Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01800/22.6BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:02/24/2023
Tribunal:TAF de Mirandela
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:SUSPENSÃO DA EFICÁCIA; ACTO A DECLARAR O NULIDADE DO LICENCIAMENTO DE UMA OPERAÇÃO DE LOTEAMENTO;
CONTRATOS-PROMESSA; FALTA DE RECONHECIMENTO PRESENCIAL DAS ASSINATURAS; NULIDADE DO CONTRATO; EXISTÊNCIA DO CONTRATO;
PROVA; PERICULUM IN MORA; FACTO CONSUMADO; APARÊNCIA DO BOM DIREITO; DIREITO DE PROPRIEDADE; USURPAÇÃO DE PODERES;
PONDERAÇÃO DE INTERESSES; N.º 2 DO ARTIGO 202º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA; ARTIGO 161º, N.º1, ALÍNEA A) DO CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO;
N.ºS 1 E 2 DO ARTIGO 120.º DO CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS;
Sumário:1. Os documentos que reproduzem contratos-promessa, juntos numa providência cautelar de suspensão da eficácia de acto que declarou a nulidade do licenciamento de uma operação de licenciamento, têm duas dimensões jurídicas relevantes: como prova dos contratos e como formalidade essencial dos contratos.

2. Como no pedido de suspensão da eficácia desse acto não estão em causa os contratos em si mesmos, e os seus efeitos jurídicos, mas apenas o facto de terem sido celebrados e as repercussões económicas para a requerente, derivadas desse facto, a validade formal dos contratos é aqui irrelevante.

3. E como prova, aqui apenas sumária e perfunctória, de um facto - a celebração dos contratos - é bastante o seu teor para se concluir que aqueles contratos-promessa de compra e venda foram celebrados.

4. A circunstância de não ter sido feito o reconhecimento presencial das assinaturas tem apenas a ver com a validade e eficácia dos contratos, não com a sua existência.

5. Verifica-se o requisito do “periculum in mora, a que alude a primeira parte do n.º 1 do artigo 120.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, quando, ainda que a requerente, sem prejuízos significativos, pudesse direccionar a sua actividade para outros projectos, sempre perderia a oportunidade de realização de um negócio, o único projecto que tinha em curso, o que é um facto consumado.

6. Verifica-se também o requisito da aparência do bom direito, previsto na segunda parte do n.º 1 do artigo 120.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, se o município demandado, para declarar nulo o acto de licenciamento da operação de loteamento, definiu unilateralmente esta operação abrangia parte de um imóvel propriedade indisponível do município.

7. Isto porque a quem cabe - e em que termos – o direito de propriedade litigioso não cabe nos poderes do município, mas antes nos poderes dos tribunais, a quem compete dirimir os conflitos de interesses públicos e provados – n.º 2 do artigo 202º da Constituição da República Portuguesa.

8. Sendo assim provável o êxito da acção principal, de declaração de nulidade do acto suspendendo, pelo vício de usurpação de poderes – artigo 161º, n.º1, alínea a) do Código de Procedimento Administrativo.

9. Na ponderação de interesses em presença, a que alude o n.º 2 do artigo 120.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, o interesse invocado pela entidade pública há-de ser especial e concreto, ou seja, diferenciado do interesse genérico da legalidade e eficácia dos actos administrativos, pois só essa especialidade permite concluir pela superioridade em relação aos prejuízos para os interesses privados. Caso contrário, as providências cautelares estariam à partida condenadas ao fracasso porque o interesse público sempre prevaleceria.

10. Não tendo sido invocado – nem se demonstrando – que o património em causa seja protegido ou mereça uma protecção especial nem que a violação urbanística em causa atinja de modo irreversível qualquer bem ou valor urbanístico essencial, deve ter-se por verificado este requisito a favor da requerente.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Maioria
Meio Processual:Procedimento Cautelar Suspensão Eficácia (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
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Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

O Município ... veio interpor RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, de 14.12.2022, pela qual foi julgada totalmente procedente a providência cautelar intentada pela T... Lda, para suspensão da eficácia do acto do Município, de 04.05.2022, que declarou nulo o acto de licenciamento praticado em 21.01.2021 e ordenou a cassação do respectivo alvará, bem como do acto que determinou o embargo de obra em 01.09.2022.

Invocou para tanto, em síntese, que houve erro de julgamento da matéria de facto, tendo-se dado como provado facto que não se deveria ter dado como provado, e houve erro de direito, ao julgar verificados os requisitos para a concessão da providência requerida, quando não se verifica qualquer deles, no seu entender.

A Recorrida contra-alegou, defendendo a manutenção da decisão recorrida.

O Ministério Público neste Tribunal não emitiu parecer.

*
Cumpre decidir já que nada a tal obsta.
*

I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:

I. OBJECTO DO RECURSO

A. O presente recurso vem interposto da sentença proferida a 14 de Dezembro de 2022, pela qual foi deferida a providência cautelar requerida pela T..., determinando a suspensão do ato que declarou nulo o ato de licenciamento e ordenou a cassação do respectivo alvará, assim como do acto que determinou o embargo de obra, abrangendo a decisão sobre a matéria de facto e sobre a matéria de Direito.

II. DO RECURSO QUANTO À MATÉRIA DE FACTO

B. O primeiro dos lapsos incorridos pelo Tribunal a quo resulta da determinação, como provado, do facto constante do ponto 12. do probatório, nos termos do qual “[a] Requerente celebrou cinco contratos promessa de compra e venda de frações autónomas previstas no projeto de licenciamento em causa nos autos”, tendo por base os documentos n.º ...7 a ...1 juntos com o r.i..

C. Este é, relembre-se, o único facto dado como provado susceptível de fundar, em abstracto, um juízo positivo quanto à verificação de uma situação de facto consumado ou à produção de prejuízos de difícil reparação; nenhum dos demais danos invocados pela Recorrida foi considerado pelo Tribunal.

D. Malgrado a decisão proferida pelo Tribunal a quo, a verdade é que os documentos n.ºs ...7 a ...1 juntos com o r.i. não permitem a prova cabal de que foram efectivamente celebrados cinco contratos-promessa de compra e venda destinados à venda de fracções integrantes da pretensão urbanística da Recorrida. Trata-se, tão-só, de documentos particulares, outorgados em contravenção com o disposto no n.º 3 do artigo 410.º do CC.

E. Uma vez que as assinaturas apostas nos documentos referidos não foram objecto de reconhecimento presencial, o Recorrente impugnou expressamente a sua genuinidade ao abrigo do disposto no artigo 444.º do CPC, não tendo a Recorrida demonstrado a veracidade dos mesmos.

F. Não tendo a Recorrida feito prova da genuinidade daqueles documentos, nem tendo aquela sido notificada para o efeito pelo Tribunal a quo, não podia este valorar aqueles documentos nos termos em que o fez, uma vez que não resulta documentalmente provado, ao contrário do que se afirma na sentença, que foram celebrados cinco contratos-promessa de compra e venda pela Recorrida.

G. Assim, em cumprimento do ónus de alegação previsto no n.º 1 do artigo 640.º do CPC, aplicável ex vi artigo 1.º do CPTA:
iv) O Tribunal a quo errou ao dar como provado o facto constante do ponto 12. do probatório, nos termos do qual se dá como assente que “A Requerente celebrou cinco contratos promessa de compra e venda de frações autónomas previstas no projeto de licenciamento em causa nos autos”;
v) Devendo o facto em questão ser dado como não provado, o mesmo não resulta demonstrado por qualquer dos elementos probatórios que constam dos autos;
vi) Em consequência, deve ser eliminado da decisão sobre a matéria de facto o ponto 12. e todo o seu teor.

III. DOS ERROS DE JULGAMENTO DA SENTENÇA RECORRIDA E A PROCEDÊNCIA DO PRESENTE RECURSO

i) Da não verificação do requisito do fumus boni iuris

H. Ao contrário do defendido pelo Tribunal a quo, a ocupação indevida da parcela sub judice é de molde a fundamentar a decisão de declaração de nulidade da licença emitida ao abrigo da al. c) do n.º 2 do artigo 161.º do CPA.

I. Perfilhar o entendimento sufragado pelo Tribunal na sentença recorrida implicaria o esvaziamento do estatuto jurídico do património imobiliário, vedando à Administração a impossibilidade de exercer meios de auto-tutela para a conservação daquele. Isto quer no caso de se estar perante um imóvel integrado no domínio privado, quer se esteja em face de um bem do domínio público.

J. Quando em causa esteja um bem afecto à consecução do interesse público - como é o caso dos autos e, em geral, de qualquer imóvel do património do Município - a sua utilização e ocupação indevida e abusiva será nula - excepção feita aos casos em que tenha havido desafectação do bem da sua destinação pública -, podendo o Município, nesse caso, declarar essa nulidade no exercício dos poderes-deveres de tutela a que se encontra adstrito.

K. A nulidade do acto sindicado surge, precisamente, não como pressuposto, mas como consequência das característica de incolumidade e inalienabilidade, justificando, portanto, o exercício dos poderes-deveres de auto-tutela referidos - é precisamente porque se está perante um bem do domínio municipal, indisponível pela sua natureza, que vai pressuposta a invalidade dos actos jurídicos praticados que tenham por objecto esse imóvel e, bem assim, a possibilidade de adopção de medidas coactivas de cessação da ocupação ou utilização indevidas.

L. Se se nega à Administração, como o faz o Tribunal a quo, a possibilidade de exercer os poderes-deveres a que aquela se encontra vinculada, designadamente pela declaração de nulidade de actos por aquela praticados que sejam incompatíveis com a sua natureza destes bens imóveis, eliminam-se todas e quaisquer garantias da sua conservação, equiparando-se, para todos os efeitos, os bens da Administração e os bens privados.

M. Conclui-se, portanto, nos termos da exposição supra, que o entendimento do Tribunal a quo é contra legem, na medida em que a impossibilidade do objecto do acto sindicado resulta, expressamente, do disposto no artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 280/2007, impondo o artigo 21.º do mesmo diploma o dever de auto-tutela do património imobiliário do Município.

N. Essa impossibilidade do objecto valerá para os bens do domínio público, mas também para os bens do domínio privado que, pela sua natureza, sejam indisponíveis, e portanto, comunguem das características essenciais dos bens do domínio público - inalienabilidade, imprescritibilidade e impenhorabilidade.

O. É inegável que a situação sub judice é conducente à verificação da causa de nulidade prevista na al. c) do n.º 2 do artigo 161.º do CPA, uma vez que, conforme referido, o imóvel em questão nos autos leva, pela sua natureza e características, a um derradeiro juízo de impossibilidade do objecto de qualquer acto que implique prejuízo para a sua inalienabilidade e intangibilidade.

P. Como tal, não só o facto de a pretensão urbanística da Recorrida ocupar indevidamente um imóvel do Município implica a nulidade da respectiva licença, como o Município estava obrigado a declará-la, devendo a sentença recorrida, em consequência, ser revogada e substituída por decisão que, julgando não preenchido o requisito de fumus boni iuris, indefira a providência requerida pela T....

ii) Da não verificação do requisito do periculum in mora

Q. No que tange ao requisito de periculum in mora, são duas, apenas, as circunstâncias em que o Tribunal a quo estriba a sua decisão: (i) o facto de este ser o único projecto da Recorrida em curso, implicando a declaração de nulidade da licença a paralisação da sua actividade; e (ii) a pretensa celebração de cinco contratos-promessa de compra e venda. Nenhuma é, contudo, passível de fundamentar a decisão proferida pelo Tribunal a quo.

R. Em primeiro lugar, a mera asserção de que o projecto em causa nos autos é o único em curso não tem, autonomamente, qualquer valor para a verificação do requisito de periculum in mora; se assim o entendesse, a Recorrida tem disponibilidade financeira – conforme se demonstrou na oposição apresentada – para desenvolver mais um projecto com a complexidade do dos autos e manter um saldo positivo.

S. É contraditório fazer repousar a concessão de tutela cautelar numa análise generalizada da situação financeira da Recorrida e, do mesmo passo, circunscrever a análise do caso ao projecto sub judice, referindo que qualquer outro projecto a desenvolver pela Recorrida seria distinto deste.

T. A verdade, conforme referido, é que a Recorrida pode, efectivamente, iniciar outros projectos e assegurar, se o desejar, a continuidade da sua actividade; é falso, como tal, que a produção de efeitos do acto suspendendo “representará necessariamente a paralisação da sua atividade até à prolação da ação principal, o que não pode deixar de se reconduzir a uma situação de facto consumado”.

U. A situação de facto consumado referida pelo Tribunal a quo, a verificar-se, dever-se-á, como tal, exclusivamente à Recorrida, pelo que a sua alegação como fundamento do periculum in mora seria feita em abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium.

V. Em todo o caso, a asserção, na sentença recorrida, de que não é “expectável que uma empresa subsista ou se mantenha ativa sem prosseguir qualquer atividade por um tal período [entre a decisão cautelar e a decisão principal]” é manifestamente imprecisa, não atendendo às concretas circunstâncias do caso.

W. Para além de ser um absurdo equacionar, sequer, que a Recorrida se encontraria paralisada até à prolação de decisão final na causa principal, os custos de funcionamento da Recorrida são, em virtude do modelo de negócio adoptado, muitíssimo baixos: a Recorrida não suporta custos directos significativos com a manutenção da sua actividade, mesmo em estado de paralisação, uma vez que contrata os serviços necessários à consecução do seu objecto social para a edificação de cada projecto específico. Ou seja, não tendo nenhum projecto em curso, os custos da Recorrida decrescem drasticamente.

X. Não se desvela, como tal, a verificação de uma qualquer situação de facto consumado ou a produção de prejuízos de difícil reparação passíveis de justificar a concessão de tutela cautelar.

Y. O terceiro equívoco incorrido pelo Tribunal a quo aquando da apreciação deste requisito da concessão de tutela cautelar diz respeito à demonstração da celebração dos cinco contratos-promessa de compra e venda invocados pela Recorrida.

Z. Conforme se referiu em sede de recurso da decisão sobre a matéria de facto, os documentos juntos pela Recorrida com vista à demonstração da outorga daqueles contratos são meros documentos particulares, aos quais falta o reconhecimento presencial de assinaturas exigido nos termos do n.º 3 do artigo 410.º do CC, motivo pelo qual foram os mesmos expressamente impugnados pelo Recorrente.

AA. Depois de impugnados aqueles documentos, a Recorrida não demonstrou a sua genuinidade, nem o Tribunal a quo a notificou para esse efeito, motivo pelo qual não resulta documentalmente provado que os contratos tenham sido celebrados. Não se encontrando estes devidamente provados pela Recorrida, não poderia o Tribunal concluir pela sua verificação sem a existência do necessário suporte probatório.

BB. Ora, ainda que a apreciação a realizar pelo Tribunal em sede cautelar seja meramente perfunctória, a aferição da existência de fundado receio deve obedecer a critérios restritos, sob pena de se assistir, conforme se alertou na oposição apresentada, à vulgarização da tutela cautelar, à sua concessão indiscriminada com base em pressupostos insuficientes, como é o caso.

CC. Não resultando demonstrados, ao contrário do que defende o Tribunal a quo, quaisquer danos – muito menos danos significativos –, não se verifica, in casu, uma situação de urgência decorrente do receio de concretização de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação, pelo que a sentença recorrida deve ser revogada e substituída por decisão que, julgando não preenchido o requisito de periculum in mora, indefira a providência requerida pela T....

iii) Da ponderação de interesses públicos e privados

DD. Como decorrência natural de tudo quanto até aqui se expôs, conclui-se que a ponderação dos interesses públicos e privados em presença pende, de forma determinante, para o interesse público associado à manutenção da integridade do património público e da legalidade urbanística: aquele primeiro é suficiente per se, não carecendo, ao contrário do que assevera o Tribunal a quo, de quantificação; quanto à segunda, a concessão da providência cautelar sem que se verifique efectivamente qualquer probabilidade de a decisão na acção principal ser favorável à Recorrida permitirá a construção de um edifício que, a final, não poderá ser utlizado nos termos pretendidos, tornando-se devoluto e abandonado e, assim, colidindo com o propósito estético, de harmonização e integração na envolvente subjacente à legalidade urbanística.

EE. Por sua vez, não resultam demonstrados nos autos quaisquer interesses privados dignos de tutela cautelar; pelo contrário, os interesses particulares relevantes serão mais bem acautelados, atenta a precariedade com que seria erigida a pretensão urbanística da Recorrida, no caso de ser recusada a providência requerida pela T....

FF. Como tal, sopesados devidamente todos os interesses relevantes, não pode senão concluir-se que, mesmo no caso de se encontrarem preenchidos os dois requisitos de que depende o deferimento da providência cautelar, esta deve ser recusado, uma vez que os danos daquele resultantes superam de forma assoberbante os prejuízos decorrentes do seu indeferimento.




*
II –Matéria de facto.

Invoca o Recorrente que o Tribunal a quo não podia ter dado como provado, como deu sob o n.º 12, que a “Requerente celebrou cinco contratos promessa de compra e venda de frações autónomas previstas no projeto de licenciamento em causa nos autos” uma vez que não foi cumprida a a formalidade de reconhecimento presencial das assinaturas apostas nos documentos que titulam esses contratos e o Recorrente impugnou expressamente a sua genuinidade ao abrigo do disposto no artigo 444.º do Código de Processo Civil.

Mas sem razão.

Os referidos documentos têm duas dimensões jurídicas relevantes: como prova dos contratos e como formalidade essencial dos contratos.

Como não estão aqui em causa os contratos em si mesmos, e os seus efeitos jurídicos, mas apenas o facto de terem sido celebrados e as repercussões económicas para a Recorrida derivadas desse facto, a validade formal dos contratos é aqui irrelevante.

E como prova, aqui apenas sumária e perfunctória, de um facto - a celebração dos contratos - é bastante o seu teor para se concluir que aqueles contratos-promessa de compra e venda foram celebrados.

Pergunta-se, de resto: que outra prova poderia a Requerente juntar de que celebrou os contratos documentados se não os próprios documentos? Nenhuma.

Sendo certo que o Recorrente, de resto, nem sequer põe em causa esse facto, de existirem declarações formais de vontade negocial com o sentido de contratos-promessa, invocando apenas que não foi cumprida uma formalidade essencial, o reconhecimento presencial das assinaturas.

A circunstância de não ter sido feito o reconhecimento presencial das assinaturas tem apenas a ver com a validade e eficácia dos contratos, não com a sua existência.

O Recorrente enquadra esta realidade como uma questão de existência dos contratos. Mas o enquadramento que o Recorrente faz de matéria de facto não se impõe ao Tribunal.

Os contratos foram, formalmente, celebrados.

Serão eventualmente nulos (ainda há a questão do abuso do direito na invocação da nulidade).

Mas existem, é um facto incontroverso.

Para a presente providência só interessa o facto – documentado – de terem sido celebrados os contratos; é irrelevante a respectiva validade e eficácia.

Não há, portanto, que eliminar tal facto do elenco de factos indiciariamente, repete-se, indiciariamente provados.

Deverão, assim, dar-se como indiciariamente provados os seguintes factos constantes da decisão recorrida:

1. Em 22.07.2021, a Requerente celebrou com a sociedade comercial A..., Lda., um contrato de compra e venda de um imóvel sito na Rua ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...1 e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...44 (cfr. doc. ... do r. i.).

2. Aquando da aquisição referida no ponto anterior, o imóvel adquirido pela Requerente já havia sido objeto de um processo de licenciamento, iniciado através de requerimento datado de 22.11.2019 e deferido através de despacho de 21.01.2021, pelo Sr. Vereador com o Pelouro do Urbanismo.

3. Em 24.08.2021, a Requerente apresentou um pedido de averbamento ao processo de licenciamento em curso no Município ..., exibindo nova Certidão da Conservatória do Registo Predial ..., em que constava indicada como proprietária do imóvel.

4. Tal requerimento foi deferido por despacho datado de 27.08.2021 (cfr. despacho constante do p. a. junto aos autos gravado como ficheiro “227-NUD-433513-2021”).

5. Em 04.04.2022, foi enviado à Requerente por correio electrónico o Alvará de Licenciamento de Obras de Demolição / Construção, de que consta um prazo para a conclusão das obras de 720 dias (cfr. alvará constante do p. a. junto aos autos gravado como ficheiro “284-NUD-112472-2022”).

6. Em 14.04.2022, após invocação por parte dos serviços do Requerido de que a operação urbanística em causa nos autos ocupava cerca de 300 m2 de terreno municipal, foi emitida informação com a seguinte proposta de decisão:

“Inexistindo qualquer cedência da área municipal, a operação urbanística NUP/99... (alvará n.º ...22...), ocupa terreno municipal e carece de legitimidade pelo que, será de remeter á DMDU/DMGPU para providenciarem as diligencias tidas por convenientes.”

(cfr. informação constante do p. a. junto aos autos gravada como ficheiro “299-NUD-352673-2022”).

7. Através de ofício datado de 31.05.2022, a Requerente foi notificada do projecto de decisão elaborado pelo Requerido Município, no qual este manifestava a sua intenção de declarar a nulidade do acto de licenciamento e de ordenar a cassação do alvará (doc. 15 do r. i.).

8. Através de ofício datado de 11.08.2022, a Requerente foi notificada do despacho que determinou a nulidade do ato de licenciamento, pelos factos e fundamentos constantes de informação com o seguinte teor parcial:

“(...)
1. Descrição da pretensão
O presente processo em nome de T..., refere-se ao licenciamento das obras de demolição e construção que incidem sobre o prédio sito à Rua ..., ..., na freguesia ..., que de acordo com o estabelecido na alínea c) do número 2 do artigo 4.º do RJUE, está sujeito ao controlo prévio de licença.
2. Enquadramento
2.1. O presente processo de licenciamento deu entrada a 22/11/2019, através do requerimento n.º ...19..., tendo sido à data entregue a Certidão da Conservatória do Registo Predial n.º 41/...26, com a área total de 1813 m2, atestando a firma “A..., Lda, LDA” como sua legítima proprietária. Nesta certidão é referido que foi usada a faculdade de atualização de área prevista no n.º 1, do artigo 28.º-B, do Código do Registo Predial.
2.2. Uma vez que a área do prédio constante da Certidão da Conservatória do Registo Predial era coincidente com a da pretensão (de acordo com os valores inscritos no Quadro Sinóptico), e não existindo nenhum elemento que levasse a crer estarmos perante uma eventual ocupação de áreas privadas municipais, concluiu-se estar comprovada a legitimidade do requerente.
2.3. O projeto de arquitetura relativo à presente operação urbanística foi aprovado inicialmente a 14/09/2020, e o pedido de licenciamento foi deferido a 21/01/2021 por despachos do Senhor Vereador com o Pelouro do Urbanismo;
2.4. A 24/08/2021, e através do requerimento n.º ...21... veio o requerente entregar um pedido de averbamento de requerente, apresentando para o efeito nova Certidão da Conservatória do Registo Predial atualizada ao nível do titular, sendo este agora “T..., LDA”;
2.5. A 04/04/2022 foi emitido o Alvará de Licenciamento de Obras de Demolição / Construção n.º NUD/112472/2022/CM... pelo período de 720 dias.
2.6. Face à chamada de atenção para uma eventual sobreposição da pretensão com áreas no Domínio Privado Municipal, foi promovida consulta à DMSPI, para serem prestados esclarecimentos relativamente à legitimidade do requerente para promover a presente operação urbanística.
2.7. A 14/04/2022, foi emitida a informação n.º NUD/229378/2022/CM... de 20/04/2022, que conclui nos seguintes termos:
“(...) inexistindo qualquer cedência da área municipal, a operação urbanística NUP/99... (alvará n.º ...22...), ocupa terreno municipal e carece de legitimidade pelo que, será de remeter á DMDU/DMGPU para providenciarem as diligencias tidas por convenientes. (...)”
2.8. Face ao exposto e no intuito de obter orientação jurídica no âmbito dos factos constatados pela DMSPI, relativamente à parcela de prédio municipal que foi ilegitimamente incluída na operação urbanística, foram consultados os serviços do Departamento Municipal Jurídico e de Contencioso (DMJC) com o intuito de determinar os procedimentos a adotar no âmbito do presente processo.

3. Consulta aos serviços da CM...
3.1 Informação dos serviços da CM...
□ DMSPI – Divisão Municipal de Solos e Património Imobiliário, emitiu informação n.º
NUD/229378/2022/CM... de 20/04/2022, que concluiu nos seguintes termos:

“(...) inexistindo qualquer cedência da área municipal, a operação urbanística NUP/99... (alvará n.º ...22...), ocupa terreno municipal e carece de legitimidade pelo que, será de remeter á DMDU/DMGPU para providenciarem as diligencias tidas por convenientes. (...)”
□ DMAGPJ – Divisão Municipal de Acessoria e da Gestão da Produção Jurídica, emitiu a informação n.º ...22... em 10/05/2022, que concluiu nos seguintes termos:

“(...)
Dispõe o n.º1 do artigo 9.º do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (RJUE) o seguinte: “Salvo disposição legal em contrário, os procedimentos previstos no presente diploma iniciam-se através de requerimento ou comunicação apresentados com recurso a meios eletrónicos e através do sistema previsto no artigo anterior, dirigidos ao Presidente da Câmara municipal, dos quais devem constar a identificação do requerente ou comunicante, incluindo o domicílio ou sede, bem como a indicação da qualidade de titular de qualquer direito que lhe confira a faculdade de realizar a operação urbanística”.
Desta forma, o RJUE prevê um “controlo preliminar da legitimidade do interessado”, exigindo-lhe a “indicação da qualidade de titular de qualquer direito que lhe confira a faculdade de realizar a operação urbanística” (artigo 9.º, n.º 1), sob pena de o pedido ser indeferido liminarmente ou até à decisão final (cfr. n.º 5 do artigo 11.º).
Não obstante a apreciação da legitimidade urbanística ser, em regra, uma apreciação meramente formal, deve a Administração verificar se o requerente se apresenta como titular de um direito (privado) que lhe confira legitimidade para formular o pedido em causa.
Como bem sabemos, a regra é a de que os atos de gestão urbanística estão submetidos exclusivamente a regras de direito público, o que significa que a Administração municipal, no âmbito da sua apreciação, deve apenas verificar o cumprimento de normas de direito do urbanismo.
A este propósito, acompanhamos o parecer da CCDR do Centro n.º DAJ 151/07, que refere o seguinte: “Importa previamente esclarecer que as licenças e autorizações urbanísticas são actos administrativos submetidos exclusivamente a regras de direito público, o que significa que a Administração municipal, na apreciação dos projectos, apenas verifica o cumprimento de normas de direito do urbanismo. Veja-se, entre outros, o Ac. do STA de 7/02/02, Processo n.º 04..., onde se conclui que “não incumbe à Administração no acto de licenciamento de obras particulares assegurar o respeito por normas de direito civil, designadamente das que tutelam servidões de passagem de terceiros sobre o prédio onde se situa a obra licenciada” A submissão exclusiva das licenças ou autorizações urbanísticas a regras de direito do urbanismo determina que elas sejam concedidas sob o que se designa por reserva de direitos de terceiros, isto é, conferem ao requerente da licença, apenas e só, o direito de realizar aquela operação urbanística, não retirando por isso a terceiros direitos que estes já possuíssem de acordo com o ordenamento privatístico. Segundo a melhor Doutrina daqui decorrem desde logo duas consequências. A primeira é a de que as normas de direito privado não constituem fundamento para o indeferimento do pedido e, a segunda, a de ficarem excluídas de apreciação pela Administração, para efeitos de emissão de licenças ou autorizações urbanísticas, as relações do titular da licença com terceiros não intervenientes na operação urbanística, (como sejam as relações com proprietários vizinhos ou destes entre si ou ainda as relações com pessoas afectadas por ocorrências relacionadas com a operação urbanística).”
Em bom rigor, os atos urbanísticos estão exclusivamente sujeitos a regras de direito do urbanismo, o que significa que à Administração compete apreciar os projetos e conceder as licenças à luz das normas de direito público.
Como sabemos, a licença e a autorização de utilização visa o cumprimento das normas urbanísticas, pelo que o seu controlo não ultrapassa, em regra, o âmbito destes preceitos, não abrangendo a totalidade do ordenamento jurídico (designadamente o privatístico).
Como consequência direta da submissão exclusiva da licença urbanística a regras de direito do urbanismo é a de que ela é concedida sob reserva de direitos de terceiros. Só assim poderia ser, até porque os atos de gestão urbanística apenas regulam as relações entre a Administração e o seu titular e, por isso, não constituem, modificam ou extinguem relações jurídicas entre privados. A licença e a autorização definem somente a situação jurídica do particular titular das mesmas, não definindo a situação jurídica de terceiros, que não devem ver a sua esfera jurídica, designadamente os direitos que lhes decorrem de normas jurídico-privadas, ser por eles afetadas.
Tal não significa, no entanto, como bem relembram Fernanda Paula Oliveira/Maria José Castanheira Neves/Dulce Lopes, e como, de resto, tem vindo a defender este município, uma total desconsideração, por parte da Administração, das regras de direito privado.
Aliás, a este propósito, o n.º 1 do artigo 9.º do RJUE, assim como a Portaria n.º 113/2015 de 22 de Abril, exigem não só que o Requerente invoque, mas também que faça prova, da titularidade de qualquer direito que lhe confira a faculdade de realizar a operação urbanística a que se refere a pretensão.
Ora, assim, cabe à Administração, na fase de apreciação liminar dos processos, verificar a existência da legitimidade procedimental, antes de poder apreciar o pedido que lhe é apresentado, não sendo suficiente, por isso, que o requerente indique a qualidade de titular de um direito que lhe confere legitimidade, devendo também fazer prova dessa qualidade. Assim, é dever dos órgãos municipais competentes averiguar se particular tem, à luz do ordenamento jurídico que o define - em regra, o civil- legitimidade para iniciar o respetivo procedimento.
Sendo que, o procedimento não deve prosseguir, devendo ser rejeitado o pedido de licenciamento, a comunicação prévia ou a autorização nas seguintes situações:
i. quando o requerente não faz prova da legitimidade;
ii. quando resulta dos documentos entregues que ele não é efetivamente o titular do direito que invoca, ou se faz no procedimento prova disso;
iii. quando o direito que se invoca não permite realizar a operação em causa.
Ora, a este propósito, refere-nos Fernanda Paula Oliveira/Maria José Castanheira Neves/Dulce Lopes que quando estas situações são detetadas antes da decisão final, deve haver rejeição liminar do pedido nos termos do n.º 6 do artigo 11.º do RJUE. Por outro lado, quando tais situações são detetadas já após a concessão da licença (como é aqui o caso), a mesma terá de se considerar ineficaz perante terceiros.
Acrescentam as Autoras que “a não produção de efeitos jurídicos verifica-se não apenas quando o ato é aprovado no pressuposto- errado, como mais tarde se demonstrará- de que a legitimidade existe, como naquelas em que o ato é aprovado com total desconsideração, por parte do município, do preenchimento do requisito da legitimidade, podendo neste caso colocar-se em equação a própria nulidade do ato administrativo praticado, na medida em que não existe qualquer base legal que permita à Administração decidir nestes casos, o que corresponde a um total falta de atribuições [nos termos do artigo 161.º, n.º 2, alínea a) do CPA]”.
Assim, seguindo o entendimento das Autoras, e partindo do princípio que o município praticou o ato de licenciamento no pressuposto (errado) de que estava verificada a legitimidade do Requerente, então, e em bom rigor, o que temos vindo a defender é a ineficácia daquele ato perante terceiros. Sendo que, para este efeito, quando falamos em terceiros, falamos em terceiros face à relação entre a Administração que licencia a obra e o interessado que a requer.
No entanto, neste caso particular, o município não é terceiro: é o proprietário do bem e tem o dever de tutelar os seus bens dominiais, pelo que somos a defender um caminho jurídico distinto do supra exposto.
Vejamos.
Para além do regime das nulidades a que se refere o artigo 68.º do RJUE, os atos de gestão urbanística ficam sujeitos ao regime geral da nulidade dos atos administrativos constante do CPA (por força do artigo 122.º do RJUE).
Ora, da leitura do artigo 68.º do RJUE e do artigo 161.º do CPA parece não resultar viável integrar a ilegitimidade procedimental nas causas de nulidade, porque, como sabemos, as situações de nulidade são apenas as expressamente previstas na lei. Contudo, o legislador tem alargado essas causas de modo a nelas poder incluir de forma mais ou menos completa as situações de especial gravidade e ostensividade que se verificam na prática jurídica e que devem, por isso, gerar nulidade.
Desta forma, somos a entender que a situação aqui em crise pode ser incluída em duas das cláusulas normativas que preveem situações de nulidade, designadamente, a alínea b) e a alínea c) do n.º 2 do artigo 161.º do CPA. Vejamos.
No que se refere à alínea c) do n.º 2 do artigo 161.º do CPA, somos a entender que, na presente situação, há um ato ferido de nulidade por impossibilidade do objeto, isto porque com o ato de licenciamento está a alienar-se um bem do domínio público. Como sabemos este não pode ser objeto de operações urbanísticas privadas a não ser que houvesse um título para o efeito (o que não acontece, in casu).
Por outro turno, ainda poderíamos enquadrar o caso em crise na nulidade prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 161.º do CPA, uma vez que temos um ato ferido de falta de base legal equivalente à falta de atribuições do respetivo órgão que declarou a nulidade.
Certo que, normalmente, como refere VIEIRA DE ANDRADE, os “vícios relativos aos pressupostos conduzem à anulabilidade”, porém, como ele próprio acrescenta “podem provocar nulidades em circunstâncias que tornem a ilegalidade especialmente grave – quando a falta de base legal se equipara à falta de atribuições”
Ora, na situação vertente não tem o órgão administrativo base legal para declarar a nulidade, estando desprovido de atribuições neste domínio, uma vez que o ato de licenciamento é praticado com total desconsideração por parte do município do preenchimento do requisito da legitimidade (no caso com total desconsideração do facto de parte da operação urbanística incidir sobre terreno do domínio publico municipal), não existindo qualquer base legal que permita à Administração decidir neste caso, o que corresponde a uma total falta de atribuições.
Dizer que os atos de licenciamento quando nulos ficam sujeitos ao regime geral da nulidade dos atos administrativos constante o artigo 162.º do CPA, que determina, designadamente, a não produção, por parte do ato nulo, de efeitos jurídicos (n.º 1) e a possibilidade da sua impugnação a todo o tempo (n.º 2).
Contudo, ressalvamos que esta circunstância não prejudica a possibilidade de atribuição de efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de atos nulos, de harmonia com os princípios da boa-fé, da proteção da confiança e da proporcionalidade ou outros princípios jurídicos constitucionais, designadamente associados ao decurso do tempo.
. Conclusões
Face a todo o exposto, propõe-se que:
-Nos termos da alínea c) do artigo 161.º do CPA, os serviços declarem a nulidade do ato de licenciamento praticado em 21/01/2021 pelo Senhor Vereador com o Pelouro Urbanismo, no âmbito do NUP/99...;
- Seja notificado o Requerente da intenção da declaração de nulidade para que este se possa pronunciar em sede de audiência prévia conforme preveem os artigos 121.º e 122.º do CPA.
(...)”
4. Fundamento da Intenção de declarar a nulidade do ato de licenciamento
Em face do exposto no ponto 3.1, deverá ser declarada a nulidade do ato de licenciamento praticado em 21/01/2021 pelo Senhor Vereador com o Pelouro Urbanismo no âmbito do processo n.º NUP/99..., nos termos da alínea c) do n.º 2 do artigo 161.º do CPA.
5. Audiência prévia do interessado
5.1. O Requerente foi notificado para se pronunciar sobre a intenção de declarar a nulidade do ato de licenciamento no prazo de 10 dias. Esta notificação foi efetuada a 07/06/2022, tendo decorrido o prazo para a audiência prévia, terminado em 21/06/2022.
4.2. Acontece que, através do requerimento n.º NUD/387172/2022/CM... de 04/07/2022, o interessado veio solicitar reunião presencial “com vista a indagar da possibilidade de alcançar uma solução consensual para o presente processo”.
4.3. A 19/07/2022 realizou-se reunião com o representante da requerente e com as advogadas, Dr.ª AA e Dr.ª BB e o gestor do processo.
O requerente veio apresentar presencialmente elementos em resposta ao parecer emitido pela DMSPI no âmbito do presente processo.
O requerente foi informado que deveria submeter previamente esses mesmos elementos para que seja possível a verificação da sua pertinência relativamente aos factos anteriormente constatados.
4.4. Face à inexistência de resposta no âmbito do presente processo, verifica-se que se mantêm todos os pressupostos de facto e de direito subjacentes à intenção de declarar a nulidade do ato de licenciamento contra a qual o requerente não se pronunciou.
6. Conclusão
Verificando-se de tudo o exposto, que deverá ser declarada a nulidade do ato de licenciamento praticado em 21/01/2021 pelo Senhor Vereador com o Pelouro Urbanismo, nos termos e ao coberto do disposto na al. c) do n.º 2 do artigo 161º do CPA com fundamento nos motivos de facto e de direito elencados no ponto 4 da presente informação, propõe-se:
- que o Senhor Vereador com o Pelouro do Urbanismo declare a nulidade do ato de licenciamento praticado em 21/01/2021 pelo Senhor Vereador com o Pelouro Urbanismo nos termos e ao coberto do disposto na al. c) do n.º 2 do artigo 161º do CPA com fundamento nos motivos de facto e de direito supra elencados.
- que ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do Art.º 79º do RJUE, se proceda à cassação do alvará n.º ...22....
- que seja dado conhecimento à DMFOP do teor da presente decisão, para os fins tidos por convenientes.
(cfr. doc. ... do r.i.).

9. Em 02.09.2022, foi promovido o embargo da obra de construção sita na Rua ..., ..., em virtude de a mesma estar a ser executada sem a necessária licença (cfr. doc. ... do r. i.).

10. A Requerente é uma sociedade comercial com o seguinte objecto social: “Construção de edifícios residenciais e não residenciais, compra e venda de bens imobiliários e revenda dos adquiridos para esse fim” (cfr. doc. ... do r.i.).

11. Actualmente, o único projecto em curso da Requerente é o projecto sobre que incide o acto suspendendo (cfr. doc. do r. i. e 26 e declaração junta a fls. 502 e seguintes dos autos).

12. A Requerente celebrou cinco contratos promessa de compra e venda de fracções autónomas previstas no projecto de licenciamento em causa nos autos (cfr. docs. ...7 a ...1 dos autos).

*
III - Enquadramento jurídico.

Este é o teor da decisão recorrida, na parte relevante.

“(…)

Do periculum in mora:

Cumpre então desde logo verificar se estamos perante uma situação de “periculum in mora”, ou seja, se existe o fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou de se produzirem prejuízos de difícil reparação, por tal forma que a decisão que vier a ser proferida em sede de ação principal possa perder a sua utilidade, nos termos do n.º 1 do art. 120.º do CPTA.

São duas as circunstâncias alternativas que se podem verificar para que se considere verificado o requisito do “periculum in mora”: a possibilidade de se constituir uma situação de facto consumado ou de se produzirem prejuízos de difícil reparação.

Há, pois, que ter em conta a concreta factualidade alegada pela Requerente e, perante tal factualidade, aferir se é possível, através de uma cognição meramente sumária - inerente à natureza cautelar dos presentes autos -, afirmar a existência deste “fundado receio” a que alude o artigo 120.º, n.º 1, do CPTA.

Como vimos, a título de periculum in mora, a Requerente invoca que o seu objeto social envolve a construção de edifícios e que, atualmente, o único projeto que possui é o projeto que havia sido licenciado pelo Requerido e cuja licença foi declarada nula.

Assim sendo, o projeto em causa nos autos é fulcral à sua solvabilidade, uma vez que é o único que atualmente possui e não dispõe de recursos financeiros que a habilitem a realizar outros investimentos. Segundo alega, caso a providência não seja decretada, ver-se-á não só impedida de exercer a sua atividade, como também confrontada coma obrigação de devolver os sinais pagos no âmbito dos contratos promessa celebrados em dobro, o que não conseguirá suportar.

Invoca ainda que é uma empresa familiar, em que os sócios são casados entre si e vivem dos seus rendimentos, pelo que também estes sofrerão um cenário de grave carência económica em situação de insolvência da empresa.
Em sentido contrário, invoca o Requerido que, subtraídas as quantias que a Requerente terá que devolver e partindo dos valores que ela própria indica, com o valor que ficará na disponibilidade da Requerente, ainda poderá realizar um investimento semelhante ao que fez no projeto em causa e manter um saldo positivo. Segundo alega, a Requerente reúne condições de subsistência, não se antevendo que o indeferimento da providência venha a afetar a sua solvabilidade.

Vejamos então.

Antes do mais, importa referir que não procedem os motivos relacionados com os sócios da Requerente, por estarem em causa interesses alheios à mesma. É que os interesses que a Requerente visa assegurar no processo principal e a cuja proteção se destina a presente tutela cautelar são os seus interesses, enquanto sociedade comercial, e não os interesses de terceiros que não são aqui parte.

Assim sendo, carecendo a Requerente de legitimidade para, nos presentes autos, ancorar as suas pretensões em interesses alheios, os danos que não são da sua esfera jurídica não podem ser aqui tidos em consideração a título de periculum (neste sentido, cfr. o Ac. do STA de 05.02.2015, proc. n.º ...4, in www.dgsi.pt).

Quanto aos demais danos, já procedem as alegações da Requerente.

Na realidade, resultou demonstrado nos autos que a Requerente se dedica à construção de edifícios e à compra para revenda de imóveis (cfr. ponto 10 do probatório), bem como que o único projeto que tem atualmente em curso é o projeto sobre que incide o ato suspendendo, de revenda das frações que pretende construir no prédio por si adquirido em julho de 2021 (cfr. pontos 1, 10 e 11 do probatório). Resultou ainda demonstrado que a Requerente já celebrou, inclusivamente, cinco contratos de promessa de compra e venda das frações em causa (cfr. ponto 12 do probatório).

Ora, uma vez que o ato em crise nos autos põe em causa o desenvolvimento do único projeto que a Requerente tem em curso, ele representará necessariamente a paralisação da sua atividade até à prolação da ação principal, o que não pode deixar de se reconduzir a uma situação de facto consumado, não sendo expectável que uma empresa subsista ou se mantenha ativa sem prosseguir qualquer atividade por um tal período.

As alegações do Requerido, no sentido de que a Requerente poderia afetar as disponibilidades de que dispõe, contas feitas, a um outro negócio, não afastam a existência de uma tal situação de facto consumado. Na verdade, em tais circunstâncias, sempre estaria em causa um outro negócio, diferente daquele visado pela Requerente e em que esta investiu.

Ou seja, mesmo que a Requerente lograsse redirecionar a sua atividade para outros projetos, conforme alegado pelo Requerido, sempre estaria em causa o prejuízo de uma oportunidade de negócio, até já em parte concretizado através da celebração de contratos promessa, o que não pode deixar de considerar-se também uma situação de facto consumado.

Neste sentido, vejam-se as seguintes doutas considerações do Tribunal Central Administrativo Norte, cujo raciocínio se entende ter plena aplicação à situação apurada nos autos:

“Ou seja, face ao modo como estão definidas as actividades possíveis de serem exercidas no dito espaço ocupado pela recorrente resulta claro que a venda ao público é uma das partes essenciais e possíveis da sua actividade, configurando-se mesmo o “Outlet” como um espaço comercial destinado ao público em geral, isto é, ao comércio a retalho. Afigura-se-nos, pois, que a ser executado o acto administrativo em causa, resulta para a recorrente um prejuízo real de ver os seus direitos que pretende fazer valer no processo principal serem postos em causa e com isso se poderá vir a criar uma situação de facto consumado, pois, que, caso venha a ter ganho de causa não poderá jamais recuperar as oportunidades de negócio entretanto perdidas.” (cfr. Ac. do TCAN de 14.02.2007, proc. n.º 01820/06.8BEPRT. No mesmo sentido, veja-se ainda o douto Acórdão do TCAN de 14.03.2014, proc. n.º 01334/12.7BEPRT-A, in www.dgsi.pt).

Também o Tribunal Central Administrativo Sul já se pronunciou em sentido semelhante e em que aqui nos revemos plenamente:

“No que concerne à verificação do aludido requisito, cremos que a sentença não merece qualquer censura, pois sempre tem sido apresentado como caso paradigmático do preenchimento do conceito de “prejuízo de difícil reparação” a situação em que a execução do acto implica o encerramento de estabelecimento comercial ou a cessação de actividades profissionais livres, em virtude de originar lucros cessantes indetermináveis e envolver a perda de clientela não quantificável, numa base de certeza (cfr. Santos Botelho in “Contencioso Administrativo”, 1995, pag. 286).” (cfr. Ac. do TCAS de 13.12.2007, proc. n.º 03203/07, in www.dgsi.pt).

Ora, tal basta para que se possa concluir pela existência do perigo da constituição de uma situação de facto consumado ou, pelo menos, da produção de prejuízos de difícil reparação.

Tendo tal presente, há que concluir pela verificação do pressuposto do periculum in mora previsto no art. 120.º, n.º 1, do CPTA.

*

Da aparência do direito:

Vista que está a verificação de um fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado, há que aferir se existe uma probabilidade da procedência da pretensão formulada no processo principal, nos termos e para os efeitos do art. 120.º, n.º 1, do CPTA.

Desde já se diga que sim. Vejamos porquê.

Resultou apurado nos autos que a Requerente adquiriu um imóvel que havia sido objeto de um processo de licenciamento deferido por despacho datado de 21.01.2021 (cfr. pontos 1 a 4 do probatório), tendo sido emitido em nome da Requerente o respetivo Alvará de Licenciamento de Obras em 04.04.2022 (cfr. ponto 5 do probatório).

Posteriormente, tendo sido invocado pelos serviços que a operação urbanística em causa incidia sobre cerca de 300 m2 de terreno municipal (cfr. ponto 6 do probatório), em 11.08.2022, veio a ser determinada a nulidade do ato de licenciamento que havia sido emitido, com base na informação constante do ponto 8 do probatório.

Em tal informação considerou-se o seguinte:

“(...) da leitura do artigo 68.º do RJUE e do artigo 161.º do CPA parece não resultar viável integrar a ilegitimidade procedimental nas causas de nulidade, porque, como sabemos, as situações de nulidade são apenas as expressamente previstas na lei. Contudo, o legislador tem alargado essas causas de modo a nelas poder incluir de forma mais ou menos completa as situações de especial gravidade e ostensividade que se verificam na prática jurídica e que devem, por isso, gerar nulidade.

Desta forma, somos a entender que a situação aqui em crise pode ser incluída em duas das cláusulas normativas que preveem situações de nulidade, designadamente, a alínea b) e a alínea c) do n.º 2 do artigo 161.º do CPA. Vejamos.

No que se refere à alínea c) do n.º 2 do artigo 161.º do CPA, somos a entender que, na presente situação, há um ato ferido de nulidade por impossibilidade do objeto, isto porque com o ato de licenciamento está a alienar-se um bem do domínio público. Como sabemos este não pode ser objeto de operações urbanísticas privadas a não ser que houvesse um título para o efeito (o que não acontece, in casu).

Por outro turno, ainda poderíamos enquadrar o caso em crise na nulidade prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 161.º do CPA, uma vez que temos um ato ferido de falta de base legal equivalente à falta de atribuições do respetivo órgão que declarou a nulidade. (...)” (cfr. ponto 8 do probatório).

Ora, independentemente de o licenciamento incidir ou não sobre uma parcela de terreno do Requerido, não se afigura que o facto de a pretensão urbanística da Requerente se situar em terreno do domínio municipal inquine o ato de licenciamento do gravoso vício de nulidade.

Desde logo, importa referir que o regime da nulidade dos atos administrativos constitui um regime de exceção face ao regime da anulabilidade, encontrando-se previsto no art. 161.º do CPA que são nulos apenas os atos para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade.

São assim nulos apenas os atos como tal elencados na lei, por razões de segurança jurídica, incluindo os atos descritos nas alíneas a) a l) do n.º 2 do art. 161.º do CPA e no art. 68.º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE), que consagra nulidades específicas no âmbito do urbanismo.


O Requerido fundamenta a nulidade do ato de licenciamento que havia exarado nas als. b) e c) do n.º 2 do art. 161.º do CPA, sustentando no ato suspendendo, que “neste caso particular, o município não é terceiro: é o proprietário do bem e tem o dever de tutelar os seus bens dominiais” (cfr. ponto 8 do probatório).

De acordo com a referida al. b), são nulos “Os atos estranhos às atribuições dos ministérios, ou das pessoas coletivas referidas no artigo 2.º, em que o seu autor se integre.”

De acordo com a referida al. c), são nulos “Os atos cujo objeto ou conteúdo seja impossível, ininteligível ou constitua ou seja determinado pela prática de um crime.”

*

Desde logo, quanto à aplicação da al. b), do n.º 2 do art. 161.º do CPA, importa ter presente que um ato administrativo é estranho às atribuições do autor quando este atua “fora do elenco dos interesses públicos cuja prossecução a lei entregou ao ministério ou ao ente público de que faz parte.” (in Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves e J. Pacheco de Amorim - Código do Procedimento Administrativo Comentado, 2ª Edição. Coimbra: Almedina, 2005, p. 644).

Assim sendo, o Réu, município, ao deferir uma pretensão de licenciamento, não está claramente fora dos interesses públicos que lhe são legalmente acometidos, encontrando-se antes a exercer uma competência própria, no âmbito das suas atribuições, conforme decorre do art. 5.º do RJUE.

A eventual falta de legitimidade de um requerente de uma licença pelo facto de não deter um direito de propriedade de que se arroga, em nada bule com a esfera de atribuições em que se movimenta o Réu ao apreciar uma tal pretensão.

Assim, não estará em causa um vício de nulidade por violação da esfera das atribuições do Réu.

*

Por outro lado, também não estará em causa um vício de nulidade por impossibilidade do seu objeto, para os efeitos da al. c) do n.º 2 do art. 161.º do CPA.

Desde logo, salienta-se que o facto de estar em causa terreno alegadamente do domínio municipal não implica que esteja em causa um terreno do domínio público, o que se expende no parecer jurídico, mas não se depreende dos demais elementos do processo administrativo em causa.

Bem pelo contrário, resulta do teor do próprio ato que a chamada de atenção dos serviços que motivou a consulta da DMSPI dizia respeito a uma “eventual sobreposição da pretensão com áreas do Domínio Privado Municipal” (cfr. ponto 8 do probatório). E a natureza privada do terreno em causa resulta ainda implicitamente da informação dos serviços camarários datada de 14.04.2022, em que se alude à inexistência de cedência da área municipal quanto ao terreno em causa (cfr. ponto 6 do probatório), o que não se afiguraria possível caso estivesse em causa terreno do domínio público.

Por outro lado, ainda que assim não fosse e efetivamente estivesse em causa uma parcela de terreno que constituísse domínio público, tal também não implicaria a nulidade do ato, na medida em que, em tais circunstâncias, não se verifica uma impossibilidade total, jurídica ou física, quanto ao objeto do ato.

Neste sentido vejam-se as doutas palavras do Supremo Tribunal Administrativo, a respeito de um ato de licenciamento que incidia sobre uma parcela de terreno do domínio público:

“(...) constitui objecto do acto administrativo a produção de efeitos jurídicos num dado caso concreto, pelo que tendo o acto produzido efeitos jurídicos, ainda que ilegais, o seu objecto não é impossível. Vejam-se, e entre outros, os seguintes acórdãos deste STA: de 14/06/2000 (rec. 45029), de 18/11/1999 (rec. 45247) e de 18/02/1998 (rec. 35752-PLENO), de 14/06/2000 (Rec.45029), de 26 de Setembro de 2002 (Rec. 663.02-12).

Em resumo, a deliberação impugnada não se mostra inquinada da nulidade enunciada na alínea c) do n.º 2 do art.º 133.º do CPA, pois que ao indeferir aquele pedido, produziu os enunciados efeitos jurídicos, não lhe falecendo assim objecto.” (cfr. Ac. do STA de 01.06.2004, proc. n.º 038/04, in www.dgsi.pt).

*

Face ao que vem exposto, improcedendo o enquadramento jurídico efetuado no ato que determinou a nulidade ato de licenciamento, há que concluir pela probabilidade de, em sede de ação principal, proceder a ação de impugnação.

A questão da existência ou não de um direito de propriedade sobre o terreno em questão constitui questão a dirimir em sede própria, não implicando, ao invés do que consta do ato suspendendo, a nulidade do ato de licenciamento.

Conforme referido pelas autoras Fernanda Paula Oliveira, Maria José Castanheira Neves e Dulce Lopes, “(...) existindo um litígio entre o requerente ou comunicante e terceiros no que concerne à titularidade do direito de propriedade, não deve a Administração resolvê-lo, sob pena de usurpação de poderes, já que a resolução de litígios jurídico-privados cabe aos tribunais judiciais e não à Administração. Assim, não obstante aquele litígio e aquela contestação, a licença deve considerar-se legalmente emitida (...).” (cfr. Fernanda Paula Oliveira, Maria José Castanheira Neves e Dulce Lopes, Regime Jurídico da Urbanização e Edificação Comentado. 4.ª Ed. Coimbra: Almedina, 2016, p. 189).

Afigura-se que um tal raciocínio tem plena aplicação numa situação como a dos presentes autos, em que a própria Administração alega ser proprietária de parte do terreno sobre que versa o licenciamento por si própria emitido.

Na verdade, não estando em causa a nulidade do ato primário, por não se verificar nenhuma das situações de nulidade taxativa e legalmente previstas para o efeito, não será equacionável o recurso aos poderes de autotutela do município com vista a justificar-se a declaração de nulidade do ato, o que inquina um tal ato de um vício de violação de lei por erro de direito.

Acresce que, sendo inválido o ato que declarou a nulidade do ato que havia deferido o licenciamento, tal invalidade comunicar-se-á necessariamente ao ato que determinou o embargo da obra, uma vez que tal ato se consubstancia num ato consequente do primeiro ato, pressuposto daquele (cfr. Ac. do STA de 30.01.2007, proc. n.º 040201A, in www.dgsi.pt).

Há pois que concluir pela probabilidade da procedência da pretensão material visada pela Requerente em sede de ação principal, no sentido da anulação dos atos impugnados, desde logo por procedência do vício de violação de lei por erro de direito.

Concluindo-se pela probabilidade da procedência da pretensão anulatória a ajuizar em sede de ação principal, fica prejudicado, por inútil, o conhecimento dos demais vícios imputados pela Requerente aos atos suspendendos.

Encontram-se, pois, preenchidos os pressupostos cumulativos previstos no art. 120.º, n.º 1, do CPTA.

*

Cumpre agora aferir se a providência deve ser recusada ao abrigo do disposto no art. 120.º, n.º 2, do CPTA, pelo facto de, ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que resultariam da concessão da providência se mostrarem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adoção de outras providências.

A este respeito, invoca o Requerido a superioridade dos interesses públicos em presença, uma vez que, caso venha a ser decretada a providência, os danos causados entre a prolação da decisão cautelar e a decisão final da ação principal serão muito mais graves e alargados do que os da Requerente, na medida em que se consentirá a construção para habitação multifamiliar num imóvel do Município, em violação do seu direito de propriedade. Segundo o Requerido, deve prevalecer, in casu, o interesse público na integridade do património imobiliário municipal e a manutenção da legalidade urbanística. Ao que acresce que devem ainda ser considerados os danos para Requerente e para os particulares que venham a ocupar as frações a construir.

Ponderemos então os interesses em presença.

Quanto aos danos resultantes para a Requerente e para os particulares, vimos já que as partes carecem de legitimidade para, nos presentes autos, ancorar as suas pretensões em interesses alheios, sejam estes de terceiros ou da parte contrária. Improcedem, pois, nos termos já vistos e que aqui se dão por reproduzidos, os argumentos esgrimidos pelo requerido a este respeito.

No que respeita aos interesses públicos em presença, entende-se que o ato em crise não contende com a manutenção da legalidade urbanística, na medida em que o fundamento dos atos impugnados diz respeito apenas à propriedade do terreno sobre que incide o ato de licenciamento e não se ancora na violação de qualquer regra de urbanismo.

Resta, assim, ponderar o invocado interesse atinente à preservação do património municipal, que se reconduz à proteção do erário público.

É certo que a proteção do erário público corresponde, naturalmente, a um interesse público relevante.

Contudo, para efeitos da ponderação de interesses nos termos do art. 120.º, n.º 2, do CPTA, relevam os danos concretos que possam resultar da concessão da providência.

Não são concretizados pela Entidade Requerida os danos específicos que para si resultam da concessão da providência, designadamente através da concretização do valor da parcela de terreno em causa ou da utilidade ou função da mesma.

Não bastará, para estes efeitos, o Requerido invocar genericamente a proteção do erário público.

Recorrendo às doutas palavras do Tribunal Central Administrativo Norte:

“O dano relevante, para efeitos da ponderação imposta pelo nº2 do artigo 120º do CPTA, e como resulta da sua interpretação, será o prejuízo, de natureza patrimonial ou moral, verificado no âmbito dos interesses públicos e privados em presença, considerados estes num pé de igualdade, e que não se confunde com os prejuízos integrados na esfera própria de protecção das normas justificadoras da decisão administrativa em crise [AC do TCAN de 06.05.2011, Rº00436/10.9BEMDL, de que também fomos Relator]” (assinalado nosso, in Ac. do TCAN de 08.07.2011, proc. n.º 147/11, disponível em www.dgsi.pt).

Por outro lado, o interesse privado da Requerente assume uma relevância preponderante, na medida em que, como vimos em sede de ponderação do periculum, está em causa a formação da uma situação de facto consumado ou de difícil reparação.

Assim sendo, uma vez que o interesse público em causa nos presentes autos não assume uma relevância preponderante, nem acarreta danos específicos a ter em consideração, face ao alegado, considero que a ponderação dos interesses públicos e privados em presença não implica a recusa da providência.

(…)”.

Mostra-se plenamente acertada esta decisão, não logrando o Recorrente contrariar os seus fundamentos.

1. O requisito do periculum in mora (facto consumado ou prejuízo de difícil reparação).

Determina a primeira parte do n.º 1 do artigo 120.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos:

“Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, as providências cautelares são adotadas quando haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal…”.

Face a este dispositivo, não é apenas a produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa a assegurar no processo principal que integra o “periculum in mora”, mas também a simples criação de um facto consumado.

Ora, independentemente da demais fundamentação da sentença, num ponto, essencial, o Recorrente não a logrou contradizer:

Ainda que a Requerente e Recorrida conseguisse, sem prejuízos significativos, direccionar a sua actividade para outros projectos, sempre se verificaria um facto consumado, a perda de oportunidade de realização de um negócio, o único projecto que tinha em curso.

Pelo que se terá de concluir pela verificação deste requisito.

2. O requisito do fumus boni iuris (a aparência do bom direito).

A segunda parte do n.º 1 do artigo 120.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, dispõe:

“ … e seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente.”

Face ao teor deste preceito - que não distingue entre providências conservatórias, como o pedido de suspensão da eficácia de um acto, e providências antecipatórias - é necessário, além do mais, que seja “provável que a pretensão formulada ou a formular no processo principal venha a ser julgada procedente” para que uma providência antecipatória possa ser concedida.

O procedimento cautelar caracteriza-se pela sua instrumentalidade, (dependência da acção principal), provisoriedade (não está em causa a resolução definitiva de um litígio) e sumariedade (summaria cognitio do caso através de um procedimento simplificado e rápido) - Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo processo civil, Lex, 1997, páginas 228 a 231.

No caso, independentemente de ser ou não nulo o licenciamento da operação urbanística pretendida pela Recorrida o fundamento invocado pelo Requerido e Recorrente para a declaração de nulidade da operação foi o de o loteamento ocupar parcialmente um imóvel indisponível do Município.

Sendo a questão da propriedade de (parte) do imóvel uma questão controversa entre o Município e a empresa Requerente, não podia o Município, unilateralmente, definir a quem cabe - e em que termos – o direito de propriedade porque isso não se integra nos seus poderes, mas antes nos poderes dos tribunais, a quem compete dirimir os conflitos de interesses públicos e provados – n.º 2 do artigo 202º da Constituição da República Portuguesa.

Pelo que é provável o êxito da acção principal, de declaração de nulidade do acto suspendendo, pelo vício de usurpação de poderes – artigo 161º, n.º1, alínea a) do Código de Procedimento Administrativo.

3. A ponderação de interesses.

Estipula o n.º 2 do artigo 120.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos:

Nas situações previstas no número anterior, a adoção da providência ou das providências é recusada quando, devidamente ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adoção de outras providências.”

Só quando as circunstâncias do caso concreto revelarem de todo em todo a existência de lesão do interesse público que justifique a qualificação de grave e se considere que essa qualificação deve prevalecer sobre os outros prováveis prejuízos que se contrapõem é que se impõe a execução imediata do acto, indeferindo-se, por esse facto, o pedido de suspensão – acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 13.01.2005, Proc. n.º 959/04.9BEVIS.

O prejuízo invocado pela entidade pública há-de ser especial e concreto, ou seja, diferenciado do interesse genérico da legalidade e eficácia dos actos administrativos, pois só essa especialidade permite concluir pela superioridade em relação aos prejuízos para os interesses privados. Caso contrário, as providências cautelares estariam à partida condenadas ao fracasso porque o interesse público sempre prevaleceria.

No caso não foi invocado qualquer interesse público especial para alem do genérico “interesse público associado à manutenção da integridade do património público e da legalidade urbanística”.

Não foi invocado – nem se demonstra – que o património em causa seja protegido ou mereça uma protecção especial nem que a violação urbanística em causa atinja de modo irreversível qualquer bem ou valor urbanístico essencial.

Pelo que também este requisito, face ao apontado facto consumado a prejudicar a Requerente e Recorrida, se deve ter por verificado.

*

IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO, mantendo a decisão recorrida.

Custas pelo Recorrente.


*

Porto, 24.02.2023


Rogério Martins
Conceição Silvestre
(Luís Migueis Garcia, com o voto de vencido que se segue)

VOTO DE VENCIDO:
Voto vencido quanto ao julgamento da matéria de facto.
Não situo que o requerido/recorrente coloque em causa que “a Requerente celebrou cinco contratos promessa de compra e venda de frações autónomas previstas no projeto de licenciamento em causa nos autos” motivado na circunstância de não ter sido cumprida a formalidade de reconhecimento presencial das assinaturas; observa que não o foi, sim; mas essa é apenas útil proposição ao que se segue; faz mais, impugna os documentos; põe em causa o encontro de vontades (a questão não se reporta a qualquer validade - nulidade contratual -, ou eficácia; antes à própria existência negocial); é este o enquadramento do requerente, que ao tribunal se imporia de guião.
Colocados em crise, incumbiria, em ónus, ao apresentante dos documentos dar alento probatório (mesmo se ao impugnante também se faculte arrolar prova) à genuinidade (art.º 444º CPC).
Não pode fixar-se a sua celebração - mesmo que em pronúncia indiciária - perante uma impugnação que nos autos se ficou por esse estádio, sem pertinente processamento incidental.
Não se chegou até aí.
Mas também - independentemente de qualquer indicação probatória - não há queixume a respeito dessa falta de processamento.
Só quanto ao resultado, a despeito de tal falta.
Assim, com estas incidências, quedaria por julgar não provado.
Porto, 24 de Fevereiro de 2023.

Luís Migueis Garcia