Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00051/10.7BEVIS
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:06/28/2012
Tribunal:TAF de Viseu
Relator:Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos
Descritores:REVERSÃO
CULPA
OPOSIÇÃO
Sumário:I. O artigo 24.º, n.º 1, alínea b) da Lei Geral Tributária só dispensa a administração tributária de demonstrar que a impossibilidade de satisfazer os créditos tributários através do património social derivou de ação ou omissão voluntária que possa ser imputada objetiva e subjetivamente ao revertido, se aquela alegar e demonstrar que o prazo de cobrança das dívidas respetivas terminou em período em que exercia de facto funções de administração ou gerência na sociedade.
II. A administração tributária não demonstra que o revertido exercia as funções de gerência na data em que terminou o prazo de pagamento ou entrega de algumas dessas dívidas, se a falência da sociedade executada foi decretada antes dessa data e não são invocados factos que indiquem de que continuou a exercer as funções depois de o ter sido.
III. Se a reversão foi determinada a coberto do artigo 24.º, n.º 1, alínea b) da Lei Geral Tributária e não estando reunidos, quanto a essas dívidas, os pressupostos de que depende o funcionamento da presunção nela contida, a decisão respetiva é ilegal e deve ser revogada na parte correspondente.*
* Sumário elaborado pelo Relator
Recorrente:J...
Recorrido 1:Fazenda Pública
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:
1. Relatório
1.1. José…, n.i.f. 1…, com domicílio indicado no Caminho…, 9125-118 Caniço, recorre da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel que julgou totalmente improcedente a presente oposição à execução fiscal n.º 2593200201006037 e apensos, que o Serviço de Finanças de Oliveira de Frades lhe move por reversão de dívida de E…, Lda., N.I.F. 504 042 670, com sede em …, Concelho de Oliveira de Frades, dívida essa referente a I.M.I., I.V.A., I.R.S., I.R.C., C.A. e juros compensatórios respectivos de períodos que vão de 2001 a 2005, no montante total de € 3.514.752,37.
1.2. Rematou as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões:
I. As dívidas exequendas, de IRC, IRS, CA dos anos de 2000 a 2002 e de IVA dos anos de 2000 a 2003, já estão prescritas, cf. Art.º 48º da L.G.T..
II. Tendo a sociedade devedora originária entrado em falência, o recorrente já não era gerente na data em que a maioria das dívidas era exigida, mas antes a Administradora da Insolvência, pelo que existe ilegitimidade da pessoa citada, cf. Art.º 204.º, n.º 1, alínea b), do C.P.P.T. e Art. 24º, n.º 1, da L.G.T.
1.3. A ora Recorrida não contra-alegou.
1.4. Neste Tribunal, o Digno Magistrado do Ministério Público emitiu douto parecer no sentido de que deve proceder o recurso na parte em que o Recorrente foi julgado parte legítima para a execução fiscal, quanto às dívidas tributárias de 2005, e improceder no demais.
1.5. Cumpre agora apreciar e decidir, visto que nada a tal obsta.
1.6. Face à decisão de fls. 172 a fls. 173 dos autos, resta uma questão a decidir: a de saber se o Recorrente é parte ilegítima na execução fiscal.
2. Fundamentação de Facto
2.1. É o seguinte o acervo dos factos que em primeira instância foram dados como provados:
A) A Fazenda Pública instaurou contra “E…, Lda”, execução fiscal que tomou o n.º 2593200201006037 e aps., para cobrança coerciva de dívidas de IRC, IRS, IVA e CA, relativas aos anos de 2000 a 2005 (cfr. Docs. De fls. 21 a 24).
B) O valor global da execução fiscal mencionada em A. ascende a € 3.514.752,37 (três milhões, quinhentos e catorze mil setecentos e cinquenta e dois euros e trinta e sete cêntimos) ao qual acresce custas e juros de mora.
C) Por despacho datado de 23 de Novembro de 2009, emitido pelo Chefe do Serviço de Finanças de Oliveira de Frades, foi ordenada a reversão da execução identificada em A. contra o responsável subsidiário José…, aqui oponente (cfr. Doc. de fls. 21 e 22).
D) O oponente foi citado pessoalmente (via postal) do despacho mencionado em C. no dia 2009-12-06 (cfr. Fls. 424 do anexo 2).
E) A presente oposição deu entrada no Serviço de Finanças de Oliveira de Frades em 2009-12-29 (cfr. Data aposta no carimbo de fls. 05, pelo respectivo SF).
F) No processo comum singular n.º 24/06.4IDVIS, que correu termos no Tribunal Judicial de Oliveira de Frades, o ora oponente foi condenado, por sentença de 5-08-2008, transitada em julgado, pela prática, sob a forma continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal, relativamente ao IVA e IRS retido na fonte dos exercícios de 2002 e 2003, estando na base desse processo o relatório de inspecção que originou, em parte, as liquidações, em cobrança coerciva nos autos de execução fiscal a que se refere a presente oposição.
2.2. Ao abrigo do disposto no artigo 712.º do C.P.C. e dada a sua relevância para a boa decisão da causa, adita-se a seguinte matéria de facto, que também resulta provada documentalmente, cfr. fls. do processo para que se remete:
G) Por sentença do 2005.02.17 do Tribunal Judicial de Oliveira de Frades, lavrada nos autos com o n.º 268/04.3TBOFR, foi declarada falida a ali requerida “E…, Lda.” e foi nomeada liquidatária judicial a Sr.ª Dr.ª Manuela…, tudo como melhor resulta do documento de fls. 70 a fls. 77 do apenso, que aqui se dá, por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.
3. Fundamentação de Direito
Prossegue o presente recurso para a apreciação do segundo fundamento nele indicado, a saber: a ilegitimidade do executado, por não estarem preenchidos os pressupostos legais de que depende a reversão das dívidas exequendas.
Alega o Recorrente, nesta parte, que tendo a sociedade devedora principal “E…, Lda.” entrado em processo de falência, não era gerente na data em que a maioria das dívidas era exigida.
A responsabilidade dos órgãos das pessoas coletivas de responsabilidade limitada pelas dívidas tributárias constituídas e/ou vencidas no período do exercício do seu cargo é uma responsabilidade extracontratual, no sentido em que não tem a sua fonte em nenhum contrato ou negócio jurídico celebrado entre a administração tributária e o sujeito passivo, derivando diretamente da lei. E é uma responsabilidade subjetiva, no sentido de que tem a sua fonte num comportamento culposo desses órgãos ou agentes e não no risco que o exercício dessa atividade possa potenciar por si só. Tem, por isso, evidentes afinidades com o instituto da responsabilidade por factos ilícitos, regulado nos artigos 483.º e seguintes do Código Civil.
Sendo, por isso, também aqui, possível enquadrar os cinco pressupostos tradicionais de que depende esta forma de responsabilização, a saber: a) um facto voluntário do órgão ou agente, traduzido em ações ou omissões de que derive a insuficiência do património social; b) a imputação objetiva desse facto a esse órgão ou agente, que aqui se pode reconduzir à inobservância genérica de um «dever de boa prática tributária», consagrado no artigo 32.º da Lei Geral Tributária (ilicitude); c) a sua imputação subjetiva, que pode ir desde a intenção de frustrar os direitos dos credores à falta de cuidado devido em salvaguardar os direitos desses credores (culpa); a impossibilidade de satisfazer os créditos tributários através desse património social (dano); e a existência de uma relação de adequação entre aquelas ações e omissões e esta insuficiência do património social (nexo de causalidade).
Sendo estes os pressupostos de que radica o direito da administração tributária reverter as dívidas tributárias contra os gerentes ou administradores das sociedades devedores, a sua demonstração caberia, de acordo com as regras gerais, à própria administração tributária (cfr. o artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil). O legislador, porém, atendendo porventura à dificuldade que a administração teria, em muitos casos, em reunir os factos em que se suporta essa responsabilidade e à natureza indisponível dos créditos tributários, dispensa-a, em alguns casos, de fazer a demonstração de alguns deles.
É o que sucede quando se verifique que o prazo legal do pagamento ou entrega da prestação tributária terminou no exercício do seu cargo – artigo 24.º, n.º 1, alínea b), da Lei Geral Tributária). A lei dispensa então a administração tributária de demonstrar que a impossibilidade de satisfazer os créditos tributários através desse património social derivou (nexo de causalidade) de ação ou omissão voluntária do órgão ou agente (facto) que lhe possa ser imputada objetiva (ilicitude) e subjetivamente (culpa). Passando a recair sobre o próprio agente a demonstração de que algum destes pressupostos não se verifica.
Em bom rigor, não é, por isso, apenas a culpa que é objeto da presunção legal ali consagrada (como por vezes se diz), mas a própria atuação concreta em que se consubstanciou a delapidação ou degradação do património social e toda a conexão entre essa atuação e aquele sujeito e aquele resultado. Sendo, por isso, muito extenso e gravoso o seu alcance.
É, portanto, crucial a identificação das condições em que essa presunção funciona (que poderemos designar de pressupostos da presunção). São elas [a)] o exercício de facto dessas funções sociais e [b)] que esse exercício subsista na data em que terminou o prazo legal de pagamento ou entrega da dívida tributária. Do que se trata, no fundo, é que o legislador abstrai dos factos concretos em que se traduziu a erosão do património social, da identificação dos sujeitos que neles tiveram intervenção e do papel que tiveram na sua ocorrência desde que, em todo o caso, seja possível confirmar que na data em que terminou o prazo legal de pagamento ou entrega da prestação tributária aquele agente exercia (de facto) essas funções sociais.
Ora, é precisamente a verificação destes pressupostos (o que acima designamos de pressupostos da presunção) que aqui estão em causa: o Recorrente entende – basicamente – que não se verifica o segundo pressuposto (acima assinalado) de que depende o funcionamento desta presunção, porque o exercício de facto das funções de gerente da sociedade executada já não subsistia «na data em que a maioria das dívidas era exigida».
E que, não estando invocada, quanto a essa «maioria das dívidas», qualquer atuação culposa do Recorrente de que derivasse a insuficiência do património social (não sendo esta também de presumir), não estão, por sua vez, quanto a elas reunidos os pressupostos da reversão.
Para assim concluir, o Recorrente chama a atenção para um dado de facto que não é controvertido e que se encontra demonstrado documentalmente (e que, por isso, acima aditamos aos factos provados): é que a sociedade devedora principal foi declarada falida por sentença do 2005.02.17 do Tribunal Judicial de Oliveira de Frades, lavrada no processo que ali correu termos com o n.º 268/04.3TBOFR, e foi então nomeada uma liquidatária judicial.
E, na verdade, a declaração de falência da executada é um facto de grande relevância para o caso, porque não será possível deduzir do exercício anterior da gerência da sociedade executada por parte do ora Recorrente, que esta continuou a ser gerida nos mesmos termos e pelo mesmo agente.
Embora o exercício quotidiano da gerência (que o legislador tributário verdadeiramente tem em vista naquele dispositivo legal, visto que nunca alude a «actos» mas a «funções» e a «períodos») possa ser deduzido da concreta identificação da pessoa que protagonizou alguns atos que a exteriorizem, o que não pode é pretender-se que essa situação subsistiu depois de o Recorrente ter sido afastado dessa gerência pelo Tribunal. Pelo menos, sem acrescentar outros elementos factuais que denunciem que, apesar disso, ele continuou a comandar os seus destinos ou a dispor dos seus bens.
É que, nos termos dos artigos 147.º e 148.º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de Abril, e aplicado naqueles autos) a declaração de falência priva imediatamente os órgãos representativos da falida da sua administração e do poder de disposição dos seus bens.
O que significa que, por ato independente da sua vontade o Recorrente foi legalmente privado dos poderes que lhe tinham sido atribuídos pelos órgãos sociais. Com o que passou a existir um antes e um depois: antes dessa data, as funções eram exercidas no quadro desses poderes, que potenciariam o seu exercício continuado; depois dessa data, as funções só podiam ser exercidas à margem desses poderes, o que já não seria expectável e teria que ser confirmado com novos dados factuais.
Caberia então à administração tributária recolher indicadores adicionais de que, apesar disso, o ora Recorrente continuou, de facto, a exercer essas funções e a comandar os destinos da sociedade, e que tal situação se prolongou até à data em que terminou o prazo de pagamento ou entrega de todas as quantias em dívida, se quisesse continuar a valer-se da presunção a que alude a alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º citado.
Ou, em alternativa, reunir os indicadores de que dependeria a verificação dos demais pressupostos de reversão. Ou seja, demonstrar que foi por facto imputável ao ora Recorrente que o património da sociedade se tornou insuficiente para o pagamento das dívidas constituídas antes da falência mas que só se venceram depois de esta ter sido decretada, a coberto da sua alínea a).
E o que decorre dos autos é que a administração tributária não fez nem uma coisa nem outra: não indicou factos índice a partir dos quais se pudesse concluir objetivamente que tal gerência foi de facto exercida após a falência e não demonstrou que a insuficiência de bens da sociedade falida para o pagamento das dívidas constituídas antes da falência mas cujo prazo de cobrança só terminou depois da data em que foi decretada lhe é subjetivamente imputável (aliás, nem sequer o invocou).
Assim sendo, a oposição deveria ter procedido quanto às dívidas revertidas indicadas no quadro do ponto 10 do despacho de reversão sob os nºs 29 e seguintes e melhor identificadas a fls. 485 e seguintes do apenso (execuções fiscais nºs 2593200501008846, 2593200601000845, 2593200601001760, 2593200601002694, 2593200601005855, 2593200701000330 e 2593200701003712), no montante total de € 1.794.155,56.
Não obstaria a tal o facto de – como refere a Mm.ª Juiz “a quo” – as dívidas se reportarem a impostos de exercícios anteriores, enquadráveis nos períodos em que o ali oponente exercia efetivamente a gerência. Porque o que daí resulta é precisamente que a administração tributária, quanto a essas dívidas, não se poderia valer da presunção da alínea b), do n.º 1 do artigo 24.º da Lei Geral Tributária. Pelas razões sobreditas.
Pelo que o recurso merece provimento nesta parte.
O que, todavia, não se descortina também é como pode o Recorrente pretender que não estão preenchidos os pressupostos legais de reversão, quanto às demais dívidas. E pedir que, em substituição, este tribunal estinga a execução fiscal na totalidade.
É que, não estando em causa o exercício de facto da gerência em período anterior à decretação de falência e tendo o prazo de cobrança dessas dívidas terminado antes da falência ser decretada, as razões que acima alinhamos para concluirmos pelo provimento parcial do recurso não são extensíveis a essas dívidas.
E como outras razões não são invocadas, o presente recurso não pode proceder nesta parte.
4. Conclusões
4.1. O artigo 24.º, n.º 1, alínea b) da Lei Geral Tributária só dispensa a administração tributária de demonstrar que a impossibilidade de satisfazer os créditos tributários através do património social derivou de ação ou omissão voluntária que possa ser imputada objetiva e subjetivamente ao revertido, se aquela alegar e demonstrar que o prazo de cobrança das dívidas respetivas terminou em período em que exercia de facto funções de administração ou gerência na sociedade.
4.2. A administração tributária não demonstra que o revertido exercia as funções de gerência na data em que terminou o prazo de pagamento ou entrega de algumas dessas dívidas, se a falência da sociedade executada foi decretada antes dessa data e não são invocados factos que indiquem de que continuou a exercer as funções depois de o ter sido.
4.3. Se a reversão foi determinada a coberto do artigo 24.º, n.º 1, alínea b) da Lei Geral Tributária e não estando reunidos, quanto a essas dívidas, os pressupostos de que depende o funcionamento da presunção nela contida, a decisão respetiva é ilegal e deve ser revogada na parte correspondente.
5. Decisão
Por todo o exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência:
a) Revogar a decisão recorrida na parte que incidiu sobre as dívidas tributárias cujo prazo de cobrança terminou depois de 2005.02.17;
b) Em substituição, julgar extintas as execuções respetivas, na parte que contra o ora Recorrente reverteu.
No demais, negar, provimento ao recurso.
Custas pelo Recorrente e pela Recorrida na medida do respetivo decaimento, que se fixa em ½ (metade) para cada uma, em ambas as instâncias.
Porto, 28 de Junho de 2012
Ass. Nuno Bastos
Ass. Irene Neves
Ass. Pedro Marques