Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01178/20.2BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:12/17/2021
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Ricardo de Oliveira e Sousa
Descritores:DIREITO DE PREFERÊNCIA; COMPETÊNCIA DA JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA
Sumário:I – Sendo uma das partes uma entidade pública e respeitando a “causa petendi” dos autos ao exercício de um direito de preferência previsto e regulado por normas de direito público, é de manifesta evidência que estamos na presença de um litígio emergente de “relações jurídico administrativas e fiscais”.

II- Qua tale, entende-se que o conhecimento do objeto da ação cai na reserva estabelecida no art. 4º, alínea a) do E.T.A.F., sendo, por isso, competente para julgar a ação a jurisdição administrativa.*
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:FREGUESIA (...)
Recorrido 1:R., E OUTROS
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
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I – RELATÓRIO
FREGUESIA (...), com os sinais dos autos, vem intentar o presente RECURSO JURISDICIONAL da decisão judicial do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga [doravante T.A.F. de Braga], de 23.04.2021, que julgou procedente a exceção de incompetência do TAF de Braga em razão da jurisdição para conhecer dos presentes autos, e, consequentemente, absolveu os Réus R., A. e G. da instância.
Em alegações, a Recorrente formula as conclusões que ora se reproduzem, que delimitam o objeto do recurso:“(…)
. A apelante FREGUESIA (...) invocou factualidade, na causa de pedir em que assenta a sua pretensão, da qual decorre não uma pretensão de natureza jurídico-normativa civil mas de inquestionável direito público.
2ª. Assiste à A., ora apelante, o direito de preferência na transmissão onerosa do prédio em causa, tendo em vista a prossecução de objetivos de política pública de solos para as finalidades melhor descritas nas diversas alíneas do art° 29° da Lei n° 31/2014, de 30 de maio, que estabeleceu as bases gerais da política de solos, ordenamento do território e urbanismo, conforme alegado na petição inicial.
3ª. Foi na qualidade de órgão integrante da administração local do Estado que a apelante se apresentou a Juízo, invocando ser titular desse direito legal de preferência, de natureza pública, na transmissão onerosa entre particulares do prédio urbano que identificou no articulado inicial.
. Existe e foi invocado o interesse público na aquisição e integração do prédio no domínio público da Freguesia A., para através dele se criar uma nova via pública, com a consequente execução do traçado viário, pavimentação, dotação de espaços pedonais adjacentes e das infraestruturas de eletricidade e drenagem de águas pluviais.
5ª. A factualidade integrante da causa de pedir, de natureza e interesse público e a qualidade de pessoa coletiva de Direito público em que a apelante recorreu a Juízo, são requisitos fundamentais para que a si seja reconhecido o direito que pretende ver tutelado, direito esse decorrente de uma norma substantiva de natureza estritamente pública e administrativa e não de natureza civil.
6ª. O facto de a apelante ter procedido ao depósito do preço, nos termos previstos no Código Civil tem a ver apenas com a inexistência de semelhante norma procedimental prevista para o exercício do direito de preferência das entidades públicas previsto na citada Lei n° 31/2014, de 30 de maio.
7ª. A pretensão deduzida enquadra-se claramente na previsão do art° 4°, n° 1, al. a) do ETAF, na medida em que compete aos tribunais da jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a «outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais.», como é o caso dos autos.
8ª. A relação jurídica substantiva em causa nos autos traduz-se no exercício e reconhecimento de um direito legalmente conferido a um ente público, na sua relação com os particula1res, isso mesmo se aferindo do pedido e da causa de pedir invocados.
9ª. A douta sentença recorrida assenta, assim, numa incorreta apreciação da relação jurídica invocada, da qualidade em que intervém a apelante nesta ação e do direito e interesses de natureza exclusivamente pública que visa ver tutelados, que redundam na incorreta interpretação da previsão das normas do art° 29° da citada Lei n° 31/2014 e do art° 4°, n° 1, al. a) do ETAF, impondo-se a sua revogação (…)”.
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Notificados que foram para o efeito, os Recorridos R., A. e G. produziram contra-alegações, que remataram com o seguinte quadro conclusivo: “(…)

A)
A competência dos tribunais da jurisdição administrativa fixa-se no momento da propositura da causa, não relevando para o efeito as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente;
B)
Pelos motivos expostos nos artigos 1.° a 18.° supra, que aqui se dão por reproduzidos, a douta sentença recorrida faz uma correta apreciação da relação jurídica invocada, assim como alcança perfeitamente a qualidade em que a autora, ora apelante, intervém na presente ação, assumindo, e bem, que a relação jurídica em causa se funda em matérias estritamente civilísticas;
C)
Assim, o Tribunal “a quo” não merece reparo quando se declara incompetente, em razão da jurisdição, para conhecer do mérito da presente ação (…)”
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O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso, fixando os seus efeitos e o modo de subida.
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O/A Digno[a] Magistrado[a] do Ministério Público junto deste Tribunal Superior silenciou quanto ao propósito a que se alude no nº. 1 do artigo 146º do C.P.T.A.
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Com dispensa de vistos prévios, cumpre, pois, apreciar e decidir, já que nada a tal obsta.
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II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A DECIDIR
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, de acordo com o disposto nos artigos 144.º n.º 2 e 146.º n.º 4 do C.P.T.A. e dos artigos 5.º, 608.º n.º 2, 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º do novo CPC ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA.
Neste pressuposto, a questão essencial a dirimir resume-se a saber se a decisão judicial recorrida, ao julgar nos termos e com o alcance explicitados no ponto I) do presente Acórdão, incorreu em erro de julgamento de direito.
Assim sendo, esta será a questão a apreciar e decidir.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
III.1 – DE FACTO
O quadro fáctico apurado na decisão judicial recorrida foi o seguinte:
“(…)
§ Em 20 de agosto de 2020, a FREGUESIA (...), ora Autora, deu entrada, neste Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, da presente ação, constando da respectiva petição inicial, além do mais, o seguinte:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

…” [cf. petição inicial constante de págs. 5-8 e cujo teor integral, aqui, se dá por reproduzido; cf. comprovativo de entrega da petição inicial constante de págs. 1-4 e cujo teor integral, aqui, se dá por reproduzido].
***
Inexistem outros factos provados ou não provados com relevância para a decisão a proferir quanto à questão decidenda, sendo que a restante matéria foi desconsiderada por não ser relevante, por respeitar a conceitos de direito, por consistir em alegações de facto ou de direito, por encerrar opiniões ou conter juízos conclusivos.
***
Motivação. A factualidade julgada provada nos presentes autos foi considerada relevante para a decisão da questão que supra se elegeu, fundando-se a convicção deste Tribunal na análise crítica do teor dos documentos que constam dos autos, em articulação com a informação extraída do SITAF - tudo conforme a propósito do ponto único da fundamentação de facto (…)”.
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III.2 - DO DIREITO
Cumpre apreciar se o Tribunal a quo, ao julgar procedente a exceção de incompetência do T.A.F. em razão da jurisdição para conhecer dos presentes autos, e, consequentemente, ao absolver os Réus da instância, incorreu em erro de julgamento de direito.
Para facilidade de análise, convoquemos, no que ao direito concerne, o que se discorreu na 1ª instância:“(…)
Como supra se referiu, importa apurar se é este o Tribunal competente, em razão da jurisdição, para conhecer da presente ação.
Desde logo, compulsada a factualidade supra reproduzida em §), constata-se que a Autora formula, como pedido principal, o reconhecimento de que é titular de um direito de preferência. Aliás, é a própria Autora, quem, alega que procedeu ao depósito do respectivo preço, em cumprimento do disposto no art. 1410.° (Ação de preferência), n.° 1, do Código Civil (CC), através de depósito autónomo. Ora, preceitua tal dispositivo legal que “...o comproprietário a quem se não dê conhecimento da venda ou da dação em cumprimento tem o direito de haver para si a quota alienada, contanto que o requeira dentro do prazo de seis meses, a contar da data em que teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação, e deposite o preço devido nos 15 dias seguintes à propositura da ação...
Ora, sobre casos análogos ao dos autos, já se pronunciou o COLENDO TRIBUNAL DOS CONFLITOS, em diversos arestos, sendo o mais recente datado de 27 de setembro de 2018 (Acórdão n.° 19/18) - o qual, com a devida vénia, se transcreve, na parte que importa, a saber:
"O MUNICÍPIO DE OEIRAS moveu ação de preferência contra o SERVIÇO DE FINANÇAS DO MONTIJO e A…., B….. e C… e ainda A.. .UNIPESSOAL, LDA pedindo a condenação dos RR a ver: «A) Reconhecido o arrendamento do Autor às frações "A" e "B" do imóvel sito na Rua………. n° 55 e Rua ………, n°s 30 e 30-A, em Oeiras, e, consequentemente o direito de preferência nas vendas efetuadas; B) Substituído o Autor aos Réus B, contribuinte fiscal n° ……….. e …………..C na venda por execução fiscal da fração "A" do imóvel sito na Rua ……n°55 e Rua ……..n.°s …..30 e 30-A, em Oeiras, em virtude do exercício legal de preferência que lhe assiste; C) Substituído o Autor à Ré A… , Unipessoal, Lda. na venda por execução fiscal da fração “B” do imóvel sito na Rua ……. n° 55 e Rua ……. n.°s 30 e 30-A, em Oeiras, em virtude do exercício legal de preferência que lhe assiste; D) Ordenado o cancelamento das inscrições prediais de aquisição a favor dos Réus, procedendo-se a esse registo em nome do Autor.»
Fundamentou tais pedidos, invocando que desde 19.10.1979, tem vindo a ocupar o identificado imóvel, em resultado do contrato de arrendamento que havia celebrado nessa data, então referido como prédio urbano sito na Rua ….. em …… Queluz de Baixo (atualmente Rua ………. n° 55 e Rua …… n.°s 30 e 30-A), com a Sociedade Construções D …… , Lda. E que, na data da propositura da ação, o mesmo imóvel se encontrava "ocupado pelo …… entidade dependente do …….. , tendo sido gratuita e temporariamente cedido pelo aqui Autor", sendo o mesmo A. a custear sempre a respetiva renda. Perante o conhecimento de que o último proprietário, empresa executada no âmbito de processos de execução fiscal, e após diligências infrutíferas, passou o Município a pagar a renda mediante depósito liberatório, junto da Caixa Geral de Depósitos ao abrigo dos art.ºs 17° e segs. L. 6/2006, de 27 de fevereiro.
Ora, no âmbito dos processos de execução fiscal n° 2194200501038540 e aps. e na 2194201201010247, a fração "A" foi adjudicada à 2a R e a fração "B" adjudicada à 3a R, sem conhecimento ou notificação do Município para exercer o seu direito de preferência nos termos dos art.ºs 1091°, n° 1, ai. a) CC e art.ºs 249° n° 7 CPPT.
Pelo que, em 28.12.2012, apresentou junto do 1° R. - Serviço de Finanças do Montijo requerimento em que peticionou a anulação do despacho que determina a entrega do imóvel, bem como à anulação da adjudicação de 23.06.2012, requerendo ainda a sua notificação, enquanto arrendatário do imóvel e titular do direito de preferência, para poder exercer esse direito na venda judicial, não tendo obtido qualquer resposta.
Conclui que, face à entrega do imóvel deduziu os respetivos embargos de terceiro contra o Serviço de Finanças, no Proc. n° 155/13.4BEALM que corre termos na 2a Secção do TAF de Almada. [...]
Centremo-nos, então, na questão de saber qual a jurisdição competente para conhecer da matéria trazida a este Tribunal.
Nos termos do artigo 211.°, n.° 1, da CRP os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.
No mesmo sentido o artigo 64.° do Novo Código de Processo Civil dispõe que são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Dispõe o art. 1° do ETAF na redação anterior à dada pelo DL n.° 214-G/2015, de 02 de outubro que " 1- Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais. 2 - Nos feitos submetidos a julgamento, os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal não podem aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consagrados.”
Veio, assim, reafirmar-se a cláusula geral estabelecida no artigo 212° n.° 3 da Constituição, que define a competência material dos Tribunais Administrativos, como dizendo respeito aos litígios emergentes das relações jurídico-administrativas.
A delimitação do poder jurisdicional atribuído aos tribunais administrativos faz-se, pois, segundo um critério material, ligado à natureza da questão a dirimir, tal como resulta deste preceito, nos termos do qual "compete aos tribunais administrativos... o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios das relações jurídicas administrativas. "
E, nos termos do art. 4° do ETAF, aprovado pela Lei n° 13/2003 de 19 de fevereiro, e aqui aplicável, veio o legislador indicar exemplificativamente os litígios que se encontram incluídos no âmbito da jurisdição administrativa, assim como aqueles que dela se encontram excluídos. (neste sentido ver Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira in Código de Processo nos Tribunais Administrativos Volume I, Anotação XXIX, Almedina, pág. 59).
A questão será, pois, saber se está em causa uma situação integrável neste preceito e se serão competentes os tribunais administrativos ou se, antes, competirá à jurisdição comum tal conhecimento.
A competência dos tribunais determina-se, assim pelo pedido do A., não dependendo o seu conhecimento nem da legitimidade das partes nem da procedência da ação (ver Ac. S.T.A. de 12/6/90, AJ. n° 10/11; Ac. S.T.A. de 9/10/90, AJ. n° 12, pág.26; Ac. S.T.J. de 3/2/87, B.M.J. n° 364/591) Diz M. de Andrade, (N.E. de Processo Civil, 1956, pag.92) que, a competência em razão da matéria atribuída aos tribunais, baseia-se na matéria da causa, no seu objeto, "encarado sob um ponto de vista qualitativo -o da natureza da relação substancial pleiteada."
Constitui jurisprudência pacífica que: "a competência material do tribunal afere-se pelos termos em que a ação é proposta e pela forma como se estrutura o pedido e os respetivos fundamentos. Daí que para se determinar a competência material do tribunal haja apenas que atender aos factos articulados pelo autor na petição inicial e à pretensão jurídica por ele apresentada, ou seja à causa de pedir invocada e aos pedidos formulados" (vide Ac. do STJ, de 14.05.2009). É, pois, a partir da análise da forma como a causa se mostra estruturada na petição inicial que teremos de encontrar as bases para responder à questão de saber qual é a jurisdição competente para o conhecimento da presente ação. Há, pois, que averiguar que tipo de relação está em causa atendendo que na determinação da competência em razão da matéria há que atender ao pedido e à causa de pedir formulados pelo autor.
Na petição inicial o pedido formulado pelo Autor é o do reconhecimento a seu favor do arrendamento das frações "A" e "B" do imóvel sito na Rua ….., n° 55 e Rua ……, n°s 30 e 30-A, em Oeiras, e, como consequência desse direito, o reconhecimento do direito de preferência nas vendas efetuadas no âmbito da execução fiscal a decorrer no âmbito dos processos de execução fiscal n° 2194200501038540 e aps. e n° 2194201201010247.
Assim, o que resulta dos termos da alegação é que o pedido principal é o reconhecimento do direito de preferência nas vendas efetuadas em execução fiscal, face a existência de um contrato de arrendamento. [...]
Apesar da existência de um contrato de arrendamento ser um pressuposto do alegado direito de preferência, não há dúvida que o pedido principal é o reconhecimento de um direito de preferência sendo a existência de um arrendamento o pressuposto da existência desse direito.
Cabe, pois aos tribunais comuns a competência material para conhecer de ação de preferência subsequente à venda judicial de imóvel no âmbito de processo de execução fiscal. ..” [cf. douto Acórdão n.° 19/18 disponível para consulta online em www.dgsi.pt].
Em suma, aderindo-se, na íntegra, a tal douto Aresto que, aqui, sufragamos; certo é que, tendo a Autora configurado a ação como dizendo respeito a uma ação de reconhecimento de direito de preferência, não se mostram preenchidas nenhumas das alíneas do n.° 1, do art. 4.° do ETAF (mormente, a invocada alínea a)).
Ante o exposto, este Tribunal afigura-se incompetente, em razão da jurisdição, para conhecer dos presentes autos, cuja relação jurídica não detém o menor cariz jus-administrativo.
A propósito da Relação Jurídica Administrativa, convém lembrar o entendimento de LUÍS S. CABRAL DE MONCADA [A Relação Jurídica Administrativa - Para um Novo Paradigma de Compreensão da Atividade, da Organização e do Contencioso Administrativos, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 11-35], que mantém a sua atualidade e segundo o qual, “...a noção de relação jurídica exprime o contacto juridicamente disciplinado entre dois ou mais sujeitos de direito. Assim considerada, a relação jurídica é uma categoria geral de direito, tudo menos nova. (...) A relação jurídica subentende a presença de direitos e deveres recíprocos das partes envolvidas em recíproca polaridade. A disciplina jurídica das situações será assim uma consequência dessa mesma polaridade de direitos e deveres recíprocos. O que nela é essencial é a consideração da presença de uma posição jurídica fundamental, suficientemente caracterizada, nas relações entre o cidadão e a Administração e nas relações recíprocas entre entidades administrativas independentes, entenda-se por ela o direito subjetivo fundamental ou uma posição jurídica afim. Também nas relações internas ou intra-administrativas, sejam estas entre os órgãos de uma pessoa coletiva pública ou entre aqueles e os respetivos titulares, a relação jurídica administrativa está presente na medida em que os titulares dos órgãos e agentes administrativos possam reciprocamente invocar nas relações recíprocas posições jurídicas decorrentes dessa sua qualidade. Na perspetiva «relacional» a organização administrativa não é uniforme, sendo integrada por entidades diferenciadas portadoras de diferentes interesses em confronto nas recíprocas relações. É indispensável alargar a relação jurídica administrativa ao âmbito interno da própria Administração se tivermos em conta a complexidade e heterogeneidade da atual organização administrativa. Isto significa que mesmo no plano interno da vida administrativa não são hoje excecionais as relações jurídicas administrativas. A construção doutrinal do direito administrativo rodeia a atuação da Administração dos direitos subjetivos dos cidadãos materialmente consolidados e jurisdicionalmente exercitáveis. O modelo do recíproco contacto subentende um vínculo entre dois centros de imputação dos interesses em jogo e a disciplina administrativa tem por pano de fundo a respectiva cooperação. Aplica-se ao direito público o modelo savignyniano da relação jurídica. (...) A relação jurídica administrativa é, todavia, muito mais do que isso, como se disse. Ao relacionar-se com os cidadãos a Administração deve ter em conta a bilateralidade do contacto em que está envolvida por força da própria Constituição mas também por força da disciplina da lei ordinária. A relação assim estabelecida só pode ser jurídica como é próprio do contacto mútuo entre titulares de direitos enquadrado por uma disciplina normativa precisa. (...) A relação jurídica administrativa assenta numa compreensão das relações entre a Administração e os cidadãos que passa pela valorização da presença destes como interlocutores e destinatários da atividade da Administração. O paradigma do direito administrativo é agora preferencialmente pensado na perspetiva «subjetivista» do cidadão e não na perspectiva «objetivista» da vontade da Administração, embora se saiba que a consideração objetiva da vontade desta é também indispensável para a diagnose da relação. A relação jurídica administrativa pressupõe uma Administração voltada para o cidadão, chamado a com ela colaborar e para ele desperta...”.
Com efeito, a relação jurídica em causa funda-se em matérias estritamente civilísticas e não em matérias cujo conhecimento compete aos Tribunais Administrativos, encontrando-se tal matéria excluída da jurisdição administrativa. Pelo que, nos termos e pelos fundamentos expostos, terá de se considerar a matéria dos autos excluída do conhecimento da jurisdição administrativa e, ao invés, incluída no âmbito da jurisdição comum [cf. art. 4.°, n.° 1, a contrario sensu, do ETAF].
Não se olvidando que a competência dos tribunais da jurisdição administrativa fixa-se no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente [cf. art. 5.°, n.° 1, do ETAF].
Procedendo a exceção dilatória respeitante à incompetência deste Tribunal, em razão da jurisdição, os Réus, necessariamente, terão de ser absolvidos da instância [cf. arts. 13.°, 14.°, n.°s 2 e 3, 89.°, n.° 1, ab initio, n.° 2, e n.° 4, alínea a), do CPTA, em articulação com o arts. 4.° e 44.°-A do ETAF; cf. arts. 278.°, n.° 1, alínea a), 577.°, alínea a), 578.°, ab initio, e 576.°, n.° 2, in fine, todos do CPC, ex vi do art. 1.°, in fine, do CPTA]. Mais, a Autora deve ser responsável pelas custas do incidente a que deu causa [cf. art. 527.°, n.°s 1 e 2, do Código de Processo Civil (CPC) ex vi do art. 13.°, n.° 1 do Regulamento das Custas Processuais (RCP) - aprovado pela Lei n.° 34/2008, de 26 de fevereiro, na redação que lhe foi dada pela Lei n.° 7/2021, de 26 de fevereiro]; sendo de fixar a tal incidente a taxa de justiça no mínimo legal, ou seja, em 0,5 UC (o equivalente a € 51,00) [cf. arts. 1.°, 2.°, 5.°, e 7.°, n.° 4, e, ainda, Tabela II-A, todos do RCP, aprovado pela Lei n.° 34/2008, de 26 de fevereiro, na redação que lhe foi dada pela Lei n.° 7/2021, de 26 de fevereiro -, aplicável, mutatis mutandis, ex vi do art. 189.° do CPTA]. (…)”.
As razões que motivaram a declaração de incompetência do T.A.F. de Braga em razão de jurisdição prendem-se, portanto, com a assunção - na senda da jurisprudência expendida no Acórdão do Tribunal de Conflitos, datado de 27 de setembro de 2018, tirado no processo n.° 19/18 - de que a relação jurídica em causa funda-se em matérias estritamente civilísticas e não em matérias cujo conhecimento compete aos Tribunais Administrativos, encontrando-se tal matéria excluída da jurisdição administrativa.
A Recorrente insurge-se contra o assim decidido, por manter a firme convicção, no mais essencial, de que a relação jurídica substantiva em causa nos autos traduz-se no exercício e reconhecimento de um direito legalmente conferido a um ente público, na sua relação com os particulares, isso mesmo se aferindo do pedido e da causa de pedir invocados, enquadrando-se claramente a pretensão deduzida no artigo 4º, nº.1, alínea a) do ETAF.
E, efectivamente, insurge-se bem, tanto mais que a presente situação apresenta contornos plenamente divergentes dos considerados no aresto invocado na decisão judicial recorrida.
Na verdade, o pedido formulado na presente ação é, como sabemos, o de reconhecimento do direito de preferência que assiste à Autora, aqui Recorrente, na compra e venda do prédio rústico identificado no artº 1º deste articulado, para a finalidade pública enunciada, devendo declarar-se transmitido o direito de propriedade sobre o indicado prédio a favor da Freguesia aqui A., passando o mesmo a integrar o seu domínio público, mais ordenando-se o cancelamento do registo predial fundado no título de compra e venda de 3 de setembro de 2019.
Ora, examinando os termos em que a Autora, aqui Recorrente, demanda o Réu, aqui Recorrido, verifica-se que o fundamento da presente ação deriva, essencialmente, da prevalência do disposto no artigo 29º da Lei nº. 31/2014, de 30 de maio, que reza sobre o direito de preferência do Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais, nas transmissões onerosas de prédios entre particulares.
Realmente, preceitua a normação supra elencada que: “O Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais têm o direito de exercer, nos termos legalmente previstos, o direito de preferência nas transmissões onerosas de prédios entre particulares, tendo em vista a prossecução de objetivos de política pública de solos para as finalidades seguintes: a) Execução dos programas e planos territoriais; b) Reabilitação e regeneração de áreas territoriais rústicas e urbanas; c) Reestruturação de prédios rústicos e urbanos; d) Preservação e valorização do património natural, cultural e paisagístico. e) Prevenção e redução de riscos coletivos (…)”.
A concessão deste direito legal de preferência traduz-se, pois, na permissão normativa de atribuição de posições jurídicas de vantagem em favor do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais desde que fundada em interesses públicos específicos.
E é uma lei de direito público que lhe confere essa qualidade, o que significa que o exercício deste concreto direito de preferência [por oposição a outros] tem a ver com a necessidade de respeito das disposições de direito público, e não de direito civil, sendo que a circunstância da Autora se ter socorrido do depósito do respectivo preço em cumprimento do disposto no artº 1410º, nº 1 do Cód. Civil não confere qualquer autonomia dogmática susceptível de converter uma pretensão pública numa de carácter privado.
Naturalmente, pode objetar-se que, no caso concreto, não há fundamento para aplicação do critério normativo invocado.
Mas também sem sucesso.
Na verdade, tal qual como conformada a presente ação, o exercício do direito de preferência por parte da Autora no âmbito da compra e venda que teve lugar em 03.09.2019 do prédio rústico composto pela gleba do Monte de (...), com mato e pinheiros, sito no Lugar de (...), da FREGUESIA (...), concelho de (...), funda-se no propósito de construção de uma nova via pública, com a consequente execução do traçado viário, pavimentação, dotação de espaços pedonais adjacentes e das infraestruturas de eletricidade e drenagem de águas pluviais, o que, claramente, integra a prossecução de objetivos de política pública de solos prevista no artigo 29º da Lei nº. 31/2014, de 30 de maio.
O que serve para concluir que o exercício do direito de preferência visado nos autos apresenta-se com o referido fundamento legal, notoriamente de cariz público.
Deste modo, incidindo a presente ação sobre relação jurídica em que uma das partes é um órgão público e sendo a relação jurídica controvertida efectivamente regulada por normas de direito público, é de manifesta evidência que estamos na presença de um litígio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais.
Realmente, como doutrinam J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, as relações jurídico-administrativas integram “(…) duas dimensões caracterizadoras: (1) as ações e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal (…)” [cfr. Constituição da República Portuguesa, Volume II, Coimbra Editora, 2010, p.p. 566 e 567.]
Como tal, entende-se que o conhecimento do objeto da ação cai na reserva estabelecida no art. 4º, alínea a) do E.T.A.F., sendo, por isso, competente, em razão da matéria, para julgar a ação a jurisdição administrativa.
Concludentemente, procede o erro de julgamento de direito imputado à sentença recorrida no domínio em análise.
Mercê de tudo o quanto ficou exposto, deverá ser concedido provimento ao presente recurso jurisdicional, julgando-se como competente para o litígio em causa Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, e ordenando-se a baixa dos autos para o prosseguimento dos mesmos, caso a tal nada mais obste.
Ao que se provirá em sede de dispositivo.
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IV – DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Administrativa deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202º da CRP, em CONCEDER PROVIMENTO ao recurso jurisdicional “ sub judice”, revogar a decisão judicial recorrida e determinar a baixa dos autos à 1ª instância, para que para que aí prossigam os autos, se nada mais a tal obstar.
Sem custas.
Registe e Notifique-se.
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Porto, 17 de dezembro de 2021,

Ricardo de Oliveira e Sousa
João Beato
Luís Migueis Garcia