Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00208/06.5BEVIS
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:09/25/2014
Tribunal:TAF de Viseu
Relator:Frederico Macedo Branco
Descritores:EMPREITADA OBRAS PÚBLICAS;
ATRASO PAGAMENTO FATURAS;
JUROS MORA;
CONTRATO CESSÃO FINANCEIRA - CONTRATO FACTORING
Sumário:1. O contrato de cessão financeira/contrato de factoring constitui negócio jurídico obrigacional nominado, atípico misto, de conteúdo variável, de cuja estrutura é elemento essencial, sempre presente, uma cessão de créditos [regulada nos arts. 577.º segs. do CC], créditos esses presentes e/ou eventualmente futuros e que consiste, nos termos legais, na tomada continuada por intermediário financeiro («Factor/Cessionário») da totalidade ou de parte dos créditos a curto prazo (30, 90, 180 dias) derivados da venda de produtos ou da prestação de serviços a terceiros nos mercados interno e externo [no caso, prestação serviço decorrente da execução de empreitada de obra pública] que os fornecedores desses produtos e serviços («Aderentes/Cedentes») constituem sobre os seus clientes (Devedores).
2. Face ao disposto no n.º 1 do art. 582.º do CC a cessão de crédito operada no quadro de contrato de cessão financeira ou de factoring importa, salvo convenção em contrário, a transmissão para o «Factor/Cessionário» das garantias e outros acessórios do direito transmitido, incluindo-se nestes acessórios claramente os juros de mora vincendos que, assim, passam para a esfera jurídica da titularidade do «Factor/Cessionário».*
*Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:Município de SMF
Recorrido 1:S - PIGF, Lda.
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum - Forma Ordinária (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam em Conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
I Relatório
O Município de SMF, devidamente identificado nos autos, no âmbito da ação administrativa comum, inconformado com a Sentença proferida em 29 de Junho de 2012, no TAF de Viseu, na qual a ação foi julgada procedente, tendo sido condenado a pagar à então Autora, 6.975,99€, veio interpor recurso jurisdicional da referida Sentença, em 25 de Setembro de 2012 (Cfr. fls. 239 a 244 Procº físico).
Formula o aqui Recorrente/Município nas suas alegações de recurso as seguintes conclusões (Cfr. fls. 242 a 244 Procº físico).
1- Na presente ação a A. vem reclamar um crédito de que não é titular, por ter feito a sua cedência, no caso, a BCP Factoring.
2- Conforme comunicação feita, por ambos, ao Município e que se encontra documentada nos autos.
3- O ora recorrente desconhecia os exatos termos do contrato celebrado entre a A. e o BCP Factoring, os quais não lhe foram comunicados.
4- Pelo que a A. é parte ilegítima.
5- Por outro lado, só em 2007, o BCP Factoring veio comunicar à ora recorrente, a recompra dos créditos pela A.
6- Só que a ação foi interposta e contestada em 2006.
7- Pelo que a instância se estabeleceu da data da propositura da ação, quer quanto às partes, quer quanto ao pedido, quer quanto à causa de pedir.
8- Sendo que, com a recompra do crédito pela A., a causa de pedir passou a ser o contrato de (re)compra do crédito.
9- O pagamento do capital feito pelo Município, após a nova notificação de janeiro de 2007, foi feito porque era devido, e já não – deve ser dito – por razões que tivessem a ver com a presente ação.
10- A A. não era titular do direito aos juros, pelo menos no momento em que os peticionou.
11- Não competia ao Município, requerer ou promover a intervenção do BCP Factoring, mas sim e mesmo aí com fortes duvidas à A., por ser ela a parte ilegítima.
12- Ao não decidir pela ilegitimidade da A. por não ser titular do direito de que se arrogava, a douta sentença violou as normas contidas nos artigos 26º, 267º e 268º do C.P.C.
Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exa. doutamente suprirá deve ser dado provimento ao recurso e revogada a douta sentença recorrida, julgando-se a recorrida parte ilegítima na presente ação.

O Recorrido, veio a apresentar as suas contra-alegações de Recurso em 25 de Fevereiro de 2013, concluindo (Cfr. fls. 257 a 259 Procº físico:
A douta Sentença recorrenda fez uma criteriosa aplicação do direito aos factos validamente provados nos autos.
ASSIM DECIDENIDO, SENHORES JUIZES CONSELHEIROS, confirmando a douta Sentença recorrenda, FARÃO VOSSAS EXCELENCIAS, UMA VEZ MAIS, JUSTIÇA
O Recurso Jurisdicional foi admitido por Despacho de 28 de Fevereiro de 2013 (Cfr. fls. 265 Procº fisico).


O Ministério Público junto deste Tribunal, tendo sido notificado em 10 de Abril de 2013 (Cfr. fls. 273 Procº físico), nada veio dizer, requerer ou promover.


Colhidos os vistos legais, com projeto de Acórdão, foi o processo submetido à conferência para julgamento.

II - Questões a apreciar
As questões a apreciar e decidir prendem-se com o alegado facto do Autor/Recorrido não ser titular do direito aos juros por ser parte ilegítima, de acordo com o Recorrente, “por não ser titular do direito de que se arrogava”, o que terá determinado que a sentença do tribunal a quo tenha violado “as normas contidas nos Artº 26º. 267º e 268º do CPC” (atualmente 30º, 259º e 260º CPC), sendo que
o objeto do Recurso se acha balizado pelas conclusões expressas nas respetivas alegações, nos termos dos Artº 5º, 608º, nº 2, 635º, nº 3 e 4, todos do CPC, ex vi Artº 140º CPTA.

III – Fundamentação de Facto
O Tribunal a quo, considerou a seguinte factualidade, a qual aqui se entende ser suficiente e adequada:
1. A autora dedica-se à produção e comércio de Painéis em Vinil e telas em PVC com impressão em suporte digital e em grande formato;
2. No exercício dessa atividade comercial, a autora e o réu estabeleceram ou celebraram vários contratos para produção, fornecimento e colocação dos produtos a cuja produção e comercialização se dedica, para serem colocados pela autora em determinados locais que o réu com a mesma acordou;
3. Tais produtos e serviços foram acordados por autora e réu, por diversas vezes, situadas desde Novembro de 2004 a Setembro de 2005, totalizando o seu preço a importância de € 53.718,05 com o IVA à taxa legal incluído, e dividindo os mesmos por diversas faturas que a autora emitiu e enviou ao réu, juntas de fls. 35 a 61 e descriminadas ou identificadas no documento junto a fls.62 dos autos;
4. Entretanto, fora acordado entre autora e réu que tais produtos e serviços fornecidos pela autora ao réu deveriam ser pagos por este àquela no prazo de 90 dias após a emissão e remessa das respetivas faturas da autora ao réu;
5. A autora instou por diversas vezes o réu para proceder ao pagamento das respetivas faturas, sendo que este não as pagou até à data da instauração da presente ação;
6. A autora, em 25/01/2006, emitiu e enviou também ao réu as notas de débito respeitantes aos juros de mora pelo atraso no pagamento das importâncias constantes das referidas faturas dos produtos e serviços que prestou ao réu, notas essas de débito com os n.ºs 25, 26, 27 e 28, na importância total de € 4.071,02, juros esses já vencidos em 31/05/2006, os quais o réu não pagou até esta data;
7. Entretanto, a autora em data já anterior a 24/02/2005, havia celebrado com o BCP Factoring, S.A. um contrato de factoring pelo qual cedeu ou transmitiu para este os seus créditos sobre o réu município de SMF, comunicando a autora ao réu a referida cessão de créditos, titulada pelo mencionado contrato de factoring, por carta datada de 24/02/2005 e rececionado pelo réu em 03/03/2005, confirmando e aceitando o réu tal cessão de créditos ao próprio BCP factoring por ofício datado de 07/04/2005;
8. Por carta de 6 de Julho de 2005, a autora comunicou ao réu a cessão dos créditos que tinha sobre o próprio réu, através do referido contrato de factoring, para o BCP Factoring, tendo o réu confirmado e aceitado tal cessão de créditos ao BCP Factoring, através do ofício a este dirigido e datado de 27/05/2005;
9. O contrato de Factoring celebrado entre a autora e o BCP Factoring, S.A., mencionado em 7., foi reduzido a escrito e encontra-se junto a fols.91/92 e 188/192 destes autos;
10. Nos termos da cláusula IV do referido contrato de factoring, a autora/aderente assumiu para com o BCP Factoring o risco de não pagamento, total ou parcial, dos créditos cedidos por parte do devedor/réu;
11. Nos termos da cláusula VI, ponto 4., do mesmo contrato de factoring, a autora ficou com a possibilidade de poder exigir diretamente ao devedor/réu os seus créditos cedidos ao BCP Factoring, e caso o devedor/réu os efetuasse à autora os mesmos seriam dados como recebidos por conta do factor, na qualidade de mandatário, os quais seriam imediatamente transferidos pela autora para o Banco factor;
12. Por ofício datado de 19/01/2006, o réu enviou à autora um plano de pagamentos voluntários relativamente ao capital em dívida, previamente estabelecido entre si e a autora, em reunião havida entre ambos em 29/12/2005;
13. Com datas de 10 de Janeiro de 2007, o BCP, com referência ao contrato de factoring mencionado em 7., comunicou ao réu que os créditos constantes das faturas reclamadas e ajuizadas, e cujos montantes são exigidos nesta ação pela autora ao réu, foram pelo banco novamente cedidos à autora pelo facto de o réu não ter procedido à sua liquidação junto do Banco ma data do seu vencimento;
14. Entretanto, na pendência desta ação, o réu pagou à autora os montantes de capital em débito a esta e pela autora exigidos ou peticionados nesta ação, em três prestações, sendo a primeira em 16 de Maio de 2006, na importância de € 10.527,00 relativo às faturas n.ºs 500538, 500539 e 50064, a segunda em 3 de Agosto de 2007, na importância de € 20.224,05, relativa às faturas n.ºs 500059, 500060, 500061 e 500062 e a terceira em 13 de Agosto de 2007, na importância de € 22.967,00, relativa às faturas n.ºs 500039, 500070, 500118, 500119 e 500248;
15.A presente ação está pendente desde 14/02/2006.

IV – Do Direito
Importa pois analisar e decidir o suscitado.
Em bom rigor, o que aqui está em causa é predominantemente o mesmo que foi suscitado e decidido em 1ª instância e que terá violado “as normas contidas nos Artº 26º. 267º e 268º do CPC” (atualmente 30º, 259º e 260º CPC), uma vez que se invoca que a então Autora, aqui Recorrida, será parte ilegítima.

Há, desde logo, uma questão essencial que não poderá ser escamoteada, que resulta da circunstância da aqui Recorrente ter, na pendência da ação procedido ao pagamento do capital em divida e reclamado, tendo apenas ficado por satisfazer os correspondentes juros.

Originariamente o município, aqui Recorrente, veio invocar que nada devia, uma vez que os montantes reclamados teriam sido cedidos ao BCP Factoring, o que suporta o seu entendimento segundo o qual a aqui Recorrida seria parte ilegítima na presente Ação.
Analisando e enquadrando a questão subjacente à matéria controvertida, diga-se que o contrato de factoring se caracteriza por uma transmissão de créditos do aderente para o factor, que procederá à gestão dos correspondentes créditos mediante o pagamento de uma remuneração, pelo cedente.

A atividade de factoring encontra-se definida no art.º 2.º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 171/95, de 18.7, nos seguintes termos:
“a atividade de factoring ou cessão financeira consiste na aquisição de créditos a curto prazo, derivados da venda de produtos ou de prestação de serviços, nos mercados interno e externo”.

É através da figura da cessão que o Factor passa a poder exigir do devedor o pagamento devido ao cliente.

Por outro lado, nos termos do art.º 577.º do C.C., o credor, em regra, pode ceder, no todo ou em parte, o seu crédito a terceiro, sem necessidade do consentimento do devedor.

No que respeita aos juros, e sobre a possibilidade da sua autonomização refere o Prof. Antunes Varela (in “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 5ª ed., pág. 832) que: “A obrigação de juros pressupõe a dívida de capital, visto os juros constituírem o rendimento do capital ou a remuneração da sua cedência e, nesse aspeto, pode considerar-se uma obrigação acessória. A relação de dependência entre as duas obrigações não obsta, no entanto, a que, uma vez constituído, o crédito de juros se autonomize. Pode, na verdade, o credor ceder, no todo ou em parte, o seu crédito de juros e conservar o crédito relativo ao capital; pode, pelo contrário, ceder a outrem o crédito do capital e manter para si, no todo ou em parte, o crédito dos juros vencidos”.

De referir ainda e em qualquer caso, que para que o contrato de factoring seja eficaz perante o devedor, a cessão terá de lhe ser notificada (art. 583.º, n.º 1, do C.C.).
Na situação em apreço, refere-se nas condições particulares do contrato de factoring, na sua cláusula IV, que o factor não assume o risco de crédito por incumprimento do devedor, o que determina que seja a Recorrida/aderente quem assumiu o risco do não pagamento, total ou parcial, dos créditos cedidos, ao que acresce a circunstância de nos termos da cláusula VI, ponto 4., do mesmo contrato de factoring, a autora ter ficado com a possibilidade de poder exigir diretamente ao devedor/réu os seus créditos cedidos ao BCP Factoring, o que determina a possibilidade do cedente poder ainda reivindicar junto do devedor o pagamento, designadamente dos juros.

Em concreto, verifica-se que do contrato de factoring celebrado entre a SIGN, Lda e o BCP Factoring, S.A., foi comunicado pela aqui Recorrida/SIGN à Recorrente/Município em 24 de Fevereiro de 2005, importando considerar que se reporta a todos os créditos existentes a essa data e também os futuros, por falta de indicação expressa em contrário.

Tratou-se pois de um contrato de transmissão de créditos já existentes e futuros e que se concretizou com a cessão de créditos das faturas em débito aquando da comunicação do aderente/SIGN.

Uma vez que aqui apenas estão em questão os juros, atendendo a que o capital foi pago na pendência da Ação, o que importará verificar é se os juros de mora foram ou não então transmitidos ou cedidos ao factor através do contrato de factoring.

No contrato de factoring nada se estipulara quanto ao facto da cessão/transmissão de créditos englobar ou não os juros do capital em débito relativamente aos montantes das faturas em débito.

Resulta do art.º 582.º, n.º 1, do C.C. que, “Na falta de convenção em contrário, a cessão do crédito importa a transmissão, para o cessionário, das garantias e outros acessórios do direito transmitido, que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente”, sendo assim suposto que com a transmissão de créditos controvertidos se transmitiriam também os juros.

Resulta, em qualquer caso, do convencionado que a SIGN poderia continuar, apesar de tal contrato de factoring, a proceder à cobrança dos seus créditos sobre o aqui Recorrente, seja de capital seja de juros, como resulta expresso da cláusula VI do contrato de factoring.

Situação incontornável e insofismável é o facto do Município ter procedido na pendência da Ação, ao pagamento do capital reclamado à SIGN, o que determina, se mais razões não houvesse, o reconhecimento da legitimidade desta no recebimento dos montantes reclamados, e que necessariamente terão de incluir os correspondentes juros.

Fica pois demonstrada a legitimidade da SIGN em reclamar os controvertidos juros, tanto mais que resultava do contrato de Factoring, como se viu, que a mesma nunca se despiu da possibilidade de diretamente exigir os créditos e juros reclamados.

Improcede pois a invocada ilegitimidade da SIGN, pois que contratualmente nunca deixou de poder exigir todos os créditos que detinha sobre o Município.

Sendo ao SIGN parte legítima na presente Ação, tendo o Município reconhecido os montantes reclamados em divida, tanto mais que os pagou na pendência da Ação, importará meramente a título instrumental verificar se os juros se mostrarão devidos.

Como resulta da Sentença do tribunal a quo, suscita alguma perplexidade a circunstância do Município ter pago o capital reclamado e recusar-se a pagar-lhe os respetivos juros relativos a esse capital, pois que tal obrigação resulta designadamente dos artigos 804.º a 806.º do Código Civil.

Efetivamente, o Dec. Lei n.º 3/2010, de 27/04, veio estabelecer a obrigatoriedade de pagamento de juros de mora pelo Estado pelo atraso no cumprimento de qualquer contrato de qualquer obrigação pecuniária, referindo o seu artigo 1.º que “o Estado e demais entidades públicas, incluindo as Regiões Autónomas, estão obrigadas ao pagamento de juros moratórios pelo atraso no cumprimento de qualquer obrigação pecuniária, independentemente da sua fonte”.

Mais se refere no art.º 2.º que “quando outra disposição legal não determinar a aplicação de taxa diversa, aplica-se a taxa de juro referida no nº 2 do artº 806º do Código Civil”.
* * *
Deste modo, em conformidade com o precedentemente expendido, acordam os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Administrativo do presente Tribunal Central Administrativo Norte em negar provimento ao recurso, confirmando-se o sentido da decisão proferida em 1ª Instância.
Custas pelo Recorrente
Porto, 25 de Setembro de 2014
Ass.: Frederico de Frias Macedo Branco
Ass.: Ana Paula Portela
Ass.: Luís Migueis Garcia