Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00144/01-Porto
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:09/30/2014
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Maria Cristina Flora Santos
Descritores:TEMPESTIVIDADE
INCONSTITUCIONALIDADE
RECLAMAÇÃO GRACIOSA
Sumário:I. Estando em causa a tempestividade da impugnação apresentada na sequência de indeferimento da reclamação graciosa, é irrelevante a data da notificação da liquidação desde que a reclamação tenha sido apresentada tempestivamente;
II. Nem o artigo 88.º n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei 100/84, de 29 de Março, nem o n.º 4 do art. 2.º da Lei n.º 42/98 de 06/08 estabelecem a nulidade dos actos de liquidação dos tributos aí mencionados, mas, antes, a nulidade das deliberações que determinaram o seu lançamento;
III. A nulidade de norma em que se baseie um acto de liquidação não implica a nulidade deste, gerando apenas uma situação de ilegalidade abstracta da liquidação invocável nos casos de cobrança coerciva até ao termo do prazo de oposição à execução fiscal, mesmo que posteriormente ao de impugnação de actos anuláveis, mas nunca a todo o tempo;
IV. A violação de princípios constitucionais dos actos que originam uma liquidação não conduz à nulidade da liquidação, salvo se ofenderem o conteúdo essencial de um direito fundamental, tal como estatui a alínea d) do n.º 2 do artigo 133.º do CPA.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:S..., Lda.
Recorrido 1:Câmara Municipal do Porto
Decisão:Negado provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. RELATÓRIO

S… – SOCIEDADE IMOBILIÁRIA, LDA, vem recorrer da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) do Porto, que julgou verificada a excepção de caducidade do direito de acção no processo de impugnação apresentado da liquidação de taxa de urbanização, emitida pela Câmara Municipal do Porto, no processo camarário n.º 1.../97.

O Recorrente apresentou as suas alegações, e formulou as seguintes conclusões:

1ª Os actos sub judice foram praticados no exercício de poderes tributários e integram a liquidação de tributos não previstos na lei, pelo que são nulos (v. art. 2º/4 da Lei 42/98 e art. 88º/1/a) do DL 100/84, de 29 de Março; cfr. Ac. STA, de 1999.03.02, AD 454/1243) – cfr. texto n.º s 1 e 2;
2ª Os actos sub judice são ainda claramente nulos por falta de elementos essenciais (v. art. 133º/1 do CPA), pois traduzem-se na criação de obrigações tributárias sem causa legal e em clara violação do princípio reforçado da legalidade tributária, do princípio da proibição da retroactividade dos impostos (v. art. 103º da CRP e art. 133º/2/d) do CPA) e do direito fundamental de propriedade privada (v. art. 62º da CRP) – cfr. texto n.º 3;
3ª Os actos sub judice são nulos por falta de atribuições (v. art. 133º/2/b) do CPA; cfr. arts. 103º e 168º/1/i) da CRP; cfr. art. 95º/2/a) da Lei nº 169/99, de 18 de Setembro) – cfr. texto n.º 4;
4ª Os actos impugnados são nulos por ofenderem o conteúdo essencial dos direitos fundamentais consagrados nos arts. 62º, 103º e 105º da CRP (v. art. 103º/2 da CRP e art. 133º/2/d) do CPA) – cfr. texto n.º 5;
5ª Os actos de liquidação e cobrança em análise sempre seriam nulos, por serem consequentes de actos nulos (v. arts. 133º/2 e 134º do CPA) – cfr. texto n.º s 6 e 7;
6ª O art. 2º/4 da Lei n.º 42/98, de 6 de Agosto e o art. 1º/4 da Lei n.º 1/87, de 6 de Janeiro, com o sentido restritivo que lhe foi atribuído na douta sentença recorrida, integram normas inconstitucionais e inaplicáveis in casu, por violação do disposto nos arts. 13º, 62º e 103º da CRP – cfr. texto n.º s 6 e 7;
7ª A presente impugnação é claramente tempestiva, pois a ora recorrente nunca foi integralmente notificada dos actos de liquidação e cobrança sub judice, só relevando para efeitos de início do prazo de impugnação, a notificação e consequente conhecimento pela impugnante da autoria, data, sentido e objecto do acto tributário (v. art. 268º/3 CRP e art. 36º do CPPT; cfr. art. 64º/1 do CPT, arts. 58º, 59º e 60º do CPTA e 68º do CPA) – cfr. texto n.º s 8 e 9;
8ª A presente impugnação sempre seria claramente tempestiva, pois está em causa a nulidade de actos de liquidação e cobrança de contribuições especiais não previstas na lei, que podem ser sindicados a todo o tempo (v. arts. 103º/2, 112º, 165º/1/i), 239º e 266º da CRP; cfr. art. 28º da LPTA, art. 88º/1/a) e c) e 2 do DL 100/84, de 29 de Março e art. 134º do CPA) – cfr. texto n.º s 10 e 11.
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A Recorrida, não apresentou contra-alegações.
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Foram os autos a vista do Magistrado do Ministério Público que emitiu parecer no sentido de que deve ser negado provimento ao recurso.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, considerando que a tal nada obsta.
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A questão a apreciar e a decidir consiste em saber se a sentença recorrida enferma de erro de julgamento ao ter julgado procedente a excepção de caducidade do direito de acção.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Matéria de facto

A decisão recorrida deu como provada a seguinte matéria de facto:

a) Em 20.04.1999, a Câmara Municipal do Porto liquidou a taxa de urbanização impugnada, no montante de Esc. 16.168.669$00, cuja data limite de pagamento ocorreu em 18.08.1999 (cfr. fls. 15 dos presentes autos);
b) A impugnante procedeu ao pagamento do montante supra referido na al. a) em 20.05.1999 (cfr. doc. junto a fls. 18 dos autos);
c) A impugnante reclamou graciosamente da liquidação ora impugnada, em 20.05.1999, a qual veio a ser indeferida, por decisão datada de 28.12.1999 que lhe foi notificada em 03.02.2000 (fls. 9 a 11 do Processo de Reclamação apenso);
d) A presente impugnação foi deduzida em 22.05.2001 (cfr. carimbo aposto no rosto da petição inicial a fls.3 dos presentes autos).”

2. Do Direito

A questão a apreciar e a decidir no âmbito do presente recurso consiste em saber se a sentença recorrida enferma de erro de julgamento ao ter julgado procedente a excepção de caducidade do direito de acção.

Invoca a Recorrente que os actos de liquidação são nulos por violação de várias normas e princípios constitucionais, e deste modo, a impugnação é tempestiva, pois poderá ser sindicada a todo o tempo. Invoca ainda que a impugnação é tempestiva porque nunca foi notificada da liquidação.

Apreciando.

Conforme resulta dos autos, foi apresentada impugnação judicial junto do TAF do Porto da liquidação de taxa de urbanização, emitida pela Câmara Municipal do Porto, no processo camarário n.º 13167/97.

Sucede que, antes de ter sido deduzida impugnação judicial, foi apresentada reclamação graciosa da taxa ora em causa.

Com efeito, resulta da matéria de facto dada como provada que a “impugnante reclamou graciosamente da liquidação ora impugnada, em 20.05.1999” (alínea c) da matéria de facto).

Por outro lado, resulta igualmente provado nos autos, que aquela reclamação foi indeferida por decisão datada de 28/12/1999, sendo a Impugnante notificada dessa decisão em 03/02/2000, e a impugnação judicial apresentada em 22/05/2000.

Com base nessa factualidade, a Meritíssima juíza do TAF do Porto julgou procedente a excepção de caducidade do direito de acção, porquanto, em síntese, considerou ter sido ultrapassado o prazo de 8 dias, previsto no n.º 2 do art. 123.º do CPT (actualmente n.º 2 do art. 102.º do CPPT), para deduzir impugnação em caso de indeferimento da reclamação graciosa.

A Recorrente não concorda com esse entendimento, invocando que os actos de liquidação são nulos, e deste modo, a impugnação é tempestiva, pois poderá ser sindicada a todo o tempo. De igual modo, entende a Recorrente que, nunca foi notificada da liquidação, e nessa medida, sempre a acção seria tempestiva.

Mas sem razão.

Relativamente à invocada falta de notificação da liquidação, saliente-se que a Recorrente efectuou o pagamento da quantia liquidada em 20/05/1999, pelo que, pelo menos desde esta data tem conhecimento da liquidação, tanto mais, que dela reclamou na mesma data.

Aliás, nunca esteve em causa nos presentes autos a intempestividade da reclamação graciosa que pudesse afectar a tempestividade da impugnação.

Na sentença recorrida considerou-se, e bem, que a questão decidenda se devia centrar na tempestividade da impugnação por desrespeito do prazo estabelecido para impugnar na sequência de indeferimento da reclamação graciosa, ou seja, o prazo previsto no anterior n.º 2 do art. 123.º do CPT.

Em suma, in casu, a intempestividade da impugnação deriva de ter sido ultrapassado o prazo de 8 dias a contar da notificação da decisão da reclamação graciosa, e assim sendo, é irrelevante a data da notificação da liquidação para aferir da caducidade do direito de acção.

Deste modo, não assiste razão à Recorrente quanto a este fundamento.

Passemos então, a aferir o acto de liquidação impugnado, que diz respeito a taxa de urbanização liquidada pela Câmara Municipal do Porto é, ou não, nulo, e nessa medida, aferir se poderá ser deduzida impugnação judicial a todo tempo.

A decisão recorrida, colhendo apoio na jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Administrativo, entendeu, e bem, que os actos que aplicam normas inconstitucionais não são, por esse facto, nulos, estando sujeitos ao regime geral das invalidades.

Invoca a Recorrente que “os actos sub judice foram praticados no exercício de poderes tributários e integram a liquidação de tributos não previstos na lei, pelo que são nulos (v. art. 2º/4 da Lei 42/98 e art. 88º/1/a) do DL 100/84, de 29 de Março”, e que “o sentido restritivo que lhe foi atribuído na douta sentença recorrida, integram normas inconstitucionais e inaplicáveis, por força do disposto no art. 13.º, 62.º e 103.º da CRP)” e que os actos em causa seriam nulos “por serem consequentes de actos nulos”, e ainda por que está em causa “a liquidação de contribuições especiais não previstas na lei” (1.ª, 5.ª, 6.ª e 8.ª conclusão das alegações de recurso), mas, adiante-se desde já que não lhe assiste razão.

Com efeito, nem o artigo 88.º n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei 100/84, de 29 de Março, nem o n.º 4 do art. 2.º da Lei n.º 42/98 de 06/08 estabelecem a nulidade dos actos de liquidação dos tributos aí mencionados, mas, antes, a nulidade das deliberações que determinaram o seu lançamento.

Por outro lado, é pacífico na jurisprudência do contencioso tributário que a nulidade de norma em que se baseie um acto de liquidação não implica a nulidade deste, gerando apenas uma situação de ilegalidade abstracta da liquidação invocável nos casos de cobrança coerciva até ao termo do prazo de oposição à execução fiscal, mesmo que posteriormente ao de impugnação de actos anuláveis, mas nunca a todo o tempo (cfr. nesse sentido, entre muitos outros, de 25/05/2004, proc. n.º 208/04, 9/11/2005, proc. 669/05, 7.05.2008, proc. n.º 1034/07, de 5.07.2007, proc. n.º 479/06, de 16/09/2009, proc. n.º 0418/09, e de 23/10/2013, proc. n.º 0579/13).

Assim sendo, o acto que aplique normas inconstitucionais não origina a nulidade da liquidação, mas gera mera anulabilidade estando em causa vício violação de lei por erro nos pressupostos de direito, e por conseguinte não se poderá afirmar que os actos em causa seriam nulos por serem consequentes de actos nulos.

Como bem se escreveu na sentença recorrida “ainda que, como defende a Impugnante, seja nula a deliberação da assembleia municipal que instituiu a taxa liquidada, não é nulo o acto de liquidação impugnado que nela se baseou e, consequentemente, não pode ser atacado a todo o tempo”.

Invoca ainda ao Recorrente que “os actos sub judice são ainda claramente nulos por falta de elementos essenciais (v. art. 133º/1 do CPA), pois traduzem-se na criação de obrigações tributárias sem causa legal e em clara violação do princípio reforçado da legalidade tributária, do princípio da proibição da retroactividade dos impostos (v. art. 103º da CRP e art. 133º/2/d) do CPA) e do direito fundamental de propriedade privada (v. art. 62º da CRP)” e que são nulos por ofenderem o conteúdo essencial dos direitos fundamentais consagrados no art. 62.º, 103.º, e 105.º da CRP (2.ª e 4.ª conclusão das alegações de recurso), mas também sem razão.

Na verdade, o supra exposto é aplicável não apenas no caso de acto inconstitucional em que se baseie um acto de liquidação, mas também ao acto que viole princípios constitucionalmente consagrados. Com efeito, conforme tem vindo a ser afirmado uniformemente pela jurisprudência, a violação de princípios constitucionais dos actos que originam a liquidação também não origina a nulidade da liquidação, salvo se ofenderem o conteúdo essencial de um direito fundamental, tal como estatui a alínea d) do n.º 2 do artigo 133.º do CPA (v., entre outros, os acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do STA de 16.12.2010, recurso 396/10 e de 22/6/05, no recurso n.º 1259/04, da secção de Contencioso Tributário de 23.11.2005, recurso 612/05, e de 28.01.2004, recurso 1709/03, e ainda os acórdãos da secção de Contencioso Administrativo de 30.1.2011, recurso 673/10 e de 19.04.2007, recurso 809/06).

A jurisprudência do STA tem reiteradamente afirmado que não se verifica qualquer violação do conteúdo essencial de um direito fundamental quando estamos perante o princípio da legalidade ou do direito à propriedade privada.

Na verdade, “as imposições tributárias não podem ser vistas como restrições ao direito de propriedade mas antes como limites implícitos deste direito, mesmo que se considere o direito de propriedade um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias” (cfr. Ac. do STA de 29/11/2006, proc. n.º 0479/06, vide ainda, Acórdãos do STA de 30/05/2001, rec. 22.251 (Plenário) e de 29/6/2005, rec. 117/05, 22/06/2005, rec. 1259/04 (Pleno), 25/05/2004, rec. 208/04, 25/05/2004, rec. 1708/03, 12/01/2005, rec. 19/04, 28/01/2004, rec. 1709/03, 14/01/2004, rec. 1678/03, 15/12/2004, rec. 1920/03).

Também não merece provimento o recurso com o fundamento invocado na 3.ª conclusão das alegações, designadamente, que ao actos são nulos por falta de atribuições (v. art. 133º/2/b) do CPA; cfr. arts. 103º e 168º/1/i) da CRP; cfr. art. 95º/2/a) da Lei nº 169/99, de 18 de Setembro).

In casu, o que se discute não são as deliberações dos órgãos autárquicos que violem normas legais respeitantes ao lançamento de tributos mas, antes, a liquidação ao abrigo delas praticada para que valem, ainda, mutatis mutandis, as considerações acima expendidas (nesse sentido, cfr. Acórdão do Pleno da secção do CT do STA de 16/11/2005, proc. n.º 019/04).

Por conseguinte, os vícios invocados pela Recorrente não conduzem à nulidade da liquidação, e nessa medida, a impugnação não pode ser apresentada a todo o tempo.

Em suma, não se verifica o invocado erro de julgamento da sentença recorrida, sendo a acção de impugnação judicial extemporânea, tal como decidido na 1.ª instância, e deste modo, não merece provimento o recurso.

3. Sumário

I. Estando em causa a tempestividade da impugnação apresentada na sequência de indeferimento da reclamação graciosa, é irrelevante a data da notificação da liquidação desde que a reclamação tenha sido apresentada tempestivamente;
II. Nem o artigo 88.º n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei 100/84, de 29 de Março, nem o n.º 4 do art. 2.º da Lei n.º 42/98 de 06/08 estabelecem a nulidade dos actos de liquidação dos tributos aí mencionados, mas, antes, a nulidade das deliberações que determinaram o seu lançamento;

III. A nulidade de norma em que se baseie um acto de liquidação não implica a nulidade deste, gerando apenas uma situação de ilegalidade abstracta da liquidação invocável nos casos de cobrança coerciva até ao termo do prazo de oposição à execução fiscal, mesmo que posteriormente ao de impugnação de actos anuláveis, mas nunca a todo o tempo;
IV. A violação de princípios constitucionais dos actos que originam uma liquidação não conduz à nulidade da liquidação, salvo se ofenderem o conteúdo essencial de um direito fundamental, tal como estatui a alínea d) do n.º 2 do artigo 133.º do CPA.

III. DECISÃO

Em face do exposto, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento ao recurso interposto, mantendo-se a decisão recorrida.

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Custas pela Recorrente.
D.n.
Porto, 30 de Setembro de 2014.
Ass. Cristina Flora
Ass. Ana Patrocínio
Ass. Mário Rebelo