Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:02558/17.6BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:10/28/2022
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Ricardo de Oliveira e Sousa
Descritores:CONTRATO DE ARRENDAMENTO APOIADO – RESOLUÇÃO – EFICÁCIA DA DECISÃO PENAL ABSOLUTÓRIA – PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
Sumário:I - Prevê-se no atual art.º 623.º do CPC que “A condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer ações civis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração”.
II- A presunção legal da “inexistência desses factos” só opera, portanto, no caso das condenações definitivas em processo penal, o que pressupõe, naturalmente, o trânsito em julgado.
III. Assim, na exata medida que o ato impugnado foi promanado em data anterior ao trânsito em julgado da condenação crime de que foi alvo a Autora, não estava a Administração vinculada ao regime preconizado no artigo 623º do C.P.C., podendo julgar a causa sem qualquer limitações processuais.
IV- Não obstante, estava obrigada a demonstrar previamente os factos integradores da extinção do direito de ocupação da arrendatária, o que não veio a suceder.
V- Daí que se nos afigure existir um défice de instrução procedimental gerador da ilegalidade do acto final do procedimento, assentando o acto impugnado em pressupostos de facto não fundados em elementos probatórios, objetivos e seguros, mas antes em factos controvertidos e incertos, o que, como é consabido, consubstancia o vício de erro sobre os pressupostos de facto.
VI- O princípio da presunção da inocência não tem acolhimento no procedimento administrativo, pois que a Administração não está a sancionar a titular do direito de ocupação do arrendamento, mas antes a resolver o contrato de arrendamento apoiado com fundamento na utilização contrária à lei.
VII- É de negar provimento ao recurso que deixa incólume um dos fundamentos que autonomamente justificou a decisão recorrida.
Recorrente:MUNICÍPIO DO PORTO
Recorrido 1:AA
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Procedimento Cautelar Suspensão Eficácia (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Negar provimento.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido da procedência do presente recurso.
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Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
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I – RELATÓRIO
MUNICÍPIO DO PORTO, com os sinais dos autos, vem intentar o presente RECURSO JURISDICIONAL da sentença promanada pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto no âmbito da presente providência cautelar que, em 25.01.2022, julgou “(…) a ação parcialmente procedente e, em consequência: a) Anul[ou] a decisão proferida pelo Diretor Municipal da Presidência da Câmara Municipal do Porto e Presidente do Conselho de Administração da D..., datada de 29.07.2017, de resolução do arrendamento apoiado correspondente à casa sita na Rua ..., ..., Porto, propriedade do Município do Porto e sob gestão da D..., e que determinou a desocupação e entrega da habitação; b) Absolve[u] a entidade demandada do pedido indemnizatório. (…)”.
Alegando, o Recorrente formulou as seguintes conclusões: “(…)
1. A sentença condenatória na medida em que evidencia uma convicção judicial sobre as provas produzidas em juízo é já um ato jurídico do qual constam, ainda que de modo mediato, resultados probatórios resultantes de um processo equitativo e justo.
2. A circunstância de ainda ser possível o recurso de tal decisão podendo neutralizar os efeitos próprios de tal decisão (condenação na pena pela prática do crime provado) não inibe a produção de quaisquer outros efeitos laterais ou acessórios na ordem jurídica como seja o de permitir criar na esfera do órgão administrativo um grau suficiente de convicção para a pratica de um dado ato administrativo, neste caso um ato resolutivo de um contrato administrativo assente na práticas ilícitas (tráfico de estupefacientes) na habitação locada em causa.
3. O que o tribunal parece ter concluído é que à data da prática do ato em causa, o apelante - autor daquele ato - não dispunha dos elementos probatórios suficientes (porque não produziu prova autónoma ou porque não aguardou pelo trânsito em julgado da decisão para que esta funcionasse como presunção) para poder concluir pela existência daqueles factos de efeito resolutivo e portanto que não podia dar como provados aqueles factos.
4. Sucede que - salvo o devido respeito - se o artigo 623° do CPC não tem aplicação no caso concreto, pois não se trata aqui de um caso de oponibilidade da sentença a um terceiro, este caso ao município. Trata-se de um caso em que o município pretende usar o fundamento de uma sentença para praticar um ato administrativo.
5. Mas mesmo que o preceito em causa pudesse ser usado - como de resto o faz a decisão judicia impugnada - o certo é que o preceito apenas refere que a sentença condenatória só constitui prova (por presunção) dos factos elencados na sua hipótese, se definitiva, ou seja, quando transitada em julgado dispõe que aos terceiros podem ser opostas as sentenças condenatórias. Isto quer apenas dizer que neste caso a lei estabelece para estas sentenças uma ressunção legal que dispensa o ónus da prova àquele que estaria sujeito ao mesmo, podendo os factos que ficam assentes com base na mesma ser objeto de prova do contrário pela parte legalmente onerada da prova deste facto (contrário).
6. Só que, mesmo dando de barato, que o preceito em causa tem aplicação in casu, o certo é que a previsão legal de presunção para as sentenças condenatórias penas definitivas não inibe que as sentenças da mesma natureza não transitadas não definitivas não possam permitir ilações probatórias suficientes para uma decisão administrativa.
7. O preceito em causa não estipula que a sentença só pode ser valorizada em termos probatórios ou seja para criar a convicção de um outro decisor, neste caso de um órgão administrativo, se estiver transitada em julgado. Estabelece apenas uma presunção legal/causa de dispensa de ónus da prova) para as sentenças condenatórias transitadas.
8. Pelo exposto, a circunstância de a apelante ter assente a sua decisão administrativa numa decisão judicial penal condenatória não pode equivaler a afirmar que o fez sem criar qualquer convicção sobre os factos de natureza resolutiva. Não sendo obrigado a tal - o apelante criou a sua convicção de modo mais indireto e não imediato dos fastos essenciais relevantes dados como assentes na decisão atentos os meios de prova constantes do processo judicial, aproveitando os resultados probatórios validados por um tribunal para o efeito.
9. Consequentemente, não é possível concluir que 1) A A e o filhos não traficavam droga na fração em momento anterior à resolução do contrato 2) nem que a condenação judicial dos mesmos em penas de prisão efetiva , em processo contraditório e com todas as garantias não é suficiente para sustentar a decisão administrativa em causa.
10. O ato administrativo em causa padecesse de tal vício gerador de anulabilidade, sempre deveria em consonância com o dever de aproveitamento do ato administrativo não ter permitido a produção do efeito anulatório do ato em causa.
11. Com efeito, dispõe o artigo 163°, n° 5, al. c ) do CPA eu não se produz o efeito anulatório quando se comprove sem margem para dúvidas que mesmo sem o vício o ato teria sido praticado com o mesmo conteúdo.
12. Ora, se ao tempo da prática do ato o acórdão não estava transitado em julgado, o certo é que ao tempo da prolação da aparente decisão judicial a condenação penal transitada em julgado.
13. Ficou, pois, demonstrado por presunção legal que os factos constantes daquele ato administrativo correspondem à realidade.
14. E a aquisição pela sentença constitui o elemento essencial de convicção do órgão administrativo de definitividade, sendo como é, do conhecimento do tribunal a quo, devia ter sido pelo mesmo todo em consideração.
15. Com efeito, perante esta anulação a apelante pode sempre repetir o conteúdo do ato de resolução alicerçando-se agora - como o tribunal a quo lhe indica - na sentença condenatória definitiva.
16. Se o fizer o ato vai ser praticado com o mesmo sentido com o mesmo conteúdo, uma vez que, agora, sem margem para dúvidas , se comprova que se a sentença estivesse transitada em julgada à altura da decisão administrativa , o ato administrativo agora anulando teria sido praticado com o mesmo conteúdo.
17. Pelos motivos invocados, conformada que estão a apreciação judicial penal condenatória por um tribunal superior consubstanciada na definitividade da decisão penal, conclui-se que os factos típicos do crime de trafico de estupefacientes estão demonstrados.
18. E também não se diga que viola a presunção de inocência a produção de quaisquer efeitos por parte da decisão penal condenatória. Como se referiu supra , a construção de uma presunção legal sobre decisão condenatória penal transitada não equivale e dizer que a não transitada não possa ser valorada de alguma forma pela administração para sustentar as sua decisões.
19. A valoração da sentença penal condenatória como causa resolutiva de um contrato não é em si violadora da presunção de inocência, pelo que ao assim considerar o tribunal a quo também errou o seu julgamento.
20. Finalmente e convocando aqui o artigo 611° do CPC aplicável ex vi artigo 1° do CPTA, sempre se dirá que a sentença deve tomar com consideração os factos constitutivos modificativos ou extintivos que se verificam depois de intentada a ação, de modo que a decisão corresponde aa situação existente no momento da decisão.
21. Não vale a pena in casu o tribunal eliminar da ordem jurídica o ato administrativo em causa e devolver o dever/competência para decisão à apelante porque atenta a superveniência do transito em julgado da decisão penal condenatória a decisão administrativa terá precisamente o mesmo conteúdo que o ato anulado,
22. Pois transitada que está esta condenação e como dever legal de exercício das suas competências legais em benefício do interesse público a apelante não poderá deixar de decidir pela resolução do referido contrato administrativo de arrendamento social.
23.Violou a lei a decisão recorrida ao não eliminar o efeito anulatório com base no artigo 163°, n° 5 c) do CPA (…)”.
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Notificada que foi para o efeito, a Recorrida AA, não contra-alegou.
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O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso, fixando os seus efeitos e o modo de subida.
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O/A Digno[a] Magistrado[a] do Ministério Público junto deste Tribunal Superior emitiu parecer no sentido da procedência do presente recurso.
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Com dispensa de vistos prévios, cumpre, pois, apreciar e decidir, já que nada a tal obsta.
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II – DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A DECIDIR
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, de acordo com o disposto nos artigos 144.º n.º 2 e 146.º n.º 4 do C.P.T.A. e dos artigos 5.º, 608.º n.º 2, 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º do novo CPC ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA.
Neste pressuposto, a questão essencial a dirimir resume-se a saber se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento de direito quanto à decidida procedência do erro nos pressupostos do ato impugnado.
É na resolução de tal questão que se consubstancia a matéria que a este Tribunal Superior cumpre solucionar.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
III.1 – DE FACTO
O quadro fáctico apurado na decisão judicial recorrida foi o seguinte: “(…)
A. A autora é arrendatária da habitação social do Município do Porto, sita Rua ..., ... - cfr. doc. 1 junto com o r.i. do processo cautelar.
B. A referida casa é propriedade do Município do Porto e está sob gestão da D... - cfr. doc. 1 junto com o r.i. do processo cautelar.
C. Integram o agregado familiar da autora e estão autorizados a residir no locado BB e CC - cfr. doc. 1 junto com o r.i. do processo cautelar.
D. Em 21.04.2017, no âmbito do processo-crime n.° 4592/13...., foi proferido Acórdão nos termos do qual a autora foi condenada pela prática, em coautoria, de um crime de tráfico de estupefaciente na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, suspensa por igual período e BB foi condenado, em cúmulo jurídico, pela prática, em coautoria, de um crime de tráfico de estupefaciente e pela prática, em autoria material, de um crime de detenção de arma proibida, na pena única de 4 anos e 8 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período - cfr. fls. 57 e ss. do SITAF.
E. Em 29.7.2017, pelo Diretor Municipal da Presidência da Câmara Municipal do Porto e Presidente do Conselho de Administração da D..., foi emitido despacho de resolução do contrato de arrendamento apoiado correspondente à casa ..., da entrada 98, bloco ..., da Rua ..., com o seguinte teor - cfr. doc. 1 junto com o r.i. do processo cautelar:
[dá-se por reproduzido o documento/imagem constante do original]
F. Com data de 09.08.2017, pela Directora de Gestão do Parque Habitacional da D... foi subscrito ofício, dirigido à autora, a informar que, atenta a resolução do contrato de arrendamento apoiado da habitação sita na Rua ..., ..., Grupo Habitacional da ..., deixará de ser emitido o recibo para pagamento de renda relativamente à mesma, e da possibilidade de usar o locado durante o prazo de desocupação mediante o pagamento da renda correspondente - cfr. fls. 293 do PA apenso.
G. Em 10.08.2017, a autora assinou declaração nos termos da qual tomou conhecimento da decisão que antecede - cfr. fls. 263 (verso) do PA apenso. (…)”
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Nos termos do artigo 662º do CPC, aplicável ex vi artigos 1º e 140º do CPTA, aditam-se as seguintes ocorrências processuais:
H) A aqui Recorrida AA, de entre outros, interpôs recurso jurisdicional para o Tribunal da Relação do Porto do Acórdão produzido no processo-crime n.° 4592/13...., nos termos do qual foi condenada pela prática, em coautoria, de um crime de tráfico de estupefaciente na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, suspensa por igual período [cfr. certidão que faz fls. 879 e seguintes dos autos – suporte digital -, cujo teor se dá por integralmente reproduzido];
I) Quanto a este recurso, o Tribunal da Relação do Porto, no aresto emanado 13.06.2018, produziu a seguinte fundamentação de direito:” (…) Resta analisar o recurso interposto pela arguida AA.
Defende esta arguida que o acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento da matéria de acto, porque julgou provados determinados factos, relativamente aos quais não foi feita prova bastante e que terão de ser considerados não provados, lendo sido violados frontalmente os princípios penais, com acerco constitucional, da presunção de inocência e do in dubio pro reo.
A recorrente indica como factos incorretamente julgados, os seguintes:
-facto constante do ponto III.XVII (relativo à 3ª rede de tráfico) do ponto 2.1 do ponto 2 "Fundamentação da matéria de facto provada", a saber: -"Assim, a Arguida DD estabeleceu um acordo com o arguido BB, companheiro da filha dela, a arguida EE, para ele ser o seu principal vendedor de produtos de estupefacientes a consumidores, ficando esta arguida juntamente com a mãe daquele. a também arguida AA, na retaguarda, com a missão de armazenarem os produtos de estupefacientes para venda, conforme acordo firmado. "
-Facto dado como provado na alínea U) do ponto I1I.XXX "Busca à residência dos Arguidos AA e (filho) BB, situada na Urbanização Nova da ..., rua ... no Porto".
Facto dado como provado no 3§ da página 121 do acórdão recorrido, a saber:
"Os arguidos (...) AA (...) conheciam perfeitamente, quer a natureza, quer as características dos produtos que armazenavam nas respetivas residências (...) agindo de comum acordo e em conjugação de esforços com os arguidos FF, GG, HH, DD, no indicado período de tempo, nas descritas circunstâncias, que os produtos que foram vendidos, quer os produtos que foram vendidos, bem sabendo que tal lhes estava vedado por lei, lendo eles agido deliberada, livre e conscientemente."
Os demais “factos” impugnados pela recorrente não são factos provados mas constam da fundamentação o acórdão.
Indica como provas que impõe diversa decisão as seguintes:
a) Inexistência de qualquer relatório de vigilância ou fotografias, relativas ã Recorrente;
b) Inexistência de qualquer revista, relativa à Recorrente;
c) Auto de busca, constante de fls. 6131 e 6132 do Volume 20 do processo principal;
d) Escutas telefónicas transcritas nas seguintes sessões: sessão 537, a fls. 2 do Anexo K; sessões 730 e 742, ambas a fls. 3 do Anexo k; sessão 835, a fls. 4 do Anexo K; sessão 19286, a fls. 90 do Anexo k; sessão 1645, a fls. 91 do Anexo k; sessão 19286, a lis. 99 e 100 do Anexo k; sessão 19307, a fls. 101 do Anexo k; sessões 21732 e 21756, ambas a fls. 115 do Anexo k e sessão 21759, constante de fls. 115 e 116 do Anexo K. de transcrições de escutas telefónicas).
e) Prova testemunhal produzida por II, Investigador da PJ (1ª testemunha indicada na Acusação).
O Ministério Público, na resposta ao recurso (cfr. fls. 20903 e ss) pugnou pela improcedência do recurso dizendo em suma que o teor das transcrições gira todo à volta de actos relacionados com o tráfico de droga e que o papel da arguida foi devidamente explicado pelos agentes investigadores, pelo que deve ser mantida a sua condenação.
No caso cm apreço, constata-se que o tribunal fundamentou os factos provados relativamente a esta Arguido/Recorrente com base no teor das escutas telefónicas, já que na busca á sua residência da arguida (Facto 111.XXX - U), não foram apreendidos nem dinheiro, nem produto estupefaciente.
Ora esta arguida vem acusada de armazenar produto estupefaciente no interior da sua residência e nenhum produto lhe foi apreendido, nem dinheiro, nem nenhuma interceção telefónica se mostra confirmada no terreno pelos agentes policiais.
Todo o acervo probatório resultante das escutas, que constitui prova circunstancial, não se mostra confirmado, no que concerne esta arguida por outros meios de prova, sendo que o agente II baseou o seu depoimento no apenas no conhecimento que lhe adveio daquelas escutas, não permitindo ao tribunal formar aquele (juízo de certeza moral» necessário á condenação.
De resto, o tribunal a quo, em idênticas situações entendeu que, (referimo-nos aos arguidos da denominada 2ª rede, JJ, KK, LL. MM, NN, OO, PP), lendo apenas sido indicadas escutas telefónicas, sem outro elemento probatório, a dúvida impunha-se quanto á prova das condutas que lhe são imputadas.
Assim sendo, impõe a alteração da decisão proferida quanto a esta arguida, julgando-se não provados quanto a ela, por insuficiência de prova os seguintes factos, que passarão integrar o elenco dos factos não provados:
_- A Arguida AA ficou na retaguarda, com a missão de armazenar os produtos de estupefacientes pura venda, conforme acordo firmado com a arguida DD. ’’
-“A arguida (...) AA (...) conheciam perfeitamente, quer a natureza, quer as características dos produtos que armazenavam nas respetivas residências (...) agindo de comum acordo e em conjugação de esforços com os arguidos FF, GG, HH, DD, no indicado período de tempo, nas descritas circunstâncias, que os produtos que foram vendidos, quer os produtos que foram vendidos, bem sabendo que tal lhes estava vedado por lei, tendo eles agido deliberada, livre e conscientemente. "
Feitas estas alterações, impõe-se consequentemente decretar a procedência total do recurso e a absolvição desta arguida, da prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p.p, pelo n." 1 do artigo 21," do Decreto-Lei nº. 15/93, de 22 de janeiro sendo procedente o respectivo recurso (…)” [idem];
J) E o seguinte dispositivo: “(…) 3- Julgar parcial ou totalmente procedentes os recursos dos seguintes recorrentes, alterando-se consequentemente a decisão recorrida, em conformidade:
(…)
3.9.- AA
Absolve-se a arguida AA, da prática de um crime de estupefacientes, p.p. pelo nº.1 do artigo 21º do Decreto-Lei nº. 15/93, de 22 de janeiro (…)” [idem].
K) Este aresto transitou em julgado quanto à aqui Recorrida em 06.08.2018 [idem].
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III.2 – DE DIREITO
1. A Autora, aqui Recorrida, intentou a ação a que respeitam os presentes autos com vista à desintegração jurídica, por anulabilidade, do “(…) ato administrativo de 10.08.2017 do Sr. Vereador do Pelouro da Habitação e Recursos Humanos da Câmara Municipal do Porto, que ordenou a desocupação, pela autora, da casa sita na Rua ..., ..., no Porto (…)”.
2. A par desta pretensão anulatória, peticionou ainda o reconhecimento do seu direito a ocupar a referida casa, bem como a condenação do Réu “(…) ao pagamento da indemnização para ressarcimento dos danos sofridos com a execução do ato que ora se impugna, a liquidar em execução de sentença, e respetivos juros de mora desde a data da liquidação até efetivo e integral pagamento (…)”.
3. Estribou tais pretensões jurisdicionais - como se apreciou na decisão judicial recorrida - com base no entendimento de que o ato impugnado enferma de (i) falta de fundamentação; (ii) de erro nos pressupostos e violação do princípio da presunção da inocência; (iii) de ofensa do princípio da proporcionalidade; e (iv) de violação do direito à habitação e (v) de ofensa da proibição de dupla punição.
4. Escrutinado o teor da decisão judicial recorrida, logo se constata que o Tribunal a quo desatendeu as causas de invalidades supra elencadas sob os pontos (i), (iii), (iv) e (v), por falta de fundamento das mesmas.
5. Mas assim já não o entendeu no que tange ao suscitado erro nos pressupostos e violação do princípio da presunção da inocência.
6. Realmente, o Tribunal a quo julgou verificadas estas causas de invalidade, no mais essencial, por entender “(…) que o senhorio, no caso em apreço, se demitiu do ónus probatório que sobre o mesmo impendia, apoiando-se em factos constantes de acusação e limitando-se, posteriormente, a remeter para a factualidade constante da decisão penal condenatória sem a identificar e discriminar e, sobretudo, sem aguardar pelo trânsito em julgado da mesma, sendo certo que nenhuma prova fez dos factos que alegou (…)”, e ainda que “(…) uma decisão administrativa que assenta em factos constantes de decisão de condenação não transitada em julgado, carece de substracto factual. (…)”
7. Na esteira do que deu parcial procedência à presente ação nos termos e com alcance explicitado no ponto I) do presente Acordão.
8. O Recorrente insurge-se contra o assim decidido, impetrando-lhe erro de julgamento de direito estribado, fundamentalmente, no entendimento de que “(…) o artigo 623º do CPC não tem aplicação no caso concreto. Não se trata aqui de um caso de oponibilidade da sentença a um terceiro, este caso ao município. Trata-se de um caso em que o município pretende usar o fundamento de uma sentença para praticar um ato administrativo (…)”, sendo que, mesmo que assim não se entenda “(…) O preceito em causa não estipula que a sentença só pode ser valorizada em termos probatórios ou seja para criar a convicção de um outro decisor, neste caso de um órgão administrativo, se estiver transitada em julgado. Estabelece apenas uma presunção legal/causa de dispensa de ónus da prova) para as sentenças condenatórias transitadas (…)”.
9. Em todo o caso, invoca o princípio do aproveitamento dos atos administrativos pela decorrência, entretanto, do trânsito em julgado atual da decisão penal condenatória, alegando ainda que “(…) a valoração da sentença penal condenatória como causa resolutiva de um contrato não é em si violadora da presunção de inocência (…)”.
10. De acordo com a substanciação que se vem de expor, importaria agora determinar se assiste razão ao Recorrente na invocação de que “(…) o artigo 623º do CPC não tem aplicação no caso concreto (…)”
11. Julgamos, porém, que tal tarefa é destituída de relevância, considerando o tecido fáctico que se nos impõe e deriva do probatório coligido na decisão judicial recorrida.
12. Na verdade, e percorrido o probatório coligido nos autos, dimana do mesmo que a decisão de resolução do contrato de arrendamento apoiado assentou na assunção de que a “(…) arrendatária AA e o filho QQ estão envolvidos na atividade de tráfico de estupefacientes, utilizando neste medida a localização estratégica e geográfica, da habitação social onde residem, para utilização contrária à lei. Prova-se que a arrendatária permitiu, pois, que dentro do prédio e a habitação que lhe foi atribuída fosse usada para o trafico de droga e ainda que no interior da mesma fossem guardados proventos desse trafico (…)”.
13. Grassa ainda a evidência que a aquisição procedimental dos pressupostos de facto que se vem supra de caracterizar adveio exclusivamente da condenação em 1ª instância da Autora, aqui Recorrida, no âmbito do processo-crime n.° 4592/13...., pela prática, em coautoria, de um crime de tráfico de estupefaciente na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, suspensa por igual período.
14. Sabe-se ainda que a Autora, aqui Recorrida, foi posteriormente absolvida, por insuficiência de prova, da prática de um crime de estupefacientes, por Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, transitado em julgado no dia 06.08.2018.
15. Donde se capta a inaplicabilidade do regime preconizado no artigo 623º do CPC, sendo antes de considerar a eficácia da decisão penal absolutória, ou seja, o disposto no artigo 624º do CPC.
16. Prevê-se no atual art.º 624.º do CPC que “A decisão penal, transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui, em quaisquer ações de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, elidível mediante prova em contrário”.
17. Note-se, porém, que a presunção legal da “inexistência desses factos” só opera se a decisão penal tiver absolvido o arguido com fundamento deste “não ter praticado os factos que lhe eram imputados”.
18. Realmente, como se dilucidou no Acórdão do STJ, de 11.07.2019, proferido no processo 7318/17.1T8CBR.C1.S1, “(…) Quanto aos outros – ou seja, quanto aos que não foram considerados por falta de prova e por aplicação do princípio in dubio pro reo – a presunção não funciona, podendo o Tribunal Cível julgar a causa sem quaisquer limitações decorrentes da decisão penal (…)”.
19. No caso versado, a absolvição da Recorrida não se fundou no juízo de “não ter praticado os factos que lhe eram imputados”, mas, simplesmente, na dúvida sobre se a Autora os praticou resultante da insuficiência de prova sobre esses factos essenciais à previsão do tipo legal do crime de tráfico de estupefacientes.
20. No quadro em apreço, assoma evidente que a Administração não estava vinculada à presunção legal da “inexistência dos factos”, podendo julgar a causa sem qualquer limitações decorrentes da decisão penal.
20. Contudo, para tal, impunha-se a demonstração prévia dos factos integradores da extinção do direito de ocupação da arrendatária, o que não veio a suceder.
21. Efetivamente, basta atentar na tramitação procedimental para logo se concluir que não houve lugar à produção de qualquer prova externa ao processo-crime.
22. Desta feita, não tendo o R. feito, em sede procedimental, a prova de factualidade que contrariasse o fixado em sede penal, deixando intocável a valoração aí produzida, impera concluir que não existe no processo administrativa prova suficiente para confirmar os factos integradores da extinção do direito de ocupação da arrendatária.
23. Daí que se nos afigure existir um défice de instrução procedimental gerador da ilegalidade do acto final do procedimento, assentando o acto impugnado em pressupostos de facto não fundados em elementos probatórios, objetivos e seguros, mas antes em factos controvertidos e incertos, o que, como é consabido, consubstancia o vício de erro sobre os pressupostos de facto.
24. Pelo que, ainda que com motivação parcialmente diversa, não se pode deixar de concluir que bem andou a MMª Juíza a quo ao validar a procedência do invocado erro nos pressupostos do ato impugnado.
25. A decisão judicial recorrida erra, todavia, ao considerar violado o princípio da presunção da inocência.
25. Realmente, este princípio não tem acolhimento no procedimento administrativo visado nos autos, pois que a Administração não está a sancionar a titular do direito de ocupação do arrendamento.
26. Diferentemente, está a resolver o contrato de arrendamento apoiado com fundamento na utilização contrária à lei.
27. Trata-se de exercer o direito de resolução conferido pela lei quando se verifiquem comportamentos violadores de um dever contratual [o dever de aplicar a habitação a um uso habitacional normal].
28. Julgamos, todavia, que esta patologia não importa qualquer eficácia invalidante da decisão judicial recorrida, considerando a falência dos argumentos do Recorrente no domínio do erro dos pressupostos do ato impugnado, que, só por si, importam a manutenção do decidido em 1ª instância.
29. Realmente, é de negar provimento ao recurso que deixa incólume um dos fundamentos que autonomamente justificou a decisão recorrida [vd. aresto deste TCAN, de 15.06.2018, tirado no processo nº. 00625/16.2BEPNF].
30. E assim fenecem todas as conclusões deste recurso.
31. Consequentemente, deve ser negado provimento ao presente recurso jurisdicional, e mantida a sentença recorrida.
32. Ao que se provirá em sede de dispositivo.
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IV – DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Administrativa deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202º da CRP, em NEGAR PROVIMENTO ao recurso jurisdicional “sub judice”, e manter a decisão judicial recorrida.
Custas pelo Recorrente.
Registe e Notifique-se.
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Porto, 28 de outubro de 2022,
Ricardo de Oliveira e Sousa
Rogério Martins
Luís Migueis Garcia