Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00041/13.8BEPRT
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:11/09/2017
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Ana Patrocínio
Descritores:IMPUGNAÇÃO
DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
OMISSÃO DE DECLARAÇÃO DOS FACTOS NÃO PROVADOS
IMPOSSIBILIDADE DE SINDICÂNCIA DE ERRO DE JULGAMENTO
Sumário:I - Na elaboração da sentença, em processo tributário, o juiz deve declarar quais os factos que julga não provados (bem como os provados).
II - No entanto, o artigo 123.º, n.º 2, do CPPT não exige uma descrição textual e exaustiva de cada facto não provado, bastando-se com uma simples remissão que permita identificar com exactidão o facto ou os factos a que respeita, por exemplo para os artigos das peças processuais, que possibilite às partes ou a qualquer destinatário da sentença apreender com facilidade os factos que o julgador considerou não provados, visto que a falta da sua descrição textual pode facilmente ser suprida pela sua leitura/visualização na peça ou documento processual para onde a remissão é feita.
III - Estando ausente, de todo, a declaração dos factos não provados, existindo fundamentação para a sua não prova sem que se percepcione que factos são esses, acarreta que o tribunal de recurso fique impedido de sindicar o erro de julgamento de facto invocado, na medida em que tal decisão de facto não se apresenta compreensível.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:F..., Lda.
Recorrido 1:Autoridade Tributária e Aduaneira
Decisão:Concedido provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. Relatório

F…, UNIPESSOAL, LDA, com sede na Zona Industrial…, Gondomar, com o NIF 5…, interpôs recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, proferida em 01/03/2017, que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida contra as liquidações de IRC e juros compensatórios n.ºs 2010 83100 16912 e 2011 189, respectivamente, relativas ao exercício de 2006, no montante global de € 2.400,31.

A Recorrente terminou as suas alegações de recurso formulando as conclusões que se reproduzem de seguida:
a. Não houve uma correta ponderação da prova dada como assente na Douta Sentença ora recorrida.
b. A mesma prova já tinha sido objeto de ponderação no Processo n.º 313/12.9BEPRT.
c. Houve um aproveitamento da prova daqueles autos, nestes autos, contudo com resultados diferentes.
d. Ora salvo melhor opinião das gravações constantes dos autos e da prova documental, parece-nos que corresponde a descoberta da verdade material a matéria assente no Processo nº 313/12.9BEPRT.
e. Pelo que, se requer a alteração da matéria dada como assente, passando a ser a seguinte:
A. Ao longo do ano de 2007, nas instalações na impugnante foi entregue mercadoria (papel) através de camiões de matrícula espanhola.
B. Com data de 16.03.2007, pela P…, Lda, foi emitida factura com o n.º A152, em nome da impugnante, contendo 4 referências de produtos, no total de € 18.177,23, com indicação “pronto pagamento”, indicando no campo “expedição” “transportador/transportadora” sem qualquer identificação – cfr. anexo I do relatório de inspecção.
C. Da contabilidade da impugnante consta que a factura que antecede foi paga em numerário – facto invocado no relatório de inspecção e aceite pela impugnante em 25º da p.i.
D. Com data de 19.03.2007, pela P…, Lda, foi emitida factura com o n.º A153, em nome da impugnante, contendo 4 referências de produtos, no total de € 13.158,75, com indicação “pronto pagamento”, indicando no campo “expedição” “transportador/transportadora” sem qualquer identificação – cfr. anexo I do relatório de inspecção.
E. Da contabilidade da impugnante consta que a factura que antecede foi paga em numerário – facto invocado no relatório de inspecção e aceite pela impugnante em 25º da p.i.
F. Com data de 03.08.2007, pela P…, Lda, foi emitida factura com o n.º A229, em nome da impugnante, sem referências de produtos, no total de € 34.247,84, com indicação “pronto pagamento”, indicando no campo “expedição” “transportador/transportadora” sem qualquer identificação – cfr. anexo I do relatório de inspecção.
G. Da contabilidade da impugnante consta que a factura que antecede foi paga em numerário – facto admitido pela impugnante em 23º da p.i.
H. Com data de 06.08.2007, pela P..., Lda, foi emitida factura com o n.º A237, em nome da impugnante, sem referências de produtos, no total de € 24.654,43, com indicação “pronto pagamento”, indicando no campo “expedição” “transportador/transportadora” sem qualquer identificação – cfr. anexo I do relatório de inspecção.
I. Com data de 05.11.2007, pela P..., Lda, foi emitida factura com o n.º A268, em nome da impugnante, sem referências de produtos, no total de € 25.016,99, com indicação “pronto pagamento” – cfr. anexo I do relatório de inspecção.
J. Da contabilidade da impugnante consta que a factura que antecede foi paga em numerário – facto admitido pela impugnante em 23º da p.i.
K. Com data de 20.11.2007, pela P..., Lda, foi emitida factura com o n.º A274, em nome da impugnante, contendo 1 referência de produtos, no total de € 12.349,26, com indicação “pronto pagamento”, indicando no campo “expedição” “transportador/transportadora” sem qualquer identificação – cfr. anexo I do relatório de inspecção.
L. Com data de 19.12.2007, pela P..., Lda, foi emitida factura com o n.º A283, em nome da impugnante, contendo 2 referências de produtos, no total de € 14.072,30, com indicação “pronto pagamento”, indicando no campo “expedição” “transportador/transportadora” sem qualquer identificação – cfr. anexo I do relatório de inspecção.
M. Da contabilidade da impugnante consta que as facturas com os n.ºs A237, A274 e A283 foram pagas com cheques – cfr. fls. 19 do relatório de inspecção.
N. Com data de 12.01.2008, foi emitido pela gerência da impugnante à ordem da P... o cheque n.º 0300003344, no valor de € 24.654,43, sacado sobre conta do banco “Santander Totta”, por referência à factura A237, constando do respectivo verso que o mesmo foi pago em dinheiro a um beneficiário daquele banco, em 24.01.2008, no balcão da agência onde está domiciliada a conta da impugnante – cfr. anexo V do relatório de inspecção e fls. 21 do relatório de inspecção.
O. Do recibo correspondente à factura A237 consta como data de expedição 06.08.2007 e como data de vencimento 14.08.2007 – cfr. fls. 52 do PA apenso.
P. As assinaturas constantes do cheque n.º 0300003344 e do recibo correspondente à factura A237 são diferentes, sendo também diferente a designação da P... constante dos carimbos do cheque e do recibo por no cheque aparecer a designação “Internacional” e no recibo a designação “International” – cfr. fls. 52 e 57 do PA apenso.
Q. Com data de 20.02.2008, foi emitido pela gerência da impugnante à ordem da P... o cheque n.º 7100003455, no valor de € 14.072,30, sacado sobre conta do banco “Santander Totta”, por referência à factura A 283, constando do respectivo verso que o mesmo foi pago em dinheiro a um beneficiário daquele banco, em 25.09.2008, no balcão da agência onde está domiciliada a conta da impugnante – cfr. anexo V do relatório de inspecção e fls. 21 do relatório de inspecção.
R. Do recibo correspondente à factura A283 consta como data de expedição 19.12.2007 e como data de vencimento 27.12.2007 – cfr. fls. 54 do PA apenso.
S. As assinaturas constantes do cheque n.º 7100003455 e do recibo correspondente à factura A283 são diferentes, sendo também diferente a designação da P... constante dos carimbos do cheque e do recibo por no cheque aparecer a designação “Internacional” e no recibo a designação “International” – cfr. fls. 52 e 58 do PA apenso.
T. Com data de 20.03.2008, foi emitido pela gerência da impugnante à ordem da P... o cheque n.º 6200003456, no valor de € 12.349,26, sacado sobre conta do banco “Santander Totta”, por referência à factura A 274, constando do respectivo verso que o mesmo foi pago em dinheiro a um beneficiário daquele banco, em 31.03.2008, no balcão da agência onde está domiciliada a conta da impugnante – cfr. anexo V do relatório de inspecção e fls. 21 do relatório de inspecção.
U. Do recibo correspondente à factura A274 consta como data de expedição 20.11.2007 e como data de vencimento 28.11.2007 – cfr. fls. 53 do PA apenso.
V. As assinaturas constantes do cheque n.º 6200003456 e do recibo correspondente à factura A274 são diferentes, sendo também diferente a designação da P... constante dos carimbos do cheque e do recibo por no cheque aparecer a designação “Internacional” e no recibo a designação “International” – cfr. fls. 53 e 59 do PA apenso.
W. Data de 30.09.2008 o registo contabilístico do cheque n.º 6200003456, associado ao pagamento da factura A283 – cfr. fls. 20 do relatório de inspecção.
X. Os preços unitários das resmas de papel a que se reportam as facturas que antecedem são mais baixos do que os praticados por outros fornecedores do mesmo tipo de artigos, por vezes em mais de 40% - facto constante do relatório de inspecção e aceite pela impugnante em 20º da p.i.
Y. Com data de 16.12.2011, foi elaborado “Relatório de inspecção tributária”, por referência à impugnante, com o seguinte teor – cfr. fls. 11 e ss. do PA apenso:…
Z. Em 19.12.2011, sobre o relatório que antecede recaiu despacho de concordância – cfr. fls. 11 do PA apenso.
AA. Em 21.12.2011, foi emitida em nome da impugnante a liquidação de IRC n.º 2011 83100 76917 relativa ao exercício de 2007, com data limite de pagamento de 01.02.2012 – cfr. fls. 12 do processo físico.
BB. Em 02.02.2012, foi remetida a este Tribunal a petição de impugnação que deu origem aos presentes autos – cfr. fls. 2 do processo físico.
f. Que correspondem à matéria assente no Processo n.º 313/12.9BEPRT, alteração que se requer nos termos do art.º 662º n.º 1 do Cód. Proc. Civil.
g. Com tal alteração deve ser também alterada a formulação de direito da Sentença, e em consequência declarar-se a presente impugnação procedente por provada, e em consequência determinada a anulação dos atos de liquidação impugnados.
Termos em deve ser declarado procedente o presente recurso, e em consequência alterada a matéria dada como assente na mesma, nos termos supra referidos, declarando-se a presente impugnação procedente por provada, e em consequência determinada a anulação do ato de liquidação impugnado.”
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Não houve contra-alegações.
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O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de dever ser concedido provimento ao recurso.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO – QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sendo que importa decidir se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento de facto e, consequentemente, em erro de julgamento de direito ao decidir que se mantêm os indícios de simulação apurados pela Administração Tributária, na medida em que a impugnante não cumpriu o seu ónus de demonstrar a realidade das operações subjacentes às facturas em apreço.

III. Fundamentação

1. Matéria de facto

Da sentença prolatada em primeira instância, consta decisão da matéria de facto com o seguinte teor:
“É a seguinte a matéria de facto assente com relevância para a decisão da causa, por ordem lógica e cronológica:
A. Ao longo do ano de 2006, nas instalações na impugnante foi entregue mercadoria (papel) através de camiões de matrícula espanhola.
B. A impugnante está colectada pela actividade de “Actividades de preparação da impressão e de produtos media” – facto constante de fls. 2 do relatório de inspecção.
C. A P..., Lda, encontra-se registada para o exercício da actividade de “Comércio a retalho de combustível para veículos a motor, estab.espec.” – facto constante de fls. 3 do relatório de inspecção.
D. De acordo com o sistema informático da DGCI, visão do contribuinte, relações inter-sujeito passivo, constam como estando relacionados com a P... J..., administrador, M..., administrador, Pedro…, representante, e Fernando…, contabilista – facto constante de fls. 4 do relatório de inspecção.
E. Com data de 15.09.2006, pela P..., Lda, foi emitida factura com o n.º A102, em nome da impugnante, contendo 1 referência de produtos, no total de € 6.521,90, com indicação “pronto pagamento”, indicando no campo “expedição” “V/Viatura” sem qualquer identificação – cfr. anexo I do relatório de inspecção.
F. Relativamente à factura que antecede, o recibo tem data de vencimento de 23.09.2006, a nota de pagamento data de 22.12.2006 e o registo contabilístico data de 31.01.2007 – facto constante do relatório de inspecção.
G. Com data de 06.12.2006, pela P..., Lda, foi emitida factura com o n.º A133, em nome da impugnante, contendo 4 referências de produtos, no total de € 17.315,10, com indicação “pronto pagamento”, indicando no campo “expedição” “N/Viatura” sem qualquer identificação – cfr. anexo I do relatório de inspecção.
H. Com data de 06.12.2006, pela P..., Lda, foi emitida factura com o n.º A134, em nome da impugnante, contendo 4 referências de produtos, no total de € 11.616,00, com indicação “pronto pagamento”, indicando no campo “expedição” “N/Viatura” sem qualquer identificação – cfr. anexo I do relatório de inspecção.
I. Relativamente às facturas que antecedem, a nota de pagamento data de 06.03.2007 – facto constante do relatório de inspecção.
J. Com data de 22.12.2006, o cheque n.º 2900002934 sacado sobre a conta de depósitos à ordem da impugnante n.º 4...do Banco Totta, no montante de € 2.372,45, foi emitido à ordem da P..., Lda – facto constante de fls. 10 do relatório de inspecção.
K. Com data de 01.04.2007, o cheque n.º 1000002990 sacado sobre a conta de depósitos à ordem da impugnante n.º 4...do Banco Totta, no montante de € 11.616,00, foi emitido ao portador – facto constante de fls. 13 do relatório de inspecção.
L. Em conformidade com os elementos constantes do verso do cheque que antecede, o mesmo foi pago em dinheiro, em 16.03.2007, no balcão da agência de Fânzeres-Gondomar do Banco Santander Totta, onde está domiciliada a conta da impugnante – facto constante de fls. 14 do relatório de inspecção.
M. Com data de 01.05.2007, o cheque n.º 9800002991, sacado sobre a conta de depósitos à ordem da impugnante n.º 4...no Banco Totta, no montante de € 17.315,10, foi emitido ao portador – facto constante de fls. 13 do relatório de inspecção.
N. Em conformidade com os elementos constantes do verso do cheque que antecede, o mesmo foi pago em dinheiro, em 14.03.2007, no balcão da agência de Fânzeres-Gondomar do Banco Santander Totta, onde está domiciliada a conta da impugnante – facto constante de fls. 13 do relatório de inspecção.
O. Com data de 22.12.2010, foi elaborado “Relatório de inspecção tributária”, por referência à impugnante, com o seguinte teor – cfr. fls. 11 e ss. do PA apenso:
“(…) Ordem de Serviço n.º OI2010 05890
(…)
Conclusões da acção de inspecção
Mapa resumo das correcções resultantes da acção de inspecção
Método de determinação da matéria tributávelNatureza do impostoAno/Exercício 2006
De natureza meramente aritméticaCorrecções à matéria tributávelIRC 29.300,00

(…)
III – DESCRIÇÃO DOS FACTOS E FUNDAMENTOS DAS CORRECÇÕES MERAMENTE ARITMÉTICAS À MATÉRIA TRIBUTÁVEL
(…)
- imagens omissas -
P. Em 23.12.2010, sobre o relatório que antecede recaiu despacho de concordância – cfr. fls. 11 do PA apenso.
Q. Em 29.12.2010, foram emitidas em nome da impugnante as liquidações de IRC e juros compensatórios n.ºs 2010 83100 16912 e 2011 189, respectivamente, relativas ao exercício de 2006, no montante global de € 2.400,31 – cfr. fls. 39 do PA apenso.
R. Em 07.01.2013, foi remetida a este Tribunal a petição de impugnação que deu origem aos presentes autos – cfr. fls. 1 do processo físico.

Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa para além dos referidos.

Motivação
O Tribunal formou a sua convicção relativamente a cada um dos factos dados como assentes – com excepção do facto enunciado em A. - tendo por base os documentos juntos aos autos, os quais não foram objecto de impugnação, bem como o posicionamento das partes, assumido nos respectivos articulados.
O facto enunciado em A. teve por base a prova testemunhal produzida. A testemunha S… era trabalhadora da impugnante e o seu depoimento revelou-se credível e consistente. Referiu que lidou com o Senhor Paulo…, enquanto representante da P..., Lda, e que o mesmo preferia o pagamento das facturas em numerário em virtude do preço baixo da matéria-prima (papel) face ao mercado. Mais referiu que o papel tinha uma qualidade fraca e que deu alguns problemas com as máquinas e que o transporte da mercadoria era assegurado por camião. A testemunha D...também teve um depoimento coerente e revelador de conhecimentos sólidos sobre a actividade da impugnante. Era trabalhador da empresa e confirmou que a mercadoria era sempre entregue por camiões TIR de matrícula espanhola. Confirmou ainda a fraca qualidade do papel em causa e disse que conhecia o Senhor Paulo…, que via nas instalações da impugnante com alguma regularidade.
De resto, a prova testemunhal acabou por não revelar mais factos relevantes para a decisão da causa atento o âmbito circunscrito na inquirição das testemunhas, limitada ao (diminuto) acervo factual alegado pela impugnante.
Quanto ao facto dado como não provado em 1., o mesmo resulta da afirmação do sócio gerente da impugnante no sentido em que a mesma “não possui no seu arquivo qualquer documento que comprove a recepção da mercadoria”, constante de fls. 12 do relatório de inspecção, não sendo verosímil que uma empresa receba mercadoria sem documento comprovativo e sem que tenha sido apresentada qualquer justificação para o efeito.
Quanto ao facto dado como não provado em 2., o mesmo resulta da circunstância de o nome de Paulo… não surgir associado à P... no sistema informático da DGCI (cfr. fls. 4 do relatório de inspecção), além de que o mesmo não sabe identificar com rigor nem o responsável nem a sede da P... (cfr. fls. 15 do relatório de inspecção).”
*
2. O Direito

Por despacho proferido em 09/12/2015, o Tribunal “a quo” considerou que a factualidade subjacente aos presentes autos com relevância para a decisão da causa correspondia à que foi objecto de produção de prova testemunhal nos autos que correram termos neste tribunal sob o n.º 313/12.9BEPRT, pelo que, sendo as mesmas as testemunhas arroladas, decidiu aproveitar a prova aí produzida, juntando aos presentes autos cópia da acta e do suporte áudio da diligência de inquirição de testemunhas realizada no processo n.º 313/12.9BEPRT – cfr. fls. 77 a 83 do processo físico. A sentença prolatada nesse processo foi objecto de recurso, tendo este Tribunal Central Administrativo, em 04/05/2017, confirmado essa decisão, favorável à impugnante (aqui Recorrente), que já transitou em julgado – cfr. certidão constante de fls. 139 a 188 do processo físico.
Não obstante a similitude dos processos, a decisão da matéria de facto constante do processo n.º 313/12.9BEPRT é diferente da decisão proferida nos presentes autos. Pugna, por isso, a ora Recorrente, por que a matéria apurada nos presentes autos seja substituída pela constante do processo n.º 313/12.9BEPRT, por entender que foi efectuada nesses autos uma correcta avaliação da prova testemunhal e documental.
No que diz respeito à disciplina da impugnação da decisão de 1ª. Instância relativa à matéria de facto, a lei processual civil impõe ao recorrente um ónus rigoroso, cujo incumprimento implica a imediata rejeição do recurso, quanto ao fundamento em causa. Ele tem de especificar, obrigatoriamente, na alegação de recurso, não só os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, mas também os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizadas, que, em sua opinião, impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da adoptada pela decisão recorrida (cfr. artigo 685.º-B, n.º 1, do Código de Processo Civil, “ex vi” do artigo 281.º, do CPPT; Acórdão do T.C.A.Sul-2ª.Secção, 20/12/2012, proc.4855/11; Acórdão do T.C.A.Sul-2ª.Secção, 2/7/2013, proc.6505/13; José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil anotado, Volume 3º., Tomo I, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 2008, pág.61 e 62; Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª. edição, Almedina, 2009, pág.181).
Esta prerrogativa foi cumprida de forma imperfeita pela Recorrente, mas, ainda assim, entende-se que especificou todos os pontos de facto, que estarão incorrectamente julgados, apresentando a redacção que deveriam ter remetendo para a decisão constante do processo n.º 313/12.9BEPRT e transcrevendo essa factualidade que deveria ser considerada apurada, socorrendo-se, igualmente, dos meios probatórios aproveitados, da análise crítica e da valoração da prova que se encontra efectuada no mesmo.
Importa, assim, analisar as questões que no entender da Recorrente foram incorrectamente julgadas, referentes às provas produzidas, e que poderão impor decisão diversa da recorrida, salientando que o reexame da decisão em matéria de facto em sede de recurso não se confunde com um segundo julgamento, impossível pela inexistência de oralidade e imediação. Corresponde a um remédio jurídico para eventuais erros de procedimento ou de julgamento, mas que passa pela apreciação efectiva de cada uma das questões concretamente colocadas.
Nesta conformidade, mostra-se impossível, simplesmente, transpor a decisão da matéria de facto do processo n.º 313/12.9BEPRT para os presentes autos.
Ora, como o nosso sistema processual consagra o princípio da livre apreciação das provas no artigo 607.º, n.º 5 do Código de Processo Civil, tal significa que o juiz decide com intermediação de elementos psicológicos inerentes à sua própria pessoa e que por isso não são racionalmente explicáveis e sindicáveis, embora a construção da sua convicção deva ser feita segundo padrões de racionalidade e com uma valoração subjectiva devidamente controlada, com substrato lógico e dominada pelas regras da experiência.
Por outro lado, “o princípio da imediação limita a tarefa de reexame da matéria de facto fixada no tribunal a quo, que só pode ser modificada se ocorrer erro manifesto ou grosseiro ou se os elementos documentais fornecerem uma resposta inequívoca em sentido diferente daquele que foi anteriormente considerado (…)” - cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 15/05/2014, proferido no âmbito do processo n.º 07623/14.
O erro de julgamento de facto ocorre quando se conclua, da confrontação entre os meios de prova produzidos e os factos dados por provados ou não provados, que o juízo feito está em desconformidade com a prova produzida, independentemente da convicção pessoal do juiz acerca de cada facto.
Se a decisão do julgador, no que diz respeito à prova testemunhal produzida, estiver devidamente fundamentada e for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da lógica, da ciência e da experiência, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção.
O juiz tem o dever de se pronunciar sobre a factualidade alegada e sobre a que lhe seja lícito conhecer oficiosamente e que se apresente relevante para a decisão, discriminando também a matéria provada da não provada e fundamentando as suas decisões, procedendo à apreciação crítica dos elementos de prova e especificando os fundamentos decisivos para a convicção formada - cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT.
O actual regime do Código de Processo Civil (CPC) relativo à elaboração da sentença aproximou-se do regime que já vigorava no CPPT, consagrado no n.º 2 do artigo 123.º deste diploma; norma que, contudo, vai aparentemente mais longe que o artigo 607.º, n.º 4, do CPC, já que impõe que o juiz discrimine “a matéria provada da não provada, fundamentando as suas decisões”.
A exigida discriminação dos factos provados e não provados é absolutamente essencial na sentença, pois que não existe outra peça processual que concretize tal julgamento da matéria de facto.
É, pois, a necessidade absoluta de julgamento da matéria de facto efectuada, no contencioso tributário, na própria sentença, que leva directamente à exigência da referida discriminação entre "a matéria provada da não provada" – cfr. JORGE LOPES DE SOUSA, in «Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado», II volume, Áreas Editora, 2011, página 320, citando a declaração de voto do Senhor Conselheiro Dr. Brandão de Pinho proferida no acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 07/05/2003, no processo n.º 0869/02.
É precisamente por ter sido eliminado o julgamento da matéria de facto, previsto no anterior artigo 653.º do CPC, que no regime actual do CPC se acolheu uma solução idêntica à prevista no CPPT.
Actualmente é, portanto, incontroverso que, na elaboração da sentença, quer em processo civil quer em processo tributário, o juiz deve declarar quais os factos que julga não provados.
Perfilhamos, no entanto, o entendimento de que o artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, não exige uma descrição textual e exaustiva de cada facto não provado, bastando-se com uma simples remissão que permita identificar com exactidão o facto ou os factos a que respeita, por exemplo para os artigos das peças processuais, que possibilite às partes ou a qualquer destinatário da sentença apreender com facilidade os factos que o julgador considerou não provados, visto que a falta da sua descrição textual pode facilmente ser suprida pela sua leitura/visualização na peça ou documento processual para onde a remissão é feita.
Obedecendo aos cânones impostos pelo artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil a norma é passível de interpretação no sentido de que o legislador do CPPT quis autonomizar a matéria provada da não provada, não impondo que esta seja obrigatoriamente descrita, ao prescrever que “o juiz discriminará também a matéria provada da não provada” (negrito nosso). Se outra fosse a sua intenção, isto é, se o fim visado com a norma fosse a discriminação da matéria provada e não provada, então por certo que a redacção que teria sido utilizada seria esta: “o juiz discriminará também a matéria provada e a não provada”. A discriminação é, pois, entre uma e outra e não uma discriminação das duas.
Isto é, o artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, deve ser interpretado no sentido de que a referência à matéria de facto não provada se basta com a declaração dos correspondentes factos, de modo semelhante à solução acolhida pelo actual Código de Processo Civil – neste sentido, cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 30/01/2014, proferido no âmbito do processo n.º 07160/13.
Ora, como bem alerta a digníssima Magistrada do Ministério Público, no seu parecer emitido a fls. 190 a 192 do processo físico, é incontroverso que o tribunal recorrido não deu cumprimento a este comando legal, visto que após a indicação da matéria de facto provada, não discrimina os factos não provados, limitando-se à seguinte formulação: “Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa para além dos referidos”.
No entanto, na motivação da decisão afirma o seguinte:
«(…)Quanto ao facto dado como não provado em 1., o mesmo resulta da afirmação do sócio gerente da impugnante no sentido em que a mesma “não possui no seu arquivo qualquer documento que comprove a recepção da mercadoria”, constante de fls. 12 do relatório de inspecção, não sendo verosímil que uma empresa receba mercadoria sem documento comprovativo e sem que tenha sido apresentada qualquer justificação para o efeito.
Quanto ao facto dado como não provado em 2., o mesmo resulta da circunstância de o nome de Paulo... não surgir associado à P... no sistema informático da DGCI (cfr. fls. 4 do relatório de inspecção), além de que o mesmo não sabe identificar com rigor nem o responsável nem a sede da P... (cfr. fls. 15 do relatório de inspecção).»
Efectivamente, verifica-se falta de especificação da matéria de facto não provada, mostrando-se imperceptível, afinal, a que factos não provados se refere a motivação da decisão, inviabilizando a percepção dos motivos que levaram o tribunal “a quo” a decidir como decidiu.
Uma vez que decorre das alegações de recurso que inexistiria, na óP...ca da Recorrente, qualquer factualidade não provada, a menção a factos não provados na fundamentação da decisão e a omissão da sua declaração, com impossibilidade de compreensão a que factos simples e concretos se refere, impossibilita a apreciação do erro de julgamento de facto invocado.
Na verdade, in casu, esta total ausência de declaração dos factos não provados faz com que o tribunal de recurso fique impedido de sindicar o erro de julgamento invocado pela Recorrente, dado que nem mesmo da fundamentação de direito constante da sentença se consegue apreender, com a segurança e certeza exigíveis, quais serão esses factos.
Atento o que ficou dito, a decisão tem de ser eliminada da ordem jurídica, com a consequente remessa dos autos ao tribunal de primeira instância para prolação de nova decisão sem o vício apontado.
O recurso merece, assim, provimento.
Em face do exposto, fica, consequentemente, prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.

Conclusões/Sumário

I - Na elaboração da sentença, em processo tributário, o juiz deve declarar quais os factos que julga não provados (bem como os provados).
II - No entanto, o artigo 123.º, n.º 2, do CPPT não exige uma descrição textual e exaustiva de cada facto não provado, bastando-se com uma simples remissão que permita identificar com exactidão o facto ou os factos a que respeita, por exemplo para os artigos das peças processuais, que possibilite às partes ou a qualquer destinatário da sentença apreender com facilidade os factos que o julgador considerou não provados, visto que a falta da sua descrição textual pode facilmente ser suprida pela sua leitura/visualização na peça ou documento processual para onde a remissão é feita.
III - Estando ausente, de todo, a declaração dos factos não provados, existindo fundamentação para a sua não prova sem que se percepcione que factos são esses, acarreta que o tribunal de recurso fique impedido de sindicar o erro de julgamento de facto invocado, na medida em que tal decisão de facto não se apresenta compreensível.

IV. Decisão

Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em conceder provimento ao recurso, anular a sentença recorrida e ordenar a remessa do processo ao Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, a fim de aí ser proferida nova decisão onde se supra o apontado vício.
Sem custas.
D.N.
Porto, 09 de Novembro de 2017
Ass. Ana Patrocínio
Ass. Paula Moura Teixeira
Ass. Fernanda Esteves