Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00091/23.6BEMDL
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:04/21/2023
Tribunal:TAF de Mirandela
Relator:Ricardo de Oliveira e Sousa
Descritores:INTEMPESTIVIDADE DA PRÁTICA DO ATO PROCESSUAL;
OBJETO DO PROCESSO;
MODIFICAÇÃO OBJETIVA DA INSTÂNCIA;
Sumário:I- Nos termos do artigo 58º, nº. 1, alínea b) do C.P.T.A, a impugnação de atos anuláveis tem lugar no prazo de três meses.

II- O “objeto confesso” do processo é definido pela Requerente, apenas admitindo alteração nos casos de modificação objetiva da instância preconizados no C.P.T.A.

III- Inexistindo dúvidas quanto ao propósito definitório veiculado no requerimento inicial, não pode o Tribunal a quo apreciar a regularidade dos pressupostos processuais tendo por referência um objeto da causa diverso do expressamente identificado pela Requerente.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Procedimento Cautelar Suspensão Eficácia (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Conceder parcial provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
* *
I – RELATÓRIO
1. «EMP01...», LDA, melhor identificada nos presentes autos de PROVIDÊNCIA CAUTELAR em que é Requerida APDL - ADMINISTRAÇÃO DOS PORTOS DO DOURO, LEIXÕES E VIANA DO CASTELO, S. A, vem intentar o presente RECURSO JURISDICIONAL da decisão judicial do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, editada em 01.03.2023, que “(…) rejeito[u] o presente requerimento cautelar, por se revelar manifesta a ausência dos pressupostos (…)”.
2. Alegando, a Recorrente formulou as seguintes conclusões: “(…)
a) Através da presente providência cautelar, peticionou a Recorrente (i) suspensão de eficácia do acto de adjudicação da entidade Recorrida praticado em procedimento concursal para atribuição de licença de utilização privativa do Cais ..., (ii) suspensão de eficácia da decisão da entidade Recorrida em não reconhecer ao Recorrente direito de preferência no âmbito do aludido procedimento concursal, ambos notificados através do ofício n.° ...23, de 26/Jan/2023 [documento n.° ...]; (iii) atribuição provisória da manutenção do direito do Recorrente utilizar e explorar o Cais ....
b) Entendeu o Tribunal a quo rejeitar o requerimento inicial, ao abrigo do artigo 116.°/ 2 f) do CPTA, julgando ser manifesta a falta de pressupostos da acção principal por considerar que teria caducado o direito àquela, nomeadamente por o ofício n.° ...22, de 25/maio/2022 [documento n.° ...7] ser um verdadeiro acto administrativo impugnável, tal apesar de o mesmo expressamente mencionar que a Recorrente dispunha de um prazo de dez dias úteis para, em sede de audiência prévia, alegarem o que tiverem por conveniente e/ou suscetível de influir na presente determinação.
c) Com o devido respeito, não pode a Recorrente concordar ou conformar-se, de todo, com tal decisão, incorrendo esta em erro de julgamento por vários motivos, requerendo-se, assim, por um lado, a sua revogação e substituição por outra que admita o requerimento inicial, e, por outro, nos termos do artigo 149.°/3 do CPTA, o conhecimento e decisão por parte do Tribunal a quem do mérito da causa, bem como e ao abrigo do artigo 131.° do CPTA, o decretamento provisório das providências peticionadas, ou, caso assim não se entenda, nos termos do artigo 143.°/4 do CPTA, a adopção de providências que se julguem ser adequadas a evitar ou minorar os danos, entendendo a Recorrente que tais se podem consubstanciar na sua manutenção na utilização do cais em causa mediante o pagamento da “contrapartida / taxa” mensal, a título de recursos hídricos, prevista na anterior licença [n.° 0034/2022] e que pagou no último ano.
Com efeito:
d.1) Em primeiro lugar, é a lei clara e a jurisprudência e doutrina unânimes no sentido do aludido ofício [n.° 244/2022] não se consubstanciar num verdadeiro acto administrativo, lesivo e definitivo, e por isso impugnável, como assim se define nos artigos 148.° do CPA e 51.° do CPTA - cfr., a título de exemplo, Acórdãos do TCAN de 16/março/2018 [processo n.° 02109/16.0BEPRT] e de 29/maio/2008 [processo n.° 01006/05.9BEPRT].
d.1.1) Na verdade, decorre literal e expressamente daquele que a Recorrente dispunha de 10 dias úteis para se pronunciar em sede de audiência prévia, pelo que o mesmo insere-se nesse direito [de exercício de audiência prévia] - o que só por si, e por definição, atento o disposto nos artigos 148.° e 121.° e seguintes do CPA e ainda do 51.° do CPTA, retira a sua definitividade, lesividade, efeitos externos e, por conseguinte, é insuscetível de impugnação.
d.1.2) E, para além da sua literalidade, as anteriores comunicações neste âmbito da entidade Recorrida foram no sentido diametralmente oposto [i.e., os ofícios n.°s ...22 e ...22, que são os ofícios anteriores ao ofício n.° ...22, ao contrário deste, reconhecem expressamente o direito de preferência à Recorrente], pelo que esta sempre tinha o direito de ser ouvida no procedimento antes de ser tomada a decisão final, devendo ser informado sobre o sentido provável desta. Daí também o ofício n.° ...22 apenas se poder configurar e definir como uma verdadeira notificação para o exercício do direito de audiência prévia, e jamais acto administrativo tout court, sob pena de violação do artigo 121.° do CPA e se consubstanciar numa decisão-surpresa.
d.1.3) Encerra, assim, a decisão em crise em erro de julgamento, ao interpretar o ofício n.° ...22 como um verdadeiro acto administrativo quando não é mais que uma notificação para o exercício do direito de audiência prévia, violando, deste modo, os artigos 121.° e 148.° do CPA e 51.° do CPTA.
d.2) Em segundo, conforme acima exposto e com o devido respeito, é para a Recorrente impossível afirmar, com o mínino sequer de segurança, que aquele ofício n.° ...22 de 25/maio/2022 poderia ser um acto administrativo final e por isso passível de impugnação - note-se que o mesmo integra expressamente a notificação para a Requerente se pronunciar no prazo de 10 dias em sede de audiência prévia! - pelo que decidir que tal é manifesto é, tal como o artigo 116.°/2 f) do CPTA exige, absolutamente incompreensível.
d.2.1) Com efeito, salvo o devido respeito, não apenas o pedido cautelar se mostra perfeitamente procedente, porque destinado a acautelar o efeito útil da decisão judicial a proferir e porque se baseia em argumentos factual e legalmente atendíveis, como, reitere-se, nunca a alegada improcedência do pedido cautelar poderia ser, nesta fase, manifesta, pelo que viola a decisão em crise o artigo 116.°/2 do CPTA.
d.3) Por sua vez, o ofício em causa [n.° 244/2022] consubstancia-se numa notificação assinada e da autoria da Diretora Jurídica, Dominial e de Património da Recorrida, ao invés de quem delibera reconhecer e notificar a Recorrente para exercer o seu direito de preferência, através do ofício n.° ...22, é Vogal do Conselho de Administração, sendo certo que, também o ofício n.° ...22 de 28/Nov/2022 [documento n.° ...9] é da então Vogal do Conselho de Administração [e este, note-se, expressamente, se refere a uma notificação de uma deliberação do Conselho de Administração]. Curiosamente, ou não, o ofício impugnado em sede de acção principal e cuja eficácia nos presentes autos cautelares se pretende suspender [n.° 71/2023, de 26/Jan/2023 - documento n.° ...], é da Presidente do Conselho de Administração.
d.3.1) Assim, verifica-se que o ofício que o Tribunal a quo considerou ser definitivo, lesivo e impugnável foi emitido pelo órgão que nenhum poder ou competência detém para vincular a entidade Recorrida, o que, por um lado, até simbolicamente, dá para perceber qual a “força” de um e de outros, atestando-se o que se intencionou ser um verdadeiro acto e o que será uma projeto de decisão, e, por outro, caso o aludido ofício de 25/maio/2022 significasse um verdadeiro acto administrativo, com produção de efeitos jurídicos externos - o que não se consente -, sempre seria nulo, nos termos e ao abrigo do artigo 161.° do CPA, nulidade essa invocável a todo o tempo por qualquer interessado e [podendo], também a todo o tempo, ser conhecida por qualquer autoridade e declarada pelos tribunais administrativos ou pelos órgãos administrativos competentes para a anulação [cfr. artigo 162.°/2 do CPA e ainda 58.°/1 do CPTA].
d.3.2) Pelo que, também por esta ordem de razões e por violar os artigos 162.° do CPA e 58.° do CPTA, deve a decisão em crise ser revogada.
d.4) Note-se que, considera a Recorrente ser o ofício n.° ...23, de 26/Jan/2023 o acto administrativo final - e que impugnou em sede de acção principal -, pois que, para além de ser da autoria da Presidente do Conselho de Administração da entidade Recorrida e dos anteriores ofícios todos notificarem para o exercício de audiência prévia, é o que definitivamente decide não reconhecer o direito de preferência à Recorrente e atribuir a licença à concorrente Contra-interessada.
d.4.1) Em todo o caso, entendendo-se ser a deliberação do Conselho de Administração de 24/Nov/2022 o acto administrativo a impugnar, importa salientar que tal deliberação foi notificada à Recorrente através do ofício n.° ...22 de 28/Nov/2022 [documento n.° ...9], pelo que, tendo a acção principal dado entrada no prazo de 3 meses, mais precisamente no dia 28/Fev/2023, tal como o requerimento inicial cautelar, não ocorre nos presentes autos qualquer caducidade.
d.5) Mas, ainda que assim não se entendesse - ou seja, que o aludido ofício n.° ...22 poderia hipoteticamente configurar um acto administrativo, tout court, o que não se consente -, a verdade é que, ao abrigo dos princípios da boa fé, justiça e da tutela jurisdicional efectiva, sempre seria de considerar impugnável as decisões objecto da providência e da acção já instaurada e, em consequência, admitir requerimento inicial cautelar, pois que, no mínimo, sempre seria de considerar que foi a própria entidade Recorrida que induziu em erro a Recorrente, ao expressamente naquele se referir que esta dispunha do prazo de dez dias úteis para se pronunciar em sede de audiência prévia.
d.5.1) Efetivamente, não poderia a Recorrente adivinhar que a figura jurídica de audiência prévia ali literalmente escrita e para a qual foi expressamente notificada não seria, a final, aplicável ao caso, tratando-se, outrossim, de um acto administrativo, alegadamente impugnável e lesivo externamente, ademais quando quem assina aquele [ofício n.° ...22] é a Diretora Jurídica da entidade Recorrida, que certamente sabe e conhece os termos que aplica e para os quais notifica os particulares interessados.
d.5.2) Há, pois, no entender da Recorrente e claramente, uma razão justificativa [literal e expressa, de resto], e sem qualquer culpa sua, para esta ter interpretado aquele ofício como uma notificação para o exercício do direito de audiência prévia, pelo que sempre a será de a considerar lícita e digna de protecção jurídica, violando a decisão em crise, ao interpretar o ofício em causa como interpreta.
Por sua vez:
e) Não tendo o Tribunal a quo conhecido do pedido, por ter rejeitado o requerimento inicial com base numa hipotética caducidade, a Recorrente entende que não há qualquer obstáculo para que, nos termos e ao abrigo do artigo 149.°/3 do CPTA, este Tribunal conheça do mérito e objecto dos presentes autos, o que aqui se requer, dando, assim e integralmente, reproduzido para todos os efeitos legais o alegado e peticionado em sede do requerimento inicial.
e.1) Neste seguimento, atento o preenchimento de todos os pressupostos de que a presente providências depende, requer-se o seu decretamento e, em consequência, (i) se declare inválida a decisão de adjudicação no procedimento concursal em causa e/ou a sua execução / atribuição da licença ao concorrente graduado em primeiro lugar, aqui Contra-interessada; (ii) se declare inválida a decisão de não reconhecimento e atribuição do direito de preferência à aqui Recorrente, mantendo-se em vigor e válido o seu efectivo e legítimo exercício daquele direito; (iii) atribuição à Recorrente, ainda que provisória, da licença de utilização objecto do procedimento concursal me causa.
Por fim:
f) Atenta a existência de uma situação de especial urgência passível de dar causa a uma situação de facto consumado, requer-se ao abrigo do artigo 131.°1/1 do CPTA o decretamento provisório da(s) providência(s) nestes autos peticionada(s) ou, caso assim não se entenda, nos termos do artigo 143.°/4 do CPTA, a adopção de providências que se julguem ser adequadas a evitar ou minorar os danos, entendendo a Recorrente que tais se podem consubstanciar na sua manutenção na utilização do cais em causa mediante o pagamento da “contrapartida / taxa” mensal, a título de recursos hídricos, prevista na anterior licença [n.° 0034/2022] e que pagou no último ano.
f.1) Entende a Recorrente ser esta, assim e sob pena de dar causa a uma situação de facto consumado, a única forma de evitar os graves danos de mui difícil ou impossível reparação, nomeadamente a indisponibilidade de utilização do Cais ... já a partir do próximo mês e por tempo indeterminado, o que originaria (i) o incumprimento dos compromissos contratuais já assumidos com os operadores, clientes e demais fornecedores por falta de local de acostagem para os receber e embarcar; (ii) o receio da sua inviabilidade económica; (iii) a dificuldade na manutenção de todos os seus 16 funcionários e postos de trabalho que criou e que muitos estão dedicados em exclusivo à actividade marítimo-turística no ..., (iv) a perda da clientela que, durante os anos que lá esteve, foi angariando, impedindo ainda (v) de amortizar as embarcações em que investiu e reabilitação que fez ao cais, com o conhecimento da Ré.
f.2) De facto, com o tempo entretanto decorrido e que se estima que decorrerá entre a apresentação do requerimento inicial, a sua rejeição e instauração do respectivo recurso, demais tramitação processual normal e uma decisão nestes autos cautelares, quer este Tribunal Superior de recurso decida do mérito, quer ordene a sua remessa ao Tribunal recorrido para este decidir, a presente providência cautelar [e respectiva acção principal] perderá certamente todo o seu efeito útil.
f.3) É que, tendo o requerimento inicial sido rejeitado antes da entidade Recorrida ser citada, não operou, nos presentes autos, a suspensão dos actos impugnados em sede de acção principal, podendo a entidade Recorrida dar continuidade aos mesmos e executar a adjudicação impugnada, atribuindo a licença ao concorrente classificado em primeiro lugar, o que se pretende evitar.
g) Daí se considerar profundamente injusto e fortemente penalizador a situação que a aqui Recorrente, sem culpa sua, se vê actualmente, pois que, apesar de tudo ter feito em prol do Cais ... e do Douro, da lei estar do “seu lado”, de ter exercido os seus direitos devida e legitimamente, inclusive por via judicial, com o despacho liminar de rejeição do requerimento inicial aqui em crise conseguiu o Tribunal a quo retirar toda a utilidade dos presentes autos cautelares,
h) situação com a qual não pode a Recorrente se conformar e que o Tribunal ad quem poderá corrigir (…)”.
*
3. Notificada que foi para o efeito, a Recorrida APDL - Administração dos Portos do Douro, Leixões e Viana do Castelo, S.A., produziu contra-alegações, que rematou com o seguinte quadro conclusivo: “(…)
A. O recurso a que ora se responde vem interposto da sentença proferida a 3 de março de 2023, nos termos da qual foi liminarmente rejeitado o requerimento inicial apresentado pela Recorrente.
B. No que respeita à decisão de rejeição do requerimento inicial apresentado, a Requerida entende que assiste razão à Requerente no pedido de revogação da mesma, uma vez que a sua pretensão é tempestiva. Por este motivo, a Requerida considera que o recurso interposto merece provimento.
C. O objecto do recurso não se cinge, contudo, à rejeição do requerimento inicial. Para além de pugnar pela admissibilidade do requerimento inicial, a Recorrente requer, ainda, que o Tribunal ad quem conheça do mérito da causa ao abrigo do disposto no n.° 3 do artigo 149.° do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) e, ainda, que sejam decretadas provisoriamente as providências requeridas.
D. Como tal, considera a Requerida que se justifica replicar, nesta sede, a defesa apresentada na oposição à acção cautelar instaurada pela Requerente.
II. A DECISÃO DO MÉRITO DA CAUSA
A. QUESTÃO PRÉVIA - A INADMISSIBILIDADE DO CONHECIMENTO PELO TRIBUNAL DE RECURSO
E. Pretende a Recorrente que o tribunal ad quem conheça do mérito da causa, invocando, para o efeito, o disposto no n.° 3 do artigo 149.° do CPTA.
F. Considera a Requerente, portanto, que para além de o motivo do não conhecimento do pedido pelo tribunal a quo não proceder, nenhum outro motivo obsta ao conhecimento do mérito da causa pelo tribunal de recurso.
G. A Requerente olvida, contudo, que a Requerida ainda não apresentou a sua oposição nem produziu a prova por si considerada necessária nos autos da acção cautelar.
H. Por esse motivo, isto é, porque o conhecimento do mérito da causa sem tenha sido exercido o direito de defesa por parte da Requerida implicaria a desconsideração absoluta das suas garantias processuais e, bem assim, do direito à tutela jurisdicional efectiva, o pedido formulado pela Requerente deve ser indeferido.
I. Sem prescindir, a Requerida reitera, nesta sede, os argumentos determinantes da improcedência da pretensão da Requerente.
B. CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS
J. São três as providências requeridas como preliminar da acção principal intentada pela Requerente, a saber:
i) A suspensão da decisão de adjudicação da proposta da Contra-interessada no âmbito do procedimento pré-contratual com a Ref.a ...21, com o objecto “Atribuição de licença de utilização privativa de parcela do domínio público hídrico destinada à utilização e exploração do núcleo de recreio do rio ..., com capacidade máxima de 32 lugares de acostagem, localizado no Cais ..., ...”;
ii) A suspensão da decisão de não reconhecimento do direito de preferência à Requerente no âmbito do suprarreferido procedimento pré-contratual;
iii) A atribuição provisória da disponibilidade e utilização de um bem, concretizada na permissão da continuidade da actividade, utilização e exploração, por parte da Requerente, do Cais ....
K. Todas as providências elencadas são, como se demonstrou, totalmente improcedentes, sendo claro que não se encontram preenchidos os pressupostos de que depende a concessão de tutela cautelar à Requerente: o fumus boni iuris, o periculum in mora e a ponderação de interesses.
L. Com efeito, analisados os argumentos esgrimidos pela Requerente com vista à procedência dos pedidos formulados, conclui-se que todos são improcedentes, atendendo ao acervo factual trazido ao conhecimento do Tribunal e à sua correta subsunção ao Direito.
M. No que respeita aos danos invocados com vista à demonstração do preenchimento do requisito do periculum in mora, os mesmos são absolutamente infundados; a Requerente limita-se à alegação genérica, abstrata e superficial de supostas consequências da não concessão de tutela cautelar, não demonstrando - nem produzindo prova apta a fazê-lo - qualquer fundado receio na produção das mesmas ou na criação de uma situação de facto consumado.
N. Relativamente à ponderação de interesses de que depende o deferimento das providências requeridas, atendendo à manifesta ausência de qualquer interesse privado atendível, o resultado da mesma determinará, em última instância, decisão negativa quanto aos pedidos formulados.
C. OS FACTOS RELEVANTES
O. No que respeita à factualidade relevante para a boa decisão da causa, sendo difícil, nesta sede, sumarizar todos os elementos a que acima se fez referência, dir-se-á apenas que os factos indicados pela Requerida - todos comprováveis mediante consulta dos documentos apresentados pelas partes e do processo administrativo, revelam que (i) a decisão de adjudicação e de não reconhecimento do direito de preferência à Requerente - em crise nestes autos - foram tomadas pela APDL em estrito cumprimento da lei e do princípio da legalidade, e que (ii) os n.°s 6 e 8 do artigo 21.° do Decreto-Lei n.° 226-A/2007 não são aplicáveis in casu, uma vez que não se verificam os respectivos pressupostos, não beneficiando a Requerente de qualquer direito de preferência.
P. É disso demonstrativo, entre outros, o facto de o concurso lançado em 2021, no seio do qual a Requerente exerceu o direito de preferência em questão, ter sido lançado por exclusiva iniciativa pública da APDL depois de o concurso de 2018 - também lançado por iniciativa pública - ter findado com uma decisão de não adjudicação da proposta apresentada pela Requerente em virtude de a mesma ter desistido expressamente do concurso, revelando não ter interesse na exploração do núcleo de recreio do Cais ... nas condições pretendidas pelas APDL.
Q. Isto, note-se, depois de ter revelado apenas na fase pós-adjudicatória que não reunia condições para executar a proposta por si apresentada no seio daquele procedimento, à qual se havia vinculado.
R. Não oferece dúvidas, em face dos factos carreados para os autos, que a utilização do Cais ... pela Requerente entre 2018 e 2022 foi feita sempre a título precário e transitório, enquanto não fosse encontrada uma solução condizente com as pretensões da APDL, tendo a Requerente sempre demonstrado e confirmado que apenas continuaria a utilizar o Cais ... enquanto não fosse concluído o procedimento para emissão de licença pelo prazo de dez anos.
D. O DIREITO - A NÃO VERIFICAÇÃO DOS REQUISITOS DE QUE DEPENDE O DECRETAMENTO DA PROVIDÊNCIA
D.1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
S. Conforme referido e demonstrado, nenhum dos pressupostos de que depende o decretamento das providências requeridas se encontra preenchido.
D.2. A INEXISTÊNCIA DE FUMUS BONI IURIS
T. À luz das exigências impostas nos termos do artigo 120.° do CPTA, não basta a existência de uma possibilidade de o pedido vir a obter provimento, sendo necessário que se demonstre a probabilidade séria de isso vir a acontecer - o que não sucede in casu.
D.2.1. A MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA DOS VÍCIOS INVOCADOS PELA REQUERENTE
i) A suposta validade do acto de reconhecimento do direito de preferência à Requerente
U. Ao contrário do sustentado pela Requerente o acto inicialmente praticado, pelo qual lhe foi reconhecido o direito de preferência, foi devidamente anulado mediante a deliberação do Conselho de Administração da APDL de 24 de novembro de 2022, a qual lhe foi notificada a 28 de novembro de 2022.
V. O procedimento legalmente previsto para o efeito foi escrupulosamente cumprido, tendo sido observado, tanto o dever de fundamentação, como o direito de audiência prévia da Requerente, para além do disposto nos artigos 164.° e seguintes do CPA.
W. Tendo sido validamente anulada, aquela decisão já não se encontra em vigor nem produz quaisquer efeitos. É a própria Requerente quem, aliás, o admite, ao dirigir os pedidos principais formulados à decisão de não reconhecimento do direito de preferência.
ii) Do erro nos pressupostos de facto e de Direito
X. Também no que respeita ao segundo vício invocado, a tese da Requerente é improcedente: ao contrário do que é por si defendido, não são aplicáveis, nem o n.° 8, nem o n.° 6 do artigo 21.° do Decreto-Lei n.° 226-A/2007.
Y. Relativamente ao primeiro, a Requerente nunca apresentou qualquer efectiva manifestação de interesse nos termos e para os efeitos da respectiva aplicação, para além de todas as pronúncias por si referidas serem totalmente intempestivas.
Z. Para além disso, a verdade é que o elemento literal daquele preceito exclui do seu âmbito de aplicação o anterior titular cuja licença tenha um prazo de um ano ou menos - como é o caso da Requerente.
AA. Analisada atentamente a norma, a teleologia subjacente conduz-nos à conclusão de que o que se pretende com o reconhecimento do direito de propriedade ao anterior titular é acautelar os investimentos realizados ao abrigo de um título de utilização duradouro, cuja amortização deve ser assegurada.
BB. Essa tutela não reconhecida, por motivos evidentes, aos titulares de licenças de duração igual ou inferior a um ano, uma vez que as mesmas têm carácter temporário e efémero.
CC. Só nesses casos será, aliás, possível cumprir o prazo previsto no n.° 8 do artigo 21.°, sendo absurdo pretender-se a sua aplicação a casos nele não subsumíveis.
DD. Por sua vez, também o n.° 6 do artigo 21.° é aqui inaplicável: para além de o concurso ter sido lançado por iniciativa pública da APDL - e não a pedido da Requerente -, mesmo verificando-se este último caso, à Requerente, enquanto anterior titular, não é reconhecido o direito de preferência previsto na primeira parte do n.° 6, mas apenas a possibilidade, prevista in fine, de lhe ser adjudicado o contrato no caso de o concurso ficar deserto.
EE. Deve relembrar-se, em todo o caso, dada a sua importância, o seguinte: o concurso em causa nos autos apenas foi aberto porque a Requerente desistiu expressamente do procedimento lançado em 2018, no âmbito do qual admitiu a sua incapacidade para a execução da proposta por si apresentada e manifestou não ter interesse em explorar o núcleo de recreio do Cais ... de forma estável e duradoura.
iii) O esvaziamento do direito de audiência prévia e/ou falta de fundamentação
FF. Conforme demonstrado, previamente à consolidação da decisão de não reconhecimento do direito de preferência à Requerente, esta foi notificada do projeto de decisão e dos respectivos fundamentos, tendo-lhe sido concedido prazo para se pronunciar em sede de audiência prévia.
GG. A Requerente fê-lo, tendo os argumentos por si aduzidos sido devidamente apreciados pela APDL e considerados, a final, improcedentes, motivo pelo qual o projeto de decisão se tornou em decisão definitiva.
HH. Comprova-se, portanto, que o seu direito de audiência prévia foi respeitado e a decisão de não reconhecimento do direito de preferência devidamente fundamentada per relationem, com base no teor do projeto de decisão.
iv) A violação dos princípios da justiça, da boa-fé, da igualdade, da proporcionalidade e da razoabilidade
II. Sem prejuízo de a invocar, a Requerente não demonstra, sequer minimamente, de que forma os princípios referidos foram violados com a proferição da deliberação de não reconhecimento do direito de preferência.
JJ. A ser de algum modo, foi precisamente a obediência aos princípios fundamentais da actividade administrativa, designadamente os princípios da legalidade, da justiça e da igualdade, que determinaram a prática do acto sindicado.
KK. Com efeito, atendendo ao não preenchimento dos pressupostos de que dependia o reconhecimento e exercício do direito de preferência, a sua concessão à Requerente estaria eivada de ilegalidade, motivo pelo qual se impunha a decisão de não reconhecimento do direito de preferência.
LL. Para além disso, inexistem quaisquer legítimas expectativas da Requerente dignas de tutela.
D.3. A INEXISTÊNCIA DE “PERICULUM IN MORA”
MM. Também o requisito de periculum in mora não se encontra preenchido, não tendo a Requerente demonstrado - ou feito qualquer prova - qualquer fundado receio na constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação.
NN. A Requerente não demonstra quaisquer dos danos por si invocados, limitando-se a referir, de forma manifestamente genérica, superficial e conclusiva, os termos em que considera que será prejudicada pela não concessão de tutela cautelar.
OO. É à Requerente que incumbe, em exclusivo, o ónus de alegação e prova dos prejuízos de difícil reparação ou da situação de facto consumado cuja produção receia, não podendo o tribunal substituir-se-lhe nessa tarefa.
PP. Como tal, sob pena de banalização da concessão da tutela cautelar, e apenas no caso de se considerar preenchido o requisito do fumus boni iuris - o que não se concede -, as providências requeridas deverão ser indeferidas por não preenchimento do requisito do periculum in mora.
D.4. A PONDERAÇÃO DOS INTERESSES PÚBLICOS E PRIVADOS EM PRESENÇA
QQ. Também neste âmbito as alegações da Requerente são absolutamente desprovidas de conteúdo, sendo evidente, à luz de todo o exposto, que inexistem interesses privados dignos de tutela que mereçam ser contrapostos ao interesse público na preservação da legalidade e na exploração do Cais ... em condições que permitam o seu pleno aproveitamento e rentabilização.
III. O PEDIDO DE DECRETAMENTO PROVISÓRIO DAS PROVIDÊNCIAS REQUERIDAS
RR. De acordo com o que acima se demonstrou, o pedido de decretamento provisório das providências requeridas é processualmente inadmissível, uma vez que, não se verificando qualquer alteração dos pressupostos de facto e de Direito, o mesmo deveria ter sido formulado no r.i..
SS. Em todo o caso, mesmo a admitir-se o pedido formulado - o que não se concede - o mesmo deve ser indeferido em virtude da não verificação do único pressuposto de que depende: a existência de uma situação de especial urgência, passível de dar causa a uma situação de facto consumado na pendência do processo.
TT. Para além de a Requerente não demonstrar em que se traduz essa situação de especial urgência, a verdade é que, ao contrário do por si defendido, tendo a Requerida sido já citada no âmbito do processo cautelar, a mesma encontra-se impedida de executar os actos suspendendos.
UU. É igualmente improcedente o pedido de adopção de providências pelo Tribunal ao abrigo do n.° 4 do artigo 143.° do CPTA: para além de a Requerente não demonstrar quaisquer danos passíveis de atenuação pela adopção de providências, também não demonstra o nexo de causalidade entre os danos que invoca e a atribuição de efeito devolutivo ao recurso por si interposto. (…)”.
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4. O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso, fixando os seus efeitos e o modo de subida.
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5. O/A Digno[a] Magistrado[a] do Ministério Público junto deste Tribunal Superior não exerceu a competência prevista no nº.1 do artigo 146º do CPTA.
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6. Com dispensa de vistos prévios, cumpre, pois, apreciar e decidir, já que nada a tal obsta.
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II – DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A DECIDIR
7. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, de acordo com o disposto nos artigos 144.º n.º 2 e 146.º n.º 4 do C.P.T.A. e dos artigos 5.º, 608.º n.º 2, 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º do novo CPC ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA.
8. Neste pressuposto, a questão essencial a dirimir resume-se a saber se a decisão judicial recorrida, ao julgar nos termos e com o alcance descritos no ponto I) do presente Acórdão, incorreu em (i) erro de julgamento de direito, e, bem assim, na ausência de eventual obstáculo processual, (ii) determinar se assiste [ou não] o direito da Requerente a ver deferida a tutela cautelar requerida nos autos.
9. É na resolução de tais questões que se consubstancia a matéria que a este Tribunal Superior cumpre solucionar.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
III.1 – DE FACTO
10. Embora não autonomizados, o Tribunal a quo considerou indiciariamente fixado o seguinte tecido fáctico:
A. A Requerida publicitou, através do edital n.° 788/2021, de 12.07.2021, a abertura do procedimento concursal para a atribuição de um título de utilização dos recursos hídricos, tendo por objeto o Cais ..., que a Requerente vinha utilizando e explorando desde o ano de 2017.
B. No âmbito desse procedimento concursal, apresentaram proposta ...3 entidades, entre as quais a Requerente e a Contrainteressada, tendo todas elas sido aceites.
C. Em 20.10.2021, o júri do procedimento concursal elaborou o competente relatório preliminar, onde propunha a adjudicação da proposta à Contrainteressada.
D. Através de ofício, com a ref.a "...", datado de 13.10.2021, os serviços da Requerida comunicaram à Requerente o teor do relatório preliminar, concedendo-lhe o prazo de 05 dias para, querendo, se pronunciar em sede de audiência prévia.
E. A Requerente exerceu esse direito em 20.10.2021, apresentando pronúncia escrita por reporte ao aludido relatório preliminar, manifestando pretender fazer uso do direito de preferência de que se arrogou titular, nas exatas condições que foram propostas pelo concorrente mais bem posicionado, isto é, da Contrainteressada.
F. Em 03.11.2021, o júri do procedimento elabora o relatório final, no qual decide, definitivamente, adjudicar a proposta apresentada pela Contrainteressada.
G. Por ofício, com a refª. "...", datado de 03.01.2022, os serviços da Requerida comunicaram à Requerente a decisão tomada:”(…) por deliberação do Conselho de Administração de 30 de dezembro de 2021, de adjudicação da proposta do concorrente «EMP02...» UNIPESSOAL, LDA. para a atribuição de licença de utilização privativa de uma parcela do domínio público hídrico destinada à utilização e exploração do Núcleo de Recreio do rio ..., localizado no Cais ..., no âmbito do procedimento concursal (Ref.a ...21) publicitado através do Edital n.° 788/2021 publicado no Diário da República (2ª Série) de 12 de julho de 2021, com a contrapartida financeira fixa mensal no valor de 750,00€, a contrapartida financeira variável mensal de 3% do volume de negócios mensal e o investimento no montante de 47.500,00€, conforme minuta de alvará de licença que se anexa [...]”, mais a informando de que dispunha do prazo de 10 dias para, nos termos do disposto no artigo 21.°, n.° 8 do DL n.° 226-A/2007, de 31 de maio, para comunicar se sujeitava às condições da proposta da Contrainteressada.
H. Em 13.01.2022, a Requerente pronuncia-se junto da Requerida, indicando pretender sujeitar-se às condições da proposta da Contrainteressada.
I. Depois, por ofício com a refª "...", datado de 31.01.2022, os serviços da Requerida comunicam à Requerente que, no seguimento daquela sua pronúncia, dispunham de 10 dias para, entre o mais: «[...]
- Regularizar a V/ situação relativamente a dívidas à APDL;
- Prestar a caução prevista no ponto 15.1. do Programa e Cadernos de Encargos do procedimento concursal, no valor de 2.250,00€ (dois mil duzentos e cinquenta euros), correspondente a três meses do valor da contrapartida financeira fixa mensal;
- Prestar a caução prevista no ponto 15.2. do Programa e Cadernos de Encargos do procedimento concursal, no valor de 2.375,00€ (dois mil trezentos e setenta e cinco euros), correspondente a 5% do valor do investimento a realizar nos dois primeiros anos da licença conforme V/ proposta;
- Apresentar certidões válidas comprovativas de situação contributiva e tributária regularizada perante a Segurança Social e a Autoridade Tributária, respetivamente [...]».
J. Através de ofício, datado de 25.05.2022 [refª. "..."], a Requerida comunica à Requerente a não aceitação do exercício, por esta, do direito de preferência, declarando atribuir à Contrainteressada, enquanto candidato cuja proposta fora adjudicada, a licença de utilização respetiva.
K. Pelo menos em 08.06.2022, a Requerente toma conhecimento do teor do ofício transato, posto que, nessa data, elabora uma comunicação escrita endereçada à Requerida a pronunciar-se quanto ao teor da decisão nela inserta.
11. Nos termos do artigo 662º do CPC, aplicável ex vi artigos 1º e 140º do CPTA, adita-se a seguinte factualidade:
M. Por ofício n.° ...22, de 28.Nov.2022, a entidade Recorrida notificou a Recorrente da deliberação do seu Conselho de Administração em atribuir à Contrainteressada a licença de utilização privativa do cais em causa, na sequência do não reconhecimento do direito de preferência à Requerente [cfr. documento nº. ...9 junto com o r.i, cujo teor se dá por integralmente reproduzido].
N. Mais notificou, in fine, a Recorrente que “Face ao exposto, dispõem V. Exas. de um prazo de dez dias úteis para se pronunciarem ao abrigo do direito de audiência prévia” [idem].
O. Por carta de 14.Dez.2022, com a ref.a ..., a Recorrente apresentou a sua pronúncia, ao abrigo do direito de audiência prévia, onde pugnou pela alteração da intenção de decisão quanto ao reconhecimento do direito de preferência, alterando-se igualmente a adjudicação projetada [cfr. documento n.° ...0 junto com o r.i., cujo teor se dá por integralmente reproduzido].
P. Por ofício n° ...23, de 26.Jan.2023, a Ré APDL indefere o peticionado, reiterando o conteúdo do seu anterior ofício [n.° 930/2022, de 28/Nov/2022], não reconhecendo o direito de preferência à Autora, por, alegadamente, não ser aplicável o disposto no n.°8 do artigo 21.°do DL n.°226-A/2007 [cfr. documento n.° ... junto com o r.i., cujo teor se dá por integralmente reproduzido].
Q. Em 28.02.2023, a Requerente «EMP01...», Lda. intentou a presente providência cautelar no Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela [cfr. fls. 5 e seguintes dos autos -suporte digital -, cujo teor se dá por integralmente reproduzido].
R. Nela demandou a Administração dos Portos do Douro, Leixões e Viana Do Castelo, S.A. [APDL], [idem].
S. E formulou o seguinte petitório: “(…) NESTES TERMOS E NOS DEMAIS QUE ESTE DOUTO TRIBUNAL SUPERIORMENTE SUPRIRÁ, SE REQUER QUE SEJA PROFERIDO DESPACHO LIMINAR DE ADMISSÃO DA PRESENTE PROVIDÊNCIA E, POSTERIORMENTE, SEJAM CONSIDERADOS PROVADOS E PROCEDENTES OS FUNDAMENTOS INVOCADOS, DECRETANDO-SE A PRESENTE PROVIDÊNCIA E, EM CONSEQUÊNCIA:
- SE SUSPENDA A EFICÁCIA DAS DECISÕES ORA EM CAUSA, NOMEADAMENTE:
i. A ADJUDICAÇÃO NO PROCEDIMENTO CONCURSAL APREÇO E CORRELATIVAMENTE SE SUSPENDA ESTE PROCEDIMENTO CONCURSAL, OBSTANDO-SE À EXECUÇÃO DOS SEUS DEMAIS TRÂMITES E ACTOS CONDUCENTES À DETERMINAÇÃO DEFINITIVA DA UTILIZAÇÃO DO ESPAÇO DOMINIAL EM CAUSA;
BEM COMO
ii. O NÃO RECONHECIMENTO DO DIREITO DE PREFERÊNCIA DA AQUI REQUERENTE, MANTENDO-SE EM VIGOR E VÁLIDO O SEU EFECTIVO E LEGÍTIMO EXERCÍCIO DAQUELE DIREITO, ATÉ DECISÃO FINAL EM SEDE DE ACÇÃO PRINCIPAL,
- SE DETERMINE A ATRIBUIÇÃO PROVISÓRIA DA MANUTENÇÃO DO DIREITO DA REQUERENTE À UTILIZAÇÃO EXCLUSIVA DO CAIS OBJECTO DO PROCEDIMENTO EM CAUSA, NOS MESMOS MOLDES E SOB A CONTRAPARTIDA QUE VEM USANDO, ATÉ SER PROFERIDA DECISÃO FINAL NA ACÇÃO PRINCIPAL.
T. Em 01.03.2023, foi promanada decisão judicial que “(…) rejeito[u] o presente requerimento cautelar, por se revelar manifesta a ausência dos pressupostos processuais da ação principal (…)” [cfr. fls. 208 e seguintes dos autos – suporte digital -, cujo teor se dá por integralmente reproduzido].
U. Sobre esta decisão judicial sobreveio o presente recurso jurisdicional [cfr. fls. 222 e seguintes dos autos principais -suporte digital -, cujo teor se dá por integralmente reproduzido].
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III.2 – DE DIREITO
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11. Cumpre apreciar se o Tribunal a quo, ao rejeitar liminarmente a presente providência cautelar, incorreu em erro de julgamento de direito.
12. Para facilidade de análise, convoquemos, no que ao direito concerne, o que se discorreu na 1ª instância: “(…)
De acordo com o n.° 1 do artigo 116.° do CPTA, atrás indicado, uma vez distribuído, o processo é concluso ao juiz com a maior urgência, para despacho liminar, a proferir no prazo máximo de 48 horas, no qual, sendo o requerimento admitido, é ordenada a citação da entidade requerida e dos contrainteressados.
Promana, depois, do n.° 2 do referido artigo que deve ser rejeitado liminarmente o requerimento cautelar quando, entre o mais, seja manifesta a falta de fundamento da pretensão cautelar formulada [alínea d)], ou quando seja manifesta a ausência dos pressupostos processuais da ação principal [alínea f)].
Tais fundamentos de rejeição do requerimento inicial, ao contrário de outros para os quais o legislador expressamente contempla tal possibilidade [vide os artigos 114.°, n.°s 3 e 5, e 116.°, n.° 2, a) do CPTA], não são suscetíveis de suprimento, através de convite do Tribunal para o efeito.
De facto, o n.° 1 do artigo 112.° do CPTA postula que “[q]uem possua legitimidade para intentar um processo junto dos tribunais administrativos pode solicitar a adoção da providência ou das providências cautelares, antecipatórias ou conservatórias, que se mostrem adequadas a assegurar a utilidade da sentença a proferir nesse processo”.
O processo cautelar tem como desígnio obviar à inutilidade, total ou parcial, da decisão de mérito que venha a ser proferida no processo principal. O legislador do CPTA veio reconhecer que, por vezes, o decurso normal da marcha do processo principal - mais morosa, por implicar uma cognição plena dos pedidos e suas causas de pedir -, sem que os interesses do requerente sejam provisoriamente acautelados, pode resultar na formação de uma situação de facto consumado, ou traduzir-se na produção de prejuízos fácticos de difícil reparação (cf. o artigo 120.°, n.° 1 do CPTA), resultando numa decisão de fundo infrutífera, pela insuscetibilidade de remoção dos danos que, entretanto, se hajam produzido.
É com arrimo nesse corpo de finalidades que se recortam - como refere o Professor J. C. VIEIRA DE ANDRADE - as características típicas dos processos cautelares: “[a] instrumentalidade - isto é, a dependência, na função, e não apenas na estrutura, de uma ação principal, cuja utilidade visa assegurar; a provisoriedade - pois que não está em causa a resolução definitiva de um litígio; e a sumariedade - que se manifesta numa cognição sumária da situação de facto e de direito, própria de um 2 processo provisório e urgente” (cf. do autor, A Justiça Administrativa (Lições), 15.a edição, Almedina, 2016, pp. 313 e 314).
A falta de preenchimento de pressupostos processuais tendentes ao conhecimento do mérito da causa determina a improcedência do processo cautelar, atenta, justamente, a relação de necessária instrumentalidade que se estabelece entre este e aquela.
Conforme se enunciou supra, a Requerente pretende a suspensão da eficácia, a título cautelar, do ato de adjudicação praticado no âmbito de um procedimento de formação de contrato, iniciado com esteio no DL n.° 226-A/2007, de 31 de maio, bem como da decisão que não lhe reconheceu o direito de preferência na continuação da utilização de uma parcela do Domínio Público Hídrico. Peticiona, ainda, a atribuição provisória da manutenção do direito a utilizar exclusivamente o cais objeto do procedimento em causa.
Importa, pois, que o Tribunal se debruce, mais concretamente, sobre a constelação argumentativa da Requerente.
Como bem refere, a Requerida publicitou, através do edital n.° 788/2021, de 12-07-2021, a abertura do procedimento concursal para a atribuição de um título de utilização dos recursos hídricos, tendo por objeto o Cais ..., que a Requerente vinha utilizando e explorando desde o ano de 2017 [documento ...0, junto com o r.i., cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido].
No âmbito desse procedimento concursal, apresentaram proposta ...3 entidades, entre as quais a Requerente e a Contrainteressada, tendo todas elas sido aceites [documentos n.°s ...0, ...1 e ...2, juntos com o r.i.].
Em 20-10-2021, o júri do procedimento concursal elaborou o competente relatório preliminar, onde propunha a adjudicação da proposta à Contrainteressada.
Através de ofício, com a ref.a "...", datado de 13-10-2021, os serviços da Requerida comunicaram à Requerente o teor do relatório preliminar, concedendo-lhe o prazo de 05 dias para, querendo, se pronunciar em sede de audiência prévia [documento ...2, junto com o r.i.].
A Requerente exerceu esse direito em 20-10-2021, apresentando pronúncia escrita por reporte ao aludido relatório preliminar, manifestando pretender fazer uso do direito de preferência de que se arrogou titular, nas exatas condições que foram propostas pelo concorrente mais bem posicionado, isto é, da Contrainteressada [documento ...3, junto com a p.i.].
Em 03-11-2021, o júri do procedimento elabora o relatório final, no qual decide, definitivamente, adjudicar a proposta apresentada pela Contrainteressada [relatório final, inserto no documento ...4, junto com o r.i.].
Por ofício, com a ref.a "...", datado de 03-01-2022, os serviços da Requerida comunicaram à Requerente a decisão tomada por deliberação do Conselho de Administração de 30 de dezembro de 2021, de adjudicação da proposta do concorrente «EMP02...» UNIPESSOAL, LDA. para a atribuição de licença de utilização privativa de uma parcela do domínio público hídrico destinada à utilização e exploração do Núcleo de Recreio do rio ..., localizado no Cais ..., no âmbito do procedimento concursal (Ref.a ...21) publicitado através do Edital n.° 788/2021 publicado no Diário da República (2.a Série) de 12 de julho de 2021, com a contrapartida financeira fixa mensal no valor de 750,00€, a contrapartida financeira variável mensal de 3% do volume de negócios mensal e o investimento no montante de 47.500,00€, conforme minuta de alvará de licença que se anexa [.]”, mais a informando de que dispunha do prazo de 10 dias para, nos termos do disposto no artigo 21.°, n.° 8 do DL n.° 226-A/2007, de 31 de maio, para comunicar se sujeitava às condições da proposta da Contrainteressada [documento ...4, junto com a p.i.].
Pelo menos em 13-01-2022, a Requerente toma conhecimento do teor da decisão de adjudicação supra referida [documento ...5, junto com a p.i.].
Justamente em 13-01-2022, a Requerente pronuncia-se junto da Requerida, indicando pretender sujeitar-se às condições da proposta da Contrainteressada [documento ...5, junto com a p.i.].
Depois, por ofício com a ref.a "...", datado de 31-01-2022, os serviços da Requerida comunicam à Requerente que, no seguimento daquela sua pronúncia, dispunham de 10 dias para, entre o mais:
«[...] - Regularizar a V/ situação relativamente a dívidas à APDL;
- Prestar a caução prevista no ponto 15.1. do Programa e Cadernos de Encargos do procedimento concursal, no valor de 2.250,00€ (dois mil duzentos e cinquenta euros), correspondente a três meses do valor da contrapartida financeira fixa mensal;
- Prestar a caução prevista no ponto 15.2. do Programa e Cadernos de Encargos do procedimento concursal, no valor de 2.375,00€ (dois mil trezentos e setenta e cinco euros), correspondente a 5% do valor do investimento a realizar nos dois primeiros anos da licença conforme V/ proposta;
- Apresentar certidões válidas comprovativas de situação contributiva e tributária regularizada perante a Segurança Social e a Autoridade Tributária, respetivamente [...]» [documento ...5, junto com a p.i.].
Através de ofício, datado de 25-05-2022 [ref.a "..."], a Requerida comunica à Requerente a não aceitação do exercício, por esta, do direito de preferência, declarando atribuir à Contrainteressada, enquanto candidato cuja proposta fora adjudicada, a licença de utilização respetiva [documento ...7, junto com o r.i., cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido].
Pelo menos em 08-06-2022, a Requerente toma conhecimento do teor do ofício transato, posto que, nessa data, elabora uma comunicação escrita endereçada à Requerida a pronunciar- se quanto ao teor da decisão nela inserta [documento ...8, junto com o r.i.].
Aqui volvidos, importa apreciar.
As licenças de utilização e ocupação de recursos hídricos carecem de licença, cuja atribuição está sujeita a concurso [artigo 21.°, n.° 1 do DL n.° 226-A/2007].
De acordo com o que vem alegado, e demonstrado, pela Requerente, no âmbito desse concurso foi proferida, em 03-11-2021, decisão de adjudicação, pela qual foi aceite a proposta da Contrainteressada, decisão de que aquela tomou conhecimento nunca após 13-01-2023.
Aquando da notificação da decisão de adjudicação, foi comunicado à Requerente que dispunha do prazo de 10 dias para, querendo, exercer a prerrogativa consagrada no n.° 8 do artigo 21.° do DL n.° 226-A/2007, nos termos do qual o anterior titular pode manifestar à autoridade competente o interesse na continuação da utilização, no prazo de um ano antes do termo do respectivo título, gozando de direito de preferência, desde que, no prazo de 10 dias após a adjudicação do procedimento concursal previsto no n.0 3 ou no n.0 4 comunique sujeitar-se às condições da proposta selecionada”.
Como dissemos, e na sequência do que vem expressamente alegado pela Requerente, e documentalmente demonstrado nos autos, esta pronuncia-se em 13-01-2023, indicando que pretende sujeitar-se às mesmas condições da proposta da Contrainteressada.
No entanto, em data nunca posterior a 08-06-2022, tomou conhecimento de que a Requerida havia decidido não aceitar / reconhecer o direito de preferência da Requerente, mais declarando atribuir à Contrainteressada, enquanto candidato cuja proposta fora adjudicada, a licença de utilização respetiva [documento ...7, junto com o r.i., cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido].
O requerimento cautelar referente aos presentes autos deu entrada em Tribunal em 28¬02-2023 [requerimento de ref.a ...81...].
Tendo em consideração a natureza do procedimento concursal em apreço, não deve convocar-se, no caso, a aplicação das normas que disciplinam a ação administrativa urgente de contencioso pré-contratual, por não estar preenchido o n.° 1 do artigo 100.° do CPTA [neste sentido, cf. o Acórdão do TCA-Sul, de 15-02-2018, proc. n.° 07751/11, disponível em www.dgsi.pt].
Sem embargo, sempre será de atender ao prazo de impugnação dos atos administrativos que decorre expressamente do artigo 58.° do CPTA.
É que, não obstante a dedução da ação cautelar não estar, de forma expressa, sujeita a prazo, a sua relação de dependência / instrumentalidade com a causa principal conduz a que a caducidade do direito de ação reportada à ação principal surta efeitos no âmbito do processo cautelar (v. o artigo 123.°, n.° 1, a) do CPTA).
Compulsado o teor do requerimento cautelar, verifica-se que a Requerente invoca, é certo, que a decisão é nula por preterição do exercício cabal do direito de audiência prévia, vício esse que, no domínio da situação vertente, a verificar-se, não conduziria a declaração de nulidade do ato, mas à sua anulabilidade, por contraponto dos normativos ínsitos nos artigos 161.° e 163.° do CPA.
Donde, à luz do disposto nos artigos 58.°, n.° 1, b), n.° 2 e 59.°, n.° 2 do CPTA, a Requerente dispunha do prazo de três meses, a contar da sua notificação, para impugnar os atos suspendendos.
Do ato de adjudicação, a Requerente foi notificada nunca após o dia .../.../2022.
Já da decisão de não lhe reconhecer o direito de preferência que pretendia exercer, e de atribuir a licença de utilização à Contrainteressada, foi notificada em data nunca posterior a 08-06-2022.
Os ofícios que a Requerida fez chegar, após essa data, à Requerente, limitaram-se a reiterar esta última decisão [documentos ... e ...9, juntos com o r.i.], nada fazendo alterar a esfera jurídica da interessada, nem do ponto de vista de facto, nem do ponto de vista do Direito.
As comunicações expressas nesses ofícios não configuram, para o efeito do disposto nos artigos 148.° do CPA e 51.° do CPTA, verdadeiros atos administrativos, conquanto não vieram ditar uma resolução ou de determinação do rumo dos acontecimentos, mas antes reiterar a decisão inserta no ofício de 25-05-2022, de que a Requerente tomou conhecimento pelo menos em 08-06-2022.
Pelo que tais ofícios, insertos nos documentos ... e ...9 juntos com o r.i., sempre configurariam atos jurídicos “inimpugnáveis”, porque meramente confirmativos de uma decisão anterior, isto é, da que vem inserida no mencionado ofício de 25-05-2022 - artigos 51.° e 53.°, n.° 1 do CPTA.
A decisão inserida no ofício de 25-05-2022, de que a Requerente tomou conhecimento pelo menos em 08-06-2022, tinha de ter sido impugnada até ao dia 09-09-2022, o que não sucedeu.
A esta luz, resulta manifesto que, quer a decisão de adjudicação, quer a decisão que não reconheceu à Requerente o direito de preferência pretendido, teriam de ter sido impugnadas até ao dia 09-09-2022, e que as “decisões” inseridas nos ofícios insertos com os documentos ... e ...9 do r.i. se revelam inimpugnáveis, por se limitarem a confirmar aquela segunda decisão.
O que conduz à conclusão de que, na ação principal, de que a presente providência cautelar sempre dependeria, não se verificam os pressupostos processuais atinentes, por um lado, ao exercício do direito de ação dentro do prazo de caducidade e, por outro, à impugnabilidade de um dos atos impugnados [artigo 89.°, n.° 1, 2, e 4, alíneas i) e k) do CPTA], levando a que se deva rejeitar o requerimento cautelar vertente, com esteio no disposto no artigo 116.°, n.° 2, f) do CPTA.
A acrescer, deve notar-se, também, que o segundo pedido cautelar formulado, de atribuição provisória do direito da requerente à utilização do Cais ... não tem, verdadeiramente, autonomia em face do pedido de suspensão da eficácia dos atos supra mencionados, conquanto o efeito fático-jurídico adveniente da procedência desse pedido de suspensão da eficácia consumiria a pretensão cautelar que vai expressa naquele segundo pedido.
Pelo que, em conformidade, deverá ser rejeitado o requerimento inicial vertente (…)”.
13. Espraiada a fundamentação vertida na decisão judicial recorrida, e cotejando a motivação aduzida pela Recorrente no recurso jurisdicional, adiante-se, desde já, que o assim decidido não é de manter.
14. Explicitemos pormenorizadamente esta nossa convicção, convocando, desde já, o quadro legal e doutrinal pertinente.
15. Assim, e no que para o que aqui releva, dispõe o artigo 58º do CPTA, sob a epígrafe “Prazos”, que: ”(…)
1 - Salvo disposição legal em contrário, a impugnação de atos nulos não está sujeita a prazo e a de atos anuláveis tem lugar no prazo de:
a) Um ano, se promovida pelo Ministério Público;
b) Três meses, nos restantes casos.
2 - Sem prejuízo do disposto no n.º 4 do artigo 59.º, os prazos estabelecidos no número anterior contam-se nos termos do artigo 279.º do Código Civil, transferindo-se o seu termo, quando os prazos terminarem em férias judiciais ou em dia em que os tribunais estiverem encerrados, para o 1.º dia útil seguinte. (…)”.
16. A este título, conforme afirmam Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, “(…) Uma coisa se afigura indiscutível: tal como sucedia antes do CPTA e continuou a suceder após a sua entrada em vigor, mesmo na versão anterior à revisão de 2015, o prazo de impugnação de atos administrativos é um prazo de propositura de ação e, como tal, é um prazo substantivo. Sobre a natureza do prazo de impugnação, antes da vigência do CPTA, cfr. por todos, os acórdãos do STA (Pleno) de 23 de junho de 1992, processo n.º 27094 e do STA de 22 de março de 1994, processo n.º 33401, in AD n.º 394, p. 1090. Mas também na versão primitiva do CPTA, o prazo de impugnação era um prazo substantivo, que, como tal, embora fosse submetido ao regime dos prazos de propositura de ações (e, portanto, prazos substantivos) previstos no CPC, que resulta dos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 144.º não estava submetido ao regime dos prazos processuais do artigo 145.º do mesmo Código (no mesmo sentido, cfr. MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA/RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Código de Processo nos Tribunais Administrativos Anotado, pág. 381), concluindo, a final, que “está, assim, afastada a possibilidade de aplicação do regime especial de prática de ato num dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo, a que se refere o artigo 139.º, n.º 5, do CPC. Isto porque está em causa um prazo de caducidade regulado pelo Código Civil, que não se suspende nem interrompe senão nos casos em que a lei substantiva o determine (…)” [in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2017 pp. 397-938 e nota de rodapé 482].
17. De resto, é precisamente neste sentido e com a fundamentação aduzida pela doutrina acabada de transcrever, que se tem vindo a direcionar, de forma pacífica e uniforme, a jurisprudência dos tribunais superiores [vide, entre outros, os acórdãos deste TCA-Norte, de 29 de novembro de 2007, proferido no processo n.º 00760/06.5BEPNF, de 09 de dezembro de 2011, proferido no processo n.º 01300/11.0BEPRT, de 23 de junho de 2017, proferido no processo n.º 00284/14.7BEBRG e do TCA-Sul, de 1 de outubro de 2015, proferido no processo n.º 12447/15, todos acessíveis em www.dgsi.pt].
18. Deste modo, não se vislumbrando quaisquer razões que nos levem a divergir do entendimento que supra se descreveu, bem pelo contrário, o princípio da uniformidade na interpretação e aplicação do Direito assim o impõe [artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil], cumpre efetuar a respetiva subsunção ao caso concreto.
19. Pois bem, escrutinado o teor do requerimento inicial, mormente a página 1, logo se constata que, por intermédio da presente providência cautelar, a Requerente visa obter, para além da (i) atribuição provisória da manutenção do direito da requerente à utilização exclusiva do cais objecto do procedimento em causa, a (ii) a suspensão de eficácia das seguintes decisões:
(ii.1) “(…) de adjudicação, no âmbito do procedimento concursal com a referência ...21 “Atribuição de licença de utilização privativa de parcela do domínio público hídrico destinada à utilização e exploração do ..., com capacidade máxima de 32 lugares de acostagem, localizado no Cais ..., ...”, no qual a entidade Requerida APDL decidiu atribuir à aqui contrainteressada o direito de utilização privativa do cais referido supra; e (…)”
(ii.2) “(…) de não reconhecimento do direito de preferência à aqui Requerente, no âmbito do referido procedimento concursal, ambas notificadas à Requerente por ofício n.º ...23, de 26/Jan/2023 da entidade Requerida APDL [ofício que ao adiante se junta sob o documento n.º ...]” [destaque nosso].
20. Mais se verifica que a Requerente, no tocante à aparência de bom direito, substancia as suas pretensões cautelares com base no entendimento de que os atos suspendendos [melhor identificados no supra parágrafo 19) sob os pontos (ii.1) e (ii.2)] enfermam de vício (i) de violação de lei, [erro nos pressupostos de facto e de direito e ofensa dos princípios da justiça, da boa-fé, da igualdade, da proporcionalidade e da razoabilidade], e, bem assim, de (ii) forma [preterição de audiência prévia audiência prévia ou, quando assim não se entenda, falta de fundamentação].
21. Ora, não sendo nenhum dos vícios invocados pela Requerente suscetíveis de ser fulminados com o desvalor máximo da nulidade, encontra-se a ação principal de impugnação de ato administrativo sujeita a um prazo substantivo, de caducidade [artigo 58.º, n.º 2, alínea b), do CPTA].
22. No caso sujeito, conforme grassa à evidência do supra transcrito, a Requerente teve conhecimento dos atos suspendendos “(…) por ofício n.º ...23, de 26/Jan/2023 da entidade Requerida APDL (…)”, presumindo-se, por isso, notificada a 31 de janeiro de 2023.
23. Destarte, dispondo a Requerente, nos termos do disposto no nº. 2 do artº 58º do C.P.T.A do prazo de 3 meses para propor a ação impugnatória que se mostra como a ação própria tendente a alcançar o efeito anulatório dos atos aqui suspendendos, facilmente se conclui que, com referência à data de 28.02.2023, data de propositura da presente providência cautelar, ainda não havia caducado o correspondente direito da Requerente de interpor a acção principal de que depende a presente providência cautelar, por não se mostrar esgotado o prazo de 3 meses para o seu exercício.
24. Assim deriva, naturalmente, que mal andou o Tribunal a quo, que ao decidir como decidir, interpretou mal e violou o disposto o bloco legal aplicável.
25. Realmente, a consideração operada pelo Tribunal a quo de que o “objeto confesso” da requerida suspensão de eficácia é determinado pelo “ato de 03.01.2022, notificado a 13.01.2022” e não pelos “atos expressamente identificados no requerimento inicial”, encerra em si uma modificação objetiva da instância não despoletada pelas partes, e, qua tale, inadmissível no processo em curso.
26. O “objeto confesso” do processo é definido pela Requerente, apenas admitindo alteração nos casos de modificação objetiva da instância preconizados no C.P.T.A.
27. Inexistindo dúvidas quanto ao propósito definitório veiculado no requerimento inicial, não pode o Tribunal a quo apreciar a eventual irregularidade dos pressupostos processuais tendo por referência um “objeto da causa” diverso do expressamente identificado pela Requerente.
28. Deste modo, e ante a evidência da tempestividade da dedução da presente providência cautelar, é de concluir que a decisão judicial recorrida é merecedora da censura atravessada pela Recorrente no particular conspecto em análise.
29. O que impõe que o processo cautelar prossiga, no T.A.F., uma vez que afigura-se a alegação de matéria factual pertinente a propósito da verificação dos legais pressupostos de que depende a presente providência cautelar, cuja demonstração carecerá, eventualmente, da prova arrolada pelas partes, na esteira do que se julga prejudicado o conhecimento substitutivo pretendido pela Recorrente.
30. O presente recurso jurisdicional merece, portanto, provimento, devendo ser revogado a decisão judicial recorrida e determinada a baixa dos autos à 1ª instância, para que aí prossigam os seus ulteriores trâmites processuais se nada mais obstar.
31. Ao que se provirá no dispositivo.
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IV – DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Administrativa deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202º da CRP, em CONCEDER PARCIAL PROVIMENTO ao recurso jurisdicional “ sub judice”, revogar a decisão judicial recorrida e determinar a baixa dos autos à 1ª instância, para que aí prossigam os seus ulteriores trâmites processuais se nada mais obstar.
Custas do recurso por ambas as partes, na proporção do decaimento, que se fixa em 50%.
Registe e Notifique-se.
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Porto, 21 de abril de 2023,

Ricardo de Oliveira e Sousa
Rogério Martins
Luís Migueis Garcia