Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00134/18.5BEPRT
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:06/07/2018
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Ana Patrocínio
Descritores:INDEFERIMENTO LIMINAR
ERRO NA FORMA DO PROCESSO
CONVOLAÇÃO
ACÇÃO ADMINISTRATIVA
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
ARTIGO 244.º DO CAC
Sumário:I - O indeferimento liminar só terá lugar quando for de todo em todo impossível o aproveitamento da petição inicial, isto tendo em atenção que o princípio da pronúncia sobre o mérito se sobrepõe a questões formais que não interfiram e ponham em causa o mesmo.
II - Assim, o despacho de indeferimento liminar só é admissível quando a improcedência da pretensão do autor for tão evidente e, razoavelmente, indiscutível, que torne dispensável assegurar o contraditório (artigo 3.º, n.º 3, do CPC) e inútil qualquer instrução e discussão posterior.
III - A errónea indicação do meio de defesa na notificação efectuada ao contribuinte não torna idóneo o meio processual utilizado, determinando apenas a aplicação do disposto no artigo 37.º, n.º 4 do CPPT no caso de se tornar impossível a convolação no meio processual adequado.
IV - O erro na forma do processo, nulidade decorrente do uso de um meio processual inadequado à pretensão de tutela jurídica formulada em juízo, afere-se pelo pedido.
V - A reclamação a que se reportam os artigos 276.º a 278.º do CPPT assume a função de um incidente típico do processo de execução fiscal, por ser uma ocorrência estranha ao desenvolvimento normal do processo, tendo a estrutura de uma acção de impugnação.
VI - A acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido em matéria fiscal trata-se de um meio processual residual, que é utilizado para assegurar o princípio da tutela jurisdicional efectiva, quando nenhum outro meio previsto legalmente é adequado ao efeito jurídico concreto que se pretende obter com a acção.
VII - A decisão da autoridade aduaneira sobre a atribuição do efeito suspensivo previsto no artigo 244.º do Código Aduaneiro Comunitário, seja ou não provocada por requerimento do interessado na sua obtenção, é controlável através de impugnação contenciosa, a que são aplicáveis as regras do direito interno português, conforme é determinado no artigo 245.º do Código Aduaneiro Comunitário. Por isso, actualmente, nos termos do artigo 97.º, n.º 1, alíneas d) e p) e n.º 2 do CPPT, pode ser impugnada através de acção administrativa.
VIII – Tendo utilidade, a convolação na forma processual adequada justifica-se por razões de economia processual, não sendo, nestas circunstâncias, de indeferir liminarmente uma petição inicial por verificação de erro na forma do processo.
Recorrente:F...
Recorrido 1:Alfândega do Freixieiro
Decisão:Concedido provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. Relatório

F..., com o NIF 1..., melhor identificado nos autos, interpôs recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, proferida em 31/01/2018, que indeferiu liminarmente a presente impugnação judicial, deduzida contra a decisão de indeferimento do pedido de suspensão da cobrança da liquidação n.º 2017/9008439, por verificação da excepção de erro na forma de processo.

O Recorrente terminou as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões:
A) - O requerimento de suspensão da execução (do prazo de pagamento da cobrança) da dívida aduaneira com base no artigo 244.°, 2.° parágrafo do CAC com fundamento na desconformidade da decisão contestada com a legislação aduaneira (violação do prazo de caducidade previsto no artigo 221.º, n.º 3 do CAC) apresentado pelo recorrente na Alfandega do Freixieiro, com pedido de dispensa de garantia, é necessariamente anterior à instauração da execução fiscal destinada à sua cobrança coerciva.
B) - Do seu indeferimento pela autoridade aduaneira nunca poderia o recorrente socorrer-se da reclamação prevista nos artigos 276.° e segs. do CPPT;
C) - Tão-pouco poderia o recorrente obter a suspensão da execução da decisão contestada por meio de uma ação administrativa, uma vez que requereu juntamente com a suspensão da execução a dispensa de prestação de garantia, ao abrigo do 3.° parágrafo do citado artigo 244.° do CAC.
D) Só a impugnação prevista na al. d) do n.º 1 do artigo 97.° do CPPT constitui meio idóneo de reação judicial ao indeferimento daquele pedido de suspensão com dispensa de prestação de garantia, sendo certo que está em causa a apreciação da legalidade do ato de liquidação, por violação do prazo de 3 anos previsto no artigo 221.º, n.º 3 do CAC.
NORMAS VIOLADAS: 97.º, n.º 1, al d) do CPPT; artigo 244.° do CAC.
Termos em que a sentença que inferiu liminarmente por erro na forma de processo a impugnação deduzida contra a decisão da Alfândega do Freixieiro que indeferiu o pedido de suspensão da cobrança da dívida aduaneira com dispensa de prestação de garantia, deverá ser revogada e substituída por outra que ordene ao tribunal recorrido conhecer do pedido.
****
Não houve contra-alegações.
****
O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de dever ser negado provimento ao recurso.
****
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
****
II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO – QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelo Recorrente, estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sendo que importa apreciar se a decisão recorrida enferma de erro de julgamento ao indeferir liminarmente a impugnação judicial por verificação de erro na forma do processo.

III. Fundamentação
1. Matéria de facto
Estão explicitados no despacho recorrido os fundamentos de facto e de direito que se julgaram relevantes para a decisão proferida no sentido do indeferimento liminar da impugnação judicial.
Tratando-se de um indeferimento liminar, a questão é meramente de alegação, não havendo, por isso, necessidade de fixar (destacadamente) qualquer matéria de facto.
Assim, para melhor compreensão, passamos a transcrever o despacho prolatado em primeira instância:
F..., com o NIF 1…, melhor identificado nos autos, doravante abreviadamente designado Impugnante, deduziu a presente Impugnação da decisão de indeferimento do pedido de suspensão da cobrança da liquidação n.º 2017/9008439.
Para tanto invoca: que a obrigação de pagamento das imposições devidas deve ser suspensa até à decisão da RG; que também pediu suspensão do prazo de pagamento da cobrança e um pedido de dispensa de pagamento de direitos; o art. 169/11, do CPPT impede a suspensão da execução fiscal sempre que estejam em causa recursos próprios comunitários, como é o caso; que pretende apenas uma medida provisória, não podendo tal questão ser relegada para a decisão da RG; que fundamentou o seu pedido de suspensão.
Com tais fundamentos termina requerendo que o despacho de indeferimento do pedido de suspensão da cobrança de direitos e demais imposições, com dispensa de prestação de garantia seja revogado e substituído por outro que dê suporte à pretensão do Autor.
*
Cumpre apreciar desde já da admissibilidade da presente oposição.
Atento o pedido formulado verifica-se que o mesmo não é adequado à forma processual adoptada, isto é, através da impugnação judicial não pode o Impugnante obter o efeito pretendido.
Nestes termos, verifica-se o erro na forma de processo.
O erro na forma do processo, nulidade decorrente do uso de um meio processual inadequado à pretensão de tutela jurídica formulada em juízo, afere-se pelo pedido, eventualmente com auxílio da causa de pedir, conquanto esta possa ser utilizada como elemento de interpretação daquele, quando a esse respeito existam dúvidas.
Com efeito, a jurisprudência tem vindo a adoptar uma posição de grande flexibilidade na interpretação do pedido quando, em face das concretas causas de pedir invocadas, se possa intuir – ainda que com recurso à figura do pedido implícito – qual a verdadeira pretensão de tutela jurídica, mas ainda assim, o método para aferir da verificação do erro na forma do processo é através da análise do pedido.
Assim, para saber se ocorre ou não erro na forma do processo é preciso atentar no pedido que foi formulado, na concreta pretensão de tutela jurisdicional que o contribuinte visa obter; já saber se as causas de pedir aduzidas podem ou não suportar esse pedido é matéria que se situa no âmbito da procedência. Por isso, com o fundamento de que as causas de pedir invocadas não são adequadas ao pedido formulado poderá decidir-se no sentido da improcedência da acção (eventualmente, até do indeferimento liminar da petição inicial), mas não no sentido da verificação do erro na forma do processo. Veja-se a este propósito o acórdão do STA de 28.03.2012, proferido no processo n.º 1145/11.
A impugnação judicial visa atacar os vícios da liquidação e obter a anulação das liquidações, logo não é a forma processual adequada às pretensões do Impugnante.
Por outro lado, os elementos juntos aos autos permitem decidir a sorte dos mesmos em sede liminar.
Com efeito, o erro na forma de processo constitui nulidade principal e de conhecimento oficioso e importa a anulação dos actos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, tanto quanto possível, da forma estabelecida pela lei (artigos 199, e 202, do CPPT, ex vi, do art. 98/4, do CPPT e 97/3, da LGT).
Importa analisar da eventual possibilidade de convolação na forma processual adequada.
Analisado o pedido do Impugnante afigura-se-nos que o mesmo possa eventualmente adequar-se à reclamação prevista nos artigos 276 e ss., do CPPT, sendo que neste caso não seria legalmente admissível a sua convolação por intempestividade, uma vez que a notificação do despacho impugnado ocorreu em Outubro de 2017 (Doc. 1), tendo a p.i. sido apresentada em Janeiro de 2018.
Eventualmente poderá ser deduzida Acção Administrativa ou a acção prevista no art. 145, do CPPT, mas a causa de pedir não nos permite fazer tal selecção pelo que deverá ser o Impugnante a conformar a sua pretensão com a acção adequada.
Acresce que o facto de a ATA referir na notificação que poderá impugnar não impossibilita que o Impugnante deduza a acção adequada nos termos da lei, uma vez que se encontra representado por advogado, podendo ainda usar do mecanismo previsto no art. 37/4, do CPPT.
*
Em face do exposto, indefiro liminarmente a presente acção por verificação da excepção de erro na forma de processo, sem prejuízo de o Autor vir a deduzir a acção adequada, nos termos do art. 37/4, do CPPT.

2. O Direito

O indeferimento liminar só terá lugar quando for de todo impossível o aproveitamento da petição inicial, isto tendo em atenção que o princípio da pronúncia sobre o mérito se sobrepõe a questões formais que não interfiram e ponham em causa o mesmo. Assim, o despacho de indeferimento liminar só é admissível quando a improcedência da pretensão do autor for tão evidente e, razoavelmente, indiscutível, que torne dispensável assegurar o contraditório (artigo 3.º, n.º 3, do CPC) - entendido na sua dimensão positiva de direito de influir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo - e inútil qualquer instrução e discussão posterior.
Daí que a jurisprudência tenha vindo a afirmar que o despacho de indeferimento liminar, dada a sua natureza “radical”, na medida em que coarcta à partida toda e qualquer expectativa de o autor ver a sua pretensão apreciada e julgada, encontrando a sua justificação em motivos de economia processual, deve ser cautelosamente decretado – cfr., por exemplo, Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 24/02/2011, proferido no âmbito do processo n.º 765/10.
Vejamos, agora, se no presente caso estão verificados os requisitos para a rejeição liminar da petição inicial, ou seja, se o seguimento do processo não tem razão alguma de ser e seja desperdício manifesto de actividade judicial - cfr. ALBERTO DOS REIS in Código de Processo Civil anotado, Coimbra Editora, 3.ª edição – reimpressão, vol. II, pág. 373.
Quanto à questão colocada nas conclusões das alegações do presente recurso jurisdicional, haverá, então, que analisar se só a impugnação prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 97.° do CPPT constitui meio idóneo de reacção judicial ao indeferimento do requerimento de suspensão da execução (do prazo de pagamento da cobrança) da dívida aduaneira com base no artigo 244.°, 2.° parágrafo do Código Aduaneiro Comunitário (CAC - Regularmente (CEE) n.º 2913/92 do Conselho, de 12 de Outubro de 1992), com pedido de dispensa de garantia, apresentado pelo Recorrente na Alfandega do Freixieiro, pedido este que foi efectuado com fundamento na desconformidade da decisão contestada com a legislação aduaneira, invocando, para tanto, estar em causa a apreciação da legalidade do acto de liquidação, por violação do prazo de caducidade de 3 anos previsto no artigo 221.º, n.º 3 do CAC.
Como é sabido, é pelo pedido que se afere a adequação do meio processual utilizado ao fim por ele visado: se o pedido formulado pelo autor não se ajusta à finalidade abstractamente figurada pela lei para essa forma processual ocorre o erro na forma do processo (Cfr. Prof. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, volume II, Coimbra Editora, 3.ª edição - reimpressão, págs. 288/289).
Neste caso, o Recorrente lançou mão de impugnação judicial, com vista à impugnação de acto administrativo, e formulou o seguinte pedido: “Nos termos legais aplicáveis e de acordo com os princípios fundamentais de Direito referidos, deverá o despacho de indeferimento do pedido de suspensão da cobrança de direitos e demais imposições, com dispensa de prestação de garantia, ser revogado e substituído por outro que, interpretando e aplicando a lei de acordo com os princípios fundamentais de Direito aplicáveis ao caso, dê suporte à pretensão do A.”
Assim, resulta claro que o Recorrente pretende a eliminação da ordem jurídica do acto de indeferimento e a condenação das autoridades aduaneiras à prática de um acto de suspensão de eficácia, ou seja, não ser executada a cobrança do acto de liquidação no prazo de pagamento, com dispensa de prestação de garantia.
É neste circunstancialismo que se julgou na decisão liminar recorrida verificar-se erro na forma do processo:
“(…) A impugnação judicial visa atacar os vícios da liquidação e obter a anulação das liquidações, logo não é a forma processual adequada às pretensões do impugnante. (…)”
Antes de mais, conforme resulta do documento n.º 1 junto com a petição inicial, consubstanciado no ofício que teve em vista a notificação do acto em crise, mostra-se expressamente referido que desta decisão poderá o contribuinte interpor recurso hierárquico, no prazo de 30 dias, a contar da notificação, nos termos e condições previstas nos artigos 76.º, 66.º, n.º 2 e 67, n.º 1 do CPPT ou impugnação judicial, no prazo de 3 meses após a notificação do indeferimento, de acordo com o estipulado nos artigos 12.º, 102.º, 103.º e 108.º do mesmo Código.
Indo de encontro à decisão recorrida, a verificar-se o erro na forma do processo adoptada, a errónea indicação do meio de defesa na notificação efectuada ao contribuinte não torna idóneo o meio processual utilizado, determinando apenas a aplicação do disposto no artigo 37.º, n.º 4 do CPPT no caso de se tornar impossível a convolação no meio processual adequado, facultando ao contribuinte a possibilidade de utilizar o meio de reacção adequado no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão – cfr. Acórdão do STA, de 12/04/2012, proferido no âmbito do processo n.º 0122/12.
Importa, por isso, começar por sindicar o julgamento de erro na forma do processo efectuado na decisão recorrida.
Neste contexto, tem-se convergentemente concluído que, se o acto administrativo em matéria tributária comporta a apreciação do acto de liquidação, a legalidade deste último, não obstante não ser ele o objecto imediato do recurso, é nele indirectamente apreciada pelo tribunal, justificando-se, por este motivo, a adopção do processo judicial de impugnação. E que, consequentemente, já se o acto administrativo não comporta a apreciação do de liquidação, não há razão para seguir a forma de processo de impugnação judicial, melhor cabendo a acção administrativa.
Assim, se o mesmo acto não aprecia a legalidade da liquidação, recusando fazê-lo, então, o tribunal só vai ver se a autoridade administrativa ao decidir desse modo, o fez, ou não, conforme a lei. E, como o tribunal, desempenhando esta tarefa, deixa intocada a liquidação, a forma processual é acção administrativa.
Desde logo, nos autos não se mostra ínsito o acto de indeferimento, nem a sua fundamentação, o que é um indício de que o indeferimento liminar da acção pode ter sido precipitado. Na verdade, à partida, seria do teor do próprio acto que se poderia constatar se foi ou não apreciada a legalidade do acto de liquidação.
Todavia, considerando o modo como foi instada a autoridade aduaneira, poderá não ser necessário, neste momento, para apreciação do erro na forma do processo.
Relativamente aos actos em matéria aduaneira, como na situação presente, a que é aplicável o Código Aduaneiro Comunitário (cfr. artigo 1.º do mesmo), prevê-se um regime especial de suspensão da execução, no seu artigo 244.º, nos termos do qual ela é concedida por decisão das autoridades aduaneiras sempre que tenham motivos fundados para pôr em dúvida a conformidade do acto com a legislação aduaneira ou seja de recear um prejuízo irreparável para o interessado, ficando a suspensão dependente da prestação de garantia quando houver lugar à aplicação de direitos de importação ou exportação, que, no entanto, não será exigida quando possa suscitar, por força da situação do devedor, graves dificuldades de natureza económica ou social.
O artigo 244.º do Código Aduaneiro Comunitário, sob o título “Direito de recurso”, estabelece o seguinte:
“A interposição de recurso não tem efeito suspensivo da execução da decisão contestada.
Todavia, as autoridades aduaneiras suspenderão, total ou parcialmente, a execução dessa decisão sempre que tenham motivos fundamentados para pôr em dúvida a conformidade da decisão contestada com a legislação aduaneira ou que seja de recear um prejuízo irreparável para o interessado.
Quando a decisão contestada der origem à aplicação de direitos de importação ou de direitos de exportação, a suspensão da execução dessa decisão fica sujeita à existência ou à constituição de uma garantia. Contudo, essa garantia pode não ser exigida quando possa suscitar, por força da situação do devedor, graves dificuldades de natureza económica ou social.”
Este artigo 244.º do Código Aduaneiro Comunitário mais não é do que a afirmação no campo estritamente aduaneiro de um princípio de procedimento tributário geral, de que não é a impugnação judicial (a “interposição de recurso” de que se fala) que tem a virtualidade de um efeito suspensivo da execução do acto tributário de liquidação.
Ora, estando o Recorrente ciente, como decorre da sua petição inicial, que o disposto no artigo 169.º do CPPT não se aplica às dívidas de recursos próprios comunitários – cfr. o seu n.º 6, pretendeu a suspensão da eficácia do acto de liquidação enquanto era apreciada a reclamação graciosa deduzida, socorrendo-se do disposto no artigo 244.º do Código Aduaneiro Comunitário, pedindo, cumulativamente, a dispensa de prestação de garantia.
Efectivamente, no que concerne à suspensão de eficácia pelas autoridades administrativas, é forçoso concluir que a forma de a obter é a prevista neste artigo 244.º, pois é esse o alcance do n.º 6 do artigo 169.º, ao estabelecer que o regime previsto neste artigo não se aplica às dívidas de recursos próprios comunitários – cfr. Acórdão do STA, de 02/03/2005, proferido no recurso n.º 10/05.
Assim, serão as autoridades aduaneiras, e não o órgão de execução fiscal, quem pode decidir sobre a suspensão da execução dos actos de liquidação de receitas tributárias aduaneiras – cfr. Acórdãos do STA, de 21/01/1998, recurso n.º 22315, AP-DR de 06/04/2001, página 4; de 28/01/1998, recurso n.º 22401, BMJ n.º 473, página 260 e CTF n.º 389, página 217; de 01/04/199822647, AP-DR de 06/04/2001, página 121; e de 18/11/1998, recurso n.º 23066, AP-DR de 06/04/2001, página 397.
Dispõem os artigos 243.º e 245.º do Código Aduaneiro Comunitário como segue:
“Artigo 243.º
1. Todas as pessoas têm o direito de interpor recurso das decisões tomadas pelas autoridades aduaneiras ligadas à aplicação da legislação aduaneira e lhe digam directa e individualmente respeito.
Tem igualmente o direito de interpor recurso qualquer pessoa que, tendo solicitado uma decisão relativa à aplicação da legislação aduaneira junto das autoridades aduaneiras, deles não obtenha uma decisão no prazo fixado no n.º 2 do artigo 6º.
O recurso será interposto no Estado-membro em que a decisão foi tomada ou solicitada.
2. O direito de recurso pode ser exercido:
a) Numa primeira fase, perante a autoridade aduaneira designada para esse efeito, pelos Estados-membros.
b) Numa segunda fase, perante uma instância independente, que pode ser uma autoridade judiciária ou um órgão especializado equivalente, nos termos das disposições em vigor nos Estados-membros.”
“Artigo 245.º
As disposições relativas à aplicação do procedimento de recurso serão adoptadas pelos Estados-membros.”
Foi com base nestas disposições legais que o Recorrente submeteu à Alfandega do Freixieiro uma reclamação graciosa versando a liquidação n.º 2017/9008439, que surge por se ter apurado que as mercadorias declaradas para introdução em livre prática e no consumo eram afinal originárias da China e não de Taiwan, tendo alegadamente ocorrido evasão de pagamento de direitos anti-dumping. É nesta primeira fase, ainda perante as autoridades aduaneiras (numa fase não judicial), que o aqui Recorrente apresentou um requerimento de SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO (DO PRAZO DE PAGAMENTO DA COBRANÇA) da divida aduaneira, com fundamento no artigo 244.°, 2.° parágrafo e primeiro fundamento, do CAC, que expressamente dispõe que as autoridades aduaneiras deverão suspender, até ao momento em que tomarem uma decisão (definitiva) sobre a reclamação graciosa, a obrigação de pagamento das imposições devidas, na condição de que seja constituída uma garantia, a qual, porém, pode ser dispensada, o que o Recorrente igualmente requereu.
Nestes termos, o pedido formulado pelo aqui Recorrente nos presentes autos não pode adequar-se à reclamação prevista nos artigos 276.º e seguintes do CPPT.
Vejamos.
Os artigos 276.º a 278.º do CPPT estão integrados na Secção XI do Capítulo II referente ao processo, no Título IV relativo à execução fiscal. Assim, não residem dúvidas que as reclamações e recursos das decisões do órgão de execução fiscal aí previstos se reportam ao processo de execução fiscal. Ora, não resulta dos autos a existência de qualquer processo de execução fiscal na situação em apreço.
A utilização deste meio de reacção pressupõe a existência do processo executivo, dado que a reclamação a que se reportam os artigos 276.º a 278.º do CPPT assume a função de um incidente típico do processo de execução fiscal, por ser uma ocorrência estranha ao desenvolvimento normal do processo, tendo a estrutura de uma acção de impugnação.
Este motivo é suficiente para divergirmos da posição adoptada na decisão recorrida.
Nesta conformidade, acompanhando Jorge Lopes de Sousa in CPPT, anotado e comentado, volume II, 2007, Áreas Editora, página 176, a decisão da autoridade aduaneira sobre a atribuição do referido efeito suspensivo, seja ou não provocada por requerimento do interessado na sua obtenção, é controlável através de impugnação contenciosa (o que corresponde a um direito constitucionalmente garantido pelo artigo 268.º, n.º 4 da CRP), a que são aplicáveis as regras do direito interno português, conforme é determinado no artigo 245.º do CAC. Por isso, actualmente, nos termos do artigo 97.º, n.º 1, alíneas d) e p) e n.º 2 do CPPT, pode ser impugnada através de acção administrativa.
Como o próprio Recorrente reconhece, ao apresentar o pedido de suspensão não estava a solicitar a anulação da liquidação dos tributos aduaneiros, pretendendo, apenas, que, quanto a si, pessoalmente e sem envolver os outros devedores, o prazo de pagamento fosse suspenso, sem que esta apreciação colida com a decisão que vier a recair sobre a reclamação graciosa ou que posteriormente vier a incidir sobre a legalidade da liquidação.
Além do mais, apesar de, como alertámos, não se mostrar ainda ínsita nos autos a fundamentação da decisão de indeferimento impugnada, o Recorrente, no artigo 8.º da sua petição inicial, aponta, claramente, para a não pronúncia acerca da legalidade da liquidação: “O Director da Alfândega do Freixieiro, ao remeter a apreciação dos «motivos fundamentados para pôr em dúvida a conformidade da decisão (liquidação) contestada com a legislação aduaneira» para conhecimento apenas no «quadro da reclamação graciosa apresentada» faz errada interpretação e aplicação do 2.º parágrafo do artigo 244.º do CAC, esvaziando-o em absoluto de conteúdo prático e qualquer efeito útil”.
In casu, não foi, portanto, questionada a legalidade da liquidação nesta sede, não tendo a questão da legalidade daquela liquidação integrado ou constituído o acervo decisório da autoridade aduaneira. Ao que tudo indica, somente o será em sede de reclamação graciosa.
Daí que não mereça censura este segmento decisório da decisão recorrida, confirmando-se enfermar o processo de nulidade, por verificação de erro na forma de processo utilizada (impugnação judicial).
Nesta sequência, a decisão sob recurso analisou a possibilidade de convolação na forma processual adequada, tendo ponderado precisamente, além do mais, a convolação em acção administrativa. Contudo, não avançou para tal convolação, uma vez que a causa de pedir não permitiria fazer tal selecção, relegando para o impugnante o dever de conformar a sua pretensão com a acção adequada.
Como vimos, já afastámos a possibilidade aventada na sentença recorrida de convolação na reclamação prevista nos artigos 276.º e seguintes do CPPT. Ainda foi apontada a hipótese de a acção prevista no artigo 145.º do CPPT ser adequada.
Todavia, a acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido em matéria fiscal trata-se de um meio processual residual, que é utilizado para assegurar o princípio da tutela jurisdicional efectiva, quando nenhum outro meio previsto legalmente é adequado ao efeito jurídico concreto que se pretende obter com a acção.
Conforme já fomos desvendando, a acção administrativa afigura-se-nos o meio adequado ao pedido formulado na petição inicial, sendo, por isso, um óbice à adopção da acção para reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido em matéria tributária.
É nossa convicção ser adequada uma acção de condenação à prática do acto devido.
Uma das mais importantes inovações operada pela reforma da justiça administrativa, levada a cabo em 2003, é o poder conferido, no CPTA, aos tribunais administrativos de procederem à determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos, isto é, de condenarem a Administração à prática desses actos.
A aludida consagração legal, nos artigos 66.º e seguintes do CPTA surge como corolário da previsão, no n.º 4 do artigo 268.º da CRP, que prevê como característica do princípio da tutela jurisdicional efectiva, a possibilidade de os tribunais condenarem a Administração à prática de actos, quando legalmente devidos.
Conforme se extrai do preceituado no artigo 66.º do CPTA, a condenação à prática de actos devidos pode ocorrer quer nas situações em que exista uma omissão por banda da Administração, quer exista uma recusa da prática de um acto, exigindo, o n.º 1 do referido preceito, como requisito para a condenação à prática de acto devido que a recusa ou omissão sejam ilegais.
Ora, atendendo ao objecto da lide, definido pela causa de pedir e pelo pedido formulado, estamos, como já referimos, em presença de uma acção administrativa de condenação à prática de acto devido - deverá o despacho de indeferimento do pedido de suspensão da cobrança de direitos e demais imposições, com dispensa de prestação de garantia, ser revogado e substituído por outro que, interpretando e aplicando a lei de acordo com os princípios fundamentais de Direito aplicáveis ao caso, dê suporte à pretensão do A.
Na alínea b) do n.º 1 do artigo 67.º do CPTA estão previstas as situações de recusa expressa por parte da administração à pretensão que lhe foi dirigida pelo interessado.
Lembramos que, no actual contencioso administrativo, o meio processual adequado para reagir contra actos administrativos de indeferimento é a acção administrativa de condenação à prática de acto devido, deixando de ser, como até 2003, o processo de impugnação com vista à mera anulação ou declaração de nulidade do acto em causa. Assim, ainda que a prática do acto devido tenha sido expressamente recusada, o objecto do processo é a pretensão do interessado e não o acto de indeferimento, cuja eliminação da ordem jurídica resulta directamente da pronúncia condenatória – cfr. artigo 66.º, n.º 2 do CPTA.
Nesta conformidade, o Recorrente pretendia que as autoridades aduaneiras decidissem a suspensão da execução do acto de liquidação de receitas tributárias aduaneiras, sendo este o acto visado na presente acção, em substituição do acto de indeferimento.
Logo, tudo visto, nada parece obstar à convolação do processo em acção administrativa, dado que o prazo de propositura da acção é de três meses e foi cumprido – cfr. artigo 69.º, n.º 2 do CPTA e fls. 24 e 43 do processo físico.
Nestes termos, não estamos perante uma situação em que é de todo impossível o aproveitamento da petição inicial, dado que existem condições para os presentes autos serem convolados em acção administrativa - não perdendo de vista que o princípio da pronúncia sobre o mérito se sobrepõe a questões formais que não interfiram e ponham em causa o mesmo, como é o caso; não existindo, portanto, razões para indeferir liminarmente a petição inicial – cfr. artigos 193.º do CPC, 97.º, n.º 3 da LGT e 98.º, n.º 4 do CPPT.
Tão-pouco o obstáculo descrito na alínea c) das conclusões das alegações de recurso é pertinente, dado que, pela via judicial (diferente do disposto no artigo 244.º do CAC), é possível obter a suspensão da eficácia de actos administrativos ou outros meios cautelares adequados se tivermos em vista o acto negativo (de indeferimento) – cfr. artigo 112.º do CPTA e artigo 147.º, n.º 6 do CPPT.
Assim, não sendo impossível a convolação no meio processual adequado, não haverá que aplicar o disposto no artigo 37.º, n.º 4 do CPPT.
Pelo exposto, é forçoso conceder provimento ao recurso, revogar a decisão de indeferimento liminar e determinar a prossecução dos autos, após convolação do processo em acção administrativa, se a tal nada mais obstar.

Conclusões/Sumário

I - O indeferimento liminar só terá lugar quando for de todo em todo impossível o aproveitamento da petição inicial, isto tendo em atenção que o princípio da pronúncia sobre o mérito se sobrepõe a questões formais que não interfiram e ponham em causa o mesmo.
II - Assim, o despacho de indeferimento liminar só é admissível quando a improcedência da pretensão do autor for tão evidente e, razoavelmente, indiscutível, que torne dispensável assegurar o contraditório (artigo 3.º, n.º 3, do CPC) e inútil qualquer instrução e discussão posterior.
III - A errónea indicação do meio de defesa na notificação efectuada ao contribuinte não torna idóneo o meio processual utilizado, determinando apenas a aplicação do disposto no artigo 37.º, n.º 4 do CPPT no caso de se tornar impossível a convolação no meio processual adequado.
IV - O erro na forma do processo, nulidade decorrente do uso de um meio processual inadequado à pretensão de tutela jurídica formulada em juízo, afere-se pelo pedido.
V - A reclamação a que se reportam os artigos 276.º a 278.º do CPPT assume a função de um incidente típico do processo de execução fiscal, por ser uma ocorrência estranha ao desenvolvimento normal do processo, tendo a estrutura de uma acção de impugnação.
VI - A acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido em matéria fiscal trata-se de um meio processual residual, que é utilizado para assegurar o princípio da tutela jurisdicional efectiva, quando nenhum outro meio previsto legalmente é adequado ao efeito jurídico concreto que se pretende obter com a acção.
VII - A decisão da autoridade aduaneira sobre a atribuição do efeito suspensivo previsto no artigo 244.º do Código Aduaneiro Comunitário, seja ou não provocada por requerimento do interessado na sua obtenção, é controlável através de impugnação contenciosa, a que são aplicáveis as regras do direito interno português, conforme é determinado no artigo 245.º do Código Aduaneiro Comunitário. Por isso, actualmente, nos termos do artigo 97.º, n.º 1, alíneas d) e p) e n.º 2 do CPPT, pode ser impugnada através de acção administrativa.
VIII – Tendo utilidade, a convolação na forma processual adequada justifica-se por razões de economia processual, não sendo, nestas circunstâncias, de indeferir liminarmente uma petição inicial por verificação de erro na forma do processo.

IV. Decisão

Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e determinar a remessa ao Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto para os autos aí prosseguirem, após convolação do processo em acção administrativa, se a tal nada mais obstar.
Sem custas.
D.N.
Porto, 07 de Junho de 2018
Ass. Ana Patrocínio
Ass. Ana Paula Santos
Ass. Pedro Vergueiro