Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00440/04
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:10/15/2009
Relator:Francisco Rothes
Descritores:IEC - IABA - PERDAS - VAREJO
Sumário:I - Porque se trata de uma questão do conhecimento oficioso, o facto de o impugnante só em sede de alegações pré-sentenciais (previstas no art. 120.º do CPPT) ter invocado uma questão de inconstitucionalidade não contende com o princípio da estabilidade da instância (cf. art. 286.º do CPC) e impõe o conhecimento da questão ao tribunal, sob pena de a sentença incorrer em nulidade por omissão de pronúncia (art. 125.º do CPPT).
II - As normas dos arts. 7.º, n.º 1, e 37.º, n.º 2, do CIEC, interpretadas no sentido de que as perdas verificadas se consideram introdução em consumo (a determinar a liquidação de IABA) não conflituam com o princípio da capacidade contributiva decorrente dos arts. 103.º e 104.º da CRP, pois, por um lado, a lei estipula franquias para as perdas em função das condições de produção, armazenagem e circulação (cf. arts. 38.º a 40.º do CIEC) e só são tributáveis as perdas que excedam as franquias aplicáveis e, por outro lado, também estipula que as perdas devidas a caso fortuito ou de força maior beneficiam de franquia sem qualquer limite (art. 41.º do CIEC).
III - O julgamento da matéria de facto deve incidir exclusivamente sobre factos (que relevem para a decisão, à luz das diversas soluções jurídicas plausíveis – art. 511.º do CPC) e não sobre conclusões, sobretudo se estas, por si só, determinam a sorte da causa.
IV - O art. 60.º, n.º 3, da LGT dispensa nova audiência do interessado antes da liquidação nos casos em que já tenha sido ouvido em fase anterior do procedimento, salvo se a Administração invocar factos novos sobre os quais ainda não se tenha pronunciado.
V - Assim, não há que assegurar nova audiência quando a AT não acolhe na totalidade, mas apenas em parte, a argumentação aduzida pelo contribuinte quando do exercício do direito de audição e não invoca facto novo algum.
VI - A fundamentação destina-se, essencialmente, a dar a conhecer ao contribuinte as razões de facto e de direito que estiveram na prática do acto, sendo que a exigência de densificação daquele discurso varia em função do tipo de acto e da participação ou não do contribuinte no procedimento da sua formação, sendo que a sua suficiência tem como pedra de toque a possibilidade de opção conscienciosa entre o acatamento e a reacção contra o acto.
VII - Demonstrado que ficou que o varejo efectuado pela Administração alfandegária ao depósito do contribuinte não observou as regras técnicas para determinação do grau alcoólico das bebidas, deve considerar-se comprometido o resultado obtido, a menos que fique demonstrada a irrelevância daquelas deficiências, sendo que a falta desta demonstração deve ponderar-se processualmente contra a Administração, de acordo com as regras da distribuição do ónus da prova consagradas no art. 74.º da LGT.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:1. RELATÓRIO

1.1 A Administração alfandegária, na sequência de uma fiscalização à “Adega Cooperativa ” (adiante Contribuinte, Impugnante ou Recorrente), considerou, após aplicação de uma franquia para perdas, que existia uma divergência entre o saldo contabilístico e as existências físicas de aguardente em entreposto, motivo por que procedeu à liquidação a posteriori de Imposto sobre o Álcool e Bebidas Alcoólicas (IABA), no montante de € 24.724,13.

1.2 A Contribuinte impugnou essa liquidação, pedindo ao Juiz do Tribunal Tributário de 1.ª instância de Braga que a anulasse, invocando como fundamentos a «violação do direito de audição», a «não fundamentação» e a «ilegalidade da liquidação» (() As partes entre aspas e com um tipo de letra diferente, aqui como adiante, constituem transcrições.).
Alegou a Impugnante, em síntese, o seguinte:
– no âmbito do exercício do direito de audição, esclareceu que a diferença entre o saldo contabilístico e as existências físicas de aguardente não se devia a qualquer introdução no consumo, mas a perdas decorrentes do processo de produção (envelhecimento em cascos de carvalho), sendo que essa argumentação foi levada em conta pela Administração, mediante a aplicação de uma franquia, mas apenas quanto à última campanha, sendo que, relativamente ao «facto de apenas poder ser considerada a franquia relativamente ao último ano» não foi dada à Contribuinte a possibilidade de exercer o direito de audição, como o impunha o art. 60.º, n.º 1, alínea a), da Lei Geral Tributária;
– o relatório final da inspecção e a decisão de liquidação enfermam de várias deficiências ao nível da fundamentação, quer por do respectivo texto não resultar o motivo da referida discrepância (perdas tributáveis, introdução no consumo ou outro) nem o dispositivo legal ao abrigo do qual foi feita a liquidação, quer por os valores constantes da liquidação não encontrarem correspondência com os valores apurados pela Administração;
– o varejo por que foi apurada a aludida divergência não foi efectuado correctamente, não se tendo usado as técnicas e ferramentas adequadas quer na verificação das quantidades quer no apuramento do grau alcoólico;
– por outro lado, não aceita que apenas se releve a franquia relativa ao último ano de campanha e não as franquias relativas às campanhas desde 1996/1997 – tanto mais que a Contribuinte, por lapso, não actualizou na contabilidade as perdas decorrentes do processo de envelhecimento das aguardentes – e, pelo menos em parte, a relativa à campanha em curso na data da inspecção;
– acresce que a franquia foi calculada com base em valores errados, existindo discrepância entre os valores utilizados na liquidação e os que foram apurados pela Alfândega de Braga.

1.3 A Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga (() Entretanto, o Tribunal Tributário de 1.ª instância de Braga foi extinto, tendo-lhe sucedido na respectiva competência o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.) proferiu sentença no sentido da improcedência da impugnação judicial.

1.4 Inconformada com essa sentença, a Impugnante dele interpôs recurso para este Tribunal Central Administrativo Norte, que foi admitido, a subir imediatamente nos próprios autos e com efeito devolutivo.

1.5 A Impugnante apresentou as alegações de recurso, que resumiu em conclusões do seguinte teor:
«
I. A Liquidação objecto de impugnação padece um vício de forma, já que não foi dada oportunidade à Recorrente de exercer o seu direito de audição prévia;
II. O facto de apenas ter sido considerada na referida liquidação a franquia relativa à última campanha é um facto novo, em relação ao qual não foi dada à Recorrente a oportunidade de exercer o seu direito de audição prévia assim se violando o art. 60º, nº 3, da LGT;
III. O acto tributário de liquidação não se encontra fundamentado de acordo com as exigências legais;
IV. Antes do mais, não é perceptível em que norma de incidência é que a Administração tributária funda a liquidação;
V. Por outro lado, o Relatório menciona valores distintos ao longo das suas páginas;
VI. Assim, o Relatório e, consequentemente, a liquidação são imperceptíveis para o destinatário normal em virtude da deficiente fundamentação;
VII. Em consequência, a liquidação é anulável por padecer de um vício de forma, tendo a sentença recorrida violado o art. 77º da LGT;
VIII. O varejo que fundamentou a liquidação padeceu de diversas deficiências, com necessária interferência nos resultados do mesmo;
IX. Não compete à Recorrente provar em que exacta medida é que as deficiências do varejo interferiram nos resultados, já que o varejo é invocado para sustentação do direito da Administração Tributária;
X. Mesmo que assim não se entenda, resulta da prova produzida fundada dúvida sobre a existência do facto tributário;
XI. A sentença recorrida violou os arts. 74º da LGT e 100º do CPPT;
XII. Não tem razão o Juiz [do Tribunal] a quo ao entender que a franquia de imposto por perdas apenas é aplicável ao último ano de campanha;
XIII. A Recorrente entende que as franquias devem ser aplicáveis aos anos em que não foram contabilizadas perdas, pois tal não contabilização deve-se a um lapso da Recorrente, pelo que a mesma não deve ser prejudicada pelo mesmo;
XIV. Não deveria ter sido dado por não provado que a discrepância entre o saldo contabilístico [e as existências] se devia ao facto de a Recorrente não ter actualizado a contabilidade com as perdas, já que os depoimentos das Testemunhas António Pedro Guimarães Ponte e Maria Albina Ferreira impõem decisão diversa da recorrida;
XV. Ao ter decidido pela não aplicação das franquias desde a campanha de 1996/1997, a sentença recorrida violou o art. 37º do CIEC, já que não existem razões de facto ou de direito que se oponham ao entendimento da Recorrente;
XVI. A sentença recorrida é nula por omissão de pronúncia, já que não se pronunciou, quando devia fazê-lo, sobre a questão da inconstitucionalidade suscitada pela Recorrente;
XVII. A interpretação dos arts. 7º e 37º do CIEC no sentido de permitirem a tributação por simples discrepância entre a contabilidade e as existências, assim se tributando um facto inexistente, terá de ser considerada inconstitucional por violação dos arts. 103º e 104º da CRP, dos quais decorre o princípio da capacidade contributiva, sendo a liquidação, em consequência, nula.

Neste termos e demais de direito, deverá o presente recurso ser considerado procedente, assim se fazendo Justiça».

1.6 A Fazenda Pública (() Aqui representada pelo Director da Alfândega de Braga.) não contra alegou.

1.7 Recebidos os autos neste Tribunal Central Administrativo Norte, foi dada vista ao Ministério Público e a Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que deve ser negado provimento ao recurso.

1.8 As questões sob recurso são as de saber:
1.ª - se a sentença enferma de nulidade por omissão de pronúncia sobre a invocada inconstitucionalidade (cf. conclusão com o n.º XVI); na afirmativa,
2.ª - se se os artigos 7.º e 37.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo (CIEC), se interpretados no sentido de que a discrepância entre a contabilidade e as existências permitem a tributação da diferença violam os arts. 103.º e 104.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), que consagram o princípio da capacidade tributiva, por permitirem a tributação de um facto inexistente (cf. conclusão com o n.º XVII);
3.ª - se o Tribunal a quo fez errado julgamento de facto, ao dar como não provado que a discrepância entre o saldo contabilístico e as existências se devia ao facto de a Contribuinte não ter actualizado a contabilidade com as perdas (cf. conclusão com o n.º XIV);
4.ª - se o Tribunal fez errado julgamento de direito
· quando considerou que não foi violado o direito de audição prévia (cf. conclusões com os n.ºs I e II);
· quando considerou não verificado o invocado vício de falta de fundamentação (cf. conclusões com os n.ºs III a VII);
· quando considerou irrelevantes as invocadas deficiências do varejo e que recaía sobre a Contribuinte o ónus de demonstrar em que medida essas deficiências interferiram nos resultados (cf. conclusões com os n.ºs VIII e IX) ou, pelo menos,
· quando não deu como verificada a fundada dúvida sobre a existência do facto tributário (cf. conclusões com os n.ºs X e XI);
· quando considerou que a franquia de imposto por perdas apenas é aplicável ao último ano de campanha e não a todos anos em que, por lapso, não foram contabilizadas perdas (cf. conclusões com os n.ºs XII e XIII).

* * *
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1 DE FACTO
2.1.1 Na sentença recorrida o julgamento de facto foi efectuado nos seguintes termos:
«Pelos documentos juntos aos autos, não impugnados, bem como do depoimento das testemunhas inquiridas e com relevância para o caso, considero provados os seguintes factos:
1. Na sequência da inspecção realizada pela Alfândega de Braga, em 28.6.2001, foi efectuada liquidação nº 2003/900.017, de 13.02.03, no valor de 24 724,13 €;
2. A impugnante procedeu ao seu pagamento em 20.03.2003;
3. Em 28.06.02 a Alfândega de Braga procedeu a uma acção de fiscalização à impugnante com o objectivo de verificar se estava a ser cumprido por esta o regime fiscal aplicável às bebidas alcoólicas (CIEC);
4. A impugnante é titular do estatuto fiscal de depositário autorizada com o n.º 1 500 305 919, com os entrepostos fiscais de produção nº 39914141, em Ponte da Barca e nº 39951683, em Arcos de Valdevez;
5. A actividade fiscalizadora consistiu num varejo ao entreposto de Ponte da Barca, para a inventariação física dos produtos sujeitos à taxa de IEC, em regime de suspensão;
6. A impugnante não apresentou contabilidade actualizada das existências em sistema de inventário permanente, com a indicação da sua proveniência, destino e elementos relevantes para a liquidação do imposto;
7. A impugnante forneceu aos serviços de inspecção inventário reportado a 31.12.2001, no qual constava, 30 900 litros de aguardente vínica a granel no entreposto, sem indicação do teor alcoólico;
8. Para contabilização das existências em armazém a Alfândega tomou como referência a quantia de 443,60 hl de aguardente vínica a granel constante da Declaração de Produção de Aguardente, Campanha de 2001/2002, apresentada pela Impugnante à CVRVV (Comissão de viticultura da Região dos Vinhos Verdes) e que na ocasião foi mostrada aos funcionários da Alfândega que realizaram o varejo;
9. Feito o confronto entre o saldo contabilístico e o resultado do varejo, a Alfândega constatou que estavam em falta, nas existências físicas em armazém, 114,03 hl (a que correspondem 34,74 grau/hl) de aguardente vínica a granel;
10. Foram recolhidas amostras para medição do teor alcoólico em alguns dos cascos;
11. O alcoómetro não estava calibrado nem possuía certificado de calibração válido;
12. As leituras obtidas no alcoómetro não foram objecto de correcção de temperatura;
13. Em 10.10.2002, foi a impugnante notificada do Projecto de conclusões do Relatório para se pronunciar sobre o mesmo;
14. Em 21.10.2002, a impugnante exerceu o seu direito de audição;
15. Em sede de Relatório Final, elaborado em 07.11.2002, foram introduzidas alterações, provocadas pelas alegações da impugnante;
16. Em consequência, foi decidido aplicar uma franquia de 5%, devido às perdas ocorridas no produto, contido em vasilhas de madeira, saldando-se então a diferença em 28,78gr/hl;
17. O valor de 28,78 gr/hl deu origem a liquidação do imposto no montante referido em 1;

Alicerçou-se a convicção do Tribunal, quanto aos factos provados, na consideração e confronto dos documentos de fls. 14 a 72 dos autos (correspondentes aos existentes no processo administrativo apenso) bem como pelo teor das declarações das testemunhas inquiridas (fls. 95 a 101), e os colhidos pela administração fiscal e constantes do processo administrativo apenso.

FACTOS NÃO PROVADOS
1. As diferenças entre o saldo contabilístico e as existências reais eram devidas ao facto da impugnante não ter actualizado a contabilidade com perdas decorrentes do processo de envelhecimento das aguardentes.
2. O grau alcoólico apurado durante o varejo não correspondia ao valor real.
3. Que as existências, durante o varejo, tenham sido quantificadas por toques manuais nos cascos».

2.1.2 Para além da referida matéria de facto, a sentença, se bem que já na parte respeitante à subsunção jurídica, deu ainda como assentes os seguintes factos, com relevo para a decisão e que, por uma questão de método, entendemos deixar aqui referidos, sendo a numeração (que visa intercalar a matéria nos lugares próprios) e a redacção (na parte em que não estiver entre aspas e que, apesar de diversa na forma, é idêntica na substância) da nossa autoria:

13-a. No ponto 7.5 do projecto de conclusões, a fls. 39 dos autos, refere-se: «[…] e nos termos do disposto no n.º 1, e nº 4 do artº 7º do CIEC aprovado pelo Dec-Lei nº 566/99 de 22 de Dezembro foi efectuado o cálculo da dívida em sede de IABA, com as taxas em vigor à data da exigibilidade prevista no artº 57º do mesmo diploma»;

14-a. Na carta por que exerceu o seu direito de audição, a Contribuinte alegou «que as diferenças apuradas entre o saldo contabilístico e as existências derivam de perdas por absorção e evaporação durante o processo de envelhecimento, fazendo referência, ao despacho Normativo nº 42/2000, o qual consigna para tal redução uma percentagem volumétrica anual de 5%»;

15-a. Nesse relatório «foram considerados parcialmente os argumentos apontados no ponto 7 da carta da Impugnante, relativos ao ponto nº 8 do Projecto de Conclusões»;

15-b. No ponto n.º 8 do mesmo relatório «foi relevada a taxa de 5% para as aguardentes sujeitas a processo de estágio (envelhecimento) em vasilha de madeira até à capacidade de 950 litros, sendo considerada somente a franquia relativamente ao último ano de campanha agrícola»;

15-c. No ponto 7.5 do mesmo relatório, a fls. 58 dos autos, ficou referido: «[…] e nos termos do disposto no n.º 1, e nº 4 do artº 7º do CIEC aprovado pelo Dec-Lei nº 566/99 de 22 de Dezembro foi efectuado o cálculo da dívida em sede de IABA, com as taxas em vigor à data da exigibilidade prevista no artº 57º do mesmo diploma»;

15-d. No ponto n.º 9, item 8 do mesmo relatório refere-se que a diferença apurada entre o saldo contabilizado e as existências: «corresponde a 24,86 hectolitros de álcool».

2.1.3 A Recorrente põe em causa o julgamento de facto efectuado pela 1.ª instância, designadamente quando nesta se deu como não provado que as diferenças entre o saldo contabilístico e as existências reais eram devidas ao facto de não ter actualizado a contabilidade com perdas decorrentes do processo de envelhecimento das aguardentes.
Sobre o registo efectuado pelo Tribunal a quo sob os pontos 1 e 2 dos “factos não provados”, impõe-se dizer que se nos afigura não ser possível levar ao probatório – para dar como provado ou, tal como o fez a sentença, como não provado – que “as diferenças entre o saldo contabilístico e as existências reais eram devidas ao facto da impugnante não ter actualizado a contabilidade com perdas decorrentes do processo de envelhecimento das aguardentes” e que “o grau alcoólico apurado durante o varejo não correspondia ao valor real”. Desde logo, porque não se trata de factos, mas de conclusões que, se provadas, poderiam por si só determinar a sorte da impugnação judicial e que só poderão extrair-se em face dos factos concretos que permitam, por um lado, estabelecer o modo como foram apuradas as existências na contabilidade e no procedimento de liquidação (assim se revelando o motivo da divergência) e, por outro, determinar o grau alcoólico real.
Por isso, e ao abrigo dos poderes que nos são conferidos pelo art. 712.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável subsidiariamente ex vi da alínea e) do art. 2.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), decidimos expurgar dos factos não provados as referidas conclusões.
Já saber se a impugnante actualizou ou não a contabilidade com as perdas decorrentes do processo de envelhecimento das aguardentes constitui inegavelmente um facto e porque interessa à decisão da causa, à luz das diversas soluções jurídicas plausíveis (() Designadamente a sustentada pelo Impugnante.), cumpre sobre o mesmo efectuar julgamento (cf. art. 511.º do CPC).
Sobre o mesmo pronunciar-nos-emos adiante, se for caso disso, isto é, se a resposta dada às questões que sobre ela logram precedência ainda o justificar.

2.1.4 Nos termos do art. 712.º do CPC, com base nos elementos documentais juntos aos autos, aditamos também ao probatório a seguinte factualidade, que se nos afigura imprescindível para a decisão:

15-e. No ponto 8 ainda do mesmo relatório a Alfândega de Braga elaborou um quadro explicativo do cálculo do imposto, sendo aí referida, como quantidade sujeita a imposto, 28,78 hectolitros (cf. fls. 59).
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2.2 DE FACTO E DE DIREITO
2.2.1 DA OMISSÃO DE PRONÚNCIA
A Recorrente arguiu a nulidade da sentença por omissão de pronúncia sobre a invocada inconstitucionalidade dos arts. 7.º e 37.º do CIEC quando interpretados no sentido de que a simples verificação de uma discrepância entre a contabilidade e as existências permite a tributação, interpretação que diz ser a subjacente à liquidação impugnada. Alega que, apesar de ter invocado essa questão nas suas alegações pré-sentenciais (previstas no art. 120.º do CPPT), a sentença não se pronunciou sobre ela.
É sabido que o tribunal tem a obrigação de se pronunciar sobre todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação e cuja apreciação não tenha ficado prejudicada, sendo a omissão de pronúncia a nulidade correspondente à falta de cumprimento desse dever (cf. o art. 125.º do CPPT, e os arts. 660.º, n.º 2, e 668, n.º 1, alínea d), do CPC).
Assim, pese embora a questão da constitucionalidade não tenha sido invocada na petição inicial – que é o momento processual próprio para se exporem os factos e as razões de direito que fundamentam o pedido (cf. art. 108.º, n.º 1, do CPPT) –, porque estamos perante questão do conhecimento oficioso, afigura-se-nos que podia a Impugnante, sem pôr em causa o princípio da estabilidade da instância (cf. art. 286.º do CPC), invocá-la, como fez, antes da sentença (() Cf. JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, 5.ª edição, Áreas Editora, 2007, I volume, anotação 6 ao art. 120.º, pág. 858. ), impondo-se, então, ao Tribunal dela conhecer sob pena de nulidade, não por ser do conhecimento oficioso (() No sentido de que a falta de pronúncia sobre questão do conhecimento oficioso que não tenha sido suscitada não constitui nulidade da sentença por omissão de pronúncia apenas podendo eventualmente integrar erro de julgamento, JORGE LOPES DE SOUSA, ob. cit., I volume, anotação 11 ao art. 125 .º, pág. 914. ) mas por ter sido invocada em tempo.
Impunha-se, pois, o conhecimento da questão na sentença ou, pelo menos, a justificação do motivo por que se entendia dela não conhecer. Tal não foi feito. Na verdade, apesar de na sentença se fazer uma detalhada descrição do regime jurídico aplicável, não foi apreciada a referida questão da constitucionalidade, motivo por que é de considerar que não se conheceu questão de que se devia ter conhecido, o que integra a nulidade da sentença por omissão de pronúncia prevista no art. 125.º do CPPT.
Cumpre, pois, conhecer agora da questão, nos termos do disposto no art. 715.º do CPC.
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2.2.2 DA CONSTITUCIONALIDADE DOS ARTS. 7.º E 37.º DO CIEC
A questão de inconstitucionalidade suscitada pela Impugnante é a de saber se os arts. 7.º e 37.º do CIEC, na interpretação que deles foi feita, viola o princípio da capacidade contributiva constitucionalmente consagrado nos arts. 103.º e 104.º da CRP.
Nos termos do n.º 1 do art. 7.º do CIEC, «[o] imposto é exigível em território nacional no momento da introdução em consumo ou da constatação de perdas que devam ser tributadas em conformidade com o presente Código». Por seu turno, o n.º 2 do art. 37.º do mesmo Código dispõe que «[a]s perdas que ultrapassem as franquias concedidas estão sujeitas a imposto, a cobrar à taxa em vigor no território nacional no momento em que ocorreram, devidamente determinado pela autoridade aduaneira ou, eventualmente, no momento em que sejam constatadas». Ou seja, a lei presume que as perdas, na medida em que ultrapassem as franquias concedidas, equivalem a introdução em consumo.
Sustenta a Impugnante, em síntese, que a simples existência de uma discrepância entre o saldo contabilístico e as existências reais não poderá fazer presumir a introdução em consumo, cabendo à AT a prova de que a aguardente teria efectivamente sido introduzida no consumo, sob pena de violação dos arts. 103.º e 104.º da CRP, dos quais decorre o princípio da capacidade contributiva.
É certo que o referido princípio, decorrente dos preceitos constitucionais citados pela Recorrente e intimamente ligado ao princípio da igualdade e às efectivas condições pessoais, impede que alguém seja obrigado a pagar impostos quando não tenha a respectiva capacidade contributiva. No entanto, a nosso ver, os preceitos legais em causa não conflituam com aquele princípio que, aliás, tem a sua origem justificada nos impostos sobre o rendimento.
Prima facie, poderia pensar-se que a constitucionalidade estaria garantida pelo regime instituído pelo art. 73.º da LGT, que veio afastar expressamente, no domínio das normas de incidência, a possibilidade de existirem presunções inilidíveis (() Cf. DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JOSÉ LOPES DE SOUSA, Lei Geral Tributária comentada e anotada, Vislis Editores, 2.ª edição, anotação 1 ao art. 73.º, pág. 305.). No entanto, o âmbito desta norma limita-se às normas de incidência tributária, não abrangendo as normas tributárias de outra natureza (() Idem, anotação 2 ao mesmo artigo.). Ora, a norma do art. 7.º não é, manifestamente (e como, aliás, o Recorrente também afirmou a propósito da falta de fundamentação de direito que arguiu), uma norma de incidência.
A questão, a nosso ver, deve ser vista a outra luz. Para uma correcta análise da questão, impõe-se ter em conta, por um lado, que a lei estipula franquias para as perdas (cf. arts. 38.º a 41.º do CIEC) e que só são tributáveis as perdas que excedam as franquias aplicáveis (art. 37.º, n.º 2, do CIEC). Ou seja, as perdas acima dos limites legalmente fixados (franquias) são tributadas porque se ficciona que os produtos foram introduzidos irregularmente no consumo. O que bem se compreende, pois, a não ser assim, a lei estaria a estimular a fraude. Em bom rigor, não se trata de uma presunção, tal como a lei as define, mas antes de uma ficção legal, processo técnico-legislativo em que «o legislador estabelece que o facto ou situação a regular é ou se considera (como se juridicamente fosse) igual àquele facto ou situação para que já se acha estabelecido um regime na lei» (() BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 16.ª reimpressão, pág. 108. ).
A nosso ver, o facto de não se permitir demonstrar que essas perdas foram superiores às franquias estipuladas legalmente (e que até podem ser ajustadas em face do concreto processo produtivo e de armazenagem, no que se refere a determinados produtos – cf. arts. 38.º, n.º 1, e 29.º, n.º 3, do CIEC) constitui uma opção legislativa perfeitamente legítima, justificada face aos fins prosseguidos (de evitar a fraude) e que, não se demonstrando a falta de razoabilidade das franquias fixadas, em nada contende com o princípio da capacidade contributiva.
Note-se que, para obviar a circunstâncias intoleráveis, em que o contribuinte pudesse ser tributado quando manifestamente as perdas não poderiam imputar-se a introdução em consumo, a lei prevê, como “válvula de escape”, que «As perdas devidas a caso fortuito ou de força maior beneficiam de franquia desde que não tenha havido negligência grave e sejam comunicadas à estância aduaneira competente até ao segundo dia útil imediato ao da sua ocorrência, para efeitos de confirmação e apuramento» (cf. art. 41.º do CIEC).
Ou seja, relativamente às perdas devidas a caso fortuito ou de força maior a lei não estabelece limites para franquias.
Improcede, pois, a invocada inconstitucionalidade.
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2.2.3 DO ERRO NO JULGAMENTO DA MATÉRIA DE FACTO
Alega também a Recorrente que o Tribunal a quo fez errado julgamento de facto, ao dar como não provado que a discrepância entre o saldo contabilístico e as existências se devia ao facto de a Contribuinte não ter actualizado a contabilidade com as perdas. Como deixámos já dito, trata-se de uma conclusão e não de um facto, motivo por que expurgámos essa matéria do elenco dos factos não provados tal como fixado pela 1.ª instância; no entanto, saber se a Contribuinte actualizou ou não a contabilidade com as perdas decorrentes do processo de envelhecimento das aguardentes constitui um facto de interesse para a decisão, à luz das diversas soluções jurídicas plausíveis (cf. art. 511.º do CPC), pelo que se impõe o julgamento do mesmo (cf. ponto 2.1.3).
Na tentativa de desincumbir-se do ónus que sobre ela recaía nos termos do art. 690.º-B, n.º 1, alínea b), do CPC, na redacção aplicável (() A que, depois do Decreto-Lei n.º 307/2007, de 24 de Agosto, corresponde o art. 685.º-B.), a Recorrente apontou que a testemunha António Pedro Guimarães Fernandes Ponte afirmou que nas declarações de existências não era feito qualquer cálculo de perdas e que a testemunha Maria Albina Ferreira afirmou que “apenas em 2002 foram contabilizadas as perdas de aguardente referentes aos anos anteriores desde 1996”.
Lido o registo dos depoimentos (() O depoimento das testemunhas foi reduzido a escrito na acta, por súmula, pelo Juiz do Tribunal Tributário de 1.ª instância de Braga, nos termos do art. 118.º, n.º 2, do CPPT.) das referidas testemunhas, que revelaram conhecimento dos factos e cuja credibilidade não foi posta em causa, confirma-se a alegação da Recorrente, motivo por que, na ausência de qualquer elemento probatório em contrário, admitimos dar como provado que a Contribuinte, antes de 2002, não contabilizou as perdas decorrentes do envelhecimento das aguardentes registadas desde 1996.
Assim, ao abrigo dos poderes que nos concede o art. 712.º do CPC, decidimos aditar ao probatório fixado pela 1.ª instância o seguinte facto, que passará a ter o n.º 18 no elenco dos factos provados: A Contribuinte só em 2002 contabilizou as perdas decorrentes do envelhecimento das aguardentes registadas desde 1996.
Quanto à repercussão que este facto eventualmente assumirá na decisão final (designadamente sobre a possibilidade de as referidas perdas serem levadas em conta para efeitos de justificação da divergência quanto às existências físicas e as reveladas pela contabilidade, sobretudo tendo em conta que a lei inequivocamente – cf. art. 24.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), do CIEC – impunha que se mantivesse actualizada a contabilidade e que nesta se inscrevessem as perdas), dela cuidaremos adiante, se tal se impuser.
*
2.2.4 DO ERRO DO JULGAMENTO DE DIREITO
Passamos agora ao conhecimento dos invocados erros de julgamento de direito, a conhecer pela ordem por que a Recorrente os invocou.
2.2.4.1 DA VIOLAÇÃO DO DIREITO DE AUDIÇÃO PRÉVIA
Alega a Recorrente que a sentença incorreu em erro de julgamento ao considerar que não foi violado o seu direito de audiência (() A lei, ao denominar o direito em causa de “direito de audição” foi manifestamente infeliz.) prévia.
A questão gira em torno de saber se, depois de ter exercido esse direito relativamente ao projecto de conclusões do relatório, no âmbito do qual invocou que se impunha aplicar uma franquia para as perdas decorrentes do processo de envelhecimento das aguardentes, deveria ou não a Administração alfandegária ter-lhe concedida nova possibilidade de se pronunciar, agora sobre a questão da aplicabilidade da franquia apenas ao último ano de campanha.
Segundo a Recorrente, deveria ter-lhe sido concedida a possibilidade de se pronunciar sobre a questão da aplicabilidade da franquia aos diversos anos, o que implicaria notificação para exercer de novo o seu direito de audiência. Isto porque, enquanto ela sustentou sem qualquer restrição temporal essa aplicabilidade, a Administração entendeu que a franquia era aplicável, sim, mas apenas ao último ano de campanha.
Pouco temos a acrescentar ao que ficou dito na sentença, onde a questão foi tratada exaustivamente.
Na verdade, a lei dispensa nova audiência do interessado antes da liquidação nos casos em que já tenha sido ouvido em fase anterior do procedimento, salvo se a Administração invocar factos novos sobre os quais ainda não se tenha pronunciado (cf. art. 60.º, n.º 3, da LGT, na redacção que lhe foi dada pelo art. 13.º, n.º 1, da Lei n.º 16-A/2002, de 31 de Maio, e à qual foi conferido carácter interpretativo pelo n.º 2 do mesmo preceito legal (() O que, atento o disposto no n.º 1 do art. 13.º do Código Civil, afasta qualquer dúvida que pudesse subsistir, em razão do tempo, relativamente à aplicação desta nova redacção.)).
Ora, a questão da aplicação da franquia foi suscitada pela Contribuinte. É certo que sem qualquer restrição quanto ao período da sua aplicação, enquanto a Administração, adoptando um entendimento mais restritivo, a aplicou apenas ao último ano de campanha. Mas, para essa aplicação, a Administração não se socorreu da invocação de qualquer facto novo (() Salvo o devido respeito, da simples leitura da alegação da Recorrente – «O facto de apenas ter sido considerada na referida liquidação a franquia relativa à última campanha é um facto novo» – resulta patente o vício que nele se encerra: não se trata de um facto, mas do resultado de uma interpretação.), mas tão-só de uma diversa interpretação da lei quanto à aplicabilidade das franquias no tempo.
O facto de a Administração não ter acolhido na sua totalidade a tese sustentada pela Contribuinte não lhe impunha que concedesse de novo o direito de audiência. Uma coisa é um facto e outra, bem diversa, é uma divergência de interpretação legal e só relativamente aos factos, quando novos, a lei impõe que seja conferida ao interessado nova possibilidade de se pronunciar antes da decisão final (() Neste sentido, entre outros, os seguintes acórdãos da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
de 26 de Setembro de 2007, do Pleno da Secção, proferido no processo com o n.º 0903/06, publicado no Apêndice ao Diário da República de 16 de Abril de 2008, págs. 214 a 221, e disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/d54a219d95852a15802573750031255e?OpenDocument;
de 23 de Janeiro de 2008, proferido no processo com o n.º 0394/07, publicado no Apêndice ao Diário da República de 30 de Maio de 2008, págs. 104 a 108, e disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/6a7c9831a6a9474a802573e00036e518?OpenDocument.).
O recurso não pode ser provido com esse fundamento.

2.2.4.2 DA FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
A Impugnante invocou na petição inicial o vício de forma por falta de fundamentação da liquidação, quer por do texto do relatório final não decorrer qual o dispositivo legal por que foi feita a liquidação, quer por existirem diversas incongruências quanto aos valores referidos ao longo do relatório, estas a determinarem a ininteligibilidade da fundamentação.
A sentença considerou que a liquidação estava devidamente fundamentada, de direito e de facto. De direito porque «o Projecto de Conclusões», bem como o «Relatório Final» da inspecção deram a conhecer à Contribuinte qual a norma legal em que se funda a liquidação: o art. 7.º do CIEC, bem como que as taxas aplicadas tinham sido determinadas de acordo com o art. 57.º do mesmo diploma.
Como a doutrina e a jurisprudência têm vindo a salientar, há uma pluralidade de razões a impor a exigência da fundamentação dos actos administrativos e «que vão desde a necessidade de possibilitar ao administrado a formulação de um juízo consciente sobre a conveniência ou não de impugnar o acto, até à garantia da transparência e da ponderação da actuação da administração e à necessidade de assegurar a possibilidade de controlo hierárquico e jurisdicional do acto» (() DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JOSÉ LOPES DE SOUSA, ob. cit., anotação 2 ao art. 77.º, pág. 326.).
É hoje também pacífico que a fundamentação tem de obedecer aos requisitos do art. 125.º do Código de Procedimento Administrativo, ou seja, «tem de traduzir-se numa declaração formal, externa ou explícita, ou dito de outro modo, revelada por uma manifestação (declaração) exterior consubstanciada em um discurso de autoria, expresso em um texto, «não bastando que resulte implicitamente da actuação administrativa», acessível ou clara, congruente e suficiente, como hoje expressamente aponta o texto constitucional e constava já antes do art. 1.º do DL n.º 256-A/77, de 17 de Junho, embora o conteúdo de uma fundamentação suficiente varie de acordo com as circunstâncias concretas, entre as quais avultam as do tipo de acto, as da participação e qual a sua extensão ou a não participação dos interessados no procedimento anterior conducente à decisão» (() Acórdão da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 15 de Dezembro de 1999, proferido no processo com o n.º 24.143, publicado no Apêndice ao Diário da República de 30 de Setembro de 2002, págs. 4118 a 4127, com sumário disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/6db0b4a67b9ff6fe802568fc003a17a1?OpenDocument
sendo a citação aí feita de VIEIRA DE ANDRADE, O Dever da Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, pág. 24.).
Essencial é que o discurso contextual, expresso e externado pelo autor do acto dê a conhecer ao seu destinatário, pressuposto este como um destinatário normal ou razoável colocado perante as aludidas circunstâncias, todo o percurso da apreensão e valoração dos pressupostos de facto e de direito que foram a sua motivação orgânica ou, como impressivamente tem vindo desde há muito a referir a jurisprudência, os motivos por que se decidiu num determinado sentido e não em qualquer outro. Como também tem vindo a salientar a jurisprudência, a fundamentação cumpre um papel essencialmente instrumental, pelo que se considera suficiente na medida em que se revele cognoscível para um destinatário normal, habilitando-o a reagir contra o acto.
Não há dúvida de que o acto impugnado se encontra devidamente fundamentado de direito. A Alfândega de Braga indicou claramente qual o preceito legal em que se tinha alicerçado para proceder à liquidação.
É certo que a Recorrente pretende agora que a norma indicada se refere apenas à exigibilidade do imposto, mas a verdade é que, face à referência ao preceito que estipula as condições em que se verifica a exigibilidade do imposto no momento da verificação das perdas, a Contribuinte não teve qualquer dificuldade em descortinar qual a norma de incidência em causa, que ela mesma refere na petição inicial, até para suscitar a sua inconstitucionalidade: o art. 37.º, n.º 2, do CIEC. Aliás, tivesse ela demonstrado a mais pequena dúvida a esse respeito ao longo do procedimento, designadamente quando do exercício do direito de audiência prévia, e por certo a Administração a teria esclarecido.
Questão diferente é saber se a fundamentação aduzida pela Administração legitima ou não a sua actuação. Note-se que «A diferença entre a dimensão formal e a dimensão substancial do dever de fundamentação está […] em que o dever formal se cumpre pela apresentação de pressupostos possíveis ou de motivos coerentes e credíveis, enquanto a fundamentação substancial exige a existência de pressupostos reais e de motivos correctos susceptíveis de suportarem uma decisão legítima quanto ao fundo» (() Cf. VIEIRA DE ANDRADE, O Dever da Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, Almedina, 1991, pág. 239.). Há que distinguir a fundamentação formal da fundamentação substancial: enquanto aquela visa dar a conhecer as razões que determinaram a prática do acto, esta refere-se à base substancial susceptível de o legitimar. É no âmbito da fundamentação substancial, e não da fundamentação formal, que se colocam as questões da existência ou da exactidão dos pressupostos de facto ou de direito do acto. Sendo que a fundamentação, em sentido amplo, inclui ambas as dimensões, formal e substancial, estas não se confundem: enquanto «a formulação dos fundamentos num enunciado linguístico exprime o carácter “público” da decisão, tornando-a acessível à compreensão da comunidade dos destinatários e possibilitando o seu controle (o seu conhecimento crítico) numa dimensão intersubjectiva», «a justificação normativa é exigida pelo carácter jurídico e vinculado do acto, intencionalmente dirigido à satisfação de fins heteronomamente fixados numa ordem de Direito» (() VIEIRA DE ANDRADE, idem, págs. 11/12.).
Ora, quanto à fundamentação substancial, pronunciar-nos-emos adiante.
Quanto à invocada falta de fundamentação de facto, decorrente da alegada ininteligibilidade (() O art. 125.º, n.º 2, do Código de Procedimento Administrativo faz equivaler à falta de fundamentação a adopção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do acto.) face à discrepância de valores indicados no relatório, fácil se torna verificar que tal discrepância resulta de um mero lapso de escrita, como bem salientou a Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga. Salvo o devido respeito, o mesmo resulta patente da mera leitura do relatório final da fiscalização, que esteve na origem da liquidação.
Assim, qualquer destinatário normal, pressuposto como um cidadão com diligência mediana, estaria apto a inteirar-se dos fundamentos factuais da liquidação e dar-se conta que a referida discrepância de valores resultava de mero lapso de escrita.
Não pode, pois, extrair-se desse lapso qualquer argumento a favor de uma pretensa ininteligibilidade decorrente da indicação de valores divergentes.
O recurso não pode, pois, ser provido com base na falta de fundamentação da liquidação.

2.2.4.3 DAS DEFICIÊNCIAS DO VAREJO E DO ÓNUS DE DEMONSTRAR A SUA RELEVÂNCIA NOS RESULTADOS
O recurso vem também motivado no erro de julgamento quanto à relevância das deficiências imputadas ao varejo por que foi apurada a divergência que deu origem à liquidação impugnada.
A Impugnante alegou que no varejo não foram usadas as técnicas e ferramentas adequadas, quer na verificação das quantidades, quer no apuramento do grau alcoólico, o que tudo interferiu nos resultados obtidos.
A sentença deu como provado que «Foram recolhidas amostras para medição do teor alcoólico em alguns dos cascos», que «O alcoómetro não estava calibrado nem possuía certificado de calibração válido» e que «As leituras obtidas no alcoómetro não foram objecto de correcção de temperatura» (cf., respectivamente, itens 10, 11 e 12 dos factos provados), mas entendeu não relevar tais factos como interferindo na quantificação das existências feita pela autoridade administrativa. Isto porque considerou que recaía sobre a Impugnante o ónus de demonstrar «que tais factos interferiram na quantificação das existências, feita pela Alfândega» e «que o grau alcoólico apurado não correspondia ao valor real» e que a Impugnante «[n]ão logrou cumprir este ónus como resulta da factualidade provada».
A Impugnante insurge-se contra esse entendimento, considerando, em síntese, que «[n]ão compete à Recorrente provar em que exacta medida é que as deficiências do varejo interferiram nos resultados, já que o varejo é invocado para sustentação do direito da Administração Tributária» (cf. conclusão com o n.º IX).
A nosso ver, a razão está com a Recorrente, sendo que na sentença se não fez a melhor interpretação e aplicação dos princípios probatórios decorrentes do princípio da legalidade, tal como entendido actualmente, nomeadamente das regras relativas à distribuição do ónus da prova. Vejamos:
A Contribuinte alegou que no varejo não foram usadas as técnicas e ferramentas adequadas e ficou demonstrado que «Foram recolhidas amostras para medição do teor alcoólico em alguns dos cascos», que «O alcoómetro não estava calibrado nem possuía certificado de calibração válido» e que «As leituras obtidas no alcoómetro não foram objecto de correcção de temperatura».
É inquestionável que se trata de deficiências quanto ao modo como deveria ter sido efectuado o varejo: as amostras deveriam ter sido recolhidas em todos os cascos, e não apenas em alguns deles, o alcoómetro devia estar calibrado e possuir certificado de calibração válido e as leituras obtidas deviam ser objecto de correcção de temperatura, como determina a norma portuguesa 2143 de 1987, cuja homologação foi publicada no Diário da República, III série, n.º 218, de 22 de Setembro de 1987.
Fica assim demonstrado que o varejo não cumpriu com as regras técnicas que se lhe impunham. Salvo o devido respeito, não faz sentido exigir-se à Impugnante que demonstre que essas falhas se repercutiram na quantificação das existências.
A imposição de regras técnicas para a determinação do grau alcoólico das bebidas alcoólicas e espirituosas tem como escopo garantir a máxima fiabilidade dos resultados. Não sendo respeitadas essas regras, esta fica inexoravelmente comprometida, pois os resultados obtidos não dão garantias de serem os reais.
A Administração está, pois, obrigada a respeitar essas regras quando, no âmbito das suas funções de fiscalização, houver de determinar o grau alcoólico desse tipo de bebidas. Assim, nada justifica que se faça recair sobre o contribuinte, que não é de modo algum responsável pelo incumprimento das regras técnicas, o ónus da demonstração de que do desrespeito das mesmas resultou erro na determinação do grau alcoólico. Aliás, como bem salienta a Recorrente, essa tarefa poderia mesmo revelar-se impossível, por incapacidade de reproduzir o varejo em condições idênticas àquelas em que foi levado a cabo.
Sendo a Administração quem invoca o resultado do varejo para legitimar a liquidação a posteriori ora impugnada, é ela que tem de demonstrar a fiabilidade desse resultado. Ou seja, face ao incumprimento das regras técnicas para determinação do grau alcoólico, deverá ser a Administração a demonstrar que, não obstante essas deficiências, o resultado obtido é correcto (o que, aliás se afigura como tarefa muito difícil). E, se os factos dados como provados o não permitirem, é contra ela que deve ser valorada processualmente a questão, de acordo com as regras do art. 74.º, n.º 1, da LGT.
O que bem se justifica, de acordo com a ponderação de interesses, baseada em regras de normalidade, que deve presidir e justifica a repartição do ónus da prova. É quem efectua o varejo que deve zelar pela observação das regras técnicas e que está em condições demonstrar que tais regras foram observadas; é quem efectua o varejo que deve responder pela fiabilidade do resultado obtido. A jurisprudência invocada na sentença não suporta, de modo algum, a tese aí sustentada (() Quanto ao acórdão da Secção do Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo referido, de 17 de Junho de 2003, proferido no processo com o n.º 04909/01, que pode ser consultado na íntegra em
http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/85896cb1172c3b1d80256d49003888c2?OpenDocument,
o mesmo não se refere de modo algum à questão em referência, que é a de saber se recai sobre o impugnante o ónus de demonstrar que as deficiências do varejo interferiram nos resultados do mesmo.
Quanto ao acórdão do Supremo Tribunal Administrativo mencionado como «Proc nº 1899/99 de 20.11.2001», não o conseguimos encontrar na base de dados da Direcção-Geral dos Serviços Informáticos (presumimos que seja a esta que a sentença refere e que a menção www.dgci.pt, ao invés de www.dgsi.pt se deve a mero lapso de escrita), quer fazendo a busca por número do processo quer por data.).
Demonstrado que ficou o incumprimento das referidas regras técnicas e não se tendo demonstrado que daí não resultou prejuízo para os resultados obtidos, somos levados a concluir, pela aplicação do art. 74.º, n.º 1, da LGT, que a liquidação enferma de ilegalidade por falta de demonstração dos factos que a poderiam legitimar.
Face à resposta dada a esta questão, entendemos que a sentença não se pode manter, motivo por que, a final, a revogaremos e julgaremos a impugnação judicial procedente, anulando a liquidação impugnada, o que tudo determina que fique prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pela Recorrente.
*
2.2.5 CONCLUSÕES
Preparando a decisão, formulam-se as seguintes conclusões:
I - Porque se trata de uma questão do conhecimento oficioso, o facto de o impugnante só em sede de alegações pré-sentenciais (previstas no art. 120.º do CPPT) ter invocado uma questão de inconstitucionalidade não contende com o princípio da estabilidade da instância (cf. art. 286.º do CPC) e impõe o conhecimento da questão ao tribunal, sob pena de a sentença incorrer em nulidade por omissão de pronúncia (art. 125.º do CPPT).
II - As normas dos arts. 7.º, n.º 1, e 37.º, n.º 2, do CIEC, interpretadas no sentido de que as perdas verificadas se consideram introdução em consumo (a determinar a liquidação de IABA) não conflituam com o princípio da capacidade contributiva decorrente dos arts. 103.º e 104.º da CRP, pois, por um lado, a lei estipula franquias para as perdas em função das condições de produção, armazenagem e circulação (cf. arts. 38.º a 40.º do CIEC) e só são tributáveis as perdas que excedam as franquias aplicáveis e, por outro lado, também estipula que as perdas devidas a caso fortuito ou de força maior beneficiam de franquia sem qualquer limite (art. 41.º do CIEC).
III - O julgamento da matéria de facto deve incidir exclusivamente sobre factos (que relevem para a decisão, à luz das diversas soluções jurídicas plausíveis – art. 511.º do CPC) e não sobre conclusões, sobretudo se estas, por si só, determinam a sorte da causa.
IV - O art. 60.º, n.º 3, da LGT dispensa nova audiência do interessado antes da liquidação nos casos em que já tenha sido ouvido em fase anterior do procedimento, salvo se a Administração invocar factos novos sobre os quais ainda não se tenha pronunciado.
V - Assim, não há que assegurar nova audiência quando a AT não acolhe na totalidade, mas apenas em parte, a argumentação aduzida pelo contribuinte quando do exercício do direito de audição e não invoca facto novo algum.
VI - A fundamentação destina-se, essencialmente, a dar a conhecer ao contribuinte as razões de facto e de direito que estiveram na prática do acto, sendo que a exigência de densificação daquele discurso varia em função do tipo de acto e da participação ou não do contribuinte no procedimento da sua formação, sendo que a sua suficiência tem como pedra de toque a possibilidade de opção conscienciosa entre o acatamento e a reacção contra o acto.
VII - Demonstrado que ficou que o varejo efectuado pela Administração alfandegária ao depósito do contribuinte não observou as regras técnicas para determinação do grau alcoólico das bebidas, deve considerar-se comprometido o resultado obtido, a menos que fique demonstrada a irrelevância daquelas deficiências, sendo que a falta desta demonstração deve ponderar-se processualmente contra a Administração, de acordo com as regras da distribuição do ónus da prova consagradas no art. 74.º da LGT.
* * *
3. DECISÃO
Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo acordam, em conferência, conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e, julgando procedente a impugnação judicial, anular a liquidação impugnada.

Sem custas por a Recorrida delas estar isenta na legislação aplicável.


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Porto, 15 de Outubro de 2009


(Francisco Rothes)

(Fonseca Carvalho)

(Aníbal Ferraz)