de recurso jurisdicional o tribunal de recurso, em princípio, só deve alterar a matéria de facto em que assenta a decisão recorrida se, após ter sido reapreciada, for evidente que ela, em termos de razoabilidade, foi mal julgada na instância recorrida (neste sentido os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 19.10.2005, processo n.º 394/05, de 19.11.2008, processo n.º 601/07, de 02.06.2010, processo n.º 0161/10 e de 21.09.2010, processo n.º 01010/09; e acórdãos do Tribunal Central Administrativo Norte, de 06.05.2010, processo n.º 00205/07.3 PNF, e de 14.09.2012, processo n.º 00849/05.8 VIS).

Isto porque o Tribunal de recurso está privado da oralidade e da imediação que determinaram a decisão de primeira instância: a gravação da prova, por sua natureza, não fornece todos os elementos que foram directamente percepcionados por quem julgou em primeira instância e que ajuda na formação da convicção sobre a credibilidade do testemunho.

Como defende Antunes Varela, no Manual de Processo Civil, 2ª edição, página 657:

“Esse contacto directo, imediato, principalmente entre o juiz e a testemunha, permite ao responsável pelo julgamento captar uma série valiosa de elementos (através do que pode perguntar, observar e depreender do depoimento, da pessoa e das reacções do inquirido) sobre a realidade dos factos que a mera leitura do relato escrito do depoimento não pode facultar”.

Dito isto, vejamos.

O facto provado sob o n.º 8 (conclusões XII e XIII).

Invoca a Autora no seu recurso, neste ponto:

XII. Considerando que os factos a que reporta a ação ocorreram em novembro de 2011 e que, nessa data, vigorava uma versão dos estatutos da ré Águas de ... diferente da atual, a recorrente impugna o facto provado 8 pretendendo que o mesmo passe a ter a mesma redação com o seguinte complemento no final: “… ; até à alteração dos respetivos estatutos, a ré era uma pessoa coletiva de direito público, sob a forma de entidade empresarial municipal, dotada de personalidade jurídica e autonomia administrativa, financeira e patrimonial”, impugnação que fundamenta no teor dos documentos ... e ...0 (fls 370 e segs) juntos pela autora com o requerimento de 22 de fevereiro de 2017.

XIII. Quanto a esta matéria a sentença recorrida viola ou faz incorreta interpretação dos arts. 3.º e 7.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro.

Embora não se veja relevo neste pormenor, por uma questão de rigor, não se vê obstáculo a que seja feito o pretendido aditamento a este ponto da matéria de facto.

Sobre a restante matéria de facto invoca:

5. No que se refere à ré AC – Águas de ..., a recorrente impugna os factos provados 18 e 19.

6. Pretende ainda que se deem como provados os factos alegados em 11 e 14 do articulado de pi.

7. Os referidos factos dizem respeito a um incidente de rutura ocorrido no dia 19 de outubro de 2011, antes, portanto, do incidente principal a que os autos dizem respeito, esse ocorrido no dia 5 de novembro de 2011.

8. Da leitura dos factos provados parece resultar que as Águas de ... repararam a conduta e reestabeleceram o fornecimento de água, tendo transmitido meras recomendações à construtora quanto a cuidados de manutenção que deveriam ser acautelados.

9. Ora, da prova produzida resulta com absoluta evidência que não foi isso que aconteceu.

10. Pelo contrário, o técnico das Águas de ... que se deslocou ao local reparou efetivamente a conduta, mas não reestabeleceu o fornecimento.

11. O que fez foi interpelar a construtora para que garantisse as condições adequadas de segurança na conduta (essas condições não existiam na altura) e que depois contactasse os serviços da Águas de ... para que esta empresa se deslocasse ao local para reestabelecer o fornecimento.

12. Na verdade, o fornecimento foi reestabelecido mas não se sabe por quem, isto é, não se sabe exatamente quem o reestabeleceu ou quando o fez.

13. Sendo certo que resulta dos documentos e dos depoimentos das testemunhas que a construtora não voltou a contactar a Águas de ..., nem foram as Águas de ... que procederam à ligação. Contudo,

14. Independentemente de ter sido ou não a Águas de ... a reestabelecer o fornecimento, a verdade é que a atuação desta entidade é, em qualquer caso, ilícita e censurável. Com efeito,

15. Tudo assenta em a Águas de ... ter podido constatar que a conduta não reunia condições de segurança.

16. Nesse cenário, não podia ter reestabelecido o fornecimento sob pena de vir a ocorrer uma nova rutura.

17. No cenário contrário (ter sido outra entidade qualquer a reestabelecer o fornecimento), também não podia ter daí “lavado as mãos” como se o assunto não lhe dissesse respeito.

18. Ou seja, como quer que seja a Águas de ... não cumpriu o seu dever e esse incumprimento foi decisivo do ponto de vista dos danos infligidos à autora.
19. A Águas de ..., sabendo perfeitamente que a vala em que a conduta se encontrava não reunia as condições mínimas de segurança do ponto de vista da salvaguarda da integridade da conduta, desinteressou-se completamente da questão, não mais tendo tomado qualquer diligência,

20. Sabendo embora que a conduta não poderia estar desligada durante um período tanto prolongado (de 19 de outubro a 5 de novembro de 2011) porque do funcionamento dessa conduta dependia o abastecimento de outros clientes a jusante.

21. É neste manifesto desinteresse que reside a culpa e a ilicitude da conduta da ré Águas de ..., a quem compete velar pela segurança e integridade das infraestruturas, vigiandoas e zelando para que das mesmas não resultem danos na esfera jurídica de terceiros.

22. Da prova produzida resulta que a Águas de ... reparou mas não reestabaleceu, não quis saber quem e de que forma tinha ocorrido o reestabelecimento, demitiu-se completamente da sua função de verificação e vigilância e só voltou ao local para reparação da conduta aquando da segunda rutura no dia 7 de novembro de 2011.

23. O entendimento aqui veiculado sobre a matéria de facto não pode suscitar quaisquer espécies de dúvidas e, com referência aos quatro factos impugnados, resulta dos elementos probatórios que seguidamente serão referidos, isto é,

a) Documento de fls. 359 consubstanciado no relatório de reclamação de 19.10.2011;

b) Depoimento da testemunha AA, técnico da Águas de ... que procedeu à reparação da rutura ocorrida no dia 19 de outubro de 2011, registado na gravação da sessão da audiência final do dia 15 de novembro de 2019 de 27:44 a 1:03:00;

c) Depoimento da testemunha BB, técnico da Águas de ... que procedeu à reparação da rutura ocorrida no dia 5 de novembro de 2011, registado na gravação da audiência final do dia 15 de novembro de 2019 de 1:00 a 26:50;

d) Depoimento da testemunha CC, Diretor de Operação e Manutenção de Infraestruturas da Águas de ..., registado na gravação da audiência final do dia 15 de novembro de 2019 de 1:43:37 a 2:36:33;

e) Depoimento da testemunha DD, engenheiro da Águas de ..., registado na gravação da audiência final do dia 15 de novembro de 2019 de 2:40:10 a 3:38:23.

24. O documento de fls 359 consubstanciado no relatório de reclamação de 19.10.2011 constitui o relatório do incidente que aqui é tratado e o técnico que o assina consigna o seguinte: “Informo que era o tubo que foi estipado de uma junta porque o empreiteiro anda a fazer um desaterro, foi colocada a junta no sítio e o empreiteiro ficou de escorar a conduta, depois liga para ir abrir a água”.

25. Esse técnico foi ouvido na sessão da audiência final do dia 15 de novembro de 2019 e confirmou exatamente o que aqui ficou referido.

26. Aliás, prestou depoimento nos exatos termos que constam da douta motivação da matéria de facto: “Trabalha para a 1.ª ré, há 33 anos, canalizador foi lá reparar a conduta pela 1.ª vez, em Outubro de 2011, o empreiteiro andava a fazer o desaterro e escavaram a conduta da água. Após reparação disse ao responsável do empreiteiro para escorarem a conduta, colocarem no sítio e protegerem e depois ligarem para as AC para abrirem a água. A partir daí não sabe mais nada. Disse para escorarem a conduta que estava suspensa. Não sabe quando ou quem abriu a água. Mas que teria de ser a AC. Deveria haver um documento de quem foi abrir a água.”

27. Trata-se da testemunha AA cujo depoimento ficou registado na gravação do dia 15 de novembro de 2019 do minuto / segundo 27:44 ao minuto / segundo 1:03:00.

28. A parte que interessa à fundamentação do recurso está compreendida nas seguintes referências temporais: de 31:40 a 33:40 (descreve a reparação e o pedido de escoramento ao responsável da obra, explica o que é escorar e explica que só iria ligar a água depois de telefonarem a pedir, ou seja, depois de a vala estar nas devidas condições), de 43:10 a 48:25 (explica a nova ligação da água e explica ainda que a ligação “irregular” da água não pode passar despercebida às Águas de ... porque a conduta abastece outros clientes) e 59:30 a 1:01:43 (fala na possibilidade de ter sido o empreiteiro a conseguir fechar e abrir a água, ainda que irregularmente).

29. Em terceiro lugar, o depoimento da testemunha BB registado na gravação do dia 15 de novembro de 2019 de 1:00 a 26:50.

30. Trata-se do funcionário que interveio na rutura do dia 5 de novembro de 2011 e interessa à fundamentação do recurso a parte do respetivo depoimento em que explica a queda do lancil em cima da conduta (8:20 a 8:50 e 9:28 a 9:40), diz que a conduta estava solta, sem terra por cima e sem terra de lado (10:10 a 10:35) e diz ainda que a água só deveria ter sido aberta se a conduta estivesse escorada (19:20 a 21:00).

31. Em quarto lugar, o depoimento da testemunha CC registado na gravação da audiência do dia 15 de novembro de 2019 de 1:43:37 a 2:36:33.

32. Explica que, ainda que irregularmente, qualquer empreiteiro tem uma chave das que permitem abrir a água embora devesse ser um exclusivo das Águas de ... e refere ainda que não tem registo de ter sido feita a comunicação para ligação por parte da construtora, assim como não tem registo de qualquer reclamação por falta de água dos restantes consumidores abastecidos pela conduta (2:07:05 a 2:09:20, de 2:10:00 a 2:11:00 e de 2:20:50 a 2:23:40)

33. Em quinto lugar, o depoimento da testemunha DD registado na gravação da audiência do dia 15 de novembro de 2019 de 2:40:10 a 3:38:23.

34. Esta testemunha esteve no local aquando da segunda rutura (a do dia 5 de novembro de 2011) e explica que a conduta só podia dar problemas no estado em que a encontrou por não estar agarrada, nem enterrada, referindo ainda que não se lembra de ver escoramento nenhum mas mesmo que houvesse uns “arames” isso seria manifestamente insuficiente, dado que a conduta não estava protegida e que o ideal seria escorar e entivar (esconder) a conduta (3:15:00 a 3:21:46); refere ainda que na primeira rutura teria de haver um pedido do empreiteiro ou uma queixa de algum consumidor para que voltassem a deslocar-se ao local mas que, neste caso, a questão caiu no vazio, o que por vezes acontece, sendo certo que, na sequência da primeira rutura, a água não foi aberta pelas Águas de ..., alguém abriu mas a testemunha refere não saber quem (3:23:00 a 3:26:15).

35. Em suma, a ré Águas de ... pode constatar que a conduta não estava salvaguardada aquando da primeira rutura, pode perceber que o fornecimento de água foi reestabelecido por alguém que não um técnico da empresa (como seria próprio) e pura e simplesmente nada fez, nenhuma reação teve perante a iminência de nova rutura.

36. Face à prova produzida, em sede de impugnação da douta sentença, a recorrente pugna pela seguinte alteração da matéria de facto:

a) Em substituição do facto provado 18: “A ré Águas de ... procedeu à reparação da respetiva conduta mas não reestabeleceu o fornecimento por não estarem garantidas as condições de segurança suscetíveis de evitar novas ruturas, designadamente entivação, aterro, escoramento e suporte da conduta”.

b) Em substituição do facto provado 19: “O canalizador da 1.ª ré que executou os trabalhos de reparação da conduta, avisou a EMP03... que a água seria novamente aberta depois de estarem executados os trabalhos referidos em 18, mediante contacto da construtora com a ré Águas de ... para o efeito”.

c) Dar-se como provado o facto 11 da pi: “Na ocasião das ruturas, a conduta encontrava-se em vala aberta, sem qualquer proteção”.

d) Dar-se como provado o facto 14 da pi: “Na ocasião da primeira rutura, os trabalhadores da ré Águas de ... puderam constatar que não existia proteção, nem tinham sido efetuadas operações de aterro ou entivação que garantissem a integridade da conduta”.

Os factos 18 e 19 (conclusões V a VIII).

Sobre este tema a decisão recorrida fundamenta o julgamento da matéria de facto nestes termos:

“(…)

KK, trabalha para a 1ª Ré, há 33 anos, canalizador foi lá reparar a conduta pela 1ª vez, em Outubro de 2011, o empreiteiro andavam a fazer o desaterro e escavaram a conduta da água. Após reparação disse ao responsável do empreiteiro para escorarem a conduta, colocarem no sítio e protegerem e depois ligarem para as AC para abrirem a água. A partir daí não sabe mais nada. Foi quem assinou o doc. de fls. 294. Não se recorda se a obra estava vedada. Disse para escorarem a conduta que estava suspensa Não sabe quando ou quem abriu a água. Mas que teria de ser a AC. Deveria haver um documento de quem foi abrir a água.

Confrontado com foto de doc. ... de fls. 128, não se recorda de estar assim à data, era só uma vala. O seu depoimento contribuiu para prova dos factos 14, 15, 16, 17, 18 e 19.

(…)

DD, engenheiro eléctrico, referiu que trabalha para a Ré. Foi lá (dia 7.11.2011), porque houve uma ruptura e era chefe de manutenção, tendo a seu cargo, os piquetes de reparação.

Chegou de manhã e o canalizador já lá estava. Disse que ainda havia água no buraco, e que a água da conduta estava fechada. Que a água que lá estava seria de 1 dia ou dois.

Tem ideia de a obra estar vedada. Não viu o lancil, não sabe o que aconteceu. Que a vala teria uns 2 metros de profundidade. Os tubos estão a 80 cm/1 m da superfície. O empreiteiro estava a trabalhar na via pública. Disse ainda que tiveram de fazer um bypass, porque a conduta não oferecia condições de segurança, por isso não a usaram para o abastecimento de água. Foi confrontado com doc. ....

Uma conduta naquelas condições – vala aberta, não estava fixa, escoradas – o desfecho tinha de ser este.

Que foi visitar o lote da Autora, estava com água de cerca de 1,5 m de altura. Não se recorda de ter visto material submerso.

Referiu ainda que quanto à 1ª ruptura, a conduta não estava fixa, tendo sido dadas instruções pelo seu funcionário para escorarem a conduta. Mas que não foi lá. Foi o que lhe foi dito. Em todo o caso, se a água não tivesse sido restabelecida, alguém teria reclamado, por falta de água.

Prestou depoimento complementar em 18.12.2019, face às fotos juntas (fls. 458 e segs.), identificou o tubo inicial e o do bypass. Que o bypass foi colocado no mesmo sítio e na mesma vala. Que o inicial não tinha as condições técnicas de segurança para funcionar. Que na 1ª reparação foi dito para escorarem a conduta. Que a solução (dia 7.11.2011), foi a garantir a continuação do consumo, com a urgência em repor o fornecimento de água.

Disse que a conduta não estava escorada. Mantinha-se a vedação. Que não foi comunicado o início de obras às AC. Disse ainda, confrontado com as fotos, que ali têm 2 barreiras, não era necessário a entivação. O problema era a terra à volta.

A diferença é que os tubos /condutas de água estão em pressão, enquanto os outros vermelhos (electricidade) e verde (telecomunicações), não.

As instruções que foram dadas ao empreiteiro foram verbais e só na 1ª ruptura.

Confrontado com o doc. de fls. 440, identificou o registo telefónico do dia 7.11.2011, RVP (ruptura em via pública). Que se tivessem ligado às 8.26, nunca lá estariam às 8.30.

Por isso teria sido outro aviso. Que o doc. de fls. 444, é elaborado a posteriori.

O seu depoimento contribui para a prova dos factos 16 a 18, 19, 25, 26, 28, 29, 30, 35, 41 e não prova dos factos a) e h).

Nem os depoimentos discriminados pela Autora nem os documentos que refere permitem detectar erro, menos ainda grosseiro, no julgamento destes factos e concluir, como faz a Autora, que a Águas de ... se demitiu da obrigação de providenciar pelo bom estado de funcionamento do sistema público de distribuição de água e de que nada fez no sentido de evitar que a mesma permanecesse em funcionamento, sabendo ou podendo saber com facilidade, que o fornecimento tinha sido irregularmente reestabelecido.

Na verdade, o depoimento da testemunha DD, engenheiro eléctrico a trabalhar para esta Ré, afirmou que tiveram de fazer um “bypass”, porque a conduta original não oferecia condições de segurança.

Pelo que não se impõe alterar o julgamento da matéria de facto nesta parte.

Os factos 11 e 14 da petição inicial (conclusões V a VIII).

Pretende a Autora que se deêm como provados estes factos:

Do artigo 11 da petição inicial:

“Na ocasião das rupturas, a conduta encontrava-se em vala aberta, sem qualquer proteção?”

Do artigo 14 da petição inicial:

“Na ocasião da primeira ruptura, os trabalhadores da ré Águas de ... puderam constatar que não existia proteção, nem tinham sido efectuadas operações de aterro ou entivação que garantissem a integridade da conduta”.

Estes factos, a serem dados como provados, estariam em contradição com os factos dados como provados sob os n.ºs 15 a 17 e 20 a 28 que não foram impugnados pela Autora e cujo julgamento se encontra devidamente fundado em prova documental e testemunhal.

Pelo que também nesta parte se impõe manter o decidido.

O facto não provado alínea g) (conclusões XVIII e XIX).

“Que a Autora tivesse dirigido à EMP02... pedido de indemnização pelos danos decorrentes na rutura de 05.11.2020”).

A própria Autora aceita que o e-mail enviado menciona como data do sinistro o dia 19.10.2011 e não o dia 05.11.2011 (conclusão XIX) e não se pode concluir, com evidência, que se trata de mero lapso.

Pelo que também aqui não se impõe alterar o decidido.

Os factos não provados sob as alíneas c) e f) (conclusões XX a XXV).

“Que as reparações a fazer no piso -1, em consequência da rutura no dia 5.11.2011 eram as constantes dos docs 3 a 10 da pi”) e

“Que a autora tivesse de manter o outro edifício após a emissão da licença de utilização em janeiro de 2012 até dezembro de 2012, por causa da inundação, e os danos daí derivados [arts. 53.º a 67.º da pi]).

Quanto a estes factos não provados, diz-se na decisão recorrida:

Quanto aos factos indicados em c) e d), as testemunhas que elaboraram os respectivos orçamentos, não conseguiram convencer o Tribunal de que esses valores / equipamentos eram os necessários para as reparações com a inundação, até porque a obra estava em fase final, não tendo sido possível distinguir, que tipo de materiais e mão de obra, foram usados num e noutro. Acresce que tendo algumas testemunhas referido que foi pago, não foi junto qualquer documento comprovativo do referido pagamento, quando e a quem.

Além de que ficou a perceber do depoimento da testemunha LL, que havia uma repartição de custos através de fee das empresas que compunham o grupo.

(…)

O facto f) nenhumas das testemunhas conseguiu convencer o Tribunal de que após a emissão da licença de utilização do lote ...0, não pudessem ter usado o piso -1, como usaram os outros. Além de que os recibos juntos de fls. 13 a 19 da p.i., se referem ao aluguer de armazém. Não tendo sido referido por nenhuma testemunha quais as obras que foram feitas no piso -1 após essa data que justifique a manutenção do outro edifício até ao final do ano de 2012.”

Também aqui não se vislumbra erro, menos ainda evidente, no julgamento da matéria de facto.

Pelo que também nesta parte se impõe manter o decidido.

Deveremos assim dar como provados os seguintes factos, constantes da decisão recorrida:

1. A Autora é uma sociedade por quotas que tem por objecto a exploração de painéis de publicidade – acordo.

2. A Autora é dona e legítima possuidora do edifício composto por cave, ..., 1º e 2º pisos e logradouro, correspondente ao lote ...0 do Parque Empresarial ..., ..., freguesia ..., concelho ..., com a área de 186 m2 (144 m2 de área coberta e 42 m2 de área descoberta), a confrontar a Sul com arruamento, de Nascente com o lote ...9 e a Poente com lote ...1) – cf. certidão junta como documentos ... e ... juntos à petição inicial.

3. O lote ...1 é propriedade da Sociedade por Quotas EMP04..., Lda., matriculada na Conservatória do Registo Comercial ... sob o nº ...82 – cf. documento ... junto à contestação da Ré Águas de ... (fls. 118) – que tinha à data de 2010, como sócios gerentes MM e NN - cfr. documentos ... e ... juntos à contestação - cf. fls. 119 a 121 dos autos.

4. Os quais são também sócios e gerentes da EMP03... L. da – cf. documentos ... e ... juntos à mesma contestação (fls. 121 a 124).

5. A EMP03... foi declarada insolvente em 30.03.2012, por sentença proferida no Proc. nº 926/12.... do ... Juízo do Tribunal Judicial de ... – cfr. consulta indicada a fls. 81 dos autos.

6. A Ré AC – Águas de ..., nos termos do artigo 1.º dos seus Estatutos é:

“Uma pessoa coletiva de direito privado, com natureza municipal, sob a forma de entidade empresarial local, dotada de personalidade jurídica e autonomia administrativa, financeira e patrimonial”, regendo-se pelos respetivos Estatutos e subsidiariamente pelo regime jurídico da actividade empresarial local, introduzido pelo Decreto lei n.º 50/2012, de 31.08.

- Cfr. Estatutos publicados in
....

7. Nos termos do seu artigo 3.º, n.º 1, tem como objeto social “a satisfação de necessidades básicas no domínio do abastecimento de água e saneamento de águas urbanas”, concretizando as suas atividades no âmbito das atribuições do município relativas ao ambiente e saneamento básico, no qual figura, nos termos da alínea a), “Construção, exploração do sistema municipal de captação, tratamento e distribuição de água para consumo publico e outros usos, através de redes fixas”, consignando-se na alínea h) do n.º 2 do mesmo artigo que incumbe às Águas de ..., “Planear, zelar e conservar a rede hidrográfica municipal, particularmente, nas áreas urbanas”
– cfr. Estatutos publicados in
....

8. Os Estatutos da Águas de ..., EM, resultaram da alteração parcial do contrato de sociedade e aumento de capital social, celebrado em 12/02/2013, no qual foi declarado que o Município ... é o único detentor do capital social da Águas de ..., aprovando ainda o objecto social a que acima se alude; até à alteração dos respetivos estatutos, esta Ré era uma pessoa colectiva de direito público, sob a forma de entidade empresarial municipal, dotada de personalidade jurídica e autonomia administrativa, financeira e patrimonial”- cfr. Estatutos publicados in
... e documentos ... e ...0 (folhas 370 e seguintes) juntos pela Autora com o requerimento de 22.02.2017.

9. A EMP04... encarregou a referida EMP03... da construção de um edifício no lote ...1, constituído por 3 pisos, de cave, ..., 1º e 2º, com área de construção de 318 m2, que foram levadas a efeito sob o Alvará de licença de Construção nº 84/2011, do qual consta que:

“É da responsabilidade do promotor a reposição do espaço público eventualmente deteriorado durante a obra”

– cf. documento ... junto à contestação da Ré Águas de ... (fls. 125 dos autos).

10. Na construção do edifício a EMP03... Ld.ª, procedeu a escavações no terreno e bem assim no passeio público que lhe é fronteiro - cf. documentos ... a ...0 (fls. 125 a 129 dos autos), juntos à contestação da Ré , Águas de ..., fotos fls. 458 vº a 460 dos autos.

11. Escavações levadas a efeito para proceder à implantação das fundações e da cave no lote ...1 - cf. mesmos documentos.

12. Para proceder aos trabalhos de escavação para a implantação do referido edifício do lote ...1 da EMP04..., aquela firma teve de proceder ao desaterro no local onde se encontra o passeio público – acordo.

13. Em cujo subsolo se encontram várias condutas de diversas infra-estruturas que servem o loteamento e entre elas a de abastecimento domiciliário de água aos consumidores que no local residem ou laboram – acordo.

14. Sendo então construída uma parede suporte de terras no limite do - cf. documentos ... a ...0 (fls. 125 a 129 dos autos), juntos à contestação da Ré, Águas de ..., fotos fls. 458 vº a 460 dos autos.

15. De tal desaterro resultou, no passeio público, uma vala com cerca de 1,5 metros de profundidade, por cerca de 1,20 metro de largura, com os seus limites compreendidos entre aquele muro e suporte de terras ou parede e o local do passeio a delimitar o arruamento - cf. fls. 458º vº a 460.

16. No dia 19.10.2011, em consequência de tais trabalhos foi atingida a conduta de água instalada no subsolo a qual se encontra implantada a cerca de 80 cm/ 1 m de profundidade – cf. mesmo documento, fls. 294.

17. Provocando uma ruptura na conduta de abastecimento de água – cf. fls. 302 e 304.

18. A Ré Águas de ... procedeu à reparação da respectiva conduta restabelecendo o fornecimento de água aos consumidores que aí residiam ou laboram – cf. fls. 294, 302, e confissão (artigo 32º e 35º da contestação da 1ª Ré).

19. O canalizador da Ré Águas de ... que executou os trabalhos de reparação de conduta, avisou a EMP03..., que teria de manter escorada /suportada e vigiada a dita conduta – cf. fls. 294.

20. O estaleiro da obra que englobava o lote e passeio público com as referidas infraestruturas implantadas no seu subsolo, encontrava-se isolado, com vedação - cf. fls. 127 e 460.

21. A EMP04... e PRINT, dona da obra e do lote ...1, não comunicara à Ré AC, aquelas escavações, início das obras e da construção do dito estaleiro – testemunhas.

22. Início das obras que só foram comunicadas à Ré no dia 24.02.2012 – cf. doc. n.º ...1, a fls. 130.

23. No dia 05.11.2011, no local descrito, no interior do estaleiro vedado e junto à dita vala e passeio público, ocorreu uma 2ª ruptura da conduta, sem que estivesse alguém em obra - acordo.

24. No dia 05.11.2011 ocorreu uma inundação que afectou o interior do prédio referido em 2 – acordo.

25. A inundação teve origem em ruptura do dia 05.11.2011.

26. Na ocasião em que se verificou a inundação a EMP03... executava trabalhos de construção no lote adjacente ao da Autora, acima descrito.

27. À EMP03... competia salvaguardar a integridade da conduta sustentando as terras que compõem a vala ou o respectivo aterro – acordo.

28. Na ocasião da ruptura, a conduta encontrava-se em vala aberta, com entivação das terras laterais, tendo havido um deslizamento de terras – fls. 128 e fls. 458 vº a 460.

29. O piso da cave do edifício referido em 2. ficou parcialmente submerso já que a água provinda da ruptura atingiu entre 1,20 a 1,70 m a contar do chão do piso -1 – cf. fls. 314 a 318, fls. 449 a 451,

30. A ruptura verificou-se no sábado tendo a inundação nas instalações da Autora sido detetada apenas na 2ª feira (dia 07 de Novembro).

31. A ruptura da conduta provocou estragos no imóvel da Autora, acima referidos, designadamente ao nível do sistema eléctrico, do elevador, das paredes (painéis de madeira); porta corta-fogo do piso -1 – cf. fls. 452.

32. Foram já efectuados os trabalhos de reparação do sistema eléctrico, elevador.

33. No piso -1 encontravam-se entre 6 e 11 cadeiras embaladas.

34. Que mudaram a parte dos escritórios cerca de 3 /4 meses após a inundação.

35. A Ré Águas de ... declinou a responsabilidade pelo sucedido, de deslizamento de terras e conduta desprotegida imputando à EMP03... – cf. ofícios a fls. 302 e 303, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

36.Com data de 22.11.2011, a ora Autora dirigiu ao Presidente da Câmara Municipal ..., o pedido de autorização de utilização do edifício escritório e armazém sito em 2, juntando termos de responsabilidade dos técnicos, em como a obra estava concluída e em conformidade com os projectos aprovados – cf. fls. 422 a 424 dos autos.

37. Com data de 23.01.2012, foi emitido pela CM de ... o Alvará de Autorização de Utilização do edifício – cfr. fls. 421 dos autos.

38. Entre a Companhia de Seguros EMP02... e a sua segurada EMP03..., L. da foi celebrado o contrato de seguro, o qual foi titulado pela apólice nº ...93 - cf. doc. ... e ... juntos à respectiva contestação a fls. 113-115 – através do qual assumiu para si nos termos dele contantes.

39. Das cláusulas de exclusão (fls. 114) destaca-se o seguinte:

“…6. Além das exclusões previstas nas condições gerais ficam excluídos os danos:
(…)
f) Resultantes de vibração, ou fendas ou remoção ou assentamento ou enfraquecimento de fundações, suportes, apoios terrenos bem como alterações do nível freático.
g) Causados em estruturas, terrenos e edifícios /fracções contíguos e/ou vizinhos do local de execução dos trabalhos.”

40. Tal seguro vigorava com uma franquia sempre a cargo da segurada de 10% dos prejuízos indemnizáveis no mínimo de 500 € – cf. 1 e nº 7 do doc. ....

41. Após a reparação da ruptura descrita em 23, através de bypass e dos ofícios indicados em 35 não houve mais rupturas.



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IV - Enquadramento jurídico.

1. A violação do disposto no artigo 45.º do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16.04 (Regime Jurídico do Contrato de Seguro) e o artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25.10 (conclusões XIV a XVII do recurso da Autora).

De essencial invoca neste ponto a Autora a seguradora exclui a responsabilidade pelo ressarcimento de danos de mais provável verificação, respondendo apenas por danos excecionais, inusitados ou completamente imprevisíveis.

O contrato de seguro, como qualquer contrato, não sendo um contrato de seguro obrigatório, cria direitos e obrigações apenas para as partes.

Ainda que surja um dever a beneficiar terceiro, essa obrigação não é assumida directamente perante terceiro, mas apenas indirectamente, como obrigação assumida por um dos contraentes face ao outro.

No caso concreto o dever de indemnizar a Autora por parte da Seguradora demanda não surge como uma obrigação directamente assumida ou que resulte directamente de um qualquer acto da seguradora, mas apenas como obrigação assumida perante a sociedade tomadora do seguro.

A responsabilidade que aqui se pretende efectivar e que acaba por ser, após o julgamento efectuado, fundada apenas na conduta da empresa empreiteira num contrato de empreitada privado, é por responsabilidade civil extracontratual da empresa que levou a cabo essa empreitada.

Responsabilidade que transferiu, apenas em parte, para a Seguradora.

A questão de determinar os prejuízos que estão ou não abrangidos pelo seguro é questão a que a Autora é alheia porque o que a Seguradora não pagar deve pagar a tomadora do seguro.

Não sai assim, seja qual for o conteúdo do seguro, beliscado o direito a Autora a ser indemnizada.

Improcede por isso este fundamento jurídico do recurso da Autora.

2. O direito a ser indemnizada – a violação do disposto no artigo 3.º, n.os 1 e 2 da Lei n.º 67/2007, de 31.12 (conclusão XXVI e XXVII do recurso da Autora).

A Autora e Recorrente pressupõe a alteração da matéria de facto, nos pontos em que aqui se decidiu não se justificar a pretendida alteração, para invocar a violação do direito a ser indemnizada, nos termos peticionados.

Face à matéria dada como provada, a Águas de ... surge como lesada, por ter sido destruída uma conduta sua de água que teve de reparar para repor o abastecimento público.

E não como lesante, dado não se ter provado o incumprimento do seu dever zelar pelo bom funcionamento de tal conduta.

Como se concluiu não se impor, nessa parte, a alteração da matéria de facto, improcede necessariamente este final fundamento, jurídico, do recurso da Autora.

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IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em NEGAR PROVIMENTO A AMBOS OS RECURSOS, mantendo a decisão recorrida.

Custas de cada recurso por cada uma das Recorrentes.
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Porto, 21.04.2023


Rogério Martins
Conceição Silvestre
Luís Migueis Garcia, com o voto de vencido que se segue

Voto vencido.

Não subscrevo o juízo seguido na posição que faz vencimento, a respeito:

- da intervenção principal [o que acabaria por ter reflexo na estatuição final, que em 1ª instância foi condenatória da interveniente], que teria como extemporânea; nada há nada para adequar que justifique o ultrapassar prazo;
- da posição de princípio que é vertida a propósito das "ações para cobrança de dívidas", ainda que também acabasse por julgar improcedente a questão, perante crédito carente de definição jurisdicional.

Porto, 21/04/2023.

[Luís Migueis Garcia]