Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01000/17.7BEBRG
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:06/04/2020
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Rosário Pais
Descritores:IMPUGNAÇÃO; IRC; APROVEITAMENTO DO ATO INEFICAZ; IVA; SIMULAÇÃO; PRÁTICA ABUSIVA:
Sumário:I – O princípio do aproveitamento dos atos, de matriz jurisprudencial e já acolhido no novo CPA (subsidiariamente aplicável ao procedimento administrativo, por força do artigo 2.º, alínea d) do CPPT), tem origem no brocardo latino utile per inutile non vitiatur e significa que o vício implicante da invalidade do ato não deve conduzir à sua anulação quando for possível concluir com segurança que, mesmo sendo tal vício inexistente, a decisão seria necessariamente idêntica.

II - Este princípio encontra-se atualmente positivado no artigo 163.º, n.º 5 do CPA, o qual define o seu âmbito de aplicação que, como se infere da sua epígrafe, se limita ao regime da invalidade dos atos e, já não, à da sua ineficácia.

III – O vício apontado ao ato de alargamento do âmbito da inspeção é a irregularidade da notificação que, por isso, é deficiente por falta de notificação dos fundamentos da decisão, o que contende com a eficácia do ato notificando e com a sua validade, motivo pelo qual não tem aqui aplicação o dito princípio.

IV – A tributação com fundamento em prática abusiva deve ser efetuada ao abrigo do artigo 38.º da LGT, com obrigatória instauração do procedimento previsto no artigo 62.º do CPPT.

V – Se a AT não emitiu a liquidação de IVA com fundamento em prática abusiva, ao abrigo da citada norma e lançando mão do procedimento aludido, está vedado ao Tribunal reconhecer a existência de tal prática e manter o ato com este novo fundamento. *
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:A-., Lda.
Recorrido 1:Fazenda Pública
Votação:Unanimidade
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido de o recurso não merecer provimento.
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os Juízes da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

1. RELATÓRIO
1.1. A Autoridade Tributária e Aduaneira vem recorrer da sentença proferida no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga em 30.12.2018, pela qual foi julgada procedente a impugnação judicial deduzida contra as liquidações adicionais de IRC do exercício de 2014 e de IVA do período de 2013.12T, nos montantes respetivos de € 31.597,28 e de € 25.635,94.

1.2. A Recorrente terminou as respetivas alegações formulando as seguintes conclusões:
«I – Salvo o devido respeito que merecem as opiniões e a ciência do Tribunal “a quo”, entende a Recorrente que a douta sentença, proferida a 2018.12.30, no âmbito do processo de Impugnação Judicial acima identificado, e que considerou o pedido da Impugnante, ora Recorrida, totalmente procedente, não se pode manter na ordem jurídica.
II – A Recorrente não se conforma com a sentença em causa, na medida em que entende que a mesma padece de erro de julgamento, em matéria de direito, ao ter concluído, em suma:
a) Em sede de IRC: “Face ao exposto, não quedando provado que os despachos (e respectivas propostas, das quais consta a fundamentação dos alargamentos do âmbito) foram notificados à impetrante, ter-se-á de concluir que existiu uma omissão de formalidade essencial do procedimento inspectivo, invalidante das correcções referidas no relatório de inspecção, na parte relativa aos alargamentos, ou seja, das correcções à matéria tributável, que originaram a liquidação adicional de I.R.C..”, e,
b) Em sede de IVA: “Face ao exposto, conclui-se que a recusa de dedução do imposto mencionado nas facturas é indevida e, por outro lado, que a A.T. não demonstrou, como lhe competia, os pressupostos de facto que a legitimaram a emitir a liquidação oficiosa de I.V.A com fundamento em simulação.”.
III – Pese embora o profundo respeito que nos merece o douto entendimento vertido, acerca da questão a que se alude na alínea a) do ponto II supra das “CONCLUSÕES”, na douta sentença aqui em apreço, e nos doutos acórdãos do STA de 2018.09.19, proferido no processo nº 01460/17, e de 2016.06.15, proferido no processo nº 01101/15, acima referidos, o certo é que, salvo o devido respeito por melhor entendimento, se nos afigura que tal questão deverá ser (também) vista à luz do chamado princípio do aproveitamento do ato, o qual, como é sabido, encontra expressão na fórmula latina “utile per inutile non vitiatur”.
IV – Como é igualmente sabido, até à aprovação, pelo D.L. nº 4/2015, de 07/01, do novo Código do Procedimento Administrativo (doravante CPA), o referido princípio do aproveitamento do ato não se encontrava positivado na lei, tendo apenas como fonte a doutrina e a jurisprudência (vejam-se a título de exemplo, entre muitos outros, os seguintes acórdãos deste Venerando STA: de 2000.02.02, Proc. Nº 044623; de 2000.05.18, Proc. Nº 45736 e Proc. Nº 45965; de 2002.01.17, Proc. Nº 046482; de 2004.12.14, Proc. Nº 01451/03; de 2000.05.18, Proc. Nº 45736; de 2000.12.12, Proc. Nº 46738).
V – Como é igualmente sabido, o nº 5 do artigo 163º do (novo) CPA, inserido na Secção III, “Da Invalidade do acto administrativo”, veio consagrar em termos legais, nas suas diversas alíneas, o referido princípio do aproveitamento do ato, “dando expressão normativa a diversos critérios jurisprudenciais que vinham já sendo aplicados pelos tribunais.” – (nesse sentido, vide Carlos Alberto Fernandes Cadilha, in “IMPLICAÇÕES DO NOVO REGIME DO CÓDIGO DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO NO DIREITO PROCESSUAL ADMINISTRATIVO”, JULGAR – Nº 26 – 2015, Coimbra Editora.
VI – “A alínea b) [do nº 5, do artigo 163º do CPA] contempla uma forma de descaracterização do vício por efeito da degradação de formalidade essencial em formalidade não essencial, e, como resulta expressamente do preceito, apenas respeita a vícios de forma ou de procedimento que, por sua natureza, possuam uma função meramente instrumental em relação à finalidade do procedimento (..). Trata-se de situações em que a violação de uma regra legalmente prevista não tenha chegado a afetar ou restringir as garantias procedimentais ou processuais que se pretendiam tutelar ou em que a realização da formalidade se tenha tornado inútil por a sua finalidade ter sido satisfeita por uma outra via (..)”. - Carlos Alberto Fernandes Cadilha, in “IMPLICAÇÕES DO NOVO REGIME DO CÓDIGO DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO NO DIREITO PROCESSUAL ADMINISTRATIVO”, JULGAR – Nº 26 – 2015, Coimbra Editora.
VII - Importa ter presente nestas situações, a nosso ver, uma preocupação com a prossecução e a proteção do interesse público (presente no artigo 266º da Constituição da República Portuguesa e no artigo 4º do CPA), na medida em que impera avaliar se existe ou não um prejuízo relevante que legitime a destruição de um ato, atendendo, nomeadamente, às circunstâncias específicas do caso concreto.
VIII – No nosso entendimento, não se justifica no caso sub judice a anulação do ato de liquidação adicional de IRC aqui em causa na medida em que a existência do vício formal e procedimental não se veio a traduzir numa lesão, em concreto, para a Recorrida, cuja proteção a norma visa.
IX – No nosso entendimento, considerando as circunstâncias do caso concreto, impera concluir que a decisão tomada no presente procedimento inspetivo é a única legalmente admissível, não tendo a eventual notificação à Recorrida dos despachos melhor identificados nos pontos 1. e 2. dos “Factos não provados” a virtualidade de alterar a decisão final tomada no presente procedimento.
X – Assim, concluindo nesta parte, diremos que, salvo melhor entendimento, por força da aplicação ao caso concreto do princípio do aproveitamento do ato plasmado nas alíneas a), b) e c), do nº 5, do artigo 163º do CPA, deverá a sentença aqui em análise ser revogada na parte em que determinou a anulação da liquidação adicional de IRC nº 2017 8310028358, do ano de 2014, no montante de € 31.597,28, com todas as legais consequências, nomeadamente a manutenção na ordem jurídica da mesma.
XI – Na douta sentença aqui posta em crise determinou-se ainda a anulação da liquidação adicional de IVA nº 18440859, do período de 2013.12T, no montante de € 25.635,94, com base em duas ordens de razões, melhor explicitadas na sentença.
XII - Pese embora o profundo respeito que nos merece o douto entendimento vertido, acerca desta questão, na sentença aqui em apreço, no douto acórdão do T.C.A Sul de 2015.06.04, proferido no processo n.º 07111/13, e no douto acórdão do STA de 2012.09.26, proferido no processo nº 0555/12, o certo é que, salvo o devido respeito por diverso entendimento, se nos afigura continuar a assistir razão à Fazenda Pública.
XIII – Os fundamentos, de facto e de direito, que estiveram subjacentes ao “corte” do IVA deduzido relativo à aquisição, por parte da Recorrida, do ativo fixo tangível ao sujeito passivo A., Lda., NIPC (...), vêm referidos no ponto III.2.2 do capítulo III do Relatório de Inspeção Tributária (doravante abreviadamente designado “RIT”, a que se refere o ponto H) dos “Factos provados”, cujo teor, por razões de economia processual, damos aqui por integralmente reproduzido.
XIV - Salvo o devido respeito por melhor entendimento, atentos os fundamentos de facto e de direito invocados nos capítulos III e IX do RIT quanto a esta questão do “corte” do IVA deduzido, relativo à aquisição, por parte da Recorrida, do ativo fixo tangível ao sujeito passivo A., Lda., NIPC (...), afigura-se-nos que mal andou a M. ma Juíza do Tribunal “a quo” ao ter concluído na douta sentença aqui posta em crise que a Recorrida tem direito à dedução do mencionado I.V.A..
XV – Sendo certo que, em bom rigor, no RIT não foi colocada em crise a circunstância de os bens em causa terem sido adquiridos pela Recorrida e de esta os estar a utilizar no exercício da sua atividade – veja-se, nomeadamente, o ponto III.2.2 do capítulo III do RIT, e o anexo II aí referido - também é certo que o que foi colocado em crise no RIT foi o facto de existir uma divergência intencional e planeada (conforme resulta do ponto P) dos “Factos provados” o contabilista é comum a ambas as empresas envolvidas) entre a forma como o negócio foi feito (com liquidação de IVA) e a forma como deveria ter acontecido (sem liquidação de IVA, aproveitando a não sujeição prevista no nº 4 do artigo 3º do CIVA), existindo ainda um conluio entre as partes envolvidas, com o objetivo claro de criar as condições para a Recorrida solicitar um pedido indevido de reembolso de IVA na sua esfera pessoal.
XVI – Assim, aqui chegados, tendo ficado demonstrado, à saciedade, no RIT, que a dedução, por parte da Recorrida, do IVA indevidamente liquidado nas faturas que constituem o anexo II do RIT, tem subjacente, a montante, a existência de uma prática abusiva na qual participou ativamente a Recorrida e a emitente das referidas faturas, afigura-se-nos que mal andou a M. ma Juíza do Tribunal “a quo” ao não ter efetuado, como se impunha, atendendo à matriz comunitária do IVA, o (necessário) enquadramento de tal prática abusiva à luz da Sexta Diretiva e à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia existente sobre esta matéria.
XVII - Como é sabido, no CIVA, aprovado pelo D.L. nº 394-B/84, de 26/12, procedeu-se à transposição para o direito interno da Sexta Diretiva do Conselho (Diretiva 77/380/CEE, do Conselho, de 1997.05.17).
XVIII - A propósito das referidas práticas abusivas, consta do sumário do acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 2006.02.21, proferido no processo C-255/02, conhecido como caso “HALIFAX E O.”, o seguinte:
“(....)
2) A Sexta Directiva deve ser interpretada no sentido de que se opõe ao direito do sujeito passivo a deduzir o imposto sobre o valor acrescentado pago a montante quando as operações em que esse direito se baseia forem constitutivas de uma prática abusiva.
A declaração da existência de uma prática abusiva exige, por um lado, que as operações em causa, apesar da aplicação formal das condições previstas nas disposições pertinentes da Sexta Directiva e da legislação nacional que transpõe essa directiva, tenham por resultado a obtenção de uma vantagem fiscal cuja concessão seria contrária ao objectivo prosseguido por essas disposições. Por outro lado, deve igualmente resultar de um conjunto de elementos objectivos que as operações em causa têm por finalidade essencial a obtenção de uma vantagem fiscal.
3) Quando se verifique a existência de uma prática abusiva, as operações implicadas devem ser redefinidas de forma a restabelecer a situação tal como ela existiria na ausência das operações constitutivas da prática abusiva.”.
XIX - Assim, afigura-se-nos que, efetuado o devido e necessário enquadramento da prática abusiva adotada pela Recorrida, bem patente no RIT, à luz da Sexta Diretiva e à luz da Jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia existente sobre esta matéria, dever-se-á concluir, também por esta via, que a Recorrida não tem direito à dedução do IVA liquidado nas faturas que titulam a operação melhor descrita no RIT, aqui em causa.
XX - Em conclusão, diremos que, ao decidir como decidiu, a M. ma Juíza do Tribunal “a quo”, incorreu, a nosso ver e salvaguardado o devido respeito por melhor entendimento, em erro de julgamento, em matéria de direito, ao concluir, como concluiu, atenta a fundamentação jurídica expendida na douta sentença aqui posta em crise, na parte respeitante ao IRC, pela existência de uma omissão de formalidade essencial no procedimento inspetivo, invalidante das correções referidas no RIT, isto é, das correções à matéria tributável que originaram a liquidação adicional de IRC impugnada e, por outro lado, ao ter concluído, na parte respeitante ao IVA, que a recusa do direito à dedução do imposto mencionado nas faturas que titulam a operação aqui em causa é indevida.
XXI - E consequentemente, deveria a M. ma Juiz do Tribunal “a quo” ter mantido a liquidações de IRC e IVA impugnadas, bem como as liquidações dos respetivos juros compensatórios, com todas as legais consequências – o que, respeitosamente, se requer seja (agora) determinado por V. Exas.
Pelo exposto e com o mui douto suprimento de V. Exas., deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, revogada a sentença, com todas as consequências legais, como é de inteira
JUSTIÇA».

1.3. A Recorrida contra-alegou, terminando com as seguintes conclusões:
«1ª - Que a Impugnante não foi notificada do teor dos despachos que determinaram o alargamento do âmbito da inspecção.
2ª - A FP vem assumir claramente que não notificou a Impugnante dos despachos que fundamentaram o alargamento do âmbito da acção inspectiva que estava a ser levada a efeito.
3ª - Como o teor dos controvertidos despachos não foi notificado à Impugnante isso implica uma violação explícita da lei, designadamente, do artº 15º, nº 1 do RCPITA e do artº 77º, nºs 1 e 6 da LGT.
4ª - A sanção para tal ilegalidade é a ineficácia dos referidos despachos.
5ª - Conclui-se, assim, pela ilegalidade da liquidação de IRC com fundamento em preterição de formalidades essências no procedimento inspectivo.
6ª - Invoca ainda o RFP não ter a Impugnante o direito a deduzir o IVA constante da liquidação do período 2013.12T, por força de simulação praticada com a sociedade A., Lda.
7ª – Assim, se a AT entendia que existiu negócio simulado e que por isso ocorre prática abusiva, era sobre si que impendia o ónus da prova da simulação; o que não ocorreu.
8ª – Ora, se liquidado, o IVA tem de ser entregue ao Estado, correspondendo-lhe, por isso, o direito à respectiva dedução, sob pena de ficar precludido o princípio da neutralidade do IVA consagrado na 6ª Directiva.
9ª - Assim, é de concluir que a AT não podia negar à Impugnante o direito à dedução do IVA em causa com fundamento no facto de, alegadamente, esse IVA ter sido indevidamente liquidado.
10ª - Não merece censura, por conseguinte, a douta sentença recorrida.
11ª – Aina que por mera hipótese algum argumento invocado em sede de recurso apresentado pela FP prevalecesse, deverão os demais vícios invocados e assacados às liquidações pela Impugnante, ser apreciados judicialmente.
12ª – Deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se incólume a douta sentença recorrida, assim se fazendo a habitual
JUSTIÇA!».

1.4. O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer, acompanhando o entendimento vertida na sentença, concluindo que a mesma seve ser mantida na ordem jurídica.

Dispensados os vistos legais nos termos do artigo 657.º, n.º 4, do CPC, cumpre apreciar e decidir, pois que a tanto nada obsta.

2. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO – QUESTÕES A APRECIAR
Uma vez que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da Recorrente, cumpre apreciar e decidir se a sentença enferma de erro de julgamento de direito ao não ter aplicado o princípio aproveitamento dos atos e de erro de julgamento de facto por não ter considerado abusiva a prática da Recorrente, conforme evidenciado no RIT.

3. FUNDAMENTAÇÃO
3.1. DE FACTO
A decisão recorrida contém a seguinte fundamentação de facto:
Factos provados
A) Em 01/07/2015, foram emitidas as Ordens de Serviço n.ºs OI201500100 (parcial, I.V.A., 2013), OI201500101 (parcial, I.V.A., 2014) e OI201500102 (parcial, I.V.A., 2015), para realização de acção de inspecção à Impugnante, assinadas em 28/09/2015, por A., gerente da Impugnante.
Fls 6 a 10 e 12 a 14 do P.A. e 48 a 53 dos autos.
B) Em 17/02/2016, foi elaborada Proposta “de alteração do âmbito da acção para geral”, pelo inspector tributário, da qual consta o seguinte:
“(...) Fundamentos da proposta e âmbito da acção a desenvolver
No âmbito da Ordem de Serviço n.º OI201500101, parcial em IVA, para o período de 2014, verificou-se que foram consideradas, por parte da empresa, no apuramento do Resultado Fiscal de IRC, diversos montantes relativos a IVA suportado em Espanha e ainda valores respeitantes a gastos do ano de 2015, que não devem concorrer para a formação do Lucro Tributável do ano de 2014.
A alteração do âmbito desta Ordem de Serviço tem em vista proceder-se às correcções fiscais devidas em sede de IRC.(...)”
Fls 21 e 22 do P.A..
C) Em 19/02/2016, foi proferido despacho pelo Director de Finanças de (...), referente à Ordem de Serviço n.º OI201500101, com o seguinte teor:
“Concordo. Autorizo o alargamento do âmbito conforme proposto.”
Fls 21 do P.A..
D) A., gerente da Impugnante, assinou, em 06/04/2016, a Ordem de Serviço n.º OI201500101, da qual consta:
“(...) Geral, Ano/Exercício: 2014
Altera-se a Ordem de Serviço que lhe foi notificada em 2015/09/28 com os seguintes fundamentos: Alargado o âmbito para Geral por despacho do director de finanças (em substituição) de 19/02/2016.”
Fls 20 do P.A..
E) Em 05/09/2016, foi elaborada Proposta “de alteração do âmbito da acção para geral”, pelo inspector tributário, da qual consta o seguinte:
“(...) Fundamentos da proposta e âmbito da acção a desenvolver
No âmbito da Ordem de Serviço n.º OI201500100,... verificou-se que foram considerados em duplicado, na contabilidade do ano de 2013, diversos encargos bancários, o que equivale a dizer que estes gastos concorreram duas vezes para a determinação do Resultado Fiscal de IRC desse período.
A alteração de âmbito da presente Ordem de Serviço tem em vista proceder-se às correcções devidas em sede de IRC do ano de 2013.(...)”
Fls 29 e 30 do P.A..
F) Em 09/09/2016, foi proferido despacho pelo Director de Finanças de (...), referente à Ordem de Serviço n.º OI201500100 (alterada), com o seguinte teor:
“Concordo. Autorizo nos termos propostos.”
Fls 29 do P.A..
G) A., gerente da Impugnante, assinou, em 15/09/2016, a Ordem de Serviço n.º OI201500100 (alterada), da qual consta:
“(...) Geral, Ano/Exercício: 2013
Altera-se a Ordem de Serviço que lhe foi notificada em 2015/09/28 com os seguintes fundamentos: Alargado o âmbito acção para geral, conforme despacho do DF de 09/09/2016.”
Fls 28 do P.A..
H) Em 12/01/2017, foi elaborado Relatório de inspecção tributária, do qual consta o seguinte:
(Imagens no original da sentença)
Fls 370 e ss do P.A..
I) Foram emitidas, em nome da Impugnante, as liquidações adicionais de I.R.C. n.º 2017 8310028356, do ano de 2014 e a liquidação adicional de I.V.A. n.º 18440859, do período de 2013.12T, nos montantes de € 31.597,28 e de € 25.635,94, respectivamente.
Fls 44, 45 e 47.
J) Em 19/12/2013 foram emitidas sete facturas pela sociedade “A., Lda” (em diante A.) à Impugnante, com descritivo de venda de viaturas, empilhador, compressores, viveiros, arca congeladora, câmara frigorífica, monitor, expositor, armário, mobiliário, plasma, câmara de vigilância, edifício/benfeitorias, etc; com liquidação de I.V.A..
Fls 420 a 426 do P.A..
K) Os bens referidos nas facturas estão em funcionamento e a ser utilizados na actividade da Impugnante.
Acordo das partes e depoimento da testemunha R..
L) Com a transmissão do activo, a A. deixou de exercer a sua actividade.
Depoimento da testemunha R..
M) Com a aquisição do activo, a Impugnante passou a exercer a sua actividade em 2014.
Depoimento da testemunha R..
N) A venda do activo foi um “trespasse verbal”.
Depoimento da testemunha R..
O) À data da venda do activo, a A. possuía um crédito de I.V.A..
Depoimento da testemunha R. e fls 9 do Relatório da inspecção.
P) O contabilista comum da A. e da Impugnante - R. - optou pela liquidação de I.V.A. nas facturas para utilizar o crédito de I.V.A. que a A. possuía.
Depoimento da testemunha R..
Q) Foi celebrado “Contrato de cooperação comercial Consórcio” entre a Impugnante, a sociedade “L., Lda” e A., para a “...actividade de comércio por grosso de peixe fresco e mariscos, nas lotas da região de (...) (...).”
Fls 58 a 61.
R) Foi celebrado “Contrato de cooperação comercial Consórcio” entre a Impugnante, a sociedade “L., Lda”, “A. – Unipessoal, Lda” e A., para a “...actividade de comércio por grosso de peixe fresco e mariscos, nas lotas da região de (...) (...).”
Fls 62 a 65.
S) A. é sócio e gerente da Impugnante.
Fls 446 a 448 do P.A..
T) A-. é sócia e gerente da Impugnante.
Fls 446 a 448 do P.A..
U) A. é sócio da sociedade “L., Lda” e pai dos sócios da Impugnante.
Fls 453 a 459 do P.A. e acordo das partes.
V) A aquisição de quota de 52% na sociedade “L., Lda”, por A-. foi declarada nula por sentença proferida no processo n.º 4028/05.6TBVCT, pelo 2.º Juízo Cível de (...), com certidão da qual consta o trânsito em julgado em 09/05/2007.
Fls 115 a 119.
W) Há casos em que os preços de venda de polvo praticados pelos revendedores são inferiores aos praticados em lota.
Depoimento da testemunha J..
Factos não provados
1. O despacho do Director de Finanças de (...), datado de 19/02/2016, referente à Ordem de Serviço n.º OI201500101, foi notificado à Impugnante em 06/04/2016.
Facto alegado no artigo 18 da contestação.
2. O despacho do Director de Finanças de (...), datado de 09/09/2016, referente à Ordem de Serviço n.º OI201500100, foi notificado à Impugnante em 15/09/2016.
Facto alegado no artigo 20 da contestação.
3. Os preços praticados em lota são mais baixos do que os preços dos revendedores.
Facto alegado no artigo 67 da P.I..
Motivação da decisão da matéria de facto
Os factos provados resultaram do teor dos documentos constantes dos autos e do P.A., que não foram impugnados, e dos depoimentos prestados pelas testemunhas; conforme referido, em concreto, em cada uma das alíneas do probatório.
Os factos não provados resultaram da ausência de prova (factos não provados 1. e 2.) e da prova do facto contrário (facto não provados 3 versus facto provado na alínea W)).
Foram prestados depoimentos, de forma séria, credível e objectiva pelas testemunhas R. e J..
R., Contabilista certificado na Impugnante e também na sociedade A., confirmou que a Impugnante adquiriu activos à A. (viaturas, empilhador, câmaras frigoríficas, edifício, etc) e que esses bens estão em funcionamento na impetrante e a ser utilizados na sua actividade.
Mais afirmou que, com a venda dos activos, a A. deixou de ter condições para exercer a sua actividade e a Impugnante começou a laborar.
Nas suas palavras, a venda dos activos configurou um “trespasse verbal” e reconheceu que a A. tinha um crédito de I.V.A. e ao invés de pedir o reembolso no seu encerramento, optou por esta solução - por liquidar I.V.A. nas facturas de venda do activo - em vez de lançar mão da não sujeição da operação a imposto, prevista no n.º 4 do artigo 3.º do C.I.V.A..
J., comerciante de peixe, afirmou que a compra de pescado à Docapesca (em lota) pode seguir um sistema de leilão ou de contrato, existindo também a possibilidade de ajustamentos (para cima) do preço contratado.
Mais asseverou que o mercado é volátil e existem situações em que a compra de polvo pode ser mais barata junto de revendedores do que da Docapesca, afirmando ainda que não se pode dizer que os preços praticados em lota são os mais baixos do mercado.”

3.2. DE DIREITO
3.2.1. Do aproveitamento do ato – liquidação de IRC
O Tribunal a quo decidiu anular a liquidação de adicional de IRC do ano de 2014, com base na seguinte fundamentação:
«Da alegada preterição de formalidades legais no procedimento inspectivo
A Impugnante alega que foi notificada do alargamento do âmbito, de parcial para geral, das Ordens de serviço n.ºs OI201500101 e OI20150010[0], em 06/04/2016 e em 15/09/2016, respectivamente, factos que quedaram assentes (cfr alíneas D) e G) dos factos provados).
Entende, contudo, que as Ordens de serviço que foram alargadas são ineficazes, por não terem sido acompanhadas da notificação da fundamentação dos despachos que autorizaram esses alargamentos; o que afecta os actos inspectivos em sede de I.R.C. e determina a anulação da subsequente liquidação adicional.
Vejamos se lhe assiste razão.
O n.º 1 do artigo 15.º do R.C.P.I.T., com a epígrafe “Alteração dos fins, âmbito e extensão do procedimento “, dispõe que:
“Os fins, o âmbito e a extensão do procedimento de inspecção podem ser alterados durante a sua execução mediante despacho fundamentado da entidade que o tiver ordenado, devendo ser notificado à entidade inspeccionada.”. [sublinhado e negrito nossos]
Decorre, assim, de forma inequívoca, porque expressa, a obrigação de notificação ao contribuinte do despacho de alteração do âmbito do procedimento de inspecção.
Ora, no caso em apreço, as Ordens de serviço eram, inicialmente de âmbito parcial, abrangendo apenas a inspecção em sede de I.V.A. (cfr alínea A) dos factos provados).
Posteriormente, no decurso da acção inspectiva, o inspector tributário entendeu que existiam motivos para alargamento do âmbito de parcial para geral, de modo a incluir o I.R.C., emitindo propostas nesse sentido, que vieram a ser acolhidas por despachos do Director de Finanças (cfr alíneas B), C), E) e F) dos factos provados).
Conforme já referido, resulta ainda provado (cfr alíneas D) e G)) que a impetrante foi notificada das Ordens de serviço alteradas (tal como expressamente reconhece na petição), verificando-se que das mesmas consta uma menção à prolação dos referidos despachos nos seguintes termos:
“Altera-se a Ordem de Serviço que lhe foi notificada em 2015/09/28 com os seguintes fundamentos: Alargado o âmbito acção para geral, conforme despacho do DF de 09/09/2016.”
“Altera-se a Ordem de Serviço que lhe foi notificada em 2015/09/28 com os seguintes fundamentos: Alargado o âmbito para Geral por despacho do director de finanças (em substituição) de 19/02/2016.”
Contudo, nada vem mencionado que permita concluir que os referidos despachos, bem como as respectivas propostas em que se estribaram, acompanharam ou foram anexadas/juntas às notificações das Ordens de serviço, não se podendo concluir que a Impugnante tenha sido notificada desses documentos (factos não provados 1. e 2.).
De facto, inexiste qualquer expressão do género “por despacho do Director de Finanças que se junta / que se anexa” que permita concluir que foi dado conhecimento à Impugnante dos fundamentos do alargamento do âmbito da inspecção.
Por outro lado, importa ainda salientar que o facto da impetrante não ter suscitado esta questão no seu direito de audição sobre o Projecto de Relatório de Inspecção Tributária não pode ser assimilado a uma ratificação do acto inspectivo, pois não pode ser olvidado que o direito de audição é um direito de exercício facultativo e o seu não exercício não importa a perda de direitos, nomeadamente de contenciosamente reagirem contra os actos tributários ou em matéria tributária que sejam lesivos dos seus interesses patrimoniais e não hajam sido praticados com observância estrita da lei.
Face ao exposto, não quedando provado que os despachos (e respectivas propostas, das quais consta a fundamentação dos alargamentos do âmbito) foram notificados à impetrante, ter-se-á de concluir que existiu uma omissão de formalidade essencial do procedimento inspectivo, invalidante das correcções referidas no relatório de inspecção, na parte relativa aos alargamentos, ou seja, das correcções à matéria tributável, que originaram a liquidação adicional de I.R.C..
Neste sentido, vide: Acórdãos do S.T.A. de 19/09/2018, proferido no processo n.º 01460/17 e de 15/06/2016, proferido no processo n.º 01101/15.
Face ao exposto, determina-se a anulação da liquidação adicional de I.R.C. n.º 2017 8310028358, do ano de 2014, no montante de € 31.597,28.».
A ATA, aqui Recorrente, sem colocar em causa que a fundamentação do despacho de alargamento do âmbito da ação inspetiva determinada pela OI 201500101 não foi dada a conhecer à Recorrida, entende que não se justificava a anulação da liquidação de IRC impugnada, devendo antes aplicar-se o princípio do aproveitamento dos atos.
Este princípio, de matriz jurisprudencial e já acolhido no novo CPA (subsidiariamente aplicável ao procedimento administrativo, por força do artigo 2.º, alínea d) do CPPT), tem origem no brocardo latino utile per inutile non vitiatur e significa que o vício implicante da invalidade do ato não deve conduzir à sua anulação quando for possível concluir com segurança que, mesmo sendo tal vício inexistente, a decisão seria necessariamente idêntica. Ou, como considerou o STA, «não se justifica a anulação de um acto, (…), quando a existência desse vício não se veio a traduzir numa lesão em concreto para o interessado cuja protecção a norma visa, designadamente, no caso de um vício procedimental, quando a sua ocorrência não teve qualquer reflexo no procedimento administrativo” – cfr. Acórdão de 22/05/2007 do Supremo Tribunal Administrativo, n.º0161/07.».
«Tal princípio habilita o julgador, mormente, o juiz administrativo a poder negar relevância anulatória ao erro da Administração [seja por ilegalidades formais ou materiais], mesmo no domínio dos atos proferidos no exercício de um poder discricionário, quando, pelo conteúdo do ato e pela incidência da sindicação que foi chamado a fazer, possa afirmar, com inteira segurança, que a representação errónea dos factos ou do direito aplicável não interferiu com o conteúdo da decisão administrativa, nomeadamente, ou porque não afetou as ponderações ou as opções compreendidas (efetuadas ou potenciais) nesse espaço discricionário, ou porque subsistem fundamentos exatos bastantes para suportar a validade do ato [v.g., derivados da natureza vinculada dos atos praticados conforme à lei], ou seja ainda porque inexiste em concreto utilidade prática e efetiva para o impugnante do operar daquela anulação visto os vícios existentes não inquinarem a substância do conteúdo da decisão administrativa em questão não possuindo a anulação qualquer sentido ou alcance.» - cfr. Acórdão deste TCAN – secção administrativa, de 05.12.2014, rec. 02171/09.1BEPRT, disponível em http://www.dgsi.pt/jtcn.nsf/89d1c0288c2dd49c802575c8003279c7/2d4d99ef928e1dbf80257e0d00524aae?OpenDocument.
Significa isto que, como se adverte no Acórdão do STA de 20.06.2012, rec. 1013/11, «o tribunal pode não anular um ato inválido por vício de forma quando for seguro que a decisão administrativa não pode ser outra, ou seja, quando em execução do efeito repristinatório da sentença não existir alternativa juridicamente válida que não seja a de renovar o ato inválido, embora sem o vício que determinou a anulação».
O artigo 163.º, n.º 5 do CPA, que positivou este princípio e atualmente define o seu âmbito de aplicação, expressa que «Não se produz o efeito anulatório quando:
a) O conteúdo do ato anulável não possa ser outro, por o ato ser de conteúdo vinculado ou a apreciação do caso concreto permita identificar apenas uma solução como legalmente possível;
b) O fim visado pela exigência procedimental ou formal preterida tenha sido alcançado por outra via;
c) Se comprove, sem margem para dúvidas, que, mesmo sem o vício, o ato teria sido praticado com o mesmo conteúdo.».
No caso, é indiscutível que a Recorrida tomou conhecimento de que foi proferido o despacho de 19/02/2016 (cfr. ponto C) dos factos provados) e que este determinou o alargamento do âmbito do procedimento de inspeção, mas não lhe foi dado a conhecer o teor deste despacho, os seus fundamentos. O vício apontado ao ato de alargamento do âmbito da inspeção realizada a coberto da OI201500101 é, pois, a irregularidade da notificação que, por isso, é deficiente, por falta de notificação dos fundamentos da decisão, o que contende com a eficácia do ato notificando e, já não, com a sua validade.
Estamos, portanto, em face de um vício da notificação que não fere de ilegalidade o ato notificando, limitando-se a obstar à produção dos efeitos visados com a prática deste.
Mesmo que fosse de admitir que o n.º 5 do artigo 163.º do CPA é também aplicável aos vícios respeitantes à eficácia dos atos e não apenas ao regime da invalidade dos atos – o que não temos por certo, desde logo porque a epígrafe deste artigo (“atos anuláveis e regime da anulabilidade”) se insere na secção III, com a epígrafe “Da invalidade do ato administrativo” , o que evidencia bem o seu âmbito de aplicação -, o certo que os autos não evidenciam que “o fim visado pela exigência procedimental ou formal preterida tenha sido alcançado por outra via”, conforme previsto na alínea b), deste n.º 5.
Deve, pois, improceder o recurso nesta parte (conclusões I a X das alegações de recurso) e, na improcedência do único vício que lhe vem apontado nesta parte e inexistência de outros que este Tribunal deva conhecer oficiosamente, deve a sentença ser mantida quanto ao IRC de 2014.

3.2.2. Erro de julgamento quanto à anulação da liquidação de IVA

Alega a Recorrente, em síntese resumida, que ficou demonstrado à saciedade no RIT que a dedução do IVA em causa tem subjacente uma prática abusiva que, à luz da sexta Diretiva e da jurisprudência do TJUE, torna inadmissível tal dedução.
Quanto a esta questão, eis o que foi ponderado na sentença recorrida:
«Do alegado erro nos pressupostos de facto e de direito relativamente à liquidação adicional de I.V.A.
Decorre do Relatório de inspecção que as correcções em sede de I.V.A., no montante de € 25.635,94, resultaram da recusa do direito à dedução do imposto relativo ao 4.º trimestre de 2013, suportado pela impetrante, com base nos seguintes fundamentos:
- a venda/compra de activo fixo tangível à sociedade A. consubstancia uma operação simulada nos seus termos, com o objectivo de transferir para a Impugnante o crédito de I.V.A. que a A. possuía; e
- as facturas que titulam essa operação não foram emitidas sob a forma legal, pois delas consta a liquidação de I.V.A., o que não é correcto pois tratou-se da transmissão da propriedade de uma universalidade de bens, pelo que não estava sujeita a imposto.
A Impugnante não aceita a recusa do direito de dedução, afirmando que a A.T. errou ao considerar que existia uma operação simulada e que o imposto que suportou é dedutível, ainda que se entenda que a operação não estava sujeita a I.V.A..
Vejamos a quem assiste razão.
Nos termos do n.º 3 do artigo 19.º do C.I.V.A., não pode deduzir-se imposto que resulte de operação simulada ou em que seja simulado o preço constante da factura.
Ora, nos termos do n.º 1 do artigo 240.º do C.C., o negócio diz-se simulado se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiro, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante.
São, assim, elementos do conceito de simulação: a intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração, o acordo simulatório e o intuito de enganar terceiros.
Constitui jurisprudência pacífica, reiterada e uniforme, que, quando a liquidação adicional de I.V.A. tem por fundamento o não reconhecimento das deduções declaradas pelo contribuinte, compete à A.T. demonstrar a existência de indícios sérios de que as operações referidas nas facturas foram simuladas.
No caso em apreço, a A.T. não nega a materialidade das aquisições, reconhecendo mesmo a sua existência, questionando apenas o facto de ter sido liquidado I.V.A. na operação.
Para fundamentar a tese da simulação, a A.T. começa por afirmar que a operação de venda do activo configura uma transferência da propriedade de um património subsumível no n.º 4 do artigo 3.º do C.I.V.A. e, por isso, não estava sujeita a I.V.A., mais afirmando que o tratamento dado pelas partes intervenientes, com a liquidação de I.V.A. nas facturas, foi uma forma encontrada para permitir a transferência de um crédito de I.V.A. detido pela A., que estava a ser alvo de inspecção e em riscos de perder esse crédito.
Decorre dos factos provados (alíneas K) e M)) que a compra, pela impetrante, de bens do activo fixo corpóreo foi real e efectiva, estando esses bens a ser utilizados na sua actividade, não tendo sido suscitada qualquer dúvida pela A.T. quanto à veracidade dos preços e das partes intervenientes.
Ademais, a própria natureza do negócio não foi simulada (não existe um negócio simulado e um outro dissimulado), uma vez que não existem dúvidas de que estamos na presença de venda/cessão onerosa de activo.
O que sucede é que, atentos os factos provados (conjugação das alíneas L), M) e N)) essa venda de activo reúne as condições para ser considerada uma cessão de um património susceptível de constituir um ramo de actividade independente, vulgo trespasse, mas esse facto não altera a natureza da operação em si mesma – um trespasse é a venda/cessão de activo, de património.
De facto, a repercussão do facto de estarmos perante um trespasse será ao nível do tratamento da operação em sede de I.V.A., uma vez que não estaria sujeito a imposto, nos termos do n.º 4 do artigo 3.º do C.I.V.A..
Podemos, assim, afirmar que o imposto foi indevidamente liquidado pela A., mas sem que tal liquidação - mesmo tendo sido efectuada com o propósito de utilizar o crédito de I.V.A. da A. (cfr alíneas O) e P) dos factos provados) - possa servir como argumento para qualificar a operação como simulada.
Conclui-se, assim, face a todo o exposto, que a A.T. não reuniu indícios da existência de simulação.
Por outro lado, entende a A.T. que as facturas que titulam a operação não foram emitidas sob a forma legal, pois delas consta a liquidação de I.V.A., o que não é correcto pois tratou-se da transmissão da propriedade de uma universalidade de bens, que não estava sujeita a imposto.
Conclui, assim, que a Impugnante não tem direito à dedução desse I.V.A..
Vejamos.
Constitui jurisprudência unânime dos tribunais superiores que o I.V.A. indevidamente liquidado em factura ou documento equivalente é, não obstante, devido ao Estado, competindo à entidade emitente do documento em causa a sua entrega (cfr resulta ainda da alínea c) do n.º 1 do artigo 2.º do C.I.V.A.).
De facto, só desta forma é que se pode assegurar o princípio da neutralidade do imposto, quer para os intervenientes, quer para o próprio Estado.
A título de exemplo, veja-se o Acórdão do T.C.A. Sul de 04/06/2015, proferido no processo n.º 07111/13 em que se conclui que “(...) cada factura com menção de imposto, constitui um verdadeiro "cheque sobre o tesouro", pois atribui ao destinatário que seja sujeito passivo o direito de deduzir o I.V.A. nela contido. Por isso, a simples menção do I.V.A. em factura (mesmo que porventura descabida, por não haver lugar a imposto naquele caso, por qualquer razão) origine sempre a obrigação de pagar, independentemente da qualidade do emissor, isto é, seja ele ou não um sujeito passivo. Tornar-se-á, pelo simples facto da menção, um "devedor de imposto". Só assim se consegue que ao direito à dedução, que a factura atribui ao destinatário sujeito passivo, corresponda sempre uma obrigação de pagar e se assegure o funcionamento regular do sistema de pagamentos fraccionados em sede de I.V.A.”. [sublinhado e negrito nossos].
No mesmo sentido: Acórdão do S.T.A. de 26/09/2012, proferido no processo n.º 0555/12.
Conclui-se, assim, que o direito à dedução é um instrumento de realização da neutralidade do imposto e, por isso, a dedução do I.V.A. mencionado nas facturas emitidas pela A. não pode ser recusada com base no entendimento de que o imposto foi indevidamente liquidado, em violação do n.º 4 do artigo 3.º do C.I.V.A..
De facto, mesmo nas situações em que há I.V.A. indevidamente mencionado em factura ou documento equivalente está-se a dar início à cadeia de liquidação e dedução do imposto, com todos os efeitos inerentes. E um desses efeitos é a atribuição ao adquirente do direito a deduzir o imposto suportado, verificados que estejam os restantes requisitos legais.3
3 Clotilde Celorico Palma, in “Introdução ao Imposto sobre o Valor Acrescentado”, Almedina, 2005, pág. 66.
Face ao exposto, conclui-se que a recusa de dedução do imposto mencionado nas facturas é indevida e, por outro lado, que a A.T. não demonstrou, como lhe competia, os pressupostos de facto que a legitimaram a emitir a liquidação oficiosa de I.V.A. com fundamento em simulação.
Consequentemente, a liquidação adicional de I.V.A. no montante de € 25.635,94 padece de ilegalidade, determinando-se a sua anulação.».
No relatório da ação inspetiva, consta, sobre esta correção, o seguinte:
«III.2.2. IVA deduzido indevidamente relativo à aquisição [d]e Ativo Fixo
Constam do Anexo II – Fls 4 a 10, diversas faturas que dizem respeito à aquisição de ativo fixo tangível, efectuada pela A-., Lda à empresa A., Lda, (…).
Da consulta desses elementos, e ainda à informação constante das Bases de Dados da AT, verifica-se que a A. transmitiu, em 19-12-2013, à A-., Lda, a quase totalidade do seu ativo fixo tangível, apenas ficando na posse da empresa um veículo automóvel.
A. – (…)
(…) iniciou a sua atividade a 04/08/2005, para o exercício da atividade de “Comércio por Grosso de peixe, Crustáceos e Moluscos” (…), a mesma que exerce atualmente a A-., Lda.
Até 23-08-2013, eram sócios desta empresa (…) A. e A-. (…), também sócios-gerentes da A-., Lda, e ainda (…) A., (…), pai dos restantes sócios. A gerência da A. estava atribuída a este último.
Em 23.08.2013, os Srs A. e A-. venderam as suas quotas ao Sr. A--., ficando este a deter a totalidade do capital da empresa (…).
Entre 19-07-2013 e 26-06-2014, a A. foi objeto de um procedimento de inspeção, onde foram efetuadas correções de elevado montante.
Durante esse período, em 19.12.2013, conforme referido, essa empresa vendeu a quase totalidade do seu ativo fixo tangível à A-., Lda., deixando desse modo de exercer a sua atividade, o que pode ser comprovado através das Declarações Periódicas de IVA entregues poe esta.
Em 09-06-2014, a A. cessou a sua atividade para efeito de IVA e IRC

Transmissão do Ativo Fixo e Início de atividade da A-. e A., Lda

Embora a A.-, Lda tenha iniciado a sua atividade em 18-07-2013, de facto só começou a realizar operações tributáveis em IVA a partir de janeiro de 2014, ou seja, a partir do momento em que passou a ter estrutura para tal, com a aquisição do ativo fixo tangível à A..
Em consulta às bases de dados da AT, nomeadamente ao sistema informático de Gestão do IVA e ainda aos elementos de contabilidade apresentados pela empresa, verificamos que a A-., Lda começou a comprar e vender mercadorias, a partir do momento em que passou a deter meio para exercer a sua atividade, os quais lhe foram conferidos pelas aquisições efetuadas em 19-12-2013, nomeadamente o estabelecimento, viatura, câmaras frigoríficas, empilhador, viveiros, mobiliário de escritório, entre outros bens.
Ao invés, a A., vendendo esses elementos do seu ativo, deixou de poder exercer a sua atividade.

Isto prova que as transmissões tituladas pelas faturas (…) correspondem à transferência da propriedade de uma universalidade (ou parte dela) de bens que significou, para quem a adquiriu (…), a possibilidade de exercício de uma atividade independente.
Nos termos do nº 4 do artigo 3º do CIVA (…).
Assim, não sendo consideradas transmissões de bens, nos termos do Código do IVA, estas transmissões não estão sujeitas a IVA desde que se tratem:
- de cessões a título oneroso ou gratuito;
- de um estabelecimento comercial, da totalidade de um património ou de uma parte dele;
- que seja suscetível de constituir um ramo de atividade independente;
- quando, em qualquer dos casos, o adquirente seja, ou venha a ser, pelo facto da aquisição, um sujeito passivo do imposto.

No caso em análise, verifica-se que todos os pressupostos enunciados se cumprem, o que quer dizer que a A., ao emitir as referidas faturas, deveria fazê-lo sem liquidação de IVA, face ao disposto no nº 4 do artigo 3º do Código do IVA.
Por seu turno, a A-., Lda, no âmbito de uma decisão racional, deveria ter o cuidado de informar a empresa vendedora de que a aquisição desses bens se deveria fazer sem que tivesse de suportar o IVA pois constituía a aquisição de um património que lhe permitia começar a desenvolver a atividade para a qual se inscreveu. Por outro lado, em caso de liquidação de IVA, isso significaria um considerável esforço de tesouraria, completamente escusado, face à não sujeição de que beneficiava a transação.

Mas não foi isso que aconteceu. A A. liquidou IVA nas diversas faturas que emitiu durante o dia 19-12-2013, quando a operação, no seu todo, não está sujeita a Imposto, nos termos do nº 4 do artigo 3º do Código do IVA. Ou seja, esse IVA não deveria ter sido liquidado nem mencionado na Declaração Periódica entregue por esta no mês de dezembro de 2013.

Notificação para prestação de esclarecimentos

(…), a A-., Lda foi notificada para explicar a razão pela qual, sabendo que, por via das aquisições tituladas pelas faturas (…), iria exercer a atividade para a qual se encontra inscrita, permitiu que a A. liquidasse IVA nas referidas faturas (..). Ou seja, porque é que (…) não aproveitou da não sujeição (…)?
Em resposta a essa questão, (…) informou que não aproveitaram da referida isenção, por esta ser de aplicação facultativa (…).

Não concordamos com esta posição. Sendo o nº 4 do artigo 3º do Código do IVA uma norma delimitadora do campo de incidência do imposto, é de aplicação obrigatória. Assim sendo, a A. não deveria ter liquidado IVA, aquando da emissão das faturas que compõem o Anexo II – Fls 4 a 10.

Conclusões – Apuramento de IVA em falta – 4.º trimestre do ano de 2013

Conforme referido, a A., foi objeto de um procedimento de inspeção onde foram efetuadas correções de elevado montante. Esse procedimento (…) decorreu entre 16-07-2013 e 26-06-2014.
Durante o tempo em que decorreu essa ação de inspeção:
- os srs A. e A-. venderam as quotas que detinham na A. (em 23-08-2013);
- os mesmos contribuintes constituíram a A-., Lda, no dia 18-07-2013, sendo, desde essa data, sócios-gerentes da empresa;
- A A. vendeu a quase totalidade do seu ativo fixo à A-., Lda passando o negócio a ser exercido pela segunda;
- à data da venda do património, a A. detinha um crédito de IVA no montante de € 19.984,44 (calculado pela AT – a empresa considerava erradamente o valor de € 29.133,04);
- a liquidação de IVA (no montante global de € 25.635,94), na venda do património, implicou a transferência de crédito de imposto para a esfera da A-., Lda;
- uma vez que a A. tinha em curso um procedimento de inspeção, corria o risco de não poder receber o reembolso desse IVA, em face das conclusões que poderiam surgir do relatório de inspeção;
- sendo assim, transferiu esse crédito para uma empresa recentemente criada (e detida por dois sócios comuns à A.), a qual poderia pedir o reembolso desse valor. De notar que a A-., Lda vende essencialmente para o mercado espanhol, o que a deixa sistematicamente em crédito de imposto;
- para esse efeito, liquidou IVA na transmissão de uma realidade que não estava sujeita a Imposto;
- retirando uma vantagem fiscal, uma vez que, a pedir o reembolso na esfera da A. deveria entregar ao Estado o montante de € 2.436,81, valor que acabou por não ser pago, o que confirma que esta não tinha intenção de pagar qualquer imposto;
- a A-., Lda acabou por pedir, na Declaração Periódica do mês de março de 2015, um reembolso de € 90.000,00, valor que incluía a dedução do IVA indevidamente liquidado pala A., concretizando-se dessa forma a vantagem fiscal pretendida.

De notar ainda que cada fatura, por si só, não configura a transmissão de um património suscetível de constituir um ramo de atividade independente, pelo que, se emitidas isoladamente, haveria, de facto, lugar à liquidação de IVA, em qualquer uma delas. No entanto, no seu conjunto (lembramos que as faturas foram todas emitidas no dia 19-12-2013), constituem a transmissão de um património suscetível de constituir um ramo de atividade independente, o que nos leva à conclusão de que não foi inocente a emissão de diversas faturas para titular a transmissão do referido património, porquanto, dessa forma, estaria justificada, no entender das entidades envolvidas, a liquidação do IVA nesta operação e consequente transmissão do crédito de imposto para a esfera da A-., Lda
Na resposta à notificação constante do Anexo IV, a própria empresa confirma tratar-se da transferência de um património suscetível de constituir um ramo de atividade independente, não aproveitando, de forma consciente, da não sujeição prevista no nº 4 do artigo 3º do Código do IVA.

Assim sendo, verifica-se que o negócio em questão (venda do património da A. (…)), teve como intenção principal, ao ser efetuado nesses moldes (com liquidação de IVA nas diversas faturas emitidas, muito embora a operação, no seu todo, não fosse sujeita a imposto), a obtenção de uma vantagem fiscal, no valor total do IVA liquidado nas faturas (…) (€ 25.635,94), que se consubstancia na faculdade de os intervenientes, através da A-., Lda, terem a possibilidade de receberem um reembolso de IVA que, na esfera da A., seria aplicado em processos de execução fiscal.

Por outro lado, em consulta à contabilidade da A-., Lda, verifica-se que uma parte importante do que deveria ser pago à A. (€ 56.743,54) foi transferido para as contas dos sócios A. e A-. (…). Notificada para explicar o significado desse lançamento, a A-., Lda informou apenas que se tratou de uma transferência da dívida para os sócios, face ao encerramento da A..

Ou seja, os Srs A. e A-. beneficiaram de um crédito sobre a empresa A-., Lda, apenas porque eram sócios da A.! De notar que a A. cessou a sua atividade em 09-06-2014, muito depois do referido movimento contabilístico, datado de 31-01-2014.

Isso demonstra, de facto, as relações especiais entre as duas empresas e os seus sócios e, consequentemente, a facilidade com que puderam simular os termos em que foi realizado este negócio, nomeadamente quanto à liquidação indevida de IVA, sobre uma realidade não sujeita a imposto, (…).

Assim sendo, nos termos do nº 3 do artigo 19º, o imposto liquidado nas faturas constantes do Anexo II – Fls 4 a 10 não é passível de dedução, uma vez que as entidades envolvidas, pretendendo transferir um crédito de imposto da esfera da A. para a esfera de A-., Lda, emitiram 6 faturas relativas a transmissões de bens que, isoladamente estariam sujeitas a IVA e não isentas, mas que, no seu conjunto, constituem uma transferência de um património suscetível de constituir um ramo de atividade independente, não sujeita nos termos do nº 4 do artigo 3º do Código do IVA, simulando dessa forma toda a operação.
Por outro lado, essas 6 faturas, ao conterem a liquidação de IVA numa operação não sujeita, não estão passadas na forma legal, uma vez que das faturas, quando olhadas isoladamente, não se depreende a natureza do negócio (transmissão de um património suscetível de constituir um ramo de atividade independente), o que impede, em última análise, a determinação da correta taxa de IVA a aplicar à operação. Em consequência disso, a A. aplicou erradamente a taxa de 23% à totalidade dos bens vendidos (…), quando, (…), deveria indicar que a transmissão desses bens não estava sujeita a IVA, (…).».
De acordo com esta argumentação da AT, teria ocorrido um negócio simulado que, por força do artigo 19.º, n.º 3, do CIVA, obstava à dedução do imposto mencionado nas faturas.
Mas, como é sabido, nos termos do artigo 240.º, n.º 1, do Código Civil, ocorre simulação quando, cumulativamente, concorram a divergência intencional entre a vontade e a declaração das partes, determinante da falsidade dessa declaração e a intenção de enganar ou prejudicar terceiros – neste sentido, cfr. o acórdão do STJ de 09.10.2003, proc 03B2536, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/03a647624007027580256dea00350e85?OpenDocument.
Porém, no caso em análise, não se vislumbra tal divergência de vontade, pois a A. e a A-. e A., Lda, quiseram, de facto vender e comprar os bens titulados pelas faturas. Assim, não estão reunidos os pressupostos para a simulação do negócio.
A factualidade relatada na RIT pode evidenciar, é certo, a existência de uma prática abusiva – que neste recurso a AT pretende ver reconhecida. Contudo, para esse fim, a AT deveria ter percorrido caminho diferente.
Uma vez que o STA já teve oportunidade de se pronunciar sobre uma questão similar à presente, tendo em vista a aplicação uniforme do direito, atenta a sua clareza e por comodidade de exposição, reproduzimos aqui o seu acórdão de 25/11/2016, rec. 0579/13, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/47535ef3add0630e80257f1600401b71?OpenDocument&ExpandSection=1#_Section1:
«O TJUE, por decisão de 12 de Fevereiro de 2015, proferida no processo C-662/13 declarou que:
“A Directiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, deve ser interpretada no sentido de que não se opõe à aplicação prévia e obrigatória de um procedimento administrativo nacional, como o previsto no artigo 63°, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, no caso de a Administração Tributária suspeitar da existência de uma prática abusiva”.
Perante esta resposta importa então decidir se a Administração Tributária cometeu ilegalidade ao proceder às correcções e liquidação impugnadas sem previamente ter feito uso do procedimento a que alude o ao artigo 63 do CPPT.
(…)
(…) o artigo 38 da LGT, mais concretamente do nº 2 do preceito em causa que assim prescreve:
Ineficácia de actos e negócios jurídicos
1 - A ineficácia dos negócios jurídicos não obsta à tributação, no momento em que esta deva legalmente ocorrer, caso já se tenham produzido os efeitos económicos pretendidos pelas partes.
2 - São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas. (Lei n.º 30-G/2000 de 29 de Dezembro)

Importa ter presente que como se refere in Códigos Anotados & Comentados LGT Lexit pp 98 que a cláusula geral anti abuso contida no artigo 38 da LGT “não é um instrumento subordinado a uma cega arrecadação de receita e que ela só é invocável quando reunidos todos os outros requisitos se demonstre uma intenção inequívoca por parte do legislador de tributar aquele negócio jurídico“.
Ora suspeitando dessa prática abusiva a Administração Tributária tem ao seu dispor um meio processual de verificação, o procedimento consagrado no artigo 63 do CPPT.
E esse procedimento tem de ser obrigatoriamente usado mesmo estando em causa uma situação regulada pelo IVA.
É que a Directiva 2006/112 habilita os Estados Membros a tomarem as medidas necessárias para garantir a cobrança exacta do Imposto e evitar as fraudes mas não concretiza ou especifica nenhuma dessas medidas.
E de acordo com a jurisprudência comunitária designadamente da decorrente dos acórdãos MarK & Spencer C62/00, EU: C 2002.453,nº 34;e ADV Allround, C218/10 EU: C 2012:35, nº 35, arestos referidos a folhas 418 dos autos compete ao ordenamento jurídico de cada Estado Membro a implementação dessas medidas designadamente regular as modalidades de procedimento para combater a fraude ao IVA e simultaneamente assegurar aos particulares os direitos que o direito da União confere, em situação análoga aos procedimentos ou procedimento adoptados nas situações reguladas pelo direito interno o chamado princípio da equivalência com respeito pelo princípio da efectividade que ó de não tornar na prática o exercício dos direitos concedidos pela União impossível ou excessivamente difíceis.
No caso dos autos a instauração do procedimento previsto no artigo 63 do CPPT também aqui de mostrava e mostra obrigatório.
Em primeiro lugar porque a lei não distingue o IVA dos demais impostos e “ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus.”
Depois porque a Directiva do IVA não se opõe à aplicação deste procedimento prévio.
E porque não existindo essa oposição a não aplicação desse meio processual traduziria uma violação das garantias que são dadas aos contribuintes em situações análogas nos restantes impostos quando numa situação de combate à fraude o que seria uma violação injustificada do princípio da igualdade.
E sendo assim e não violando ou restringindo a aplicação da Directiva o procedimento do artigo 63 do CPPT a omissão de procedimento do artigo 63 da LGT constitui ilegalidade que inquina a liquidação impugnada
Efectivamente tendo a AT posto em causa a dedução do IVA com base numa prática abusiva, face ao disposto do artigo 38 da LGT estava a mesma obrigada a previamente a lançar mão do procedimento consagrado no artigo 63 do CPPT que assim dispõe
Artigo 63.º
Aplicação de disposição antiabuso
1 - A liquidação de tributos com base na disposição anti-abuso constante do n.º 2 do artigo 38.º da lei geral tributária segue os termos previstos neste artigo. (Redacção dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro)
2 - (Revogado.) (Redacção dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro)
3 - A fundamentação do projecto e da decisão de aplicação da disposição anti-abuso referida no n.º 1 contém necessariamente: (Redacção dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro)
a) A descrição do negócio jurídico celebrado ou do acto jurídico realizado e dos negócios ou actos de idêntico fim económico, bem como a indicação das normas de incidência que se lhes aplicam; (Redacção dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro)
b) A demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou prática do acto jurídico foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio ou acto com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais. (Redacção dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro)
4 - A aplicação da disposição anti-abuso referida no n.º 1 depende da audição prévia do contribuinte, nos termos da lei. (Redacção dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro)
5 - O direito de audição prévia é exercido no prazo de 30 dias a contar da notificação do projecto de aplicação da disposição anti-abuso ao contribuinte. (Redacção dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro)
6 - No prazo referido no número anterior, poderá o contribuinte apresentar as provas que entender pertinentes.
7 - A aplicação da disposição antiabuso referida no n.º 1 é prévia e obrigatoriamente autorizada, após a audição prévia do contribuinte prevista no n.º 5, pelo dirigente máximo do serviço ou pelo funcionário em quem ele tiver delegado essa competência. (Redacção dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro)
8 - A disposição antiabuso referida no n.º 1 não é aplicável se o contribuinte tiver solicitado à administração tributária informação vinculativa sobre os factos que a tiverem fundamentado e a administração tributária não responder no prazo de 150 dias. (Redacção dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro)
9 - (Revogado.) (Redacção dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro)
10 - (Revogado.) (Redacção dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro).».
No caso vertente, a AT não se propôs aplicar uma norma antiabuso, não efetuou a correção em causa ao abrigo do artigo 38.º da LGT, nem lançou mão do procedimento previsto no artigo 63.º do CPPT. Tanto obsta a que, nesta sede, se declare a existência de uma prática abusiva, pois que não foi com base na existência desta que a AT fundamentou as liquidações adicionais de IVA aqui em crise.
De facto, o contencioso tributário ainda é de mera anulação, incumbindo ao Tribunal, apenas, verificar se a atuação da AT é conforme ao direito, não se podendo substituir à administração, designadamente através da manutenção do ato tributário sindicado com fundamentação diferente da por ela adotada.
Concluímos, pois, que o recurso também tem de improceder nesta parte.

4. DECISÃO
Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento do recurso e manter a sentença recorrida.

Custas a cargo da Recorrente.

Porto, 4 de junho de 2020

Maria do Rosário Pais
António Patkoczy
Ana Patrocínio