Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00578/14.1BEVIS
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:02/25/2021
Tribunal:TAF de Viseu
Relator:Rosário Pais
Descritores:OPOSIÇÃO; GERÊNCIA DE FACTO; CÔNJUGE; SITUAÇÃO DE DEPENDÊNCIA; CAPACIDADE PROFISSIONAL;
Sumário:I - A gerência de facto de uma sociedade comercial consiste no efetivo exercício de funções que lhe são inerentes e passam, nomeadamente, pelas relações com fornecedores, com clientes, com instituições de crédito e com os trabalhadores, tudo em nome e no interesse e representação da sociedade primitiva devedora. São os gerentes de facto quem exterioriza a vontade das sociedades nos seus negócios jurídicos, são eles quem manifesta a capacidade de exercício de direitos da sociedade, praticando atos que produzem efeitos na esfera jurídica desta.

II - A gerência de facto não implica a presença física do gerente nas instalações da primitiva devedora nem implica exercício em exclusividade, mas antes a prática de atos que obriguem a sociedade, implica que os gerentes atuem em nome e representação da sociedade exteriorizando a sua vontade perante terceiros, assinando por exemplo cheques e celebrando contratos de compra e venda de entre outros atos.

III – A oponente que é instruída, economicamente independente e está habilitada com a capacidade profissional indispensável ao exercício da atividade da devedora originária não pode ser considerada em situação de dependência relativamente ao seu marido, também ele sócio e gerente da mesma sociedade e a quem nada impedia o exercício da gerência, para efeito da sua desresponsabilização pelo pagamento das dívidas exequendas.*
* Sumário elaborado pela relatora
Recorrente:Fazenda Pública
Recorrido 1:J.
Votação:Unanimidade
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os Juízes da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:
*
1. RELATÓRIO

1.1. A Exma. Representante da Fazenda Pública vem recorrer da sentença proferida no Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, em 15.07.2020, pela qual foi julgada procedente a oposição à execução fiscal n.º 3700200801062395 e aps., deduzida por J., na qualidade de executada por reversão.

1.2. A Recorrente Fazenda Pública terminou as respetivas alegações formulando as seguintes conclusões:

«A. Incide o presente recurso sobre a sentença do TAF de Viseu, que julgou procedente a oposição à execução fiscal nº 3700200801062395 e aps., por entender que a Fazenda Pública não logrou demonstrar a gerência de facto da Oponente, pois “Pese embora a aparência de gerência de facto emergente da declaração de remunerações e da assinatura de declarações de compra / venda e de cheques, brota da prova produzida que tais atos não continham qualquer conteúdo decisório próprio e autónomo, mas eram apenas “atos de execução” da vontade do ex-marido da Oponente.”.
B. Porém, a Fazenda Pública não se pode conformar com o assim decidido, por entender que o entendimento plasmado na decisão parte de uma errada valoração dos meios de prova e da matéria considerada provada, incorrendo em erro de julgamento da matéria de facto, tendo em conta toda a prova documental coligida pela AT que se revela suficiente a demonstrar o exercício efetivo da gerência pela Oponente.
C. O Tribunal a quo reconhece que o facto da Oponente ter declarado remunerações ao Instituto da Segurança Social, I.P. como membro do órgão estatutário da devedora originária e de ter subscrito declarações de compra e de alienação de viaturas e de cheques constituem elementos probatórios incontroversos, mas insuficientes para demonstrar a gerência de facto, porque “da prova testemunhal resultou a convicção de que tais documentos foram assinados por ordem e de acordo com a vontade do seu ex-marido que era quem de facto comandava os destinos da sociedade, decidindo a quem eram feitos os pagamentos.”.
D. Concluiu, então, o Tribunal a quo, partindo de tal prova testemunhal, que os atos praticados pela Oponente se limitaram a meros actos de execução, porque determinados, exclusivamente, pelo seu marido que era o único que comandava os destinos da sociedade, invocando, em suporte do assim decidido, o sumário do acórdão do TCAN, proferido no processo n.º 01389/04.8BEPRT, em 25-05-2016.
E. Ressalvando sempre o respeito por opinião contrária, não pode a Fazenda Pública conformar-se com o decidido, uma vez que perscrutados todos os elementos e documentos juntos pela AT e confrontando-os com a prova testemunhal produzida nos autos e as regras da experiência comum (presunções judiciais), isto é, partindo da articulação e conjugação de toda a prova documental produzida pela AT em articulação com as referidas regras de experiência comum, não se pode deixar de inferir a gerência efetiva por parte da Oponente.
F. Entende a Fazenda Pública que, a prova documental produzida pela AT permite concluir que a Oponente, enquanto gerente de direito da devedora originária exerceu de modo efetivo ou de facto a gerência da sociedade, não sendo de acolher a tese contrária alegada pelas testemunhas da Oponente e a consequente transposição para o presente caso da jurisprudência do aresto citado por não se verificar um circunstancialismo semelhante como a seguir se evidenciará.
G. O douto acórdão em que o Tribunal a quo se suporta para fundamentar a sua sentença não tem aplicação ao caso vertente, desde logo, porque não existe um contexto de dependência entre a Oponente e o seu ex-marido, que torne plausível que esta quando actuou em representação da devedora originária o fez unicamente a “mando” do outro gerente e seu marido à época, sem se assegurar ou determinar, igualmente, as decisões e os destinos da sociedade de que era sócia e gerente.
H. De acordo com a factualidade considerada provada, a Oponente detinha o certificado de capacidade profissional para o transporte rodoviário nacional e internacional de mercadorias, o qual constituía um requisito obrigatório de acesso e exercício à atividade da devedora originária, cf. art.4.º, n.º1 do Dec.-Lei n.º257/2007, de 16-07.
I. A emissão do certificado de capacidade profissional pressupõe a frequência de ações de formação e a aprovação em exame, sendo de destacar que as matérias sobre as quais incidia a formação profissional e sobre as quais a Oponente deveria ser capaz de interpretar, negociar ou avaliar, abrangia elementos de direito civil, elementos de direito comercial, elementos de direito fiscal, gestão comercial e financeira da empresa, normas técnicas e de exploração e segurança rodoviária (cf. anexo I do referido diploma legal).
J. Decorre do exposto ter a Oponente todos os conhecimentos e a aptidão técnica que lhe permitiam acompanhar, administrar, delinear e assumir conscientemente e participar na vontade da sociedade devedora representando-a perante terceiros como sucedeu, no caso, ao assinar e avalizar conjuntamente com o outro sócio gerente e marido à data, os documentos necessários à atividade da sociedade.
K. Ao contrário da jurisprudência citada na sentença, no caso, o marido da Oponente não estava impedido de exercer a atividade, apenas necessitava de obter a capacidade profissional nos termos do Dec. Lei n.º 257/2007, de 16-07, e por não ter a disponibilidade para frequentar a acção de formação que lhe permitiria obter o certificado correspondente, foi a Oponente, igualmente, sócia da devedora originária, que acabou por obter tal capacitação, a qual pressupõe o acervo de conhecimentos exigidos pelo legislador para exercer a atividade da devedora originária.
L. Assim, não se verifica, nos presentes autos, a relação de dependência que brota da factualidade subjacente aos arestos citados pelo Tribunal a quo. Por exemplo, não podemos considerar que estamos numa situação equivalente a uma gerência nominal por parte de filhos estudantes, sem autonomia financeira e sem qualquer conhecimento específico que os habilite a gerir e representar a sociedade e que apenas assumiram tal posição jurídica por o pai não poder assumir tais funções.
M. Os únicos sócios da devedora originária eram a Oponente e o seu ex-marido e a forma de obrigar a sociedade exigia a assinatura de ambos, cf. certidão de matrícula junta aos autos, não se divisando coerente com o alegado distanciamento dos destinos da sociedade, o facto da Oponente alterar o pacto social, cf. escritura realizada em 31-12-2008, passando o capital social de € 49.879,79 para € 125.000,00 e o valor nominal das suas quotas a ser igual ao do seu ex-marido (€ 62.500,00) – cfr. docs. probatórios constantes aos autos.
N. De realçar que a Oponente realizou actos que atestam o exercício efetivo da gerência da devedora originária, conforme prova documental carreada pela AT e demais factualidade considerada provada nos autos – prova documental que tem de ser devidamente valorada até por aplicação do disposto no art.393.º, n.º2 do Código Civil.
O. Apesar de não existir uma presunção legal relativa ao exercício da gerência de facto, designadamente, que ela se possa presumir da gerência de direito, o Tribunal com base numa presunção judicial pode e deve concluir que, nas circunstâncias do caso, considerando os argumentos e a prova produzida pela Fazenda Pública há uma forte probabilidade (certeza jurídica) de essa ocorrência ter sucedido.
P. Concretizando, o pleno conhecimento e o controlo dos destinos da sociedade devedora por parte da Oponente resulta incontroverso da documentação que suportou o despacho de reversão, junta aos autos, desde logo, do extrato de remunerações da Segurança Social onde consta que a Oponente recebeu vencimentos, de 2006/01 a 2008/11, como Membro de Órgão Estatutário da sociedade devedora P., Lda e, bem assim, da sua Declaração Mod. 3, do ano de 2008, onde declarou além de rendimentos da categoria A, provenientes da escola onde lecionou, rendimentos da sociedade devedora – rendimentos sobre os quais incidiu o correspondente imposto, que não reclamou.
Q. Neste ponto, importa referir que, além da força probatória plena que se reconhece às declarações documentadas, não se pode deixar de valorar o facto das mesmas implicarem, no caso, uma efetiva tributação direta dos rendimentos declarados, o que permite firmar, com uma razoável probabilidade, que os factos neles indicados correspondem à realidade material.
R. O exercício efetivo da gerência pela Oponente resulta, também, comprovado do facto desta assinar meios de pagamento (cheques) relativamente a contas da sociedade, não sendo credível o alegado pelas testemunhas da Oponente (sobrinha e ex-marido) de que esta se limitava apenas a assinar cheques em branco, nos termos solicitados pelo marido, pois as habilitações académicas e formação técnica da Oponente tornam improvável que esta, conhecendo todas as implicações legais dos seus actos se limitasse a assinar cheques em branco sem aferir do seu destino e valor.
S. No sentido de comprovar a participação ativa no rumo e decisões da sociedade devedora por parte da Oponente, a AT juntou, ainda, o registo de propriedade da Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa, relativo à aquisição dos veículos com as matrículas XX-XX-XX, XX-XX-XX e XX-XX-XX e o registo de propriedade da Conservatória do Registo Automóvel de Viseu, relativo à venda do veículo com a matrícula XX-XX-XX, subscritos pela Oponente e pelo seu marido, na qualidade de gerentes da sociedade devedora P., Lda..
T. A assinatura de tais documentos comprova, sem margem para dúvidas, o exercício da gerência de facto pela Oponente, não sendo plausível o alegado distanciamento ou desinteresse da Oponente relativamente às decisões e aos destinos da sociedade devedora como sustenta o Tribunal a quo, ao partir, na sua motivação, do alegado pelas testemunhas da Oponente e ao equiparar a situação dos autos ao circunstancialismo da jurisprudência citada.
U. Isto porque, em primeiro lugar, conforme prova documental junta aos autos acima referenciada e factualidade considerada provada, a Oponente intervém em actos relevantes de gestão como a aquisição e alienação de viaturas que pressupõe o cabal conhecimento e a concomitante assunção de compromissos jurídico-financeiros da sociedade perante terceiros, com impacto significativo na sua atividade comercial.
V. Segundo, a própria formação académica e profissional da Oponente torna inconcebível que esta tenha sempre atuado a “mando” do seu marido sem cuidar de saber a «oportunidade», o «que», o «como» e o «quando» fazer, até porque, como resulta dos autos, a Oponente, pelas suas próprias habilitações tinha um maior nível de conhecimentos jurídicos e de gestão do que o seu ex-marido.
W. Refira-se que a formação superior e a aptidão profissional da Oponente permite considerar, segundo as regras de experiência comum, que esta detinha um espírito crítico suficiente para actuar de forma consciente e autónoma nos actos vinculativos da sociedade, sendo pouco crível que assinasse cheques em branco sem cuidar de saber a que os mesmos se destinavam como alegaram as testemunhas da Oponente.
X. O facto da Oponente não possuir experiência prática na condução ou no transporte rodoviário de mercadorias, não constitui motivo suficiente para inculcar à Oponente uma espécie de capitis diminutio, que levasse a que fosse apenas o seu ex-marido a determinar todos os actos vinculativos da sociedade e a Oponente se revelasse alheia aos mesmos, limitando-se a apor a sua assinatura, não obstante saber, pela sua formação e capacidade profissional, todas as implicações que tal actuação implicava para a sociedade de que era também sócia gerente.
Y. Estamos a falar de uma pessoa que não obstante o grau de parentesco com o outro sócio-gerente goza de autonomia financeira, formação superior e capacidade profissional para o exercício da actividade da devedora originária e que, conforme resulta da prova documental carreada pela AT e da factualidade considerada provada, praticou atos com conteúdo patrimonial, i.e, que dispõem, oneram ou constituem obrigações, e que relacionam a sociedade devedora originária com terceiros.
Z. Acresce que, o que fica dito quanto ao papel ativo da Oponente na administração e representação da devedora originária perante terceiros, não é posto em causa, pelo facto da Oponente exercer, simultaneamente, a actividade de professora e vir apenas a casa aos fins-de-semana como alegado pela sobrinha e ex-marido da Oponente, que testemunharam, respetivamente, na qualidade de ex-funcionária e de sócio gerente da devedora originária, pois como admitido pelas mesmas testemunhas, também o outro gerente da devedora originária não se encontrava sempre presente nas instalações.
AA. Constitui jurisprudência pacífica que a lei não exige que os gerentes para que sejam responsabilizados pelas dívidas da sociedade exerçam a administração/gestão em exclusividade ou que tenham que estar permanentemente nas instalações da sociedade. Antes pressupõe que os gerentes actuem em nome, no interesse e em representação da sociedade, exteriorizando a vontade social perante terceiros – cfr., entre outros, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 24-01-2017, proferido no Processo n.º00646/07.6BEVIS e o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 23-04-2020, proferido no Processo n.º 815/11.4BELRA.
BB. Ora, partindo da factualidade considerada provada e perscrutando, criticamente, todos os documentos juntos aos autos, designadamente, a declaração de remunerações à Segurança Social como membro de órgão estatutário da devedora originária, a subscrição das declarações de compra/venda de viaturas e a assinatura de cheques pela Oponente, resulta demonstrada a prática de actos que vinculam a sociedade e que permitem evidenciar de forma, razoavelmente, clara indícios de gerência efetiva da sociedade pela Oponente.
CC. Assim, ao contrário do decidido pelo Tribunal a quo, entende a Fazenda Pública que, nos presentes autos foi demonstrada a gerência de facto pela Oponente, quer à data do facto gerador, quer no momento do pagamento do imposto, tendo a exequente cumprido o ónus da prova dos pressupostos da responsabilidade tributária dos administradores e gerentes, nos termos do art.24.º, n.º1, da LGT, pelo que se exigiria uma decisão de sentido inverso.
DD. Acresce que, como resulta do despacho de reversão coligido na matéria de facto assente, a reversão das execuções indicadas foi efetuada, nos termos do art.24.º, n.º1, al. b) da LGT, pelo que caberia à Oponente provar que não lhe é imputável a falta de pagamento da dívida tributária, o que não logrou ilidir.
EE. Por outras palavras, entende a Fazenda Pública que, face à prova constante dos autos, deveria ter sido outro o julgamento da matéria de facto, pois todos os elementos e documentação coligida pela AT, na qualidade de exequente, permitem afirmar que a Oponente no prazo para pagamento do imposto exercia a gerência de facto da devedora originária, e não tendo a Oponente logrado demonstrar que a falta de pagamento da dívida tributária não lhe é imputável, mostram-se verificados os pressupostos de responsabilidade subsidiária exigidos legalmente, sendo, em consequência, a Oponente parte legítima na execução fiscal.
FF. Tendo em conta o acima explanado, e ressalvando sempre o devido respeito, considera a Fazenda Pública que a sentença aqui sindicada enferma de erro de julgamento de facto, por incorrer numa errada apreciação dos meios de prova, pois os elementos e documentos coligidos pela AT são suficientes para afirmar a prática de atos de gerência efetiva pela Oponente, pelo que se impõe a sua revogação, devendo prosseguir, em consequência, as execuções contra si revertidas.
Nestes termos e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada a sentença, com as legais consequências, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.»

1.3. A Recorrida J. não apresentou contra-alegações.

1.4. O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu o parecer com o seguinte teor:

«I-ANÁLISE
I-1-A pretensão da AT resume-se à conclusiva do exercício de gerência de facto por parte da revertida, aqui recorrida, invocando-se erro de julgamento de facto, com incorrecta apreciação dos elementos probatórios.
A sentença recorrida deu por inverificado tal exercício.
A AT releva sobretudo o documental e o mmo juiz a quo, apesar de não desconsiderar o documental, acaba por assentar a sua convicção dando primazia ao testemunhal, rematando que a gerência da revertida não era mais do que nominal.
I-2-É certo que a prova documental é indiciariamente indicativa de verificação da gerência de facto pela revertida oponente. De facto não pode passar em claro que, aliás como se deu por provado, a revertida tinha estatuto e remuneração (declarada) de gerente, subscreveu compra de veículos, havia imprescindibilidade da sua assinatura, era detentora do certificado de capacidade referido, com aprovação em exame prévio, assinava cheques, as quotas sociais eram de igual montante, assumia compromissos em nome da firma.
Com o que, prima facie, estaremos perante exercício de gerência de facto.
Mas cabe perguntar, o acervo probatório documental referido foi bem afastado pela prova testemunhal?, como se rematou na sentença.
A nossa resposta é negativa.
Temos para nós que a prova testemunhal recolhida não tem a virtualidade de afastar aquela prova documental. Da fraqueza da prova testemunhal se dá conta a sentença. Na verdade, como aí se assinala, o depoimento do colaborador motorista não tem peso, porque, sendo motorista, estava frequentemente ausente do local e, por via disso, longe do conhecimento da vida da gerência da firma. O testemunho da arrolada pela Fazenda Pública é inócuo, como também se afirma na sentença. Restam as outras duas testemunhas, o ex-marido e a sobrinha, a cujos depoimentos, por força das relações familiares, se não pode atribuir efeito decisivo. Ademais, quando deixam por explicar a sua submissão a exame e obtenção do certificado, (só porque sim?), e não justificam o estatuto e vencimento de gerente e sobretudo a declaração desse vencimento para efeitos fiscais, assim como o papel activo que daí ressuma.
A sociedade escritura e contabiliza salário a gerente só para efectivar descontos? E com a gerente beneficiária a declarar tais rendimentos?
E é manifesto que a gerente com a obtenção do certificado de capacidade, com prévia formação e submissão a exame, não é mero adorno ou bordão de gerência.
Antes assume aquele cortejo de actividades ao lado e não na dependência do marido.
Efectivamente, não ressalta de qualquer elemento probatório que na sociedade a tal papel passivo se limitasse, no papel de adorno ou mero bordão. Antes assume papel activo na assunção de compromissos jurídicos e financeiros.
A motivação da sentença para preterir o documental face aos depoimentos dos familiares é insuficiente para tal preterição e para a consequente formação da convicção, por via testemunhal, de que não houve exercício de gerência.
Por isso, entendemos que, na primazia do documental, a correcta apreciação da prova levará à conclusão da verificação do exercício da gerência.
I-3-Com o que a sentença não pode manter-se.
II-CONCLUSÃO
O recurso deve ser julgado procedente.»
*
Dispensados os vistos legais, nos termos do artigo 657.º, n.º 4, do CPC, cumpre apreciar e decidir, pois que a tanto nada obsta.
*
2. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO – QUESTÕES A APRECIAR

Uma vez que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da Recorrente, cumpre apreciar e decidir se a sentença recorrida enferma de erro de julgamento de facto, por errada valoração da prova produzida, e no consequente erro de julgamento de direito ao concluir que a ora Recorrida é parte ilegítima na execução fiscal contra ela revertida.

3. FUNDAMENTAÇÃO
3.1. DE FACTO

3.1.1. Matéria de facto assente em 1.ª instância

A decisão recorrida contém a seguinte fundamentação de facto:

«Com relevância para a decisão a proferir consideram-se provados os seguintes factos [a numeração referida será efetuada por apelo à paginação eletrónica dos autos salvo menção expressa em sentido diverso]:
A) Em 18 de maio de 2000 foi emitido o certificado de capacidade profissional para transporte rodoviário nacional e internacional de mercadorias n.º 310, atestando que J. realizou com êxito as provas da 1.ª sessão do ano de 2000 do exame organizado para a obtenção do certificado de capacidade profissional, nos termos do SL n.º 38/99, de 6/2 e da Portaria n.º 1099/99, de 21/12, estando habilitada a exercer a sua capacidade profissional numa empresa de transporte rodoviário de mercadorias que efetue transportes nacionais e internacionais
[cfr. emerge de fls. 39 da peça n.º 004363206 do SITAF]
B) Em 24 de julho de 2000 foi celebrada escritura de alteração do pacto social da sociedade “P., Lda” sendo nomeados gerentes J. e P.
[cfr. emerge de fls. 43 e 44 da peça n.º 004363206 do SITAF]
C) A Oponente consta como membro de órgão estatutário da sociedade “P. Lda.” junto do ISS no período de 1/2006 a 11/2008
[cfr. emerge de fls. 177 e 178 da peça n.º 004363206 do SITAF]
D) Em 15 de dezembro de 2010 a sociedade “P. Lda” foi declarada insolvente,
[cfr. emerge de fls. 31 a 34 da peça n.º 004363206 do SITAF]
E) Foi instaurado no Serviço de Finanças de Viseu contra a sociedade o processo de execução fiscal n.º 3700200801062395 para cobrança de IRS – Retenção na Fonte de 2008, no valor de 645,25, cujo prazo de pagamento voluntário terminou em 2008/11/20
[cfr. emerge de fls. 126 e 127 da peça n.º 004363206 do SITAF]
F) Foi instaurado no Serviço de Finanças de Viseu contra a sociedade o processo de execução fiscal n.º 3700200801002956 para cobrança de IVA de Setembro de 2008, no valor de 9.574,22, cujo prazo de pagamento voluntário terminou em 2008/11/10
[cfr. emerge de fls. 129 e 130 da peça n.º 004363206 do SITAF]
G) Foi instaurado no Serviço de Finanças de Viseu contra a sociedade o processo de execução fiscal n.º 3700200901001736 para cobrança de IRS – Retenção na fonte de 2008, no valor de 757,25, cujo prazo de pagamento voluntário terminou em 2008/12/22
[cfr. emerge de fls. 132 e 133 da peça n.º 004363206 do SITAF]
H) Foi instaurado no Serviço de Finanças de Viseu contra a sociedade o processo de execução fiscal n.º 370200901005642 para cobrança de IVA de Dezembro de 2008, no valor de 3.402,87, cujo prazo de pagamento voluntário terminou em 2009/02/10
[cfr. emerge de fls. 135 e 136 da peça n.º 004363206 do SITAF]
I) Foi instaurado no Serviço de Finanças de Viseu contra a sociedade o processo de execução fiscal n.º 37002009010040987 para cobrança de IRC de 2008, no valor de 2.985,84, cujo prazo de pagamento voluntário terminou em 2009/08/26
[cfr. emerge de fls. 138 e 139 da peça n.º 004363206 do SITAF]
J) Foi instaurado no Serviço de Finanças de Viseu contra a sociedade o processo de execução fiscal n.º 37002009010042491 para cobrança de IVA de 2006, no valor de 42,19, cujo prazo de pagamento voluntário terminou em 2009/08/31
[cfr. emerge de fls. 141 e 142 da peça n.º 004363206 do SITAF]
K) Os processos referidos nos factos precedentes foram apensados
[cfr. emerge do teor da citação da revertida]
L) Em 15 de junho de 2012 foi registado o encerramento do processo de insolvência da sociedade
[cfr. emerge de fls. 148 da peça n.º 004363206 do SITAF]
M) A sociedade obrigava-se pela assinatura dos dois gerentes
[cfr. emerge de fls. 146 da peça n.º 004363206 do SITAF]
N) A Oponente subscreveu o registo de compra das viaturas detentoras das matrículas XX-XX-XX, XX-XX-XX, XX-XX-XX e de venda da viatura detentora da matrícula XX-XX-XX
[cfr. emerge de fls. 184 a 204 da peça n.º 004363206 do SITAF]
O) Foi proferido despacho de reversão da dívida sobre a Oponente, responsabilizando-a pelo pagamento da quantia exequenda de EUR 17.407,62, e com os seguintes fundamentos:
“Inexistência ou insuficiência dos bens penhoráveis do devedor principal e responsáveis solidários, sem prejuízo do benefício da excussão (art.º 23º/n.º 2 da LGT);
Fundamentos de emissão central.
Insuficiência de bens da devedora originária (art.º 23/2 c 3 da LGT): decorrente de situação líquida negativa (SLN) declarada pela devedora originária na última declaração referente à Informação Empresarial Simplificada (1ES) e/ou em face de insolvência declarada pelo Tribunal.
Gerência (administrador, gerente ou diretor) de direito (art.º 24/1 /b da LGT), no terminus do prazo legal de pagamento ou entrega do imposto em questão, conforme cadastro da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT);
Gerência de facto, decorrente da remuneração da categoria A, auferida ao serviço da devedora originária no período em questão (direito constante nos artigos 255.º e/ou 399.º do Código das Sociedades Comerciais)
[cfr. emerge de fls. 6 e 7 da peça n.º 004722024 do SITAF]
Não se provaram outros factos com interesse para os presentes autos.
*
Motivação da matéria de facto:
No que respeita à fundamentação, a convicção do Tribunal baseou-se essencialmente numa apreciação crítica [artigos 396.º do Código Civil e 607.º, n.º 5 do CPC, ex vi do art.º 2.º do CPPT] e à luz das regras da experiência comum, do exame dos documentos juntos aos autos, não impugnados e de harmonia com as menções constantes no rodapé de cada um dos factos assentes.
Para além dos documentos juntos aos presentes autos contribuiu para a formação da convicção do Tribunal o depoimento das testemunhas, nomeadamente S.(sobrinha da Oponente), C., P. (ex-marido da Oponente), arroladas pela Oponente e de J., arrolada pela Fazenda Pública.
As testemunhas depuseram de uma forma clara e espontânea, demonstrando a origem do conhecimento dos factos que relataram ao Tribunal, sem indícios de que estivessem a ocultar qualquer facto ou que o seu depoimento não fosse coincidente com a sua perceção dos factos.
Pese embora as relações familiares de algumas das testemunhas com a Oponente, circunstância ponderada pelo Tribunal na apreciação crítica do seu testemunho, considerou-se o seu depoimento credível e como tal passível de sustentar a convicção do Tribunal.
A primeira testemunha confirmou perante o Tribunal as alegações da Oponente de que esta estava durante a semana ausente da sociedade por ser professora, vindo a casa aos fins-de-semana, altura em que assinava em branco os cheques necessários para a atividade da sociedade e que depois eram utilizados pelo outro gerente para efetuar os pagamentos que entendia deverem ser feitos, dando prioridade ao pagamento aos funcionários. Asseverou ainda não ter presenciado que alguma vez lhe fosse efetuado o pagamento de qualquer salário apesar da sociedade efetuar descontos em seu nome.
A segunda testemunha, trabalhador da devedora originária, declarou que era o Sr. P. que “mandava” na empresa, que o tinha contratado, nunca tinha visto a Oponente por lá e quando este não estava era a D.ª S. que lhe transmitia as suas ordens.
A afirmação de não a ter visto por lá tem de ser temperada pela circunstância de se tratar de motorista de camião que se encontrava amiúde ausente das instalações da sociedade.
A terceira testemunha, casada com a Oponente até 2012, asseverou ao Tribunal que a Oponente só formalmente era gerente, constando como tal para que a empresa pudesse exercer a atividade e que era ele quem decidia tudo o que fosse necessário para tanto, limitando-se esta a assinar o que lhe era pedido.
A testemunha arrolada pela Fazenda, no essencial, reproduziu o constante do procedimento de reversão.».

3.1.2. Aditamento à matéria de facto

Ao abrigo da faculdade que nos é conferida pelo artigo 662.º do Código do Processo Civil, acordamos em aditar ao probatório os seguintes factos que igualmente se mostram provados:

P) Em 12/07/1999 a oponente e P. constituíram a sociedade primitiva devedora, com o capital social de €49.879,79, formado por duas quotas de €24.939,90 e €24.939,89, respetivamente, pertencentes a P. e à oponente, ficando a gerência, com ou sem remuneração, afeta a P. e J., este último com capacidade profissional e internacional (cfr. pp. … do sitaf).
Q) Pela alteração ao pacto social a que se alude na supra alínea B), o artigo quinto do pacto social passou a ter o seguinte teor: “A gerência da Sociedade, dispensada de caução e com ou sem remuneração, conforme for deliberado em assembleia geral pertence a ambos os sócios P. e J. , tendo esta capacidade profissional internacional, ficando ambos desde já nomeados gerentes” (cfr. pp. … do sitaf).
R) Em 30/03/2002 a oponente, juntamente com P. , assinou o “Relatório de Gestão – Ano 2001” da sociedade primitiva devedora (cfr. pp. … do sitaf).
S) Do Livro de Atas da primitiva devedora consta a Ata nº 6, datada de 31/03/2003, assinada pela oponente e por P. , onde estes deliberaram o seguinte:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

T) No dia 31/12/2008, no Cartório Notarial de Viseu, a oponente e P. assinaram a escritura de “Aumento de Capital Social e Alteração de Pacto” da primitiva devedora da qual consta o seguinte:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

(cfr. pp. … do sitaf).

Estabilizada nestes termos a decisão em matéria de facto, avancemos na apreciação deste recurso

3.2. DE DIREITO

Como decorre do que vem exposto, a Fazenda Pública não se conforma com a sentença recorrida, pela qual a Oponente foi julgada parte ilegítima na execução fiscal contra ela revertida porquanto e em síntese, partindo da articulação e conjugação de toda a prova documental produzida pela AT em articulação com as referidas regras de experiência comum, não se pode deixar de inferir a efetiva gerência por parte da oponente. Sustenta que não é de acolher a tese contrária, alegada pelas testemunhas do oponente, e a consequente transposição para o presente caso da jurisprudência do aresto citado por não se verificar um circunstancialismo semelhante; com efeito, não existe um contexto de dependência entre a Oponente e o seu ex-marido, que torne plausível que esta quando atuou em representação da devedora originária o fez unicamente a “mando” do outro gerente e seu marido à época, sem se assegurar ou determinar, igualmente, as decisões e os destinos da sociedade de que era sócia e gerente. Refere que a oponente possuía o certificado de capacidade profissional para o transporte rodoviário nacional e internacional de mercadorias, requisito obrigatório de acesso ao exercício da atividade da primitiva devedora e, por isso, detinha todos os conhecimentos e a aptidão técnica que lhe permitiam acompanhar, administrar, delinear e assumir conscientemente e participar na vontade da sociedade, representando-a perante terceiros, tal como aconteceu no caso presente ao assinar e avalizar, conjuntamente com o outro sócio gerente, os documentos necessários à atividade da sociedade, bem como meios de pagamento (cheques).

A sentença recorrida, suportada no Acórdão proferido neste TCAN, no processo n.º 01389/04.8BEPRT, em 25/5/2016, conclui que:
«(…)
Como decorre cristalino dos autos, a Fazenda Pública estriba a alegação do exercício de gerência da sociedade por parte da Oponente nas circunstâncias de ser declarada remuneração da categoria A e de esta ter subscrito declarações de compra / alienação de viaturas.
Pese embora tais elementos probatórios, que são incontroversos, da prova testemunhal resultou a convicção de que tais documentos foram assinados por ordem e de acordo com a vontade do seu ex-marido que era quem de facto comandava os destinos da sociedade, decidindo a quem eram feitos os pagamentos.
Foi referido, ainda, que a remuneração da gerência era meramente escritural.
Pela sua pertinência se reproduz nesta sede e com a devida vénia o sumário do douto aresto proferido pelo venerando TCAN, no processo n.º 01389/04.8BEPRT, em 25/5/2016:
“I - Para responsabilizar subsidiariamente o gerente pelas dívidas tributárias da sociedade, não basta a outorga de poderes «nominais» de gerência, exige-se precisamente o exercício dessas funções, o exercício efectivo dos poderes que recebe, e não apenas a aparência do seu exercício.
II - A responsabilização subsidiária pressupõe o poder de controlar e determinar a vontade social, definindo o seu rumo e estratégia e tudo o que se relaciona com a sua estabilidade, progresso ou sobrevivência, exteriorizando as suas opções, incluindo as de pagar, ou não pagar, as dívidas tributárias.
III - A distinção entre o mero gerente nominal do gerente efectivo reside no poder subjacente à realização dos actos. O gerente nominal, ou «meramente de direito», pode praticar actos aparentes de gerência, mas fá-lo desacompanhado dos inerentes poderes, normalmente a «mando» de alguém que na organização societária se resguarda de «assinar» e comprometer-se, mas que ainda assim detém o poder efectivo de controlar os destinos da sociedade incluindo os de «mandar assinar» documentos da sociedade, como gerente, alguém que, de facto, o não é.
IV - Estas situações ocorrem na maior parte das vezes num contexto em que, de um lado, está o «gerente efectivo», regra geral o detentor do capital e do poder que lhe subjaz, que oculta essa qualidade (normalmente por dificuldades de financiamento junto da banca devido a antecedentes de incumprimento, ou por restrição do uso de cheques, etc.; do outro lado, está (quase sempre) um sujeito numa relação de dependência (filho, empregado, cônjuge) ou de favor, que por isso aceita «assinar», ou «dar o nome».
V - Quando assim procede, quando «assina» ou «dá o nome», não o faz no uso de qualquer critério de oportunidade ou prossecução de interesse estatutário que não domina, mas sim para satisfazer um interesse pessoal alheio ao qual está vinculado ou subordinado por razões «não estatutárias».
VI - Neste cenário, o mero gerente de direito pratica actos formais de gerência; porém, fá-lo na dependência do gerente efectivo que lhe determina a «oportunidade», o «que», o «como» e o «quando» fazer. A sua função «esgota-se» nas assinaturas e não «pode» (porque não tem o poder) ir para além disso”
Ressalvadas as especificidades dos casos concretos, dali emerge entendimento que pode ser transposto para o caso em apreço.
Assim,
Pese embora a aparência de gerência de facto emergente da declaração de remunerações e da assinatura de declarações de compra / venda e de cheques, brota da prova produzida que tais atos não continham qualquer conteúdo decisório próprio e autónomo, mas eram apenas “atos de execução” da vontade do ex-marido da Oponente.
Salienta-se, ainda, que não é a Oponente que tem o ónus de demonstrar que não era gerente de facto, mas sim a Fazenda Pública, sendo certo que em caso de dúvida sempre seria de decidir contra esta.
Em face do exposto brota a inelutável conclusão de que a Fazenda não logrou fazer prova suficiente para a demonstração da gerência de facto da Oponente, no período relevante para efeitos de reversão.
À míngua da demonstração da gerência de facto, a Oposição deverá proceder.».

Sobre questão idêntica à que nos ocupa já se pronunciou este TCAN, nos recentes acórdãos prolatados nos processos 576/14.5BEVIS (que a ora Relatora subscreveu na qualidade de 1.ª adjunta) e 577/14.3BEVIS, em termos que merecem a nossa inteira concordância e que, tendo em vista a aplicação uniforme do direito, passamos a transcrever, na parte aqui relevante e com as alterações pertinentes que retratam a situação fáctica dos presentes autos:

«A execução fiscal a que se reporta a presente oposição destina-se à cobrança coerciva de dívida proveniente de [IRS-Retenção na Fonte de 2008, IVA dos anos de 2006 e 2008, bem como IRC do ano de 2008] e a Oponente foi chamada a essa execução através do mecanismo da reversão e com vista à efectivação da sua responsabilidade subsidiária pelo pagamento daquela dívida.

É sabido que o regime da responsabilidade subsidiária aplicável é o vigente no momento em que se verifica o facto gerador da responsabilidade (artigo 120º do Código Civil), pelo que estando em causa dívidas cujos factos constitutivos ocorreram na vigência da Lei Geral Tributária, é de aplicar o regime previsto no artigo 24º desta Lei.
O artigo 24º nº 1 da LGT estabelece o seguinte:
"1. Os administradores, directores e gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas colectivas e entes fiscalmente equiparados são subsidiariamente responsáveis em relação a estas e solidariamente entre si:
a) Pelas dívidas tributárias cujo facto constitutivo se tenha verificado no período de exercício do seu cargo ou cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado depois deste, quando, em qualquer dos casos, tiver sido por culpa sua que o património da pessoa colectiva ou ente fiscalmente equiparado se tornou insuficiente para a sua satisfação;
b) Pelas dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado no período do exercício do seu cargo, quando não provem que não lhes foi imputável a falta de pagamento.
(...)

Do normativo legal resulta de forma inequívoca que a responsabilidade subsidiária é atribuída em função do exercício do cargo de gerente e reportada ao período do respectivo exercício. Ou seja, a gerência de facto constitui requisito da responsabilidade subsidiária dos gerentes, não bastando, portanto, a mera titularidade do cargo, a gerência nominal ou de direito.

Daqui se conclui, que é sobre a administração tributária, enquanto exequente e como titular do direito de reversão, que recai o ónus de alegar e provar os pressupostos que lhe permitem reverter a execução fiscal contra o gerente da devedora originária, designadamente, os factos integradores do efectivo exercício da gerência de facto [de acordo com a regra geral de quem invoca um direito tem que provar os respectivos factos constitutivos - artigo 342º, no 1, do Código Civil e artigo 74º, no 1, da Lei Geral Tributária]. Com efeito, não há qualquer presunção legal que faça decorrer da qualidade de gerente de direito o efectivo exercício da função e que faça inverter o referido ónus que recai sobre a administração tributária.

Como bem se refere no acórdão do STA (Pleno da Secção do Contencioso Tributário) de 28/2/2007, Recurso 1132/06 disponível in: www.dgsi.pt. , a prova da gerência de direito não permite presumir, nem legal nem judicialmente, a gerência de facto, impondo-se ao exequente fazer a respectiva alegação e subsequente prova.

Portanto, o que importa apurar é se os factos dados como provados na sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, permitem afirmar o exercício da gerência de facto por parte da Recorrida.

Ora, como já deixámos expresso, a denominada gerência de facto de uma sociedade comercial consistirá no efectivo exercício das funções que lhe são inerentes e que passam, nomeadamente, pelas relações com os fornecedores, com os clientes, com as instituições de crédito e com os trabalhadores, tudo em nome, no interesse e em representação dessa sociedade primitiva devedora. Para que se verifique a gerência de facto é indispensável que o gerente use, efectivamente, dos respectivos poderes, que seja um órgão actuante da sociedade, tomando as deliberações consentidas pelo facto, administrando e representando a empresa, realizando negócios e exteriorizando a vontade social perante terceiros - neste sentido, Rúben Anjos de Carvalho, Francisco Rodrigues Pardal, in Código de Processo das Contribuições e Impostos, anotado e comentado, 2ª Edição, Coimbra, 1969, p. 139 - citado, de entre muitos outros, nos acórdãos deste TCAN de 18/11/2010 e de 20/12/2011, Processos nºs 00286/07 e 00639/04, respectivamente.

São, portanto, os gerentes de facto quem exterioriza a vontade das sociedades nos seus negócios jurídicos, são eles quem manifesta a capacidade de exercício de direitos da sociedade, praticando actos que produzem efeitos na esfera jurídica desta.

Baixando ao caso em apreço, vejamos o que resulta provado e se a Fazenda Pública carreou para os autos prova suficiente e convincente do exercício da gerência de facto por parte da oponente.

Assim, resulta da factualidade assente que a oponente, juntamente[e] com o então marido, P. , constituíram em 1999 a sociedade primitiva devedora, sendo os únicos sócios com quotas igualitárias.

Posteriormente, em 24/07/2000, foi celebrada escritura de alteração ao pacto social da devedora originária e a oponente, então detentora do certificado de capacidade profissional para transporte rodoviário nacional e internacional de mercadorias, juntamente com P. , foi nomeada gerente, obrigando-se a sociedade com a assinatura conjunta dos dois gerentes.

De notar que, nos termos do disposto no DL nº 257/2007, de 16/07/2007, mormente do seu art. 6º, nº 1 “A capacidade profissional deve ser preenchida por pessoa que, sendo titular do certificado de capacidade profissional a que se refere o artigo 7º, detenha poderes para obrigar a empresa, isolada ou conjuntamente, e a dirija em permanência e efectividade” (negrito e sublinhado nosso).

A oponente, na qualidade de sócia e em representação da primitiva devedora, conjuntamente com o outro sócio gerente, assinou cheques e celebrou contratos de compra e de venda de várias viaturas.

A oponente, na qualidade de sócia da primitiva devedora subscreveu várias escrituras de alteração de pacto social da primitiva devedora, onde se decidiu a mudança de sede, mas também o aumento de capital social, passando a oponente em 30/12/2008, de detentora de uma quota de €24.939,89 para uma quota de €62.500,00, em igualdade de capital como o outro sócio gerente, P. .

A oponente assinou a Acta nº 6 onde, além do mais, se debateu a estratégia de gestão a seguir pela primitiva devedora e assinou, também, o Relatório de Gestão do ano de 2001.

Acresce a tudo isto, o facto de a oponente ter auferido remunerações como membro de órgão estatutário (MOE) da primitiva devedora entre 01/2006 e 11/2008, tal como resulta do extracto de remunerações que foi enviado pela Segurança Social junto aos autos, e ter declarado tais remunerações nas respectivas Declarações de Rendimentos de IRS.

Aqui chegados, podemos antecipar, com a certeza necessária, que a AT reuniu prova suficiente de que a oponente exerceu de facto a gerência da primitiva devedora.

A sentença recorrida assim não entendeu e escora as suas conclusões na jurisprudência deste TCAN, mormente do Acórdão nº 01389/04.8BEPRT, de 25/05/2016, sucede que, como bem refere a Recorrente, a situação em apreço nestes autos não tem a necessária identidade com a jurisprudência citada que, diga-se, tem sido pacífica.

Aquele douto aresto, no seguimento de muitos outros dos tribunais superiores, enquadra a situação da gerência de facto num contexto de dependência ou reverência típica do filho que é estudante, sem autonomia financeira e sem qualquer conhecimento especifico que o habilite a gerir e representar a sociedade, ou ainda da esposa doméstica com baixo grau de ensino que depende economicamente do marido, e em que ambos têm sempre uma quota societária minoritária ou insignificante, são situações em que o verdadeiro gerente (pai ou marido) sendo sócio maioritário está já impedido de assumir por si as funções de gerente e por esse motivo precisa que alguém assuma formalmente tais funções, mas verdadeiramente quem gere e decide o destino empresarial é o dito pai ou o marido.

Ora, as situações relatadas nesta jurisprudência, que se reforça é pacífica, não têm espelho no caso concreto sobre que nos debruçamos.

Concretizemos.

Efectivamente, a oponente é uma pessoa licenciada auferindo rendimentos do exercício da docência, o que lhe permite autonomia financeira, possui uma quota igual à do sócio gerente marido e, além do mais, detém o certificado de capacidade profissional para transportes rodoviários de mercadorias, requisito essencial para à existência e normal laboração da sociedade primitiva devedora, ou seja, podemos até dizer que a oponente está numa posição de dominância o que afasta ou põe em crise a convicção de que os documentos que comprovam o seu envolvimento na gestão efectiva da sociedade foram assinados por ordem e a mando do sócio marido.

Reforcemos que a primitiva devedora apenas podia girar no circuito comercial com a assinatura conjunta de dois sócios, sendo que um deles era, obrigatoriamente, a oponente que tinha a capacidade profissional que habilitava a sociedade ao exercício no mercado dos transportes, o que não se mostra coerente com o alegado distanciamento dos destinos da sociedade.

A oponente, para obter o certificado de capacidade profissional, tinha de dirigir em permanência e efectividade a sociedade (art. 6º, nº 1 do DL nº 257/2007, de 16/07), além de que para obter o certificado sujeitou-se a uma específica formação com enfoque em vários ramos do direito (civil, comercial, social e fiscal) e de gestão comercial e financeira (Anexo I do DL nº 257/2007), o que permite concluir que era uma pessoa esclarecida e completamente informada sobre o seu papel e responsabilidade nos destinos da sociedade de que era sócia gerente.

Esclarecedor, também, é o facto de a oponente ter uma quota societária exactamente igual a do marido, mesmo depois do aumento de capital efectivado em 31/12/2008, o que denota que esteve sempre “ombro a ombro” com o marido na gestão e nos destinos da sociedade.

Assim, não é credível o alegado pelas testemunhas de que a oponente assinava os cheques em branco sem que estivesse inteirada do destino dos mesmos ou da responsabilidade de tal actuação, pois toda a sua formação e actuação nos leva a crer precisamente o contrário, ou seja, que a oponente não tinha como desconhecer as implicações legais da sua actuação e que não se limitava a assinar a mando sem aferir do destino do que assinava, até porque a sua posição não denota a aventada dependência ou reverência a que alude a jurisprudência avocada pelo juiz do tribunal a quo em sustentáculo do decidido.

O exercício efectivo da gerência por parte da oponente resulta, também, comprovado pelos documentos de compra e de venda de várias viaturas da primitiva devedora, assim como da assinatura de actas e relatórios de gestão, mas também do recebimento de remunerações como MOE com reflexo nas Declarações Anuais de Rendimentos para efeitos de IRS, o que bem denota o envolvimento e o conhecimento da oponente na vida da sociedade.

Tudo o que vem dito não colide com o facto de a oponente exercer a docência e estar ausente durante a semana e apenas vir a casa aos fins-de-semana, tal como foi dito pelas testemunhas (cfr. motivação da matéria de facto), pois a gerência não implica a presença física nas instalações da devedora originária nem implica exclusividade.

A gerência efectiva implica que os gerentes actuem em nome e representação da sociedade, exteriorizando a sua vontade perante terceiros, precisamente o que a oponente fazia.

Como se sabe, «é gerente efectivo ou de facto o que é órgão, actuante da sociedade, tomando as deliberações consentidas pelo acto e exteriorizando a vontade social perante empregados e estranhos, quer obrigando a empresa quer realizando negócios, enfim, exercendo uma gerência que consubstancia no uso efectivo dos poderes de administração e representação da sociedade», Acórdão do STA, de 08.03.1995, P. 018834.

Assim, entendemos que a Fazenda Pública no despacho de reversão demonstra que a Recorrida exerceu de facto as funções de gerente da sociedade executada.

Destarte, os elementos presentes nos autos são suficientes para afirmar a prática de actos de administração efectiva pela Recorrida, pelo que a decisão que assim não entendeu incorreu em erro de julgamento de facto e de direito.

Aqui chegados, ultrapassada que está a questão da gerência, impõe-se, ainda, referir que a reversão operou-se ao abrigo do disposto no art. 24º, nº 1, al. b) da LGT, o que significa que competia à oponente/Recorrida provar que não lhe era imputável a falta de pagamento da divida exequenda, o que nos autos não logrou ilidir como lhe competia, uma vez que nenhuma prova aportou nesse sentido.

Ante o que vem dito, na procedência das conclusões de recurso, impõe-se revogar a decisão recorrida e julgar a oposição improcedente.».

O presente recurso deve, pois, ser provido, revogando-se a sentença recorrida e julgando-se a oposição improcedente.

4. DECISÃO

Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em conceder provimento ao recurso jurisdicional interposto pela Recorrente, revogar a decisão judicial recorrida e julgar a oposição improcedente.
*
Custas a cargo da Recorrida, nos termos do artigo 527.º do CPC, que não incluem a taxa de justiça devida neste recurso, uma vez que não contra-alegou.
*
Porto, 25.02.2021

Maria do Rosário Pais - Relatora
Tiago Afonso Lopes de Miranda - 1.º Adjunto
Cristina da Nova- 2.ª Adjunta