Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte | |
Processo: | 00381/21.2BEAVR-S1 |
![]() | ![]() |
Secção: | 1ª Secção - Contencioso Administrativo |
![]() | ![]() |
![]() | ![]() |
Data do Acordão: | 02/24/2023 |
![]() | ![]() |
Tribunal: | TAF de Aveiro |
![]() | ![]() |
Relator: | Maria Fernanda Antunes Aparício Duarte Brandão |
![]() | ![]() |
Descritores: | MINISTÉRIO PÚBLICO; CITAÇÃO; CENTRO DE COMPETÊNCIAS JURÍDICAS DO ESTADO; ARTIGOS 11.°, N.° 1, IN FINE E 25°, N.° 4, AMBOS DO CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS, NA REDACÇÃO CONFERIDA PELA LEI N.° 118/2019, DE 17 DE SETEMBRO; ARTIGO 219°, N.° 1, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA; JUÍZO DE INCONSTITUCIONALIDADE; |
![]() | ![]() |
![]() | ![]() |
Votação: | Unanimidade |
![]() | ![]() |
![]() | ![]() |
Meio Processual: | Acção Administrativa Comum |
Decisão: | Conceder provimento ao recurso. |
![]() | ![]() |
![]() | ![]() |
Aditamento: | ![]() |
Parecer Ministério Publico: | ![]() |
1 | ![]() |
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte: Relatório O Ministério Público, agindo em nome próprio, como defensor da legalidade democrática [artigo 219º, nº 1 da CRP e artigos 2º e 4º, nº 1, al. a) e j) do EMP] e como representante judiciário do Estado Português [artigo 219º, nº 1 da CRP e artigos 2º e 4º, nº 1, al. b) do EMP], não se conformando com o despacho proferido nos autos em 17/11/2021, que indeferiu o requerimento de recusa de aplicação, neste processo, das normas constantes do segmento final do nº 1 do artigo 11º e do nº 4 do artigo 25º do CPTA, na redação da Lei nº 118/2019, de 17.09, por inconstitucionalidade material e indeferiu a requerida declaração de nulidade da falta de citação do réu Estado Português [artigos 188º, nº 1, al. a) e 187º, al. a) do CPC, subsidiariamente aplicáveis], com a consequente anulação de todo o processado posterior à Petição Inicial e a determinação da citação do Estado no Ministério Público, veio do mesmo interpor este Recurso. Alegando, formulou as seguintes conclusões: 1 – A presente ação foi intentada contra o Estado Português, tendo, nos termos do disposto no artigo 25º, nº 4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), a citação do Réu Estado Português sido dirigida unicamente para o Centro de Competências Jurídicas do Estado, e o Ministério Público não foi citado, mas apenas notificado da pendência da mesma, designadamente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 85º, nº 1 do CPTA; 2 – A Lei nº 118/2019, de 17 de Setembro, que entrou em vigor no passado dia 16.11.2019, introduziu no CPTA nova norma acima referida, que estabelece que quando seja demandado o Estado já não é citado o Ministério Público, em representação deste, como até agora sempre esteve consagrado, mas sim o Centro de Competências Jurídicas do Estado, designado por JurisAPP, que é um serviço central da administração direta do Estado, integrado na Presidência do Conselho de Ministros; 3 – Sob a sua aparência puramente procedimental e regulamentar — o que bastaria para a considerar deslocada num diploma sobre processo administrativo —, trata-se de uma norma revolucionária, sobretudo quando conjugada com o disposto na parte final do nº 1 do artigo 11º do CPTA, na redação igualmente conferida pela mesma Lei nº 118/2019; 4 – Com efeito, onde na anterior redação desta norma se previa ―(…) sem prejuízo da representação do Estado Pelo Ministério Público passou, com a referida alteração, a prever-se ―(…) sem prejuízo da possibilidade de representação do Estado pelo Ministério Público, o que transformou numa exceção o que era uma regra, pois o possível tanto é o que pode ser como o que pode não ser vez alguma, sendo que não se vislumbra qualquer possibilidade de o Ministério Público ser eliminado, ao menos potencialmente, da representação do Estado no domínio do contencioso administrativo sem que daí resulte uma flagrante ofensa da primeira proposição do nº 1 do artigo 219º da CRP; 5 – Pelo que, esse conjunto normativo esvazia o essencial da função do Ministério Público nos tribunais administrativos, enquanto representante do Estado-Administração, mostrando-se desconforme ao parâmetro normativo consagrado na primeira proposição do nº 1 do artigo 219º da CRP; 6 – A norma do artigo 219º, nº 1 da CRP configura um imperativo constitucional, a observar pelo legislador ordinário, que contém a regra da atribuição de competência ao Ministério Público para representar o Estado; 7 – Em 1 de Janeiro de 2020 entrou em vigor o novo Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei nº 68/2019, de 27 de Agosto — i.e, menos de um mês antes da publicação da Lei nº 118/2019, de 17 de Setembro, que contém as normas cuja inconstitucionalidade se invoca, que continuou a confiar a representação do Estado ao Ministério Público (artigo 4º, nº 1, al. b)) e a prever a existência de ―um departamento central de contencioso do Estado e interesses coletivos e difusos da Procuradoria-Geral da República‖, o qual passará a intervir também em matéria tributária e não apenas na cível e administrativa (artigo 61º, nº 1 e 2); 8 – A Lei nº 114/2019, de 12 de Setembro, que procedeu à 12ª alteração no ETAF/2002, — i.e., menos de uma semana antes da edição da Lei nº 118/2019, a que pertencem as normas aqui questionadas —, não introduziu qualquer alteração ao disposto no artigo 51º; 9 – A representação do Estado em juízo foi sempre confiada, a nível constitucional e da lei ordinária, ao Ministério Público (com a única exceção da hipótese residual contemplada na parte final do nº 1 do artigo 24º do vigente CPC), estando essa representação, nas áreas cível, administrativa e até tributária, inequivocamente prevista em diplomas recentíssimos e de uma evidente centralidade na conformação dos nossos sistemas jurídico e judiciário; 10 – A norma do nº 1 do artigo 219º da CRP, que confia ao Ministério Público a representação judiciária do EstadoAdministração (central), possui natureza auto-exequível, incondicionada, sem necessidade de densificação pela legislação ordinária, configurando-se como uma intencional e estrutural opção constitucional, em consonância com a tradição jurídica do país; 11 – Tanto o legislador constituinte originário como o derivado ponderaram os atributos do Ministério Público como magistratura dotada de ―autonomia (artigo 219º, nº 2 da CRP), com a sua atuação sempre vinculada a ―critérios de legalidade e objetividade (artigo 3º, nº 2 do EMP) e, em razão desses atributos, confiaram-lhe a tarefa representativa do Estado em juízo, justamente a título de representação e não como advogado, patrono ou mandatário judicial; sendo a representação do Estado nos tribunais por parte do Ministério Público é configurável como um verdadeiro princípio judiciário constitucional, com alcance material; 12 – Porém, em flagrante contradição sistémica e teleológica, a parte final do nº 1 do artigo 11º do CPTA, na redação conferida pelo artigo 6º da Lei nº 118/2019, vem reduzir a representação do Estado por parte do Ministério Público a uma pura eventualidade; 13 – A nova redação limita-se a acrescentar o substantivo ―possibilidade, mas desse modo transforma a regra da ―representação do Estado pelo Ministério Público em exceção, pois o possível tanto é o que pode ser como o que pode não ser vez alguma, não sendo inócuo que o conjunto de alterações legislativas no âmbito da jurisdição administrativa que ocorreram em 2019, de que faz parte aquele preceito, não tenha introduzido, paralelamente, o referido substantivo no artigo 51º do ETAF. 14 – Do confronto da fórmula usada no CPTA (parte final do nº 1 do artigo 11º ―sem prejuízo da possibilidade de representação do Estado pelo Ministério Público) com a acolhida no CPC (artigo 24º, nº 1: ―O Estado é representado pelo Ministério Público, sem prejuízo dos casos em que a lei especialmente permita o patrocínio por mandatário judicial próprio…), resulta segura a conclusão de que, no âmbito do primeiro diploma, a representação do Estado por parte do Ministério Público tem caráter eventual e subsidiário, ao passo que no segundo constitui a regra, só passível de afastamento por lei concreta; 15 – A nova redação do artigo 11º, nº 1, in fine, do CPTA torna meramente eventual e subsidiária a intervenção do Ministério Público como representante do Estado no processo administrativo, pelo que, mesmo numa apreciação isolada, dificilmente a norma se compatibilizaria com o princípio judiciário constitucional da representação do Estado nos tribunais através do Ministério Público, imposta pelo primeiro segmento do nº 1 do artigo 219º da CRP; 16 – A desarmonia dessa norma com a Lex Fundamentalis tornase ainda mais clara quando se proceda à sua interpretação conjugadamente com a do nº 4 do artigo 25º, também aditado pela referida Lei nº 118/20, que estabelece que quando seja demandado o Estado a citação é dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado; 17 – No que se reporta ao Estado, a norma destrói a mais elementar lógica de constituição da instância processual administrativa, visto que, por um lado, o réu Estado-Administração é ―unicamente citado numa entidade que não possui poderes legais para a sua representação em juízo e, por outro, não é citado através do órgão que possui tais poderes, por força de disposição constitucional (e também legal); 18 – Por outro lado, nos termos do artigo 223º, nº 1 do CPC, subsidiariamente aplicável ao contencioso administrativo, a citação das pessoas coletivas — como é o caso indiscutível do Estado-Administração — realiza-se ―na pessoa dos seus legais representantes; 19 – O único representante do Estado em juízo, pelo menos enquanto o Estado não manifestar a vontade de pretender ser patrocinado de outro modo (pressuposta, por necessidade de raciocínio, a validade dessa declaração), o seu ―representante natural é o Ministério Público, em quem deve ser realizada a citação; 20 – O mecanismo implementado pelo nº 4 do artigo 25º, conjugado com a parte final do nº 1 do artigo 11º do CPTA, ambos na redação da Lei nº 118/2019, conduz em linha reta, de forma necessária, a uma presença subsidiária e minimalista do Ministério Público como representante do Estado no processo administrativo; 21 – Acresce que a norma do nº 4 do art.º 25º CPTA, na redação da Lei nº 118/2019, vem atribuir ao Centro de Competências Jurídicas do Estado a competência para coordenar ―os termos da (…) intervenção em juízo do ―serviços a quem aquele entenda ―transmitir a citação, que, no caso dos autos (tal como noutros), não a transmitiu ao Ministério Público, estando sob sua decisão escolher quem vai representar o Estado; 22 – Só um construtivismo artificial e pré-ordenado pode sustentar a legitimidade constitucional da opção do legislador ordinário, creditando-a na faculdade de a Assembleia da República definir a competência do Ministério Público (cfr. artigo 165º, nº 1, al. p) da CRP), pois é verdade elementar que a lei formal também deve obediência ao princípio da constitucionalidade; 23 – Apesar da sua falta de clareza e desarmonia com a arquitetura do sistema processual, resulta do preceito que o dito Centro pode, se e quando lhe aprouver, confiar a representação judiciária do Estado ao Ministério Público — tratado como mero ―serviço administrativo — e coordenar ―os termos da respetiva intervenção em juízo; 24 – Ou seja, o dito Centro passará a decidir, caso a caso, se o Ministério Público representa ou não o Estado, sem que haja qualquer indicação dos critérios que conformam tal decisão, sendo que o teor da norma constitucional constante do artigo 219º, nº 1 da CRP não permite a supressão do Ministério Público como representante do Estado (tal como sucedeu no caso concreto dos autos); 25 – Ao atribuir ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, um serviço central da administração direta do Estado, a competência para proferir decisões que delimitam a intervenção do Ministério Público enquanto representante do Estado, a norma jurídica resultante das disposições conjugadas dos artigos 11º, nº 1 e 25°, n° 4 do CPTA configura, dessa forma, uma inconstitucionalidade material, também por violação ao artigo 165°, n° 1, al. p) da CRP; 26 – A norma em causa prevê que, em vez do Estado, seja citado o referido Centro que transmitirá aos serviços competentes, e, se assim o entender (e quando o entender), a transmitirá ao Ministério Público. No entanto, o Ministério Público não é um serviço do Estado-Administração, mas sim um órgão constitucional da administração da justiça, pelo que o conhecimento da ação – a citação - quando seja demandado o Estado representado pelo Ministério Público não pode deixar de ter lugar no âmbito do contexto jurisdicional; 27 – No que concerne aos ― termos da respetiva intervenção em juízo - a norma ínsita na parte final do novo nº 4 do artigo 25º do CPTA confere à JurisApp competência para coordenar os próprios ―termos da intervenção do Ministério Público quanto a aspetos relativos à técnica do processo; 28 – Desse modo, sai gravemente ofendido o princípio da autonomia (externa) do Ministério Público, consignado no nº 2 do artigo 219º da CRP, degradando-se esta magistratura à condição de mera serventuária subordinada da vontade da Administração; 29 – Em face do exposto, é forçoso concluir que as normas constantes do segmento final do nº 1 do artigo 11º e do nº 4 do artigo 25º do CPTA, na redação da Lei nº 118/2019, de 17.09, são materialmente inconstitucionais, por violação do disposto no artigo 219º da CRP, nº 1, primeira proposição (―Ao Ministério Público compete representar o Estado) e nº 2 (―O Ministério Público goza de (…) autonomia…), violando igualmente o conteúdo material dos princípios e normas constitucionais do artigo 165°, n° 1 da CRP, pelo que são materialmente inconstitucionais, nos termos do artigo 277°, n° 1, da CRP; 30 – E, em consequência, verifica-se a nulidade emergente da falta de citação do Estado, por omissão completa do ato (artigos 188, nº 1, al. a) e 187, al. a) do CPC, aplicáveis ex vi artigo 1º do CPTA), uma vez que o Ministério Público não foi citado. Nestes termos, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, consequentemente, deve o douto despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que determine: a) A recusa de aplicação, neste processo, das normas constantes do segmento final do nº 1 do artigo 11º e do nº 4 do artigo 25º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), na redação da Lei nº 118/2019, de 17.09, por inconstitucionalidade material emergente da violação do parâmetro constante da primeira proposição do nº 1 do artigo 219º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e do nº 2 desta mesma disposição, bem como do conteúdo material dos princípios e normas constitucionais do artigo 165°, n° 1 da CRP; b) E, em consequência, que: - Seja declarada a nulidade da falta de citação do réu Estado (artigos 188, nº 1, al. a) e 187, al. a) do CPC, aplicáveis ex vi artigo 1º do CPTA), com a consequente anulação de todo o processado posterior à Petição Inicial, e - Seja determinada a citação do Estado no Ministério Público. Não foram juntas contra-alegações. X Por Acórdão deste TCAN, de 10/03/2022, foi negado provimento ao recurso. Interposto recurso de revista, o STA não admitiu a revista - Acórdão de 22/9/2022. Interposto recurso para o Tribunal Constitucional, veio a ser proferida decisão, julgando inconstitucionais as normas insertas nos arts. 11.º, n.º 1, in fine e 25.º, n.º 4, ambos do CPTA - na redacção da Lei n.º 118/2019, de 17/09 -, por violação do art.º 219.º, n.º1 da CRP, nos seguintes termos: “a) Julgar inconstitucional o disposto nos artigos 11.°, n.° 1, in fine e 25°, n.° 4, ambos do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, na redacção conferida pela Lei n.° 118/2019, de 17 de setembro, por violação do disposto no artigo 219°, n.° 1, da Constituição da Republica Portuguesa; b) Julgar procedente o recurso, determinando a remessa dos autos ao Tribunal Central Administrativo Norte, a fim de que este reforme a decisão em conformidade com o presente juízo sobre a questão de inconstitucionalidade” - decisão sumária de 09/01/2023. Tendo em consideração o decidido pelo Tribunal Constitucional importa apenas, sem mais, dando cumprimento a este aresto, reformular a decisão no sentido da inconstitucionalidade daquelas normas do CPTA. Desconhecendo, em concreto, este TCA se, no caso dos autos, o M.P. contestou a acção O processado em separado, constante do SITAF, não permite aferir da tramitação da acção. e assim assumiu efectivamente a representação do Estado, deverá a 1ª instância, aferir da necessidade da repetição (ou não) da citação e subsequente tramitação - cfr., neste sentido, a decisão sumária do Trib. Const. n.º 15/2023 in Proc. 984/2022, de 9/1/2023 e o decidido nestes autos. Decisão Termos em que se acorda, na sequência do juízo de inconstitucionalidade decidido pelo Tribunal Constitucional, em conceder provimento ao recurso, revogar a decisão do TAF de Aveiro e ordenar a baixa dos autos à 1ª instância para aferir da utilidade (ou não) da repetição da citação e subsequente tramitação. Sem custas. Notifique e DN. Porto, 24/02/2023 Fernanda Brandão Hélder Vieira Alexandra Alendouro |