Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00554/05.5BEBRG
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:11/30/2011
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Álvaro Dantas
Descritores:IRS
AJUDAS DE CUSTO
ÓNUS DA PROVA
Sumário:1. A característica essencial das ajudas de custo é o seu carácter compensatório, visando reembolsar o trabalhador pelas despesas que foi obrigado a suportar em favor da sua entidade patronal, por motivo de deslocações ou novas instalações ao serviço desta, e a inexistência de qualquer correspectividade entre a sua percepção e a prestação de trabalho.
2. Porque a lei exclui do conceito de rendimentos da categoria A para efeitos de IRS as ajudas de custo que não excedam os limites legais, tal como definidos para os servidores do Estado (cf. art. 2.º, n.º 3, alínea d), do CIRS), a tributação em sede de IRS dos montantes auferidos a título de ajudas de custo e que se compreendam dentro desses limites só pode ser sustentada se a administração tributária demonstrar a falta de verificação dos pressupostos para a atribuição desses montantes a esse título, o que lhe permitirá alterar a declaração de rendimentos ou, na falta desta, fixar o rendimento tributável, incluindo aqueles montantes.
3. Se no procedimento a administração tributária não logrou obter elementos factuais que demonstrem ou indiciem seriamente que as quantias abonadas pela entidade patronal ao trabalhador não se destinam a compensá-lo por despesas que suportou em virtude de comprovadas deslocações em serviço, não pode considerar que essas quantias constituem rendimento para efeitos de tributação em IRS e deve abster-se de corrigir o rendimento tributável declarado e proceder à consequente liquidação adicional.*
* Sumário elaborado pelo Relator
Recorrente:Fazenda Pública
Recorrido 1:J...
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:
1. Relatório
A Fazenda Pública (Recorrente), dizendo-se inconformada com a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga que julgou procedente a impugnação judicial da liquidação de Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) relativa ao ano de 2000 que foi deduzida por J… (Recorrido), melhor identificado nos autos, dela veio interpor o presente recurso.
A culminar as respectivas alegações, a Recorrente formulou as seguintes conclusões:
1. Não foi demonstrado pelo impugnante qual o seu local habitual de trabalho ou qual a localidade relevante como domicílio necessário a que se refere as als. a), b) e e) do art°.2°. do DL 106/98, de 24.11, também aplicável, in casu, por força do artigos 2°. n°.3, al. e), na red. da Lei 3-B/2000, 4/04 que estipula que apenas estão fora do campo de incidência de IRS as ajudas de custo e transportes que não respeitam os limites e os pressupostos da sua atribuição para a função pública.
2. Não foi exibido à Administração Fiscal (Inspecção) o contrato de trabalho outorgado entre o trabalhador (impugnante) e a entidade patronal, a firma “M…, Lda.”
3. O impugnante não demonstrou que teve que suportar, como trabalhador, um acréscimo de despesas, de carácter compensatório, efectuadas ao serviço e em favor da entidade patronal, por motivo de uma deslocação ou deslocações do seu local habitual de trabalho ou do seu domicílio necessário, entendido este, para efeitos de ajudas de custo, nos termos do cit. Artigo 2° do DL 106/98, de 24.11.
4. A factualidade indiciária, suficiente, forte e objectiva, vertida no relatório da Inspecção Tributária, e, por isso, relevante, - mas só em parte levada ao probatório, - como motivo e justificação da correcção de rendimentos declarados do contribuinte (impugnante) em 2000, nos termos do artigo 66° do CIRS, se valorada na sua integralidade, conjugada com a ausência de contraprova e de um cabal esclarecimento dessa factualidade por banda do impugnante, é de molde a permitir concluir que a douta sentença padece de erro de julgamento, ao entender que a Administração Tributária considerou indevidamente as verbas abonadas a título de ajudas de custo, como rendimentos de trabalho dependente, sujeito a tributação em sede de IRS, por via da aplicação inadequada do artigo 75º da LGT.
5. A exibição à Inspecção tributária dos ditos boletins itinerários, porque afectados no seu valor informativo e credibilidade, como foi referido no respectivo relatório, não serve, só por si e sem mais, à demonstração do direito a ajudas de custo por parte do impugnante, designadamente de um dos seus pressupostos: - a deslocação de trabalhadores ao serviço ou em benefícios da entidade patronal, do seu local de trabalho habitual (domicílio necessário) para outro local.
6. A factualidade, vertida no relatório da Inspecção Tributária que justificou e motivou a alteração do rendimento declarado pelo S.P. e a consequente liquidação de I.R.S, permitiu ao destinatário a opção de recorrer a juízo, demonstrando o conhecimento dos fundamentos de facto e de direito desses actos, impondo-lhe o ónus de esclarecimento e de prova de que os factos-fundamentos de correcção ao rendimento declarado não se mostram justificados, de facto e de direito.
7. Ao decidir, como decidiu, terá o Mm°. Juiz cometido erro de julgamento, na medida em que não valorou adequadamente e suficientemente os meios de prova disponibilizados, tendo em conta a ausência de contra-prova e de esclarecimentos devidos pelo impugnante, fazendo do artigo 15°, n°s 1 e 2, alíneas a) e b) uma inadequada interpretação.
Não houve contra-alegações.
Colhidos os vistos legais cumpre agora decidir já que a tal nada obsta.
A questão que importa apreciar, suscitada e delimitada pelas alegações de recurso e respectivas conclusões [artigos 660º, nº 2, 664º, 684º, nºs 3 e 4 e 690º, nº 1 todos do Código de Processo Civil (CPC) na redacção aqui aplicável ex vi artigo 2º, alínea e) do CPPT] é a de saber se a sentença recorrida enferma de erro de julgamento na medida em que nela se considerou que a liquidação de IRS impugnada padece de ilegalidade decorrente da insuficiência dos fundamentos invocados pela administração tributária para se qualificarem como rendimentos de trabalho as quantias abonadas ao Recorrido a título de ajudas de custo.
2. Fundamentação
2.1. De facto
2.1.1. Matéria de facto dada como provada na 1ª instância
É a seguinte a matéria de facto dada como provada na 1ª instância e que aqui se reproduz ipsis verbis:
1. O impugnante exerceu, no ano de 2000, a sua profissão como operário na empresa “M…, Lda.” com sede na Rua …, na cidade de Viana do Castelo.
2. A entidade patronal do impugnante exercia a actividade de prestação de serviços de reparação e construção metalomecânica, fora das suas instalações, sedeadas em Viana do Castelo, mais propriamente, nas instalações dos seus clientes, cobrindo todo o território de Portugal Continental.
3. Por tal razão, na negociação do seu contrato de trabalho ficou assente que, para além do vencimento, o impugnante receberia ajudas de custo e transportes sempre que o exercício das suas funções implicasse a deslocação para fora da cidade de Viana do Castelo.
4. Na sequência de uma inspecção realizada à firma “M…, Lda. “, NIPC 5…, a Administração Fiscal apurou que, no ano de 2002, o impugnante trabalhou por conta da dita firma, tendo recebido como rendimentos do trabalho dependente, categoria A do IRS, a quantia de 7.481,97 € e a título de ajudas de custo e deslocações a quantia de 19.566,59€
5. Em Dezembro de 2004, o impugnante foi objecto de uma fiscalização interna, por parte da Direcção de Finanças de Viana do Castelo, cujo relatório, sancionado em 20 de Dezembro daquele ano, constitui acto preparatório da liquidação impugnada.
6. Considerando que as quantias recebidas a título de ajudas de custo e deslocações não tinham essa natureza, a AF procedeu à alteração dos rendimentos declarados pelo impugnante, acrescendo ao montante dos rendimentos declarados a quantia de 19.566,59€.
7. A liquidação impugnada resultou apenas do acréscimo de tal quantia aos rendimentos declarados pelo impugnante, sendo efectuada com base no rendimento total de 27.048,56 €.
8. Em 29 de Dezembro de 2004 o impugnante foi notificado pessoalmente para pagar o IRS e juros compensatórios, ora impugnados.
9. Em 31 de Janeiro de 2005, o impugnante pagou o IRS e juros compensatórios, ora impugnados, para obviar aos inconvenientes da execução fiscal.
2.1.2. Alteração oficiosa da decisão sobre a matéria de facto
Entendemos que se impõe o aditamento ao probatório de um ponto, que será o 5-A, de modo a que nele fiquem consignados os termos do Relatório de Inspecção Tributária na parte relevante para a apreciação da causa, ao abrigo dos poderes que nos são concedidos pelo art. 712.º, n.º 1, alínea a), do CPC, nos termos seguintes:
5-A. No relatório referido na alínea anterior ficou dito, para além do mais, o seguinte:
«[…]

III – Descrição dos factos e fundamentos das correcções meramente aritméticas à matéria colectável

a) No âmbito das funções adstritas à Direcção de Finanças de Viana do Castelo, foi efectuada uma acção de inspecção à empresa “Montinorte – Construções e Reparações em Metalomecânica, Ldª”, […] tendo-se em consequência, detectado implicações na situação declarativa relativa ao ano de 2000.

b) […] Analisados os boletins itinerários, verificou-se que os mesmos não cumprem com os requisitos enunciados no D.L. nº 106/98 de 24 de Abril, diploma que regula o abono de ajudas de custo e transporte ao pessoal da Administração Pública, ao qual, também o sector privado está obrigado.

c) Os referidos boletins itinerários carecem de informação, invalidando assim a possibilidade de aferir da correcta atribuição das ajudas de custo, a saber:

Não são assinados pelos trabalhadores;
Não há indicação do dia e hora em que se inicia a deslocação, bem como do dia e hora de regresso;
Ao valor da ajuda de custo não foi subtraído o subsídio de alimentação;
Atribuição frequente de ajudas de custo, em que a deslocação se inicia no domicílio fiscal do trabalhador;
Existe uma referência à entidade a quem se prestou serviços, mas não identifica o tipo de serviço, obra, fase da obra, n.º de obra ou qualquer outro elemento facilmente identificável com o serviço prestado;
O número de Km percorridos é frequentemente expresso com uma, duas ou três casas decimais;
Existem boletins em que as ajudas de custo são atribuídas durante 30 dias consecutivos, não se verificando no recibo de vencimento um pagamento de salário correspondente;
Incoerência na atribuição do montante das ajudas de custo, com igual deslocação.

d) Apesar de o gerente confirmar que, para cada serviço contratado, por norma, existe uma nota de encomenda, o mesmo não facultou tais documentos, por desconhecer a sua localização.
Embora em algumas facturas se faça referência a um anexo, contendo um resumo de horas efectuadas no respectivo serviço, o mesmo não se encontra apenso às mesmas, nem nos foi facultado.

e) Face ao exposto, conclui-se que:

O sujeito passivo (empresa M…) desenvolve uma actividade que não permite estabelecer com os trabalhadores um local certo para o exercício das suas funções, pelo que facilmente se entende que os mesmos são contratados com conhecimento disso mesmo, movimentando-se para diferentes áreas do país consoante as necessidades da empresa;
Por outro lado, os boletins itinerários, além de carecerem de informação essencial para aferir da sua veracidade, os mesmos apresentam várias incoerências;
A informação que consta dos boletins acima descritos e testados não confere com folhas de ponto diário, elaboradas pelo sujeito passivo.
A informação que consta do boletim acima descrito e testado não confere com a folha de remunerações entregue no Centro Regional de Segurança Social, elaborada pelo sujeito passivo,

f) Logo, conclui-se que, para além dos trabalhadores serem contratados para prestar serviço em determinadas áreas geográficas do país, os elementos analisados e confrontados não conferem veracidade e credibilidade, pelo que as importâncias pagas aos trabalhadores, sob a forma de ajudas de custo e quilómetros, constituem complementos de vencimento, que terão visado a compensação por trabalhos extra ou mesmo compensação pelo afastamento da sua residência habitual, sujeitos a IRS nos termos da alínea d) do nº 3 do artigo 2º do Código do IRS, uma vez que não foram observados os pressupostos para a sua atribuição, constantes do DL n.º 106/98 de 24 de Abril - cf. Relatório da Inspecção junto a fls. 36 a 43 do processo administrativo apenso.
2.2. De direito
Como já deixámos enunciado, a questão que importa decidir nesta sede é a de saber se a sentença recorrida enferma de erro de julgamento na medida em que nela se considerou que a liquidação de IRS impugnada padece de ilegalidade decorrente da insuficiência dos fundamentos invocados pela administração tributária para se qualificarem como rendimentos de trabalho as quantias abonadas ao Recorrido a título de ajudas de custo.
Desde logo e tendo em vista a correcta definição dos termos da questão que importa apreciar e decidir, importa referir que, verdadeiramente, o que se discute no presente recurso não é a questão da suficiência da fundamentação na sua dimensão formal mas antes a questão da verificação ou não dos pressupostos da tributação em sede de IRS, como rendimentos do trabalho, das quantias abonadas ao Impugnante pela sua entidade patronal a título de ajudas de custo.
Ora, a este propósito, pronunciou-se recentemente este Tribunal Central Administrativo Norte em questão em tudo idêntica e que teve origem na mesma acção inspectiva idêntica acórdão de 18 de Março de 2011 (Processo 551/05.0BEBRG) nos termos da fundamentação a que aderimos e que passamos a transcrever:
“Nem todas as importâncias recebidas pelos trabalhadores das respectivas entidades patronais assumem a natureza de retribuição; existem prestações efectuadas pela entidade patronal ao trabalhador cuja percepção não tem qualquer correspectividade com a prestação do trabalho e mais não visam do que compensar este por despesas efectuadas em favor daquela (cf. arts. 82.º e 87.º do Decreto-Lei n.º 49.408, de 24 de Novembro de 1969 (Lei do Contrato de Trabalho) (() Dispunham os arts. 82.º e 87.º da LCT, que tiveram correspondência nos arts. 249.º e 260.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, alterada pela Lei n.º 9/2006, de 20 de Março, e que hoje têm correspondência nos arts. 258.º e 260.º, n.º 1, alínea b), do Código de Trabalho, revisto pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro:
«Artigo 82º Princípios gerais
1 - Só se considera retribuição aquilo a que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito como contrapartida do seu trabalho.
2 - A retribuição compreende a remuneração de base e todas as outras prestações regulares e periódicas feitas, directa ou indirectamente, em dinheiro ou em espécie.
3 - Até prova em contrário, presume-se constituir retribuição toda e qualquer prestação da entidade patronal ao trabalhador.
(...)
Artigo 87º Ajudas de custo e outros abonos
Não se consideram retribuição as importâncias recebidas a título de ajudas de custo, abonos de viagem, despesas de transporte, abonos de instalação e outras equivalentes, devidas ao trabalhador por deslocações ou novas instalações, feitas em serviço da entidade patronal, salvo quando, sendo tais deslocações frequentes, essas importâncias, na parte que excedam as respectivas despesas normais, tenham sido previstas no contrato ou se devam considerar pelos usos como elemento integrante da remuneração ao trabalhador».), aplicável à situação sub judice)
Característica essencial das ajudas de custo é o seu carácter compensatório, visando reembolsar o trabalhador pelas despesas que foi obrigado a suportar em favor da sua entidade patronal, por motivo de deslocações ou novas instalações ao serviço desta, e a inexistência de qualquer correspectividade entre a sua percepção e a prestação de trabalho (() Cf. JORGE LEITE e COUTINHO DE ALMEIDA, Colectânea de Leis do Trabalho, pág. 89 e segs., MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito do Trabalho, págs. 721 e segs. e MONTEIRO FERNANDES, Direito do Trabalho, vol. I, 8.ª edição, págs. 361 e segs.).
Como é óbvio, face à natureza do IRS e ao conceito de rendimento adoptado pelo respectivo código, só os rendimentos que assumem carácter remuneratório se integram na categoria A (rendimentos do trabalho dependente) dos rendimentos sujeitos a IRS.
Por isso, a lei exclui do conceito de rendimentos da categoria A para efeitos de IRS as ajudas de custo que não excedam os limites legais, tal como definidos para os servidores do Estado (cf. art. 2.º, n.º 3, alínea d), do CIRS (() Diz a alínea d) do n.º 3 do art. 2.º do CIRS, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 3-B/2000, de 4 de Abril:
«[…]
3 - Consideram-se ainda rendimentos do trabalho dependente:
[…]
d) As ajudas de custo e as importâncias auferidas pela utilização de automóvel próprio em serviço da entidade patronal na parte em que ambas excedam os limites legais ou quando não sejam observados os pressupostos da sua atribuição aos servidores do Estado».)).
Assim, a tributação em sede de IRS dos montantes auferidos a título de ajudas de custo só pode ser sustentada se, porventura, se puder considerá-los como um complemento de remuneração, sem fim compensatório, sendo manifesto que a qualificação dada pelo Contribuinte e sua entidade patronal a essas prestações não releva (() A não ser assim, a incidência do imposto ficaria na disponibilidade do sujeito passivo, a quem bastaria alterar o nome dos rendimentos para conseguir excluí-los da tributação.), a não ser como ponto de partida da tarefa hermenêutica; ao invés, haverá que indagar, face às concretas características das prestações em causa, se podem ou não ser qualificadas como ajudas de custo.
Dito isto, cumpre averiguar se no caso sub judice a AT podia considerar, como considerou, que os montantes abonados ao Contribuinte pela sua entidade patronal a título de ajudas de custo integravam rendimento colectável em sede de IRS.
Antes, há que ter presente que no âmbito do procedimento administrativo-tributário incumbe à AT indagar sobre a verificação do facto tributável e demais elementos pertinentes à liquidação do imposto, só podendo culminar o procedimento com a liquidação em sentido estrito quando, face aos elementos apurados, estiver adquirida a convicção da existência e conteúdo do facto tributário (princípio da verdade material).
A Administração deve pois, em sede do procedimento administrativo-tributário, proceder às diligências probatórias necessárias no sentido de recolher elementos que, ainda que por forma indirecta, lhe permitam concluir com segurança pelo carácter remuneratório da referida prestação, ou como impressivamente se disse no acórdão da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 15 de Maio de 1996, para «dilucidar a realidade escondida por detrás dos indícios» (() Proferido no processo com o n.º 20.045 e publicado no Apêndice ao Diário da República de 18 de Maio de 1998 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/1996/32220.pdf), págs. 1632 a 1637.).
Permanecendo a dúvida sobre a existência do facto tributário a Administração deverá abster-se de praticar o acto.
Por outro lado, é hoje inquestionável que é sobre a Administração que recai o ónus da prova da verificação dos pressupostos legais da sua actuação enquanto ao administrado cumpre apresentar prova bastante da ilegitimidade do acto, quando se mostrem verificados esses pressupostos. Por outras palavras, «deve ser a Administração a suportar a desvantagem de não ter sido feita a prova (de o juiz não se ter convencido) da verificação dos pressupostos legais que permitem à Administração agir com autoridade (pelo menos, quando produza efeitos desfavoráveis para os particulares); deve ser o particular a suportar a desvantagem de não ter sido feita a prova (de o juiz não se ter convencido) de que, no uso de poderes discricionários, a Administração actuou contra princípios jurídicos fundamentais» (() Cf. VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa (Lições), Almedina, 10.ª edição, pág. 509.).
Ou seja, caso a AT entenda que, contrariamente ao declarado por um contribuinte, as prestações que foram por este reputadas como ajudas de custo, não têm carácter compensatório, mas antes constituem remunerações do trabalho, a respectiva correcção da matéria tributável declarada (e consequente liquidação adicional), se impugnadas, só poderão manter-se desde que a prova produzida permita que o tribunal se convença do carácter não compensatório daquelas prestações.

É certo que, dizem-nos as regras da experiência comum, muitas vezes as entidades patronais atribuem verbas aos seus empregados que não são mais do que complementos da retribuição, verdadeiros rendimentos do trabalho, ao abrigo de um alegado carácter compensatório, com o intuito de os eximirem à respectiva tributação. É certo também que nesses casos a AT terá, as mais das vezes, que recorrer a provas indirectas, isto é, como salienta ALBERTO XAVIER, a «factos indiciantes, dos quais se procurará extrair, com o auxílio das regras de experiência comum, da ciência ou da técnica, uma ilação quanto aos factos indiciados. A conclusão ou prova não se obtém directamente, mas indirectamente, através de um juízo de relacionação normal entre o indício e o tema de prova» (() Conceito e Natureza do Acto Tributário, pág. 154.). No entanto, como bem adverte o mesmo Autor, «Tais juízos devem ser, contudo, suficientemente sólidos para criar no órgão de aplicação do direito a convicção da verdade» (() Idem, pág. 155.).
Dito isto, verificamos que a AT, para concluir pelo carácter remuneratório das verbas atribuídas ao Contribuinte pela entidade patronal, se baseou, essencialmente, no fundamento de que os boletins de itinerário não obedeciam aos requisitos legais «enunciados no D.L. nº 106/98 de 24 de Abril, diploma que regula o abono de ajudas de custo e transporte ao pessoal da Administração Pública, ao qual, também o sector privado está obrigado» e apresentavam diversas incorrecções, algumas relativas ao seu próprio preenchimento, e incongruências, a saber, e atento o teor do relatório da inspecção (…):
«Não são assinados pelos trabalhadores»,
(…)
«Ao valor da ajuda de custo não foi subtraído o subsídio de alimentação», sendo que «Nalguns recibos de vencimento consta o valor do subsídio de alimentação, geralmente na mesma importância, mesmo quando o trabalhador aufere “ajudas de custo” abrangendo a quase totalidade do mês»;
Frequentemente «a deslocação se inicia no domicílio fiscal do trabalhador», havendo boletins que «se referem a deslocações entre a morada do S.P. e o local onde foi prestar o seu trabalho, situação esta totalmente fora do enquadramento legal para o direito à atribuição de ajudas de custo»;
«Existe uma referência à entidade a quem se prestou serviços, mas não identifica o tipo de serviço, obra, fase da obra, n.º de obra ou qualquer outro elemento facilmente identificável com o serviço prestado»;
«O número de Km percorridos é frequentemente expresso com uma, duas ou três casas decimais»,
há casos «em que as ajudas de custo são atribuídas durante 30 dias consecutivos, não se verificando no recibo de vencimento um pagamento de salário correspondente»,
«Incoerência na atribuição do montante das ajudas de custo, com igual deslocação»,
«A informação que consta dos boletins acima descritos e testados não confere com folhas de ponto diário, elaboradas pelo sujeito passivo» nem «confere com a folha de remunerações entregue no Centro Regional de Segurança Social, elaborada pelo sujeito passivo»,
«as cópias retiradas da contabilidade da empresa não estão devidamente assinadas pela gerência, logo, falta-lhe o requisito da autorização».

Em face dessas irregularidades dos boletins itinerários, a AT concluiu nos seguintes termos: «O sujeito passivo desenvolve uma actividade que não permite estabelecer com os trabalhadores um local certo para o exercício das suas funções, pelo que facilmente se entende que os mesmos são contratados com conhecimento disso mesmo, movimentando-se para diferentes áreas do país consoante as necessidades da empresa»; assim, «[…] para além dos trabalhadores serem contratados para prestar serviço em determinadas áreas geográficas do país, os elementos analisados e confrontados não conferem veracidade e credibilidade, pelo que as importâncias pagas aos trabalhadores, sob a forma de ajudas de custo e Km, constituem complementos de vencimento, que terão visado a compensação por trabalhos extra ou mesmo compensação pelo afastamento da sua residência habitual, sujeitos a IRS nos termos da alínea d) do nº 3 do artigo 2º do Código do IRS, uma vez que não foram observados os pressupostos para a sua atribuição, constantes do DL n.º 106/98 de 24/4»
Ou seja, a AT, admitindo embora que a entidade patronal do Contribuinte desenvolve a sua actividade em diferentes áreas do País, nega que os montantes por ela concedidas aos seus trabalhadores (e, no que ora nos interessa, ao Contribuinte) a título de ajudas de custo constituam compensação por despesas motivadas por deslocações que estes fiquem sujeitos no interessa daquela, sendo que, na sua óptica, pelo contrário, «constituem complementos de vencimento, que terão visado a compensação por trabalhos extra ou mesmo compensação pelo afastamento da sua residência habitual, sujeitos a IRS nos termos da alínea d) do nº 3 do artigo 2º do Código do IRS». Isto, em síntese, com dois fundamentos: primeiro, os trabalhadores são contratados «para prestar serviço em determinadas áreas geográficas do país», o que afasta a possibilidade de lhes serem devidas ajudas de custo por deslocações; segundo, os boletins de itinerário não respeitam os requisitos legais a que os sujeitam o Decreto-Lei n.º 106/98, de 24 de Abril.
O Contribuinte discorda desse entendimento da AT. Não só porque entende que as deslocações efectuadas ao serviço da sua entidade patronal, que tem sede em Viana do Castelo mas cuja actividade se desenvolve por «todo o território» do País, devem ser compensadas com ajudas de custo, não fazendo sentido a argumentação de que os trabalhadores eram contratados para prestarem serviço «em diversas áreas geográficas», mas também porque considera que a lei não exigia os boletins itinerários como pressuposto para a atribuição das ajudas de custo, motivo por que da sua ausência e, por maioria de razão, da eventual irregularidade do seu preenchimento não pode retirar-se argumento algum no sentido de lhes retirar o carácter compensatório que revestem.
Vejamos com quem está a razão:
Pese embora a AT afirme, genericamente (isto é, sem qualquer menção concreta ao Contribuinte), que a “Montinorte” «desenvolve uma actividade que não permite estabelecer com os trabalhadores um local certo para o exercício das suas funções, pelo que facilmente se entende que os mesmos são contratados com conhecimento disso mesmo, movimentando-se para diferentes áreas do país consoante as necessidades da empresa», isso não significa, nem poderia significar que não lhes sejam devidas ajudas de custo. Sendo certo que a lei em vigor à data não definia o local de trabalho, é inequívoco que previa as ajudas de custo para compensar o trabalhador pelas deslocações que haja de fazer ao serviço da sua entidade patronal (cf. o art. 87.º da Lei do Contrato de Trabalho). Ora, não se compreenderia que da eventual ausência de menção expressa do local de trabalho no contrato pudesse advir para o trabalhador a obrigação de o prestar em qualquer lugar sem ser compensado pelas deslocações que houvesse de fazer ao serviço da sua entidade patronal.
Do mesmo modo, pese embora a afirmação, também genérica da AT, de os «[…] trabalhadores serem contratados para prestar serviço em determinadas áreas geográficas do país», a verdade é que a AT nunca pôs em causa a existência das deslocações que justificariam as ajudas de custo, não tendo fundamentado a liquidação adicional ora impugnada na circunstância de não terem existido deslocações do Contribuinte ao serviço da sua entidade patronal.
Assim, o único verdadeiro fundamento para a liquidação adicional é o de que os boletins itinerários apresentam incorrecções no seu preenchimento e incongruências.
Cumpre ter presente, no entanto, que «a lei não exige a elaboração de boletins de itinerário semelhantes aos previstos para os funcionários do Estado para que as prestações efectuadas a trabalhadores por conta de outrem assumam a natureza de ajudas de custo ou, sequer, para que seja feita a prova da natureza dessas prestações» e, assim, «se os boletins itinerários não são necessários, não pode extrair-se conclusão alguma das irregularidades detectadas naqueles que foram preenchidos pela entidade patronal do impugnante» (() Cf., o acórdão da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte de 14 de Setembro de 2006, proferido no processo com o n.º 111/02 – Braga, com texto disponível em
http://www.dgsi.pt/jtcn.nsf/89d1c0288c2dd49c802575c8003279c7/a379255ba9beb09e802572100058e8c4?OpenDocument, no qual é citada jurisprudência no mesmo sentido, designadamente, o acórdão da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 15 de Novembro de 2000, proferido no processo com o n.º 25.481, publicado no Apêndice ao Diário da República de 31 de Janeiro de 2003, volume II (Novembro), (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2000/32242.pdf), págs. 4233 a 4236.).
Podemos, pois, concluir que a AT não logrou, em sede do procedimento, reunir elementos factuais demonstrativos ou seriamente indiciantes de que os abonos recebidos pelo Impugnante não tinham qualquer fim compensatório.
Ora, como deixámos já dito, para que a AT possa afastar a declaração do Contribuinte – que goza da presunção da verdade (cf. art. 75.º, n.º 1, da LGT) – e considerar que existe um facto tributário não declarado que assume uma determinada grandeza é necessário que recolha factos que demonstrem ou indiciem seguramente a existência desse facto e a sua dimensão. É o que resulta do disposto no art. 74.º, n.º 1, da LGT, que reflecte uma regra geral do direito civil (art. 342.º do Código Civil): àquele que invoca um direito compete a prova dos respectivos pressupostos.
Se a AT não dispõe de elementos consistentes reveladores da existência dos factos tributários, não deve proceder a tributação. Dito de outro modo, porque a AT em sede de procedimento não logrou obter elementos factuais que demonstrem ou indiciem seriamente que as quantias abonadas pela entidade patronal ao trabalhador não se destinam a compensá-lo por despesas que suportou em virtude das comprovadas deslocações em serviço, não pode considerar essas quantias como rendimento do Contribuinte para efeitos de tributação em IRS.”
Pelo que vimos de dizer se conclui que, embora com a fundamentação que antecede, será de manter na ordem jurídica a decisão recorrida e que, por isso, o presente recurso terá de improceder.
3. Decisão
Assim, pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte em:
Negar provimento ao recurso.
Custas, apenas na 1ª instância, pela Fazenda Pública.
Porto, 30 de Novembro de 2011
Álvaro Dantas
Anabela Russo
Catarina Almeida e Sousa