Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01770/07.0BEVIS
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:03/11/2021
Tribunal:TAF de Viseu
Relator:Margarida Reis
Descritores:IRC DE 2004, CUSTOS, REQUALIFICAÇÃO, ART. 26.º, N.º 4 DA LGT; ART. 23.º E ART. 78.º DO CIRC, DIRETRIZ CONTABILÍSTICA N.º 17, OPERAÇÃO DE COBERTURA,
DEDUTIBILIDADE DE CUSTOS COM OPERAÇÃO FINANCEIRA, CONTRATO DE OPÇÃO
Sumário:Como tem vindo a ser consistentemente afirmado pelo Supremo Tribunal Administrativo, no domínio do contencioso de mera legalidade, que apenas visa a apreciação da legalidade da atuação da Administração, como sucede com a impugnação judicial de atos de liquidação de tributos, o Tribunal de primeiro conhecimento da causa não está legitimado a invocar e valorar razões de direito que não foram suscitadas pela Administração para justificar e praticar os atos impugnados.

Na sua tarefa de requalificação (cf. n.º 4 do art. 26.º da LGT) a Administração fiscal está necessariamente vinculada às regras gerais de interpretação e aplicação das leis, por um lado, e por outro, o facto de se encontrar legitimada perante um documento – no caso, vários contratos – a “afastar o nomen iuris atribuído pelas partes para efeito de determinar a qualificação a atribuir a um determinado contrato”, não a desonera de, ao fazê-lo, ter de levar em conta o seu “real conteúdo jurídico, composto pelos direitos e obrigações efectivamente acordados”.

A Administração fiscal só poderá afastar-se do conteúdo jurídico do negócio celebrado pelos contribuintes se estiver para tanto autorizada por alguma disposição legal concreta, como será o caso do n.º 2 do art. 38.º da LGT (na redação vigente à data) no que se refere a operações abusivas envolvendo diversos tipos de negócios em cadeia ou vários sujeitos passivos, ou do art. 39.º da LGT, relativamente a negócios simulados, sendo certo que nesses casos terá igualmente de produzir a prova exigida para acionar os correspondentes regimes, não sendo aqui, manifestamente, o caso.

As opções são um instrumento financeiro derivado, e como tal, não são mais do que um (a par de outros) instrumento societário de “financiamento estruturado”.

Para efeitos de interpretação do regime de dedutibilidade fiscal dos custos em sede de IRC aplicável em 2004, a atividade da empresa não se resume “ao conjunto de operações produtivas” que implicam o uso dos seus ativos físicos, passando ainda, necessariamente, pela realização de investimentos, também eles sujeitos a registo no correspondente item do balanço.

Atendendo ao ónus da prova que sobre si recaía no âmbito do procedimento de liquidação, a Administração fiscal não estava autorizada, sem sustentação em factos concretos, a requalificar como especulativa, rejeitando a relevância fiscal nos termos do disposto no (então) art. 78.º do CIRC de uma operação registada pela Recorrente como sendo de cobertura.
Recorrente:G.
Recorrido 1:Autoridade Tributária e Aduaneira
Votação:Unanimidade
Decisão:Negar provimento ao recurso que recaiu sobre o despacho e conceder provimento ao recurso interposto da sentença.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer promovendo a subida dos autos ao STA.
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Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. Relatório

G., S.A., inconformada com a sentença proferida em 2009-10-01 pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, que julgou improcedente a impugnação judicial por si interposta tendo por objeto a liquidação adicional de IRC e de juros compensatórios referentes ao exercício de 2004, no valor de EUR 947.972,52, vem dela interpor o presente recurso, o que faz perante este Tribunal Central Administrativo Norte.

Oportunamente, a Recorrente interpôs ainda perante o Supremo Tribunal Administrativo, recurso do despacho proferido em 2008-12-29 (cf. fls. 133 dos autos), por força do qual o Tribunal a quo rejeitou a realização da diligência probatória de inquirição de testemunhas por si requerida, recurso que agora sobe com o recurso da decisão final, não tendo sido tramitado em separado.

A Recorrente encerra as suas alegações no recurso do despacho proferido em 2008-12-29, formulando as seguintes conclusões:

CONCLUSÕES:
1.ª - A petição inicial contém factos passíveis de prova testemunhal, com relevo e importância para a boa e justa decisão da causa, indicados no requerimento de fls. 131 dos autos;
2.ª - As testemunhas deverão ser inquiridas sobre esses factos por força do princípio da verdade material;
3.ª - Para além de documentar os autos com os elementos relativos às operações financeiras em causa, é essencial que se venha esclarecer o conteúdo dessas mesmas operações e a sua conexão com os proveitos e perdas;
4.ª - A inquirição das testemunhas arroladas, atenta a sua intervenção nas operações em questão, pode contribuir para a dilucidação dos factos vertidos nos articulados,
5.ª - Nomeadamente, pode contribuir para clarificar a relação económica entre os contratos de opção sobre divisas e o investimento projectado nos E.U.A., e inerente cumprimento integral dos requisitos previstos na lei para a dedução do custo fiscal.

Termina pedindo:
“Termos em que deverá dar-se provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se o douto despacho recorrido, com todas as consequências legais, nomeadamente, ordenando-se a realização da inquirição de testemunhas requerida.”
***
A Entidade Recorrida não apresentou contra-alegações.
***
A Recorrente encerra as suas alegações de recurso da sentença, formulando as seguintes conclusões:

IV. CONCLUSÕES:
A. O presente processo reporta-se a uma impugnação judicial apresentada pela G. contra uma liquidação adicional efectuada pela administração fiscal de IRC e de juros.
B. Na sentença proferida pelo Tribunal a quo foi julgada improcedente a impugnação, tendo-se considerado que os custos fiscais em apreço seriam «absolutamente inúteis» do ponto de vista da G., pois seriam um custo indispensável da G. ALABAMA.
C. A G. não se conforma com esta sentença, pois as perdas financeiras, apuradas na sequência de operações realizadas sobre instrumentos financeiros, reúnem todos os requisitos previstos no artigo 23.º para a respectiva dedutibilidade fiscal.
COM EFEITO,
D. As operações contratadas configuram contratos de instrumentos derivados, constituídos com o objectivo de cobertura do risco cambial em transacções expressas em dólares americanos;
E. foram transaccionadas em mercados fora da bolsa, tendo sido contratadas e liquidadas no mesmo exercício (2004), não constituindo posições em curso no final do exercício, pelo que
F. a contabilização do custo em análise respeitou integralmente todas as disposições legais, quer de natureza contabilística (cf. a Directriz contabilística n.º 17/97), quer de natureza fiscal (cf. artigo 78.º do Código do IRC), previstas para as operações de cobertura.
G. O facto de estarmos diante de perdas financeiras, o que de resto não foi questionado pela administração fiscal, quer na sua materialidade, quer na sua comprovação, faz com que tenha de se considerar as mesmas como um custo relevante em termos fiscais.
POIS
H. a alínea c) do n.º 1 do artigo 23.º do Código do IRC considera estas perdas como custos fiscalmente relevantes, desencadeando uma autêntica presunção de indispensabilidade que não foi afectada pela administração fiscal.
SEM PRESCINDIR,
I. As perdas são efectivamente custos fiscais nos termos do artigo 23.º do Código do IRC, visto que estão enlaçadas numa relação de indispensabilidade com a obtenção dos proveitos ou para a manutenção da fonte produtora.
J. Ao contrário do que julgou o Meritíssimo Juiz a quo, não é pela circunstância de o negócio não ter sido proveitoso que a despesa perde a sua natureza de custo fiscal.
K. A relevância fiscal de um custo não depende da prova da sua necessidade, adequação, normalidade ou sequer da produção do resultado (ligação a um negócio lucrativo): estamos aqui num espaço de liberdade empresarial irrestrita.
L. O artigo 23.º do Código do IRC não concede à administração fiscal um qualquer poder discricionário de controlo da dedutibilidade fiscal dos custos empresariais.
M. O artigo 23.º do Código do IRC veda à administração fiscal um qualquer poder discricionário: são, por isso, custos fiscais todos os decaimentos gerados no exercício da actividade do sujeito passivo, ainda que reputados de inconvenientes, não usuais ou vertidos em maus negócios.
N. A interpretação da administração fiscal, constante da fundamentação subjacente à liquidação adicional impugnada, assim como a interpretação que a sentença de que agora se recorre faz do artigo 23.º do Código do IRC, é claramente ilegal e inconstitucional.
O. É inquestionável que, para efeitos fiscais, o custo é indispensável se foi realizado com vista ao escopo lucrativo, ainda que se traduza num mau ou ruinoso negócio.
P. Assim, é por demais evidente que, também neste caso, a perda financeira tem de ser considerada um custo indispensável, e isto porque, como se demonstrou, a operação económica da qual veio a resultar visava a obtenção de um ganho (na medida em que procurava fixar, favoravelmente, uma taxa de câmbio para a realização de um investimento que, actualmente, é altamente proveitoso), embora, por razões alheias à vontade da G., dela tenha vindo a resultar um prejuízo.
Q. Infelizmente, a cobertura contratada não surtiu o efeito pretendido e a G. incorreu numa perda, mas ninguém poderá pôr em causa a racionalidade, em termos económicos e de gestão, das operações subjacentes.
R. Em suma, as perdas em apreço foram suportadas pela G. no âmbito da sua gestão financeira, na sequência de um acordo que celebrou, de forma livre e consciente, para obter uma taxa de câmbio favorável.
S. É manifesto que, tendo em conta a dimensão da empresa em causa e o investimento efectuado, os custos questionados são perfeitamente enquadráveis no artigo 23.º do Código do IRC.
T. A terminar, é imperioso esclarecer que, ao contrário do que se afirmou na sentença de que se recorre, os custos não foram da G. ALABAMA, mas foram indispensáveis para a internacionalização da G..

Termina pedindo:
“Termos em que deverá dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e julgando-se a impugnação totalmente procedente e provada, com todas as consequências legais.”
***
A Entidade Recorrida não apresentou contra-alegações.
***
A Digna Magistrada do M.º Público junto deste Tribunal exarou parecer, promovendo a subida dos presentes autos ao STA para apreciação do recurso do despacho proferido pelo Tribunal a quo em 2008-12-29.
***
Por despacho proferido em 2010-04-22 (cf. fls. 227 dos autos), foi determinado não se acolher a posição defendida pelo M.º Público, atendendo a que “de acordo com o entendimento jurisprudencial uniforme, é a este Tribunal Central Administrativo, perante o qual foi interposto recurso da sentença, que compete conhecer também do recurso do despacho interlocutório que indeferiu o requerimento de produção de prova”.
***
Os vistos foram dispensados, com a prévia anuência dos Juízes-Adjuntos.
***
Questões a decidir no recurso

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, estando o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das respetivas alegações de recurso.

Assim sendo, importa apreciar se o despacho proferido em 2008-12-29 padece de erro de julgamento de direito, por violação das normas processuais que regem a instrução do processo, e assim não se entendendo, se a sentença sob recurso padece, também ela, de erro julgamento de direito, por violação do disposto no art. 23.º do CIRC.


II. Fundamentação
II.1. Fundamentação de facto

Na sentença prolatada em primeira instância consta a seguinte decisão da matéria de facto, que aqui se reproduz:
FACTOS PROVADOS:
a) A impugnante foi objecto de uma acção de fiscalização levada a cabo pelos serviços da Administração Tributária da qual resultaram “correcções aritméticas” à matéria colectável em sede de IRC nos termos que constam do Relatório cuja cópia consta do PA anexo e que aqui se dá por reproduzido.
b) Nesse Relatório pode ler-se:
“(…)
Analisando a situação em causa, verificamos que as perdas financeiras, no montante de 4.871.636,25 €, resultantes de diferenças cambiais ocorridas em duas operações financeiras sobre divisas, não foram comprovadamente indispensáveis nem para a realização de proveitos ou ganhos sujeitos a imposto nem para a manutenção da fonte produtora. Antes pelo contrário, foram absolutamente inúteis. (…)
A empresa comprou e vendeu dólares, e esta não é a actividade da empresa em análise: a G. é uma empresa produtora, não é uma sociedade financeira, logo as perdas geradas em operações de especulação não têm aceitação fiscal.
(…)”
c) Como resultado das correcções efectuadas pela Administração Tributária, a matéria colectável da impugnante relativa ao ano de 2004 passou a ser de 4.531.940,86 euros.
d) Em consequência veio a ser efectuada a liquidação de IRC e juros compensatórios cuja nota demonstrativa consta de fls. 33 e 34 e cujo teor aqui se dá por reproduzido.
e) O prazo de pagamento voluntário das quantias liquidadas terminou em 24 de Setembro de 2007 e a presente impugnação foi apresentada em 20 de Dezembro do mesmo ano.
Para assentar a matéria de facto provada, alicerçou-se a convicção do Tribunal nos documentos juntos aos autos e não impugnados.
FACTOS NÃO PROVADOS:
Com interesse para a presente decisão, inexistem.
*

Com relevância para a decisão a proferir no presente recurso, dá-se ainda como provada a seguinte ocorrência processual relevante:
f) Em 2008-12-29 foi exarado nos autos pelo Tribunal a quo, o seguinte despacho, cujo teor se reproduz (cf. fls. 133, dos autos):
A nosso ver não vêm alegados factos concretos e historicamente situados que careçam ou sejam susceptíveis de prova testemunhal. As versões apresentadas pela impugnante e administração fiscal têm o seu pilar probatório assente em documentos. As questões a decidir são fundamentalmente de direito e de apreciação dos aludidos documentos.
Pelo exposto decido não proceder à inquirição das testemunhas indicadas.
(…)

II.2. Fundamentação de Direito

Importa, como já foi suprarreferido, apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, começando pela apreciação do recurso que tem por objeto o despacho proferido em 2008-12-29, apurando se o mesmo padece de erro de julgamento de direito, por violação das normas processuais que regem a instrução do processo.

Recorde-se que a Recorrente dirigiu o recurso que interpôs deste despacho ao Supremo Tribunal Administrativo (tribunal que em matéria de recurso tem os seus poderes de cognição limitados à matéria de direito, cf. n.º 5 do art. 12.º do ETAF), tendo dirigido o recurso que interpôs da decisão final a este Tribunal Central Administrativo Norte.

Por outro lado, e, não obstante o disposto no n.º 3 do art. 285.º do CPPT, na redação aplicável ao caso, que é a redação original que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de outubro (pois atendendo que a ação e o recurso foram interpostos em data anterior a 2019-11-16, não são de aplicar as alterações introduzidas ao regime dos recursos pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro), o recurso do despacho interlocutório não foi processado em separado.

Ora, foi já decidido nos presentes autos que, e atendendo ao “entendimento jurisprudencial uniforme” nesse sentido, o recurso em questão deverá ser apreciado e decidido por este Tribunal Central Administrativo Norte.

De facto, de há muito que o STA, fundado em razões de economia e celeridade processual, tem vindo a entender que “Interpostos dois recursos da sentença, versando um deles matéria de facto e o outro exclusivamente matéria de direito, a competência do Supremo Tribunal Administrativo para conhecer deste último devolve-se ao Tribunal Central Administrativo” (cf. Acórdão do STA proferido em 2005-04-27, no proc. 1341/04, publicado no apêndice do DR de 2005-12-16, e no mesmo sentido, os Acórdãos proferidos em 1999-12-02, no proc. 21 673, pelo Pleno da 2.ª secção, publicado no apêndice do DR de 2001-05-30; em 2000-01-12, no proc. 24 018, publicado no apêndice do DR de 2002-11-21; em 2000-05-31, no proc. 24 094, publicado no apêndice do DR de 2002-12-23; em 2000-02-23, no proc. 24 164, publicado no apêndice do DR de 2002-11-21, todos proferidos pela secção de contencioso tributário; e mais recentemente, o acórdão proferido em 2012-12-12, no proc. 01188/12, disponível para consulta em www.dgsi.pt).

No mesmo sentido se pronunciou o STA, ainda no âmbito do regime constante no art. 172.º do CPT, considerando que sendo interpostos recursos de decisão interlocutória e da sentença final para o qual o TCA é competente, se radicar neste último a competência em razão da hierarquia para conhecer de ambos os recursos (cf. Acórdão da 2.ª secção do STA proferido em 2000-10-31 no proc. 24 520, publicado no apêndice ao DR de 2003-01-31).

Importa ainda sublinhar que embora a Recorrente tenha dirigido ao STA o recurso que interpõe do despacho interlocutório, a verdade é que o mesmo não tem por objeto matéria de direito, mas antes implica uma apreciação de matéria de facto, por nele pretender que seja apreciado se no caso havia necessidade de realização da diligência de prova requerida, concretamente, da diligência de produção de prova testemunhal.

Com efeito, e como refere Jorge LOPES DE SOUSA a propósito, “[n]o que concerne à decisão sobre a realização de diligências de prova e à sua escolha (isto é, se é objecto do recurso jurisdicional decisão proferida ao abrigo do art. 13.º, n.º 1, do CPPT, sobre se devem ou não ser realizadas diligências por se afigurarem ou não úteis para a descoberta da verdade), trata-se também de actividade jurisdicional destinada à fixação da matéria de facto, pelo que, sendo essa fixação da exclusiva competência das instâncias, nos processos inicialmente julgados pelos tribunais tributários, é a elas que cabe decidir se há diligências úteis a realizar e quais. (…) Com efeito, a formulação de juízos sobre a conveniência ou não da realização de diligências para averiguar factos cuja averiguação de mostre necessária, consubstancia uma actividade que não tem a ver com a interpretação de qualquer norma legal, mas que exige apenas a aplicação de regras da experiência e, por isso, tem vindo a ser considerada matéria da exclusiva competência dos tribunais com poderes de cognição no domínio da matéria de facto, sendo os seus juízos nessa matéria incontroláveis pelos tribunais com meros poderes de revista. (…) Por isso, se em recurso jurisdicional for pedida a apreciação da necessidade de realização de diligências de prova ou sua determinação, estar-se-á perante recurso que não tem por fundamento exclusivamente matéria de direito(cf. SOUSA, Jorge Lopes de - Código de procedimento e de processo tributário. Anotado e comentado. 6.ª edição. Volume I. Lisboa: Áreas Editora, 2011, pág. 225; destacado nosso).

Vejamos então.
A Recorrente argumenta que para além de ter documentado os autos com os elementos relativos às operações financeiras em causa, considera ser essencial o esclarecimento do conteúdo dessas mesmas operações e a sua conexão com os proveitos e perdas do exercício de 2004, e que a inquirição das testemunhas arroladas, atenta a sua intervenção nas operações em apreciação, pode contribuir para a dilucidação dos factos vertidos nos articulados, nomeadamente, contribuindo para clarificar a relação económica entre os contratos de opção sobre divisas e o investimento projetado nos E.U.A., e o inerente cumprimento integral dos requisitos previstos na lei para a dedução do custo fiscal.

Extrai-se da sua argumentação que embora existam nos autos documentos que ilustram as operações financeiras efetuadas, as testemunhas arroladas, por terem tido parte nas mesmas, poderiam ter auxiliado o Tribunal a interpretar os documentos, estando subjacente à sua alegação a particularidade e complexidade das circunstâncias documentadas.

Donde se depreende que o depoimento testemunhal teria como finalidade, não tanto o de promover o apuramento de ocorrências ou acontecimentos concretos da vida real, mas antes o de contextualizar a operação realizada e de apoiar o Tribunal na tarefa de interpretar os documentos juntos, concretamente, os contratos de cedência e de opção.

Por sua vez, o despacho sob recurso indefere a prova testemunhal com o argumento de que “As versões apresentadas pela impugnante e administração fiscal têm o seu pilar probatório assente em documentos” (cf. ponto f, da fundamentação de facto).

Ora, de facto assim é, tanto mais que resulta da leitura do Relatório de Inspeção Tributária no qual se funda a liquidação de IRC em crise que em momento algum a Recorrida questionou os contornos da operação em causa, tendo aceitado a este respeito a versão da Recorrente, versão essa que ali resulta circunstanciadamente plasmada.

Donde se revela correta a apreciação feita no despacho sobre recurso sobre a oportunidade da produção da prova testemunhal.

Assim sendo, deve ser julgado improcedente o recurso do despacho interlocutório em apreço, e condenada a Recorrente pelas respetivas custas, em face do seu decaimento [cf. n.ºs 1 e 2 do art. 527.º do CPC, aplicável ex vi art. 2.º, alínea d) do CPPT].

Pelo contrário, é manifesto que o recurso interposto da decisão final deve obter provimento.

Senão, vejamos.
A Recorrente imputa à sentença erro de julgamento de direito, por não ter anulado a liquidação impugnada, que entende padecer de erro de direito nos pressupostos por ter feito uma errada interpretação do regime de dedutibilidade de custos aplicável.
Apreciando.
Do Relatório de Inspeção Tributária que suporta a liquidação de IRC em apreço, resulta, em síntese, que os SIT consideraram que o montante de EUR 4.871.636,25 registado pela Recorrente como custo no exercício de 2004 não foi indispensável para a realização de proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, não podendo por isso ser aceite nos termos do disposto no n.º 1 do art. 23.º do CIRC.

Por outro lado, no despacho aposto em 2007-07-07 sobre as conclusões do RIT pelo Diretor de Finanças Adjunto resulta que “nos termos do n.º 3 do art. 78.º do CIRC, a operação a que respeitam as correções descritas, não pode ser classificada como de cobertura. A ser uma operação referenciada nesse artigo, destinar-se-ia a cobrir riscos s/ divisas o que manifestamente não é o caso, mas sim de sinal contrário. Ora a atividade exercida por empresas, e conforme refere a Directriz Contabilística n.º 17, só caso o objetivo da mesma tenha a natureza financeira este custo caberia dentro do âmbito do art. 23.º do citado diploma legal. Ao ter procedido da forma descrita no presente relatório, a firma não observou o disposto no citado artigo, motivo pelo qual dou o meu acordo às correções efectuadas. (…)”

Por sua vez, a sentença proferida pelo Tribunal a quo faz tábua rasa da fundamentação do ato de liquidação adicional, ao decidir que “… da própria petição inicial resulta, salvo melhor opinião, que a impugnante teve, sobretudo, em mente um processo de internacionalização que teria início com a constituição de uma sociedade nos Estados Unidos da América - a G. Alabama. Isto é, o que resulta daqui é que tais custos não são indispensáveis para a formação de proveitos ou para a fonte produtora da impugnante. Tais custos são é indispensáveis para a G. Alabama.”.

Ora, e desde já, a primeira conclusão a retirar da apreciação da sentença sub judice, é que a Recorrente tem razão quando lhe assaca o erro de julgamento de direito.

Com efeito, a sentença labora num erro de interpretação do regime processual aplicável, que não legitimava o Tribunal a ignorar a fundamentação do ato de liquidação adicional impugnado, para sustentar a decisão numa interpretação – aliás, errada - do que é afirmado pela Impugnante, aqui Recorrente, na respetiva PI.

Sobre esta questão, já em decisão proferida em 2011-02-02, no proc. 0621/09 (disponível para consulta em www.dgsi.pt), o Supremo Tribunal Administrativo referia que o Tribunal de primeiro conhecimento da causa não está legitimado a invocar e valorar razões de direito que não foram suscitadas pela Administração para justificar e praticar os atos impugnados, “recorrendo a uma fundamentação que terá julgado mais adequada para aferir da legalidade desses actos mas que não pode ser aceite porque os poderes de cognição do tribunal não podem ir além dos fundamentos de que o acto impugnado explicitamente partiu”. E acrescentava, “[o] processo tributário de impugnação situa-se no domínio do contencioso de mera legalidade, visando apenas a apreciação da legalidade da actuação da Administração tal como ela ocorreu, não podendo o tribunal apreciar se a sua actuação poderia basear-se noutros fundamentos, sob pena de violação do princípio da separação de poderes constitucionalmente garantido e do qual decorre que só à Administração compete decidir sobre a prática ou não de actos administrativos e tributários e que o tribunal não pode substituir-se a ela, sancionando o acto com a fundamentação jurídica que julgue mais adequada.” (destacado nosso; no mesmo sentido, cf. Acórdãos do STA proferidos em 2011-03-02, no proc. 049/10, em 2014-02-26, no proc. 0951/11, em 2016-01-27, no proc. 043/16, e em 28-10-2020, no proc. 02887/13.8BEPRT).

Acresce que o argumento no qual a sentença suporta a decisão não só não se extrai da PI, como não encontra sustento em qualquer elemento factual junto aos autos.

Donde há que concluir que na apreciação desta questão a sentença padece de erro de julgamento de direito, na sua modalidade de erro de estatuição (cf. PINTO, Rui – Manual do Recurso Civil. Volume I. Lisboa, AAFDL editora, 2020, pág. 27), por fazer uma errada interpretação do regime processual da impugnação judicial, tal como resulta claramente do supracitado aresto do STA.

Vejamos então.
Estando em causa uma liquidação adicional de IRC, o ónus de provar a existência do facto tributário corre por conta da Administração fiscal, tal como resulta do disposto no art. 75.º, n.º 1, conjugado com o disposto no n.º 1 do art. 74.º, ambos da LGT.

Como também já foi referido, a liquidação adicional foi efetuada em consequência de inspeção tributária tendo por objeto, no que aqui importa, o exercício de 2004 da Recorrente, e concretamente, a pertinência da declaração pela mesma de prejuízos fiscais no montante de EUR 4.871.636,25, resultante de uma perda financeira decorrente de, e citando o próprio RIT, “diferenças cambiais ocorridas em duas operações financeiras sobre divisas, celebradas pela G. (com o Santander e com o BBVA), a qual cedeu a sua posição financeira à G. , com todos os direitos e obrigações inerentes, conforme preceituado no acordo supramencionado, com efeitos à data de 23/09/2004”.
No RIT é referida com detalhe a contextualização da operação tal como a mesma foi relatada aos SIT pelos “responsáveis da G.”, assim como os respetivos contornos concretos, constando em anexo o contrato de cedência e os contratos de opção sobre divisas (que titularam a operação), celerado o primeiro entre a G. e a G. , aqui Recorrente, e os segundos, entre a G. e os bancos SANTANDER CENTRAL HISPANO SA MADRID, e BILBAO VIZCAYA ARGENTARIA, SA.

Sublinhe-se que esta contextualização não é posta em causa pelos SIT, que se limitam a transcrever o que a propósito lhes foi relatado pelos responsáveis da Recorrente, não questionando o circunstancialismo que rodeou a operação ou os seus contornos concretos, e, muito menos elencando qualquer facto que os colocasse em causa.

Ou seja, e no que se reporta aos contornos concretos da operação, como refere a Recorrente, não é questionada a materialidade da perda nem, como veremos, é seriamente questionada a sua contabilização como operação de cobertura.

Assim, e muito sinteticamente, o que motivou a operação foi a necessidade de cobertura do risco derivado das flutuações de câmbio entre o euro e o dólar americano tendo em vista um investimento em dólares que a G. pretendia efetuar nos Estados Unidos, e veio a fazer, através da constituição da G. Alabama, operação que implicaria um investimento inicial avaliado em USD 75.000.000, como, aliás, decorre do contrato de cedência anexo ao RIT (cf. respetivo considerando n.º 3).

A Recorrente explica ainda que a expansão para os Estados Unidos da América se justificava em função do volume de trabalho que se antevia decorrer de um novo cliente que considerava estratégico, a Mercedes-Daimler-Chrysler.

Por motivos de obtenção de economias de escala a sociedade holding espanhola G. negociou e celebrou os contratos de opção em nome da Recorrente, cedendo-lhe posteriormente a sua posição, como decorre igualmente do contrato de cedência junto ao RIT.

A Recorrente procurou assim salvaguardar-se de uma futura valorização do dólar americano, que refere que de acordo com a informação e as previsões de que dispunha era expetável, sendo que, ao invés, uma brusca e inesperada desvalorização cambial do dólar americano face ao euro em novembro de 2004 originou a perda em questão.

Recorde-se a propósito que, tal como é referido pela Recorrente, nada de inusual ou anormal resulta da contratação, no caso, por uma empresa de dimensão apreciável, de instrumentos financeiros derivados para acautelar futuras oscilações de uma taxa de câmbio.

Com efeito, o que está em causa no caso em apreço são dois contratos de opção, entendendo-se como tal “os contratos a prazo que atribuem a uma das partes um direito potestativo de compra ou de venda de um certo ativo subjacente por preço e em (ou até) data predeterminados, a executar mediante liquidação física ou financeira, contra a obrigação de pagamento de um prémio” (cf. Antunes, José Engrácia – Instrumentos Financeiros. 2.ª edição. Coimbra: Almedina, 2014, pág. 149, e do mesmo autor Direito dos Contratos Comerciais. 2.ª reimpressão da edição de setembro /2009. Coimbra: Almedina, 2012, pág. 640).

Ora, sem prejuízo de concretização destes contratos comportar um risco, não podem por isso desconsiderar-se, sem mais, e apenas por esse motivo.

De facto, as opções são um instrumento financeiro derivado, que enquanto tal se caraterizam pelo facto de “serem construídos em função de um outro ativo subjacente (…) do qual depende o seu valor”, e que, não são mais do que um (a par de outros) instrumento societário de “financiamento estruturado”, que por sua vez se caracteriza por se destinar a “refinanciar e cobrir riscos associados a qualquer atividade produtiva, para além das formas convencionais que constam do balanço” (Oliveira, Ana Perestrelo de – Manual de Corporate Finance. 2.ª edição. Coimbra: Almedina, 2017, págs. 186 e 175, respetivamente).

Do RIT decorre o entendimento de que os contratos celebrados não constituíram uma operação de cobertura, porque a G. não eliminou ou reduziu riscos, antes tendo criado “um risco desnecessário”, que a operação teria permitido ganhos financeiros para a empresa caso se verificasse a valorização do dólar, mas que arriscou “obter perdas incontroláveis (que poderiam atingir valores exorbitantes) no caso de se verificar uma desvalorização do dólar”, referindo-se mesmo que a “G. teve um custo financeiro elevado porque “apostou” no cavalo errado: previu uma valorização do dólar e afinal o dólar desvalorizou”, e ainda que foi “a G. que criou o risco de obter perdas financeiras. E criou o risco porque quis. Se não contratasse os instrumentos financeiros, não teria obtido as perdas”.

Em suma, defendem ali os SIT que a Recorrente terá criado um risco desnecessário, pelo que a operação é qualificada como tendo “carácter especulativo”, e ainda que a atividade da empresa não é compra e venda de divisas e que, por esse motivo, esta operação não teve qualquer correlação com proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou com a manutenção da fonte produtora.

É esta a fundamentação do ato que resulta também sintetizada no despacho que recaiu sobre o RIT a que foi já aqui feita referência.

Assim sendo, decorre do RIT e do despacho que sobre o mesmo recaiu que a Administração fiscal pretende requalificar como “operação especulativa” o que a Impugnante, aqui recorrente qualificou e registou contabilisticamente como operação de cobertura.

Para tanto, socorre-se a Administração fiscal da noção de “operações de especulação” constante na Diretriz Contabilística n.º 17 (“Contratos de futuros”), que as define como aquelas que “tenham por objeto a negociação com exposição a riscos”.

Na mesma Diretriz n.º 17, as operações de cobertura eram definidas como aquelas que “… se destinem à proteção de riscos associados a posições (ativas ou passivas) detidas, comprometidas, ou que, por força das atividades operacionais, se prevejam venham a ser detidas”.

Por sua vez, esta matéria encontrava-se regulada à data no art. 78.º do CIRC, no qual se dispunha o seguinte, na redação aplicável (conferida pelo Decreto-Lei n.º 198/01, de 3 de julho):
Artigo 78.º
Instrumentos financeiros derivados – regras gerais
1 - Na consideração dos proveitos ou ganhos e custos ou perdas relativas a instrumentos financeiros derivados, salvo os previstos no artigo seguinte, deve observar-se o seguinte:
a) Tratando-se de operações efectuadas em bolsas de valores, em curso no fecho de um exercício, aqueles proveitos ou ganhos e custos ou perdas são imputáveis àquele exercício e determinados de acordo com o valor de mercado verificado no último dia, do mesmo exercício, no mercado em que a operação foi efectuada;
b) Tratando-se de operações não efectuadas em bolsa de valores, aqueles proveitos ou ganhos e custos ou perdas são imputáveis ao exercício da liquidação da correspondente operação, excepto quanto a proveitos ou ganhos já realizados ou custos ou perdas já suportados em exercícios anteriores.
2 - Relativamente às operações a que se refere a alínea a) do número anterior cujo objectivo exclusivo seja o de cobertura de operações a efectuar no exercício seguinte, num mercado de natureza diferente e subordinadas a critérios valorimétricos diversos, é permitido o diferimento dos ganhos não realizados, apurados num exercício, para, no máximo, os dois exercícios seguintes, na medida das perdas ainda não realizadas no instrumento coberto.
3 - Sem prejuízo do disposto no n.º 5, são consideradas operações de cobertura as operações que justificadamente contribuam para a eliminação ou redução de um risco real decorrente de um compromisso firme, incluindo os compromissos futuros de operações efectuadas no exercício ou em exercícios anteriores, mas ainda em curso, ou de uma operação futura a realizar, com elevada probabilidade, no exercício seguinte, respeitantes a um mercado de natureza diferente e subordinadas a critérios valorimétricos diversos, de tal modo que se verifique uma relação económica incontestável entre o elemento coberto e o de cobertura e seja quantificável uma correlação elevada entre eles, por forma que de tal operação se deva esperar a neutralização, total ou parcial, mas substancial, das perdas eventuais sobre o elemento coberto com os ganhos na operação de cobertura.
4 - Para efeitos do disposto no número anterior, só é considerada de cobertura a operação cujo valor não exceda o valor de cobertura considerado necessário face à correlação existente entre a operação de cobertura e a operação coberta (DL198/01, 03.07.01).
5 - Não são aceites, fiscalmente, como operações de cobertura:
a) As operações efectuadas a tal título com vista a cobrir riscos a incorrer por outras pessoas ou entidades ou por estabelecimentos da que realiza as operações cujos rendimentos não sejam tributados pelo regime normal de tributação;
b) As operações efectuadas por fundos de investimento, incluindo fundos de fundos, fundos de capital de risco, fundos de pensões, empresas de seguros, instituições de crédito e outras instituições financeiras, às quais também não é aplicável o disposto nos n.ºs 8 e 9;
c) As operações que não forem devidamente identificadas em modelo apropriado.
6 - A não verificação dos requisitos referidos no n.º 3 determina, a partir da data dessa não verificação, a desqualificação da operação como de cobertura.
7 - Não sendo efectuada a operação coberta, ao valor do imposto relativo ao exercício em que a mesma se efectuaria deve adicionar-se o imposto que deixou de ser liquidado por virtude do disposto no n.º 2, acrescido dos juros compensatórios correspondentes, ou, não havendo lugar ao apuramento do IRC, deve corrigir-se em conformidade o prejuízo fiscal declarado.
8 - Sem prejuízo do disposto no número seguinte, a dedução de perdas apuradas no fecho de um exercício, relativamente a contratos em curso no fecho desse exercício, é limitada ao montante em que excedam os ganhos ainda não tributados em posições simétricas.
9 - Só são dedutíveis os custos ou perdas relativos a posições simétricas que forem devidamente identificadas em modelo apropriado, o qual deve integrar o processo de documentação fiscal a que se refere o artigo 121.º (DL 198/01,03.07.01).
10 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, considera-se que:
a) São posições simétricas as posições em que os valores, do capital ou do rendimento, sofram variações correlacionadas de tal forma que o risco de variação do valor de uma delas seja compensado pela variação de valor, do capital ou do rendimento numa outra posição, independentemente da natureza, do local ou da duração das mesmas (DL 198/01, 03.07.01);
b) Por posição entende-se a detenção, directa ou indirecta, de contratos relativos a instrumentos financeiros derivados, de valores mobiliários, de moedas, de títulos de crédito negociáveis, de empréstimos contraídos ou concedidos ou de compromissos assumidos sobre esses elementos.
11 - Se a substância de uma operação ou conjunto de operações difere da sua forma, o momento, a fonte e carácter dos pagamentos e recebimentos, proveitos e custos, ganhos e perdas, decorrentes dessa operação, podem ser recaracterizados pela administração fiscal de modo a ter em conta essa substância.

Com efeito, na apreciação desta questão há que manter presente que em Portugal foi consagrado um modelo de dependência parcial entre a contabilidade e o direito fiscal na determinação do lucro tributável, pelo que é indispensável a consideração das correções ao lucro tributável constantes na lei fiscal, tal como resulta do disposto no n.º 2 do art. 3, e do n.º 1 do art. 17.º, ambos do CIRC.

Ora, não se desconhece que a Administração fiscal está autorizada pela lei, maxime nos termos do disposto no n.º 4 do art. 36.º da LGT, a (re)qualificar o negócio jurídico efetuada pelas partes, não se encontrando vinculada pela qualificação por estas efetuada, mesmo em documento autêntico.

No entanto, essa tarefa de requalificação está necessariamente vinculada às regras gerais de interpretação e aplicação das leis, por um lado, e por outro, o facto de se encontrar legitimada, perante um documento – no caso, vários contratos – a “afastar o nomen iuris atribuído pelas partes para efeito de determinar a qualificação a atribuir a um determinado contrato”, não a desonera de ao fazê-lo ter de levar em conta o seu “real conteúdo jurídico, composto pelos direitos e obrigações efectivamente acordados” (Courinha, Gustavo Lopes,A Cláusula Geral Anti-Abuso No Direito Tributário. Contributos para a Sua Compreensão, reimpressão, Coimbra: Livraria Almedina, 2009, cf. pág. 111).

Ou seja, e dito por outras palavras, na sua tarefa de interpretação dos contratos celebrados pelos particulares, e sem que tenha necessidade de recorrer a qualquer procedimento especial ou a comprovar a “intenção/motivação em obter propositadamente uma vantagem fiscal de caráter elisivo”, a Administração fiscal apenas se encontra autorizada pelo citado n.º 4 do art. 36.º da LGT (re)qualificar o negócio jurídico através da interpretação do conteúdo jurídico do contrato, apenas lhe sendo possível requalificar quando o mesmo revele uma realidade diversa do respetivo nomen iuris.

Com efeito, a Administração fiscal só poderá afastar-se do conteúdo jurídico do negócio celebrado se estiver para tanto autorizado por alguma disposição legal concreta, como será o caso do n.º 2 do art. 38.º da LGT (na redação vigente à data) no que se refere a operações abusivas envolvendo diversos tipos de negócios em cadeia ou vários sujeitos passivos, para as quais a interpretação se revela insuficiente (cf. DOURADO, Ana Paula - Direito fiscal. Lições. 5.ª edição. Coimbra: Almedina, 2020, pág. 303), ou do art. 39.º da LGT, relativamente a negócios simulados, sendo certo que nesses casos terá igualmente de produzir a prova exigida para acionar os correspondentes regimes, não sendo aqui, manifestamente, o caso.

Ora, o que resulta da apreciação do clausulado dos contratos que titularam a operação é consistente com a argumentação da Impugnante; a G. , retirando sinergias da sua posição estratégica, e com o objetivo de obter cobertura para o risco de possíveis flutuações do câmbio entre o euro, e o dólar americano, e tendo em vista o investimento inicial implicado – estimado no montante de 75 milhões de USD – na operação a realizar pela G. nos Estados Unidos, e a solicitação desta última, formalizou dois contratos de opção junto de entidades bancárias espanholas, cuja posição lhe foi cedida, contratos esses que são anexos ao contrato de “cedência”.

Os termos dos contratos de opção foram também exaustivamente dilucidados pela Recorrente perante a Administração fiscal, tendo sido explicado que de acordo com a informação disponível o que era previsível e que justificava a cobertura, era o risco de valorização do dólar, e não o contrário, como acabou por suceder.

A Administração aceitou sem reservas esta contextualização da operação, e não adianta qualquer argumento que sustente a requalificação do negócio para além da circunstância de o mesmo não se ter concretizado de acordo com as expetativas da Recorrente, o que não é suficiente.

Por outro lado, e no que diz respeito à não aceitação fiscal da operação como sendo de cobertura, alicerça a sua argumentação na definição, aliás, bastante ampla, de operações especulativas na supracitada Directriz n.º 17, que considera como tal as operações que “tenham por objeto a negociação com exposição a riscos”.

Sucede que nem o motivo nem a finalidade da operação, no enquadramento que lhe foi dado pela Recorrente suportado nos contratos que a titularam, foi uma negociação especulativa no sentido de ter por objetivo a “exposição a riscos”.

Cabia por isso à Administração, e no caso, aos SIT, o esforço de fundamentar o ato de forma objetiva e apoiada em factos concretos, de modo a suportar, no caso concreto, o não preenchimento dos requisitos de enquadramento da operação como sendo de cobertura, nos termos da referida Directriz e do disposto no supracitado art. 78.º do CIRC, o que, com o devido respeito, não logrou fazer.

De facto, a argumentação dos SIT revelada no RIT reconduz-se ao facto de a operação não ter tido o resultado esperado pela Recorrente, o que, como esta refere, a colocaria na posição inaceitável de para a mesma operação ver os proveitos das operações tributados, sempre que forem gerados lucros, mas, assimetricamente, ver recusada a consideração das correspondentes perdas, quando não tenha o resultado pretendido e por esse motivo, como foi o caso, gerar prejuízos.

Impunha-se por isso que de modo circunstanciado, objetivo e fundado em factos concretos, os SIT tivessem explicitado por que motivo a operação em causa não preencheu os requisitos previsto no n.º 3 do art. 78.º, do CIRC, ou preenchendo-os, por que motivo nos termos do n.º 5 do mesmo artigo não podia ser relevada fiscalmente, não sendo suficiente para o efeito limitar-se a referir que a operação foi especulativa porque não teve o resultado esperado, sustentando esta conclusão em afirmações conclusivas e como a de que a Recorrente não eliminou ou reduziu riscos, antes tendo criado “um risco desnecessário”, que a operação teria permitido ganhos financeiros para a empresa caso se verificasse a valorização do dólar, mas que assim arriscou “obter perdas incontroláveis (que poderiam atingir valores exorbitantes) no caso de se verificar uma desvalorização do dólar”, que a “G. teve um custo financeiro elevado porque “apostou” no cavalo errado: previu uma valorização do dólar e afinal o dólar desvalorizou”, ou que foi a G. que criou o risco de obter perdas financeiras, “porque quis”, pois “[s]e não contratasse os instrumentos financeiros, não teria obtido as perdas”.

Por outro lado, e no que se refere ao argumento de que “a atividade da empresa não é compra e venda de divisas”, procurando-se assim justificar a exclusão da perda em causa do regime de dedutibilidade previsto no art. 23.º do CIRC, tal asserção também não é correta.

Com efeito, a atividade da empresa “consiste nas operações resultantes do uso do seu património, em particular dos seus ativos”, que não se resumem aos ativos físicos, mas incluem também os respetivos ativos financeiros, por exemplo, investimentos financeiros (cf. MARTINS, António – A dedutibilidade dos juros e a noção de “atividade” das sociedades: a propósito do artigo 23.º do CIRC. Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal. Coimbra, Ano 5 n.º 4, Inverno 2012, págs. 79-111), sendo que o investimento em causa estava associado e pretendia apoiar uma operação que se inseria no escopo da sociedade, no caso, o investimento a realizar nos Estados Unidos.

Ou seja, e dito por outras palavras, a atividade da empresa não se resume “ao conjunto de operações produtivas” que implicam o uso dos seus ativos físicos, passando também, necessariamente, pela realização de investimentos, também eles sujeitos a registo no correspondente item do balanço (idem, ibidem).

Em face do exposto, e perante a conclusão de que em causa estava efetivamente um custo decorrente do financiamento de uma operação ligada ao escopo societário da ora Recorrente, a sua dedutibilidade deveria ter sido aceite, nos termos do disposto na alínea c) do n.º 2 do art. 23.º do CIRC, na redação em vigor à data, disposição na qual se admitia a dedutibilidade de encargos de natureza financeira.

Com efeito, e como é acertadamente referido pela Recorrente, há muito que se encontra clarificado pela jurisprudência dos Tribunais superiores que desde que o custo ou a perda se encontrem corretamente contabilizados e se situem no âmbito da atividade da empresa, deverão ser aceites ainda que o investimento se venha a revelar economicamente infrutífero ou ruinoso, não estando a Administração fiscal legitimada a sindicar a bondade e oportunidade das decisões económicas da gestão da empresa, sob pena de se intrometer na liberdade e autonomia de gestão da sociedade (cf. neste sentido designadamente, os Acórdãos do STA proferidos em 2014-09-24, no proc. 0779/12, em 2017-11-15, no proc. 0372/16, em 2017-06-28, no proc. 0627/16, e pelo Pleno da Secção de Contencioso Tributário em 2018-06-27, no proc. 01402/17, todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt).

Por outro lado, os “custos incorridos no desenvolvimento de uma atividade que não estava formalmente inscrita no seu objeto social podem ser considerados custos indispensáveis(cf. neste sentido o Acórdão do STA proferido em 2019-12-04, no proc. 01775/15, disponível para consulta em www.dgsi.pt).

Assim sendo, e uma vez que a sentença sub judice padece de erro de julgamento de direito, por não ter anulado o ato de liquidação adicional em questão, na medida em que o mesmo fez uma incorreta interpretação e, consequentemente, uma incorreta aplicação ao caso do disposto nos arts. 78.º e 23.º do CIRC, o presente recurso deve ser julgado procedente.

Em face do seu decaimento, nos presentes autos de recurso e na 1.ª instância, é a Recorrida condenada em custas, em ambas as instâncias [cf. art. 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, aplicável ex vi art. 2.º, alínea e) do CPPT]
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Conclusão:

Preparando a decisão, formulamos a seguinte síntese conclusiva:

Como tem vindo a ser consistentemente afirmado pelo Supremo Tribunal Administrativo, no domínio do contencioso de mera legalidade, que apenas visa a apreciação da legalidade da atuação da Administração, como sucede com a impugnação judicial de atos de liquidação de tributos, o Tribunal de primeiro conhecimento da causa não está legitimado a invocar e valorar razões de direito que não foram suscitadas pela Administração para justificar e praticar os atos impugnados.

Na sua tarefa de requalificação (cf. n.º 4 do art. 26.º da LGT) a Administração fiscal está necessariamente vinculada às regras gerais de interpretação e aplicação das leis, por um lado, e por outro, o facto de se encontrar legitimada perante um documento – no caso, vários contratos – a “afastar o nomen iuris atribuído pelas partes para efeito de determinar a qualificação a atribuir a um determinado contrato”, não a desonera de, ao fazê-lo, ter de levar em conta o seu “real conteúdo jurídico, composto pelos direitos e obrigações efectivamente acordados”.

A Administração fiscal só poderá afastar-se do conteúdo jurídico do negócio celebrado pelos contribuintes se estiver para tanto autorizada por alguma disposição legal concreta, como será o caso do n.º 2 do art. 38.º da LGT (na redação vigente à data) no que se refere a operações abusivas envolvendo diversos tipos de negócios em cadeia ou vários sujeitos passivos, ou do art. 39.º da LGT, relativamente a negócios simulados, sendo certo que nesses casos terá igualmente de produzir a prova exigida para acionar os correspondentes regimes, não sendo aqui, manifestamente, o caso.

As opções são um instrumento financeiro derivado, e como tal, não são mais do que um (a par de outros) instrumento societário de “financiamento estruturado”.

Para efeitos de interpretação do regime de dedutibilidade fiscal dos custos em sede de IRC aplicável em 2004, a atividade da empresa não se resume “ao conjunto de operações produtivas” que implicam o uso dos seus ativos físicos, passando ainda, necessariamente, pela realização de investimentos, também eles sujeitos a registo no correspondente item do balanço.

Atendendo ao ónus da prova que sobre si recaía no âmbito do procedimento de liquidação, a Administração fiscal não estava autorizada, sem sustentação em factos concretos, a requalificar como especulativa, rejeitando a relevância fiscal nos termos do disposto no (então) art. 78.º do CIRC de uma operação registada pela Recorrente como sendo de cobertura.

III. DECISÃO

Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento ao recurso que recaiu sobre o despacho proferido em 2008-12-29, e em conceder provimento ao recurso interposto da sentença, e em consequência, revogar a sentença recorrida e julgar a impugnação judicial procedente, anulando a liquidação adicional de IRC e de juros compensatórios impugnada.
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Custas pela Recorrente no recurso do despacho proferido em 2008-12-29, e custas pela Recorrida, em ambas as instâncias, no recurso da sentença.
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Porto, 11 de março de 2021
Margarida Reis (relatora) - Maria do Rosário Pais (em substituição) – Paulo Moura.