Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01290/07.3BEPRT
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:03/08/2012
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Anabela Ferreira Alves Russo
Descritores:MÉTODOS INDIRECTOS
PRESSUPOSTOS
ÓNUS DA PROVA
Sumário:I – No ordenamento jurídico - tributário português vigora o princípio da declaração no apuramento da matéria tributável, pelo que, o recurso aos métodos indirectos assume carácter subsidiário e excepcional.
II – Compete à Administração, querendo utilizar o referido mecanismo, demonstrar que no caso concreto estão verificados os pressupostos legitimadores da tributação por métodos indirectos, isto é, que nesse especifico caso a liquidação não pode assentar nos elementos fornecidos pelo contribuinte e que o recurso àquele método se tornou a única forma de calcular o imposto, externando os elementos que a levaram a concluir nesse sentido, desta forma cumprindo o especial dever de fundamentação que sobre si o legislador fez recair.
III – A conclusão de que o valor de trespasse declarado é manifestamente inferior ao valor de mercado assente no conhecimento existente de operações da mesma natureza, na experiência obtida através de acções inspectivas anteriormente levadas a cabo, nos dados retirados de artigos de opinião publicados na comunicação social e que circulam na Internet e num relatório pericial apresentado num processo judicial e num parecer prestado pela Associação Nacional de Farmácias, desacompanhada de qualquer concretização, não cumpre aquele especial dever de fundamentação material.*
* Sumário elaborado pelo Relator
Recorrente:Fazenda Pública
Recorrido 1:C...
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte
I - Relatório
A Fazenda Pública, não se conformando com a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que julgou procedente a presente impugnação judicial deduzida por C… relativamente à liquidação adicional de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) respeitante ao ano de 2003 e respectivos juros compensatórios, dela veio interpor o presente recurso.
Em sede de alegações do recurso, a Recorrente formulou as seguintes conclusões:
«A. A douta sentença sob recurso julgou procedente a impugnação contra a liquidação adicional do exercício de 2003, n.º 2007 5000014894 referente a Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) e respectivos Juros Compensatórios (JC) de que resultou o valor global a pagar de € 1.345.718,56, com data limite de 28-02-2007, por haver entendido que “não foi cumprido o ónus que impende sobre a AT de demonstração da existência manifesta discrepância entre o valor de trespasse declarado e o valor de mercado “conditio sine qua non” para avaliação da matéria tributável por métodos indirectos”, determinando, em consequência, a anulação da liquidação impugnada.
B. Ressalvado o devido respeito, não se conforma a Fazenda Pública com o desta forma decidido, porquanto considera que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, consubstanciado não só na incorrecta apreciação e valoração da matéria factual, como igualmente na errada interpretação dos preceitos legais convocados para sustentar a anulação da liquidação em crise nos autos.
C. Os Serviços de Inspecção Tributária (doravante, SIT) aquando da acção de inspecção efectuada a coberto da Ordem de Serviço n.º O1200601556, incidente sobre o facto tributável do trespasse da farmácia ocorrido no ano de 2003, concluíram pela impossibilidade de comprovar e quantificar de forma directa e exacta os elementos indispensáveis à correcta determinação da matéria tributável, em virtude da “manifesta discrepância entre o valor declarado e valor de mercado do trespasse o qual, de acordo com o conhecimento existente de operações da mesma natureza nunca é inferior a 1,5 vezes o volume de negócios do exercício imediatamente anterior ao da celebração do contrato, podendo este factor ser maior em função designadamente da capacidade de obtenção de lucros e da localização do estabelecimento comercial.”
D. A correcção à matéria tributável encontrada tem por base o indicador/coeficiente de “1,5”, multiplicado pelo volume de negócios declarado pela Impugnante no exercício imediatamente anterior à data de realização do contrato de sociedade, de 2.953.360,02 euros.
E. Assim, o valor do trespasse que se cifra em 4.430.040,03 euros (1,5 x 2.953.360,02) correspondente a 1,5 vezes o volume de negócios do exercício imediatamente anterior - 2002, de acordo com o que seria o preço normal de mercado pelo trespasse desse negócio.
F. O Tribunal ad quo desconsiderou o peso da prova produzida, no seu todo, na decisão de manter ou não a liquidação, pois para a Administração Fiscal encontrar aquele montante, foram determinantes as circunstancias especificas descritas no Relatório sustentadas, entre outras situações,
G. no Parecer dado pela Associação Nacional de Farmácias aos Serviços do Ministério Público, em que “O valor de trespasse das farmácias é definido normalmente em função do valor anual das vendas sendo que o critério orientador do valor do trespasse é, pela prática existente no sector, o valor anual de vendas acrescido de 50.% e do valor de stock ao preço de custo” e
H. na avaliação que foi feita por três Peritos no âmbito do Processo n.° 55/02 da 9º Vara – 2ª. Secção do Tribunal Cível do Porto, explicitando que “Para se calcular o valor da transacção de urna farmácia deve multiplicar-se o volume de vendas por 150% a 200%”, em que o citado processo consubstancia o diferendo entre promitentes compradores e vendedores de uma Farmácia.”
I. Vale isto por dizer que, na aplicação do coeficiente mínimo, valor mínimo divulgado, foram tidos em conta, designadamente, a capacidade de obtenção de lucros, a localização do estabelecimento comercial e ainda, o facto de a contribuinte ser a sócia minoritária do capital da sociedade então criada que acolheu o trespasse.
J. Nesta conformidade, cremos que se encontra plenamente justificada a avaliação indirecta da matéria colectável, com recurso a métodos indirectos ou presuntivos.
K. As correcções à matéria tributável foram efectuadas em conformidade com a alínea b) do art. 87º, alínea a) do art. 88º ambos da LGT e art. 39º do CIRS, na redacção vigente à data, normas que regulam a realização da avaliação indirecta, por impossibilidade de determinação directa e exacta da matéria tributável, sendo entendimento dos SIT que o valor declarado do trespasse é manifestamente inferior ao valor de mercado.
L. Preceitua a alínea b) do art. 87° da LGT, actual n.° 1 alínea b), que a avaliação indirecta só pode efectuar-se em caso de impossibilidade de comprovação e quantificação directa e exacta dos elementos indispensáveis à correcta determinação da matéria tributável de qualquer imposto.
M. Dispõe o art. 88°, alínea d), do mesmo diploma, que no caso de impossibilidade de determinação directa e exacta da matéria tributável para efeitos de métodos indirectos, pode resultar da existência de manifesta discrepância entre o valor declarado e o valor de mercado de bens ou serviços, bem como de factos concretamente identificados através dos quais seja patenteada uma capacidade contributiva significativa maior do que a declarada.
N. Nos termos dos art.s 87.°, alínea b) e 88.°, alínea d), da LGT e 39.° do CIRS, a correcção das declarações de rendimentos com recurso a estimativas ou presunções para determinação da matéria colectável, e a subsequente liquidação do imposto, pode ser feita com recurso a presunções sempre que os Serviços da Administração Fiscal constatem a existência de inexactidões ou omissões nas declarações, ou de outros motivos, de que resultem um imposto inferior ao liquidado.
O. A utilização do referido método, traduz-se no recurso a elementos de facto conhecidos que, utilizados segundo as regras da experiência, orientados por critérios de razoabilidade e normalidade, conduzem à extrapolação de outros desconhecidos que fundamentem o juízo valorativo extraído da mesma.
P. No caso sub judicie, os SIT recorreram a um indicador/coeficiente mínimo - valor mínimo divulgado -, como é referido para efectuar a avaliação, indirecta da matéria tributável de IRS do exercício de 2003, quantificando-a. Admite-se que a mesma tenha sido influenciada pela experiência adquirida no desenvolvimento da actividade inspectiva da Administração Fiscal.
Q. Ao que se percebe, a douta Sentença decide pela insubsistência do fundamento/critério utilizado pelos SIT para a avaliação presuntiva da matéria tributável levada a efeito.
R. Quanto a nós parece-nos, salvo o devido respeito por melhor opinião, que os argumentos invocados não são de acolher, já que, em face dos dados expressos nos documentos patentes do autos, a Impugnante não demonstra como foi determinado o valor declarado do Contrato De Trespasse celebrado em 02-01-2003, que titula a transmissão de um conjunto de bens e direitos corpóreos e incorpóreos susceptíveis de constituírem uma unidade jurídica e económica tendente ao desenvolvimento de actividade económica com mote lucrativo.
S. Com o devido respeito, cremos que andou mal a douta Sentença ao discordar do critério utilizado pelos SIT, com a singela argumentação que o indicador/coeficiente não é oficial nem ajustado à situação tributária configurada nos autos, ao dizer que a Administração Fiscal “toma como certo um valor que aparentemente se encontra comprovado por outras acções inspectivas que realizou e por noticias saídas na imprensa e publicadas na Internet…”,
T. Acolhendo no entanto a versão apresentada pela impugnante que o preço do negócio se condicionou às especificidades que o rodearam, designadamente o facto de a impugnante ser sócia da sociedade trespassária e a existência de uma relação de amizade entre esta e o outro sócio da sociedade.
U. como inclusivamente andou mal, ao desconsiderar que o negócio efectivamente tido lugar mais não foi do que um trespasse de um estabelecimento comercial - farmácia e portanto a transferência onerosa de património da esfera individual da impugnante para a esfera de entidade jurídica distinta - a sociedade por quotas, com as consequências subjacentes ao acto, nomeadamente as que resultam do seu enquadramento jurídico-tributário, que no caso são a sujeição no regime de tributação em que a contribuinte estava enquadrada – a tributação no regime geral.
V. Ora, não se pode desde logo olvidar que no caso dos autos foi transmitida, não só a carteira de clientes, o aviamento ou clientela, como também o acervo corpóreo e incorpóreo do estabelecimento comercial em apreço. Ademais dos bens corpóreos, foi igualmente transmitido o alvará que permite o funcionamento do estabelecimento comercial no mesmo ramo.
W. Ou seja, operou-se efectivamente a transmissão de uma universalidade de direito susceptível de constituir um ramo de actividade. É que não obstante o documento que titula a transmissão se referir avulsamente aos vários bens e direitos transmitidos, tal transmissão verdadeira e materialmente consubstancia o trespasse de uma universalidade de direito susceptível de proporcionar o desempenho da mesma actividade comercial até aqui desenvolvida pela Impugnante. E, só precisamente através de tal transmissão a actividade do estabelecimento pode continuar a ser exercida pelo trespassário.
X. Tendo por referência o que se deixou expresso, e também partindo da análise da declaração de rendimentos da Impugnante, a omissão de proveitos ao resultado liquida da CAT B de IRS, consubstanciada pela divergência quantitativa entre o valor de mercado e o valor constante do contrato de trespasse do estabelecimento que constituía o património comercial da Impugnante, para pessoa com personalidade jurídica e capacidade tributária distintas encaminha, por si só para a impossibilidade de apuramento da matéria tributável de forma directa e exacta.
Y. E, vigorando no ordenamento jurídico o princípio da declaração no apuramento da matéria tributável, o recurso aos métodos indirectos assume carácter subsidiário e excepcional, na medida em que, nos termos do art. 75º da LGT, se presume a veracidade dos elementos de escrita e dos elementos e apuramentos declarados, caso o contribuinte disponha de contabilidade organizada segundo a lei comercial e fiscal, a não ser que se verifiquem erros, inexactidões ou outros fundados indícios de que ela não reflecte a matéria tributável efectiva do contribuinte. Neste sentido, Acordão do TCAN de 26/01/2006, recurso nº 00381/04.
Z. Atendendo aos normativos legais atrás citados, designadamente a al. d) do art. 88º a al. b) do art. 87º da LGT, cremos que os fundamentos apresentados pela Administração em sede de procedimento inspectivo e de revisão são conducentes a uma manifesta discrepância entre o valor declarado e valor de mercado do trespasse, cujo montante não é inequivocamente conhecido e por conseguinte, provoca a impossibilidade de comprovação e quantificação directa e exacta dos elementos indispensáveis à correcta determinação da matéria tributável, estando assim reunidos os pressupostos legais de recurso aos métodos indirectos.
AA. A determinação da matéria tributável por métodos indirectos teve em conta a al. h) do n.º 1 do art. 90º da LGT.
BB.O enquadramento legal dos casos de determinação da matéria tributável por métodos indirectos com previsão no art. 74.º n.º 3, da LGT procede a uma clara distribuição do ónus da prova, entre os envolvidos e interessados nessas situações, no sentido de competir à Administração fiscal o da verificação dos pressupostos da aplicação desses métodos - que, nos termos do art. 81.º n.º 1 LGT, só pode proceder a avaliação indirecta da matéria tributável “nos casos e condições expressamente previstos na lei” - e de caber ao sujeito passivo - o encargo da prova do excesso da respectiva quantificação.
CC. A metodologia proposta e seguida é coerente e consistente na determinação da situação tributária em questão, e o valor determinado acha-se aceitável e ponderado, tendo a Administração de acordo com o conhecimento existente de operações da mesma natureza e, bem assim, de elementos obtidos em processos similares” diligenciado para aferir do valor do trespasse.
DD. E, a jurisprudência tem defendido que nesta questão, é normal algum grau de discricionariedade, cfr. entre outros o Acórdão do TCAN, recurso n.º 00235/04.7BEPNF, de 25-01-2007.
EE. Concomitantemente, não se verificando a(s) apontada(s) ilegalidade(s), inexistem os motivos conducentes à anulação do acto tributário de liquidação, devendo este permanecer na sua estabilidade e vigência no ordenamento jurídico.
FF. Decidindo como decidiu, é nossa convicção que a douta Sentença incorreu em erro de julgamento, consubstanciado na incorrecta apreciação e valoração da matéria factual, como igualmente na errada interpretação dos preceitos legais referidos ao longo desta peça processual.
GG. A douta sentença sob recurso violou as disposições legais supra citadas.
Termos em que, e nos melhores de direito aplicáveis, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida, com o que se fará inteira JUSTIÇA.».
A Impugnante (doravante Recorrida) apresentou alegações concluindo do seguinte modo:
«A) Vigorando no nosso ordenamento jurídico o princípio da declaração no apuramento da matéria tributável, presumem-se verdadeiras e de boa fé as declarações dos contribuintes, bem como, os dados e apuramentos constantes da sua contabilidade ou escrita, desde que organizada segundo a lei comercial e fiscal — cfr. artigo 75°, n° 1, da L.G.T.;
B) Esta presunção cessa em face da verificação de erros, omissões, inexactidões ou outros indícios fundados de que ela não reflecte a matéria tributável efectiva do contribuinte — cfr. artigos 75°, n° 2 e 87°, da L.G.T.;
C) O recurso à tributação por métodos indirectos constitui, assim, uma via excepcional e subsidiária de apuramento da matéria tributável, que depende da demonstração, por parte da Administração Tributária, da existência de factos objectivos e concretos que impedem que a tributação se faça a partir dos elementos fornecidos pelo contribuinte e, bem assim, da demonstração de que o recurso àquele método se tornou a única forma de calcular o imposto, externando os elementos que a levaram a concluir nesse sentido — cfr. artigos 81°, 88º e 77°, nº4, da L.G.T.;
D) No caso concreto, em que a decisão de tributação por métodos indirectos é fundamentada pela Administração Tributária na existência de manifesta discrepância entre o valor de trespasse declarado pela contribuinte e o valor de mercado desse bem, ao abrigo da previsão da alínea d) do art. 88c, da L.G.T.,
E) Cabia à Administração Tributária demonstrar que o valor declarado pela contribuinte não corresponde à verdade, por um lado, e, por outro, que em situações semelhantes verificadas no caso em apreço, o valor de mercado era substancialmente superior ao declarado;
F) Não tendo sido cumprido este ónus, não foi feita, por parte da Administração Tributária a demonstração da existência de manifesta discrepância entre o valor do trespasse declarado pela contribuinte e o “valor de mercado”, nem que esse valor não corresponde à realidade, condição sine qua non, para justificar o recurso à tributação por métodos indirectos;
G) Deste modo, a sentença recorrida não cometeu erro de julgamento nem violou qualquer disposição legal ao caso aplicável, motivo por que deve ser inteiramente confirmada.».
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal emitiu douto parecer no qual, em resumo, defendeu a procedência do recurso com fundamento em que, no caso concreto, apenas caberia à Administração Tributária provar que existia manifesta discrepância entre o valor declarado do trespasse em causa e o valor de mercado, tal prova foi realizada, sendo irrelevante que se esteja perante um trespasse de um sujeito passivo para uma sociedade em que o trespassante também é sócio porque o factor relevante é o valor do trespasse.
Colhidos os vistos legais, importa apreciar e decidir.
II – O Objecto do Recurso
Como é sabido, sem prejuízo das questões que o Tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 690º, nº 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem.
Assim, e pese embora na falta de especificação no requerimento de interposição se deva entender que este abrange tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 684º, nº 2, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (nº 3 do mesmo art. 684º), razão pela qual todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, devem considerar-se definitivamente decididas e, consequentemente, delas não pode conhecer o Tribunal de recurso.
Acresce que, constituindo o recurso um meio impugnatório de decisões judiciais, neste apenas se pode pretender, salvo o já mencionada situação de questões de conhecimento oficioso, a reapreciação do decidido e não a prolação de decisão sobre matéria não submetida à apreciação do Tribunal a quo.
E, sendo assim, temos por seguro, atento o exposto e as conclusões da alegação de recurso apresentada, que o objecto do presente recurso está circunscrito à questão de saber se, no caso concreto, estavam ou não reunidos os pressupostos que legitimam o recurso da Administração tributária aos métodos indirectos para determinar a matéria colectável para efeitos do imposto de rendimento singular da Recorrida relativo ao ano de 2003.
III – Os Factos
Em 1ª instância foram considerados assentes, e com relevo para a decisão, os seguintes factos:
A) Por documento particular datado de 02/01/2003, a impugnante e o seu marido trespassaram à sociedade P…— Produtos Farmacêuticos, Lda., representada pela impugnante e por A…, seus sócios, a Farmácia B…, licenciada pelo alvará n.° 116, emitido pelo INFARMED, “com todas as suas pertenças e direitos e todos os elementos materiais e imateriais que o integram, designadamente móveis, mercadorias, utensílios, alvarás, licenças, direito ao arrendamento e cedência das chaves, pelo preço de Eur: 1.320.000,00 (um milhão trezentos e vinte mil euros) que já receberam”— cfr. fls. 61 a 64 do P.A. apenso aos autos.
B) No período compreendido entre 18/04/2006 e 17/05/2006, a impugnante foi objecto de uma acção de fiscalização levada a cabo por parte dos Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças do Porto (SIT), com referência ao exercício de 2003 -cfr. relatório de inspecção tributária (RIT) a fis. 52/60 do P.A. apenso aos autos.
C) No RIT foram efectuadas correcções à matéria tributável de IRS do ano de 2003, com recurso a métodos indirectos, no valor de € 3 110 040,03, tendo por base a seguinte fundamentação:
“(…)
II - OBJECTIVOS, ÂMBITO E EXTENSÃO DA ACÇÃO INSPECTIVA
(…)
Motivo, âmbito e incidência temporal
(...) O procedimento inspectivo iniciou-se com o conhecimento da existência de um contrato de trespasse celebrado entre C…, NIF: 1… e a sociedade P…— Produtos Farmacêuticos Lda, NIPC: 5… em 2 de Janeiro de 2003.
(...)
Outros elementos
O sujeito passivo foi empresário em nome individual, exercendo a actividade de comércio a retalho de produtos farmacêuticos explorando, entre 2001/01/31 e 2003/12/31, a farmácia denominada Farmácia B… (...).
IV - MOTIVO E EXPOSIÇÃO DOS FACTOS QUE IMPLICAM O RECURSO A MÉTODOS INDIRECTOS
O sujeito passivo celebrou um contrato de trespasse, datado de 02 de Janeiro de 2003, com a sociedade P…— Produtos Farmacêuticos, Lda, NIPC: 5…, no qual acorda a venda de todo o património existente no estabelecimento comercial de farmácia, o seu activo empresarial (pertenças, direitos e todos os elementos materiais e imateriais que o integram, designadamente móveis, mercadorias, utensílios, alvarás e licenças, direito ao arrendamento e cedência das chaves), pelo valor global de 1.320.000,00€ (Anexo 1).
Ora, o capital da sociedade por quotas, no valor de 50.000,00€ é constituído por duas quotas, uma no valor nominal de 48.000,00€, pertencente a A… e outra com o valor nominal de 2.000,00€, pertencente a C…, sujeito passivo em questão. Daqui se retira que o sujeito passivo ficou com uma quota de 4% do capital social da sociedade constituída.
Nos termos do contrato de trespasse celebrado e conforme documentos relativos à transmissão, foram alienados pelo valor acima indicado os itens que constam das notas de débito emitidas para a transferência do património, nomeadamente o activo imobilizado e as existências, bem como o alvará que, tendo sido adquirido em 2001 foi transmitido pelo valor de 163.948,88€
Tendo o trespasse sido efectuado pelo valor global de 1.320.000,00€, tal constitui numa inequívoca e manifesta discrepância entre o valor declarado e o valor de mercado do trespasse, o qual, de acordo com o conhecimento existente de operações da mesma natureza, nunca é inferior a 1,5 vezes o volume de negócios do exercício imediatamente anterior ao da celebração do contrato, podendo este factor ser maior em função designadamente da capacidade de obtenção de lucros e da localização do estabelecimento comercial.
Este factor foi encontrado tomando em consideração alguns factos. Quer por experiência obtida através das acções inspectivas desencadeadas, quer através de dados retirados da comunicação social e de artigos de opinião vários que circulam via Internet, bem como de relatórios de peritos judiciais e pareceres obtidos junto da Associação Nacional de Farmácias.
De facto, se atentarmos às Demonstrações Financeiras do sujeito passivo, nomeadamente à Demonstração de Resultados dos exercícios de 2001 e 2002, exercícios anteriores à data de celebração do contrato de trespasse, e exercícios de arranque da actividade, verificamos que o Resultado Antes de Impostos ascende ao montante de 96.848,88€ e 245.055,55€, em 2001 e 2002, respectivamente. Ora, não obstante a existência dos inevitáveis custos de arranque inerentes, é de registar o enorme potencial lucrativo da actividade, facto a que não é alheia a protecção dada ao sector farmacêutico, nomeadamente a inexistência de um mercado de livre concorrência, dada a impossibilidade da obtenção da propriedade de uma farmácia sem a habilitação académica adequada, designadamente o grau de licenciatura em farmácia e a impossibilidade de abertura de uma nova farmácia sem a autorização prévia do lnfarmed (Instituto da Farmácia e do Medicamento), que terá de obedecer a determinados requisitos.
Assim, no blog saudesa.blogspot. com (Anexo 2) pode ler-se que “As restrições impostas por lei à abertura de novas farmácias, faz com que o seu trespasse atinja vários milhões de euros. Aí também se pode ler que segundo Vital Moreira, “a valorização especulativa e o enriquecimento indevido proporcionado pelas restrições à abertura de farmácias, criando verdadeiros monopólios territoriais com rendosos volumes de negócios e elevados níveis de lucro”, traduzem os valores envolvidos. Ainda segundo este blog “A mudança das regras de acesso ao estabelecimento de novas farmácias não consta das prioridades do programa de governo”.
Recorrendo ainda à comunicação social, desta vez aos média dedicados à economia, mais concretamente ao Jornal de Negócios de 1 219/2005 (Anexo 3), “..por inexplicáveis razões de saúde pública que a ANF invoca regularmente, (qualquer cidadão) pode ser dono de uma farmácia, a menos que seja farmacêutico. É por isso que o valor do trespasse de uma farmácia atinge somas avultadas. E é por isso que a abertura de novas farmácias é regulada apertadamente para proteger os interesses dos que já estão instalados.” É pelos factos relatados e outros que estamos em presença de um negócio com muita procura e pouca oferta, por ser escasso, o que implica inevitavelmente o pedido de valores significativos por parte dos proprietários destes negócios.
O Jornal de Noticias de 01/08/05 (Anexo 4) faz mesmo referências várias a preços praticados mas também à fórmula de cálculo do respectivo preço para as transacções de farmácias. Assim, naquela publicação, no meio de um extenso texto dedicado ao tema dos elevados preços praticados na alienação destes negócios pode ler-se que “O cálculo do preço de uma farmácia resulta da multiplicação do valor de facturação pelo factor venda. E este, explica a fonte do sector imobiliário, é geralmente 2, mas pode variar entre 1,5 e 2,5”.
Também numa avaliação feita a propósito do processo 55/02 da 9ª Vara — 2ª Secção do Tribunal Cível do Porto, por três peritos, estes referem a páginas 230 (Anexo 5) desse processo que “Para se calcular o valor da transacção de uma farmácia deve multiplicar-se o volume de vendas por 150% a 200%». Este processo judicial resultou dum diferendo entre os promitentes compradores e vendedores de uma farmácia cuja transacção se não chegou a realizar entre esses intervenientes.
Mas é a própria Associação Nacional de Farmácias que, em parecer dado aos Serviços do Ministério Público, refere que “O valor de trespasse das farmácias é definido normalmente em função do valor anual de vendas” sendo que o critério orientador do valor do trespasse é, pela prática existente no sector, “o valor anual de vendas acrescido de 50% e do valor de stock ao preço de custo “ (Anexo 6).
Nestes termos, dados os contornos da operação, tendo sido declarado um valor de trespasse substancialmente inferior ao valor de mercado, fica assim impossibilitada a comprovação e quantificação directa e exacta de todos os elementos indispensáveis à correcta determinação da matéria tributável, à luz da aí d) do ad. 88° da Lei Geral Tributária, pelo que proceder-se-á a avaliação indirecta da matéria tributável, à luz do disposto nos art. 87° b) do mesmo diploma legal e art. 30° do Código do IRS.
V. CRITÉRIOS DE CÁLCULO DOS VALORES CORRIGIDOS COM RECURSO A MÉTODOS INDIRECTOS
No exercício de 2002, o volume de negócios do sujeito passivo ascendeu ao montante de 2.95 a 360,02€ e respeitante exclusivamente a vendas de mercadorias (Anexo 7). Nestes termos o valor do trespasse deveria ser efectuado a um valor que seria, no mínimo, de 4.430.040, 03€, e que corresponde ao produto do coeficiente de 1,5 pelo volume de negócios relativo ao exercício de 2002, o exercício imediatamente anterior ao da realização do trespasse.
Tendo em conta o valor de mercado do trespasse e o valor atribuído ao alvará, efectuar-se-á a correcção que se mostra devida, para efeitos de tributação em sede de IRS, tomando em atenção a dedução ao montante de 4.430.040,03€, valor de mercado do trespasse, o valor declarado pelo sujeito passivo, 1.320.000,00€ pelo que tal correcção totalizará o montante de 3.110.040,03€, a qual corresponde ao valor de mercado do alvará (...) - cfr. RIT a fls. 52/60 do P.A. apenso aos autos.
D) Em 12/07/2006, no seguimento da acção inspectiva, por delegação de competências do Director de Finanças do Porto, foi fixado à impugnante (e ao seu cônjuge), em relação ao ano de 2003, com recurso a métodos indirectos, um rendimento líquido no valor de € 3 254 666,00, aderindo à fundamentação constante do RIT — cfr. fls. 79 e 79v. do P.A. apenso aos autos.
E) Em 24/07/2006, a impugnante foi notificada da fixação referida na alínea que antecede - cfr. fls. 49 a 51 do P.A. apenso aos autos.
F) Efectuou um pedido de revisão da matéria tributável fixada por métodos indirectos, em 22/08/2006cfr. fls. 84 a 87 do P.A. apenso aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
G) No âmbito do procedimento de revisão, foi emitido parecer pelo perito independente, do qual consta, além do mais, o seguinte: “(...) a operação de trespasse em causa neste processo não se assemelha, na minha opinião, às operações de venda de farmácias a cujos exemplos se recorreu na análise inspectiva e no respectivo Relatório, pelo facto de não se tratar de uma transmissão ou venda pura e simples entre farmacêuticos — caso em que poderiam verificar-se as ““condições normais de mercado” justificativas do apelo aos “valores de mercado” citados no relatório — mas sim de uma transmissão entre a farmacêutica titular do Alvará e a sociedade constituída por esta e pelo director geral da farmácia.
De facto, a actividade farmacêutica continuou a ser desenvolvida pelas mesmas pessoas físicas que a vinham desenvolvendo, não havendo, por isso, justificação para que o trespasse tivesse sido valorizado nestas condições, a “preço de mercado”.
Entendo assim assistir razão à contribuinte (...)“ — cfr. fls. 126 e 126v. do P.A. apenso aos autos.
H) Em 27/12/2006, foi indeferido o pedido de revisão apresentadocfr. fls. 133 a 137 do P.A. apenso aos autos.
I) Em 19/01/2007, foi emitida a liquidação impugnada com um valor a pagar, após compensação efectuada com a anterior liquidação de IRS do ano de 2003, de € 1 345 718,56, cujo prazo de pagamento voluntário terminou em 28/02/2007cfr. fls. 54 e 55 dos autos.
J) A presente impugnação foi remetida a tribunal por carta com registo postal datado de 25/05/2007cfr. fls. 3 dos autos.
Mais se provou que:
L) A impugnante adquiriu a propriedade do estabelecimento comercial de farmácia, ora trespassado, em 01/01/2001, por contrato de trespasse celebrado com A…, no valor de 200.000.000$00 (€ 997 595,79)cfr. fls. 37 e 38 dos autos.
M) Entre a impugnante e o seu actual sócio, A…, existe, para além da relação profissional de vários anos, uma relação de amizade - facto provado pelo depoimento prestado pela testemunha A… que, face às razões de ciência apresentadas, permitiu ao Tribunal formar a sua convicção quanto aos facto em apreço.
IV – O Direito
A única questão a apreciar e decidir, como resulta da delimitação do presente recurso efectuada no ponto II supra, é a de saber se o Tribunal a quo errou na apreciação e valoração que realizou da matéria de facto e, consequentemente, no julgamento de direito ao ter anulado a liquidação por não estarem verificados in casu os pressupostos de cujo preenchimento estava dependente o recurso a métodos indirectos para determinação da matéria tributável (para efeitos de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares relativo ao ano de 2003 da Impugnante).
Esta não verificação dos pressupostos foi, como resulta dos articulados dos autos e dos documentos que o acompanham, sempre, a tese defendida pela Impugnante e ora Recorrida, a acolhida pelo Tribunal a quo e contra a qual a Recorrente se insurge.
Vejamos, pois, o que se nos oferece dizer, começando por efectuar um breve enquadramento jurídico do instituto da tributação com recurso a métodos indirectos ou, se preferirmos, analisando o que determina a Lei em matéria de pressupostos conducentes à tributação por métodos indirectos para, após, apreciarmos da verificação, ou não, dos erros de julgamento assacados à sentença recorrida.
Assim, para o que interessa decidir, importa reter, que no ordenamento jurídico-português tributário vigora o princípio da declaração no apuramento da matéria tributável, o qual se encontra plasmado no art. 75°, n.° 1 e n.º 2, al. a) da LGT, aí se dispondo que, “presumem-se verdadeiras e de boa fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal”, cessando tal presunção quando, entre outras razões, aquelas declarações, contabilidade ou escrita revelem omissões, erros, inexactidões ou indícios fundados de que não reflectem a matéria tributável real do sujeito passivo ou se apresente de uma forma que impeçam precisamente o conhecimento dessa mesma realidade tributável.
Acresce que, em conformidade com o preceituado no art. 81º, n.º 1 da LGT, a matéria tributável deve ser avaliada ou calculada directamente segundo os critérios próprios de cada tributo, só podendo a administração tributária proceder a avaliação indirecta nos casos e condições expressamente previstos na lei, constituindo, assim, a avaliação directa o princípio regra a seguir pela Administração tributária e a avaliação indirecta um mecanismo de determinação da matéria tributável meramente subsidiário (em conformidade, aliás, com o disposto no art. 85º, n.º 1 da mesma Lei), que o legislador estabeleceu tendo em vista a determinação do valor dos rendimentos ou bens tributáveis de um determinado sujeito passivo, a partir de indícios, presunções ou outros elementos de que a administração tributária disponha e a que recorra para aquele concreto fim (cf. art. 83º, n.º 2 da mesma Lei citada).
Ora, foi precisamente tendo em conta a natureza subsidiária do instituto e os pressupostos de facto de que há, necessariamente, que partir, que o legislador entendeu impor à Administração Tributária um especial dever de fundamentação sempre que a mesma lance mão desse mecanismo (“a decisão da tributação pelos métodos indirectos nos casos e com os fundamentos previstos na presente lei especificará os motivos da impossibilidade da comprovação e quantificação directas e exacta da matéria tributável” -art° 77°, n.° 4 da LGT). Por isso a Administração Tributária, em todos os casos em que recorra à tributação por métodos indirectos, está obrigada a demonstrar que estão verificados os pressupostos legitimadores dessa forma de determinação da matéria tributável, ou seja, que a liquidação não pode assentar nos elementos fornecidos pelo contribuinte e que o recurso àquele método se apresenta como a única forma de calcular o imposto, externando os elementos que a levaram a essa conclusão.
Feita essa prova, recai, então, sobre o sujeito passivo, a obrigação ou ónus de demonstrar que aqueles pressupostos não se verificam ou que, verificando-se, houve erro ou manifesto excesso na quantificação da matéria tributável (cfr. art.° 74°, n.° 3 da LGT).
Como vimos já, entre as situações em que a Administração Tributária pode proceder à avaliação indirecta, encontra-se expressamente prevista no art. 87º da LGT a situação de impossibilidade de comprovação e quantificação directa e exacta dos elementos indispensáveis à correcta determinação da matéria tributável de qualquer imposto, importando ainda salientar - porque estritamente conexionado com o caso em apreço - que essa impossibilidade de comprovação e quantificação pode resultar da existência de uma manifesta discrepância entre o valor declarado e o valor de mercado de bens ou serviços, se essa discrepância inviabilizar o apuramento da matéria tributável (cfr. indicação exemplificativa da al. d) do art.° 88°do mencionado diploma legal).
Por último, no que concerne à quantificação da matéria tributável apurada através de métodos indirectos, e também para que fique completo o enquadramento legal em que se terá de mover a factualidade dos autos (e, consequentemente, o juízo que sobre a decisão este Tribunal foi chamado a sindicar), é ainda de notar que é sobre a Administração que recai o ónus não só de indicar, como também de fundamentar os critérios utilizados na determinação da matéria tributável por métodos indirectos, tendo o volume da matéria colectável presumida, obrigatoriamente, de assentar em dados objectivos, racionais e fundamentados, ou seja, em dados aptos a inferir os factos tributários, e não meras hipóteses abstractas, suspeitas ou suposições.
Em suma, resulta do quadro legal descrito (aplicável na determinação por métodos indirectos do rendimento dos sujeitos passivos de IRS, por força do disposto no art.° 39° do CIRS), que, «No caso de tributação por métodos indiciários, a lei impõe especial fundamentação, devendo a AT especificar os motivos por que a contabilidade não merece crédito, por que não pode quantificar directa e exactamente a matéria tributável e qual o critério utilizado na determinação da matéria tributável (cfr. arts. 82.º, n.º 1, do CIVA, art. 51.º do CIRC, ex vi do art. 38.º do CIRS, e 81.º do CPT, em vigor à data)» e que a «A essas exigências de fundamentação formal acrescem as da fundamentação material, ou seja, não basta à AT a mera indicação dos motivos por que entendeu proceder à avaliação da matéria tributável por métodos indirectos e do critério que utilizou na respectiva quantificação, exige-se-lhe também que demonstre o bem fundado das suas conclusões, isto é, a veracidade dos factos e a adequação entre os mesmos e as valorações em que diz suportar a sua actuação.» ([Ac. do Tribunal Central Norte, de 28-2-2008, consultável em www.dgsi.pt).
Encontradas as normas legais que regem a situação dos autos, delimitado o seu campo de aplicação e vistas as regras de distribuição do ónus da prova daquelas emergentes (em termos que, de resto, têm vindo a ser assumidos de forma pacifica pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo e deste Tribunal Central, conforme se pode constatar da leitura dos Acs daquele primeiro Tribunal de 17-3-2010, 1-6-2011 e 21-9-2011 e do TCA Norte de 28-2-2008, 14-7-2010 e 23-11-2011, que aqui citamos a título meramente exemplificativo, muitos outros existindo no mesmo sentido, todos consultáveis in www.dgsi.pt), analisemos agora os factos apurados nos autos em que assentou a conclusão vertida na sentença recorrida, de, no caso concreto, não se mostrarem verificados os pressupostos de aplicação dos métodos indirectos.
E, em ordem a uma percepção total dessa realidade factual, comecemos por relembrar que a liquidação que nos autos vem impugnada é o acto consequente da acção inspectiva realizada pela Administração Tributária (Serviços de Inspecção Tributária) e constitui o resultado da aplicação dos métodos indirectos para determinação da matéria tributável da Recorrida em sede de IRS e relativa ao ano de 2003, resultando do Relatório de Inspecção que a necessidade de recurso aos métodos indirectos para determinação da matéria tributável assenta, nuclearmente, no facto de ter sido declarado um valor de trespasse da “Farmácia B…” substancialmente inferior ao seu valor de mercado, radicando aí a alegada (o fundamento) impossibilidade de comprovação e quantificação directa e exacta da matéria tributável do sujeito passivo.
Essa conclusão - de que o valor de trespasse declarado é manifestamente inferior ao valor de mercado - aparece justificada no mesmo documento pela Administração Tributária com três ordens de razões que assim se podem sintetizar: o conhecimento existente de operações da mesma natureza; a experiência obtida através de acções inspectivas anteriormente levadas a cabo; os dados retirados de artigos de opinião publicados na comunicação social e que circulam na Internet, de um relatório pericial apresentado num processo judicial e de um parecer prestado pela Associação Nacional de Farmácias (cfr. factualidade apurada em C), «IV - MOTIVO E EXPOSIÇÃO DOS FACTOS QUE IMPLICAM O RECURSO A MÉTODOS INDIRECTOS», do ponto III supra).
Acontece, porém, que tais factores, para além de serem, por si só, vagos e de força probatório duvidosa quando abstractamente considerados, também não poderem deixar de ser absolutamente irrelevantes quando são desacompanhados de qualquer concretização, sendo esta a situação que ocorre no caso em apreço.
Com efeito, do teor completo do Relatório de Inspecção constata-se que, em momento algum a Administração Fiscal concretizou: quais foram as operações da mesma natureza que devem ser atendidas e que justificam que os conhecimentos e a experiência delas advenientes sejam relevantes no caso dos autos; qual foi a razão de ciência dos artigos jornalísticos e de opinião invocados; qual foi a factualidade subjacente ou que constituiu objecto do relatório pericial que foi junto aos presentes autos, que respeita a outro contribuinte e pertence a processo que correu termos num outro Tribunal; ou qual foi o circunstancialismo que rodeou ou condicionou a emissão do referido Parecer da Associação Nacional de Farmácias.
Do que vimos dizendo resulta, pois, que a Administração Tributária, a quem incumbia o ónus de demonstrar que o valor declarado como valor de trespasse era manifestamente inferior ao valor de mercado em situações similares, se limitou, nas palavras da Meritíssima Juíza a quo, «a invocar a experiência obtida noutras acções inspectivas, que não identificou, bem como artigos de opinião publicados na comunicação social, cujas razões de ciência não cuidou de enunciar e que abordam, genericamente, a questão dos lucros elevados obtidos na actividade farmacêutica e o valor dos trespasses de farmácias em situações em que as leis da oferta e da procura têm plena aplicação, ou seja, em que o valor da venda é ditado, pura e simplesmente, pelas regras do mercado.», sem dar, como devia, o mínimo relevo às especificidades pessoais ou subjectivas e objectivas que rodearam aquele concreto trespasse, as quais, não só estão apuradas nos autos como, em sede de procedimento, lhe haviam sido dadas a conhecer e que, por serem condicionadoras do valor de trespasse, não poderiam ter sido marginalizadas ou ter sido pura e simplesmente ignoradas como foram no percurso percorrido para aferição da existência do tal valor manifestamente inferior ao declarado.
Razões ou especificidades que, adiantamos mesmo, se tivessem sido consideradas, teriam determinado que o negócio em causa não pudesse ser visto como um corrente, normal ou típico negócio a valorar exclusivamente segundo regras de mercado.
Antes, porém, de salientarmos essas especificidades objectivas e subjectivas que podiam e deveriam ter sido consideradas e a bondade dessa mesma asserção, importa ter em conta a própria natureza e especiais características do negócio jurídico em causa.
É que, sendo este um trespasse de estabelecimento comercial, que consiste numa transmissão definitiva, por acto entre vivos, seja a título oneroso, seja a título gratuito, da titularidade do estabelecimento comercial (vd., por todos, A. Varela in RLJ 115/253 nota 1 e 123/346 in nota 1 à pág. anterior; também Henrique Mesquita entende que o trespasse engloba todos os negócios de transmissão definitiva e inter vivos de um estabelecimento, seja qual for a causa do acto translativo - venda, troca, doação, realização do valor de uma quota no capital de determinada sociedade, transmissão decorrente de uma fusão de sociedades, etc, entendimento que considera pacífico - RLJ 128/58), importa, para efeitos da sua avaliação, considerar autonomamente não só cada um dos elementos que integram aquela universalidade de direito como a importância relativa (peso) de cada um dos bens nessa universalidade. É que só desse modo se pode revelar evidente que a avaliação deste tipo de bem ou, se preferirmos, a sua avaliação enquanto «bem de mercado» está dependente (como os inúmeros critérios de avaliação de empresas existentes também o revelam) não só da própria importância/função de cada um desses bens objectivos e autonomizáveis que integram aquela universalidade, como a importância que assumem autonomamente ou globalmente para os concretos sujeitos intervenientes na celebração do negócio concreto.
Aliás, o chamado «valor de mercado» é o valor que um produto atinge no mercado, baseado objectivamente na concorrência - resultante do “jogo” entre a oferta e a procura - constituindo seu oposto o valor real do mesmo produto ou bem. O valor do mercado é, pois, a medida desse bem expressa em unidade monetária que resulta, em regra, de estatísticas ou critérios de referência sobre os preços praticados na venda e ou oferta de bens similares no mesmo mercado, em dado momento. É uma medida, um dado numérico que possibilita a comparação entre bens similares, reflectindo esse valor (monetário) a medida-referência que o mercado impõe numa eventual transacção comercial, distintamente do que ocorre com o valor real, em que as variações de mercado ou medida-referência não têm ou têm pouca influência na determinação do preço de transacção.
Expostas estas breves considerações gerais sobre a definição do negócio em questão e as particularidades que a sua avaliação pode suscitar enquanto bem de mercado, analisemos as especificas circunstâncias objectivas e subjectivas que rodearam o trespasse em causa e a sua influência no valor do trespasse.
Assim, no que tange às especificidades subjectivas, desde logo a Administração Tributária deveria ter ponderado que por esse trespasse também era transmitido o direito de propriedade da farmácia, de que a Impugnante era titular, para uma sociedade em que a mesma figurava como sócia ainda que com uma quota reduzida, sendo essa sociedade constituída por duas pessoas, a Impugnante e o sócio maioritário, amigos e colegas de profissão há muitos anos, circunstâncias que já haviam sido determinantes do anterior trespasse do mesmo estabelecimento comercial (e do respectivo valor), ocorrido cerca de dois anos antes, daquele sócio para a Impugnante.
Relativamente às especificidades objectivas é de realçar, desde logo, o facto de, na ponderação realizada, não ter sido tomado em consideração o valor e a data do anterior trespasse, realizado apenas dois anos antes, através do qual a impugnante adquirira a mesma farmácia a A…, por cerca de € 997 595,79, o que, naturalmente, torna expectável que influencie o valor de um posterior trespasse entre as mesmas partes.
E o mesmo vale para o facto de a Recorrida integrar a sociedade trespassária, em cujo capital também participava, bem como a sua quota-parte nas expectativas de lucros que pelo desenvolvimento da actividade económica da sociedade de que era parte também viria a obter.
Ou seja, este concreto circunstancialismo de facto não pode ter deixado de influenciar, e não só por via reflexa ou eventual, o valor real do trespasse cujo apuramento, salvo o devido respeito, é exactamente o que se exige à Administração Tributária.
Daí que, mereça o nosso total acolhimento, a defesa da Meritíssima Juíza a quo de que, mesmo que a Administração Tributária considerasse que no caso concreto estavam verificados os pressupostos de recurso aos métodos de avaliação indirecta, sempre lhe era exigível, tendo em vista a comprovação da veracidade do valor declarado, que tivesse solicitado à Recorrida, em sede de procedimento inspectivo, que lhe fosse autorizado o acesso aos documentos bancários de suporte da operação financeira em causa e, em caso de recusa, tivesse obtido o acesso a essa documentação (nos termos e ao abrigo do preceituado no artº 63°-B n.° 3 alínea a) da LGT, na redacção da Lei n.° 55-B/2004, de 30 de Dezembro), o que comprovadamente não fez, ou pelo menos não se mostra alegado que o tivesse feito.
E não se diga que este grau de exigência na indagação factual eleva de forma insuportável ou desproporcionada o ónus imposto à Administração Tributária. Com efeito, é que não só essa exigência de prova lhe está imposta por disposição legal expressa, como, sendo a entidade condutora do processo, também tem acesso aos elementos que considera relevantes, o que a dota de capacidade bastante para fazer esse tipo de indagação e prova.
Por último, constituindo a verdade material tributária o fim que a Administração Tributária deverá prosseguir, só depois de apurada aquela, poderá aplicar ou recorrer aos mecanismos que a lei lhe faculta para, sendo caso disso, a repor.
Ora, as circunstâncias objectivas e subjectivas que referimos e que foram totalmente desconsideradas pela Administração Fiscal, revelam que o negócio jurídico “sub judice” se afasta do vulgar comum trespasse de um estabelecimento comercial celebrado entre pessoas sem qualquer relação profissional ou pessoal entre si e do qual não emergem novas relações comuns (o que também não era o caso, por a Impugnante assumir por esse mesmo negócio a qualidade de sócia da adquirente do estabelecimento), o que, ponderado conjuntamente com o negócio anteriormente celebrado entre os dois concretos contraentes e o valor desse negócio, contém um conjunto de razões que, segundo as regras da lógica e da experiência comum, são objectivamente capazes de influenciar, de forma mais ou menos determinante, a fixação do valor do trespasse agora em causa, afastando essa fixação dos «valores de mercado» ou das considerações de valores potenciais das farmácias, de monopólio de exploração e do enquadramento legal desse suposto monopólio, de que a Administração Tributária lançou mão para, sem mais, chegar à conclusão que o valor declarado era manifestamente superior ao valor daquele bem no mercado.
Em suma: na fundamentação aduzida pela Administração Tributária não se encontram elementos de facto concretos e objectivos de onde se possa retirar, com uma certeza razoável, que o valor declarado pela Recorrida como sendo o do trespasse do estabelecimento não corresponde ao valor real desse negócio jurídico. Ou seja, o Relatório não enuncia sequer elementos de facto concretos suficientes para demonstrar que o “valor de mercado” do trespasse do estabelecimento em causa nas condições que ficaram apuradas é substancialmente superior ao declarado.
E como essa demonstração constituía, nos termos do disposto no citado art. 88° alínea d) da LGT, o pressuposto legitimador do recurso por parte da Administração Tributária aos métodos indirectos de determinação da matéria tributável, bem andou o Tribunal a quo ao anular a liquidação impugnada com fundamento na falta desse pressuposto.
V – Decisão
Assim, pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, negar provimento ao recurso, confirmando integralmente a sentença recorrida.
Custas nas duas instância pela Recorrente.
Notifique e registe.
Porto, 8-3-2012
Ass. Anabela Russo
Ass. Catarina Almeida e Sousa
Ass. Nuno Bastos