Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00088/16.2BRBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:10/22/2021
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Ricardo de Oliveira e Sousa
Descritores:INCIDENTE DE LEVANTAMENTO DE SEGREDO PROFISSIONAL - PRESSUPOSTOS DE INTERVENÇÃO DO TRRIBUNAL SUPERIOR
– REJEIÇÃO DE CONHECIMENTO
Sumário:I- Nos termos do disposto nos nº.s 2 e seguintes do artigo 417º do CPC, constitui pressuposto da averiguação da legitimidade da dispensa de sigilo profissional, a dedução em plena audiência de julgamento de pedido de escusa de depoimento testemunhal com fundamento em violação de segredo profissional.

II – Não tendo sido expressamente deduzido qualquer pedido de escusa de prestação de depoimento com fundamento em violação de segredo profissional, não estão reunidos os requisitos necessários à abertura do incidente do levantamento do sigilo profissional previsto no artigo 417º, nº. 3 e 4 do CPC.

III- No enquadramento referido em II), mostra-se carecida de fundamento a intervenção deste Tribunal Superior para a decisão do incidente de levantamento de sigilo profissional, pelo que dele não se conhece
Recorrente:D., SA
Recorrido 1:P.
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Outros despachos
Decisão:Rejeitar o incidente
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:N/A
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os Juízes Desembargadores que compõem a Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
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I – RELATÓRIO

D., S.A., com os sinais dos autos, intentou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga a presente ação administrativa contra P., também com os sinais dos autos, e o ESTADO PORTUGUÊS, representado pelo Digno[a] Magistrado[a] do Ministério Público junto daquele TAF, peticionado o provimento do referido meio processual por forma a serem os Réus “(…) condenados, solidariamente, ao pagamento à A. da quantia de 15.000,00€ (quinze mil euros) a título de danos patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal de 4%, até efetivo e integral pagamento, perfazendo, atualmente, a quantia de 17.146,85€ (dezassete mil, cento e quarenta e seis euros e oitenta e cinco cêntimos) (…)”, ou, caso assim não se entenda, por forma a ser o “(…) 2.º R. responsabilizado por erro judiciário, nos termos exposto, ao pagamento à A. da quantia de 15.000,00€ (quinze mil euros) a título de danos patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal de 4%, até efetivo e integral pagamento, perfazendo, atualmente, a quantia de 17.146,85€ (dezassete mil, cento e quarenta e seis euros e oitenta e cinco cêntimos)(…)”
No decurso do pleito, e no âmbito da instrução do processo, suscitaram-se dúvidas no que concerne à questão de saber se a prova testemunhal a produzir pelas testemunhas M., C. e C. estaria [ou não] abrangida pelo segredo profissional, razão pela qual pelo Sr. Juiz a quo foi declarado “(…) aberto incidente para aferir da prestação de depoimento pelas pessoas referidas, com quebra do respetivo sigilo profissional – cf. art.º 135.º do CPP, ex vi do art.º 417.º, n.º 4, do CPC (…)”.
Na esteira do que foram os presentes autos remetidos a este Tribunal Superior “(…) nos termos do art.º 135.º, n.º 3, do CPP, ex vi dos artigos 497.º, n.º 3, e 417.º, n.º 4, do CPC, a fim de que esse tribunal decida sobre o levantamento do sigilo (…)”.
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Com dispensa de vistos prévios, cumpre, pois, apreciar e decidir, já que nada a tal obsta.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
II.1 – DE FACTO

Com interesse para a decisão a proferir, fixam-se as seguintes ocorrências processuais:
1- Em 17.12.2020, teve lugar a audiência final de julgamento, no âmbito do qual foram inquiridas, de entre outras, as testemunhas, A. e C. [cfr. fls. 911 e seguintes dos autos – suporte digital - cujo teor se dá por integralmente reproduzido];
2- Nessa mesma audiência, foi pelo Sr. Juiz a quo promanado despacho do seguinte teor: “(…) Uma vez que a testemunha está abrangida pelo segredo profissional que respeita à testemunha C., que no caso terá atuado como Mandatária, da D., S.A.R.L., enquanto exequente no processo 2366/10.5TBGMR, nos termos do art.º 92 n.º 6 do EOA deve escusar-se a depor nos termos do art.º 497.º n.º 3 do CPC. Daí que, até decisão do incidente previsto no art.º 417.º n.º 4 do CPC, não possa prestar depoimento. Termos em que se determina não ouvir a testemunha na presente data (…)” [idem];
3- Ainda na mesma audiência, pelo ilustre Mandatário do Réu foi arguida nulidade processual nos seguintes termos: “(…) O ilustre colega Dr. M., arrolado como testemunha nos presentes autos, prestou depoimento sem que previamente tivesse requerido à Ordem dos Advogados, o levantamento do sigilo profissional. Deste modo, o seu depoimento constitui uma nulidade que influi na decisão da causa nulidade que expressamente ora se arguiu para todos os efeitos legais (…)” [idem].
4- Em 14.01.2021, o Sr. Juiz a quo promanou despachos do seguinte teor:
“(…)
Testemunha faltosa
A testemunha C. não compareceu na audiência final, nem apresentou qualquer justificação para a sua ausência.
Não consta dos autos a devolução da respetiva notificação que lhe foi remetida, pelo que se considera ter sido regularmente notificada.
Ora, de acordo com o art.º 508.º, n.º 4, do CPC, a testemunha faltosa é condenada em multa, quando não invoque qualquer justificação para o não comparecimento.
Assim sendo, estando preenchido o pressuposto de aplicação desta norma, porque a testemunha, regularmente notificada, não compareceu nem justificou a sua ausência, condeno a testemunha no pagamento de multa, fixada no mínimo legal.
Notifique pessoalmente a testemunha em causa.
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Da nulidade processual suscitada na audiência final
Em sede de audiência final, foi suscitado pelo réu a ocorrência de nulidade processual, com fundamento na circunstância de a testemunha M. ter deposto sem que antes tenha sido proferida decisão sobre o levantamento do sigilo profissional a que, como advogado, está adstrito. Daí que o depoimento em causa, prestado nesses termos, constitua nulidade processual, suscetível de influir no exame e decisão da causa.
A autora solicitou prazo para pronúncia quanto ao assim suscitado, que lhe foi concedido. E veio, depois, apresentar requerimento no qual afirma que, a seu ver, se suscitam dúvidas de que a factualidade sobre a qual incidiu o depoimento em causa se encontre abrangida pelo segredo profissional, nos termos do disposto no art.º 92.º, n.º 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados [EOA]. Mas conclui dizendo que o tribunal decidirá em conformidade com o que lhe aprouver.
Apreciando e decidindo.
No art.º 497.º, n.º 3, do CPC afirma-se que devem escusar-se a depor os que estejam adstritos ao segredo profissional, ao segredo de funcionários públicos e ao segredo de Estado, relativamente aos factos abrangidos pelo sigilo, aplicando-se neste caso o disposto no n.º 4 do art.º 417.º.
Ou seja, para as pessoas que se encontrem nesta situação, a escusa é obrigatória, sendo certo que tal só sucede relativamente aos factos abrangidos pelo sigilo.
Ora, perante isto, e porque a autora coloca precisamente essa questão em análise, importará antes de mais aferir sobre se o depoimento versou ou não acerca de factos abrangidos pelo sigilo profissional a que a testemunha, na qualidade de advogado, se encontra adstrito.
Neste sentido, observe-se o que nos dizem as pertinentes disposições do art.º 92.º do EOA:
“1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:
a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;
b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;
c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;
d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;
e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;
f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.
2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.
3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo (…).”
À luz desta disposição estatutária, temos de discordar com a autora quando afirma que o depoimento não versou sobre factos abrangidos pelo sigilo profissional.
Ouvindo tal depoimento, que se encontra devidamente gravado, dele decorre de modo claro que a testemunha interveio no processo executivo em causa como mandatário da autora naquele mesmo processo, tendo, nessa qualidade, estabelecido contacto com o aqui réu, então agente de execução, por telefone. Da mesma forma que a testemunha relatou todas as diligências processuais e extra-processuais feitas no âmbito da mesma execução.
Logo, é forçoso concluir que estamos perante “factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços”; noutros termos, foi por causa de ser mandatário da aqui autora na situação e no processo executivo em causa que a testemunha tomou conhecimento dos factos; com efeito, a testemunha não atuou como administrador da autora, como amigo ou conhecido dos administradores da autora, mas na qualidade de advogado, como aliás o próprio frisou (já que disse ser advogado da autora há mais de duas décadas).
Mediante esta conclusão, v.g., de que estamos perante factos abrangidos pelo segredo profissional, cumpre então saber qual a consequência processual a retirar da circunstância de ter prestado depoimento sem que antes tenha sido proferida decisão sobre o levantamento do dever de sigilo.
Tal como antes mencionado, de acordo com o art.º 497.º, n.º 3, do CPC, a escusa pela testemunha era obrigatória, remetendo a norma para o disposto no art.º 417.º, n.º 4, do mesmo código. Este procedimento foi omitido, como referido, e a testemunha depôs sem que antes se tivesse proferido decisão que legitimasse o depoimento a prestar.
Pois bem, de acordo com o art.º 195.º, n.º 1, do CPC, aplicável na situação dos autos, “fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.”
Constata-se, pelo acima exposto, que foi omitido um ato prescrito pela lei, v.g., a instrução e decisão do incidente a que se refere o art.º 417.º, n.º 4, do CPC; depois, resulta também que a omissão desse ato pode influir no exame e na decisão da causa, na medida em que está em causa o depoimento prestado por uma testemunha, com conhecimento sobre factos que, indiscutivelmente, assumem relevo para a decisão a proferir.
Acrescente-se ainda que a nulidade foi invocada pelo interessado, de modo tempestivo, dado que tal ocorreu no próprio ato em que a mesma se verificou.
Não resta, por isso, outra opção senão a de reconhecer e declarar a nulidade em causa; sendo certo que a mesma só abrange o depoimento prestado pela testemunha referida, dado que não existem termos subsequentes que dependam absolutamente do ato omitido.
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Nestes termos, e pelo exposto, julgo verificada a invocada nulidade processual e, em consequência, declaro nulo o depoimento prestado pela testemunha M..
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Do Levantamento do Sigilo
Tal como referido na decisão anterior, o art.º 497.º, n.º 3, do CPC afirma que tem aplicação, nos casos aí previstos, o disposto no art.º 417.º, n.º 4, do CPC.
De acordo com este preceito, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.
Ou seja, e basicamente, remete-se para o art.º 135.º do CPP.
Acontece que, nestes autos, existem pelo menos três testemunhas nesta situação: o já referido M.; C.; e C..
Quanto ao primeiro, pelos motivos já referidos, para os quais remetemos, obviando a repetições inúteis e desnecessárias. Em relação à segunda, porque à data era funcionária da testemunha C., também ela advogada. E no que respeita a esta última, porque decorreu do depoimento de parte do autor que era a mandatária da então exequente, conhecendo factos nessa qualidade (nomeadamente, em relação ao pagamento da quantia exequenda).
Neste sentido, por razões de economia processual, e porque o interesse na inquirição é comum (todos os factos estão relacionados com o mesmo processo executivo, sendo os ilustres advogados mandatários das respetivas partes no mesmo), é de inteiro interesse que se abra o incidente em causa quanto às três testemunhas, de forma a que depois se possa determinar a respetiva inquirição, ou não.
Pelo que, em face do exposto, se declara aberto incidente para aferir da prestação de depoimento pelas pessoas referidas, com quebra do respetivo sigilo profissional – cf. art.º 135.º do CPP, ex vi do art.º 417.º, n.º 4, do CPC.
Cumprindo, em primeiro lugar, e em obediência ao princípio do contraditório, ouvir as partes sobre a referida quebra, e a inerente prestação de depoimento pelas testemunhas referidas.
Para o que se fixa o prazo de 10 dias (…)” [cfr. fls. 924 e seguintes dos autos – suporte digital, cujo teor se dá por integralmente reproduzido].
5- E em 08.03.2021 do seguinte teor:
“(…)
Na sequência de requerimento apresentado na audiência final pelo ilustre mandatário do réu, por despacho de 04.01.2021 foi declarada a nulidade do depoimento prestado pela testemunha M., na medida em que os factos por este relatados se encontravam a coberto de sigilo profissional, não tendo sido observado o respetivo procedimento prévio ao levantamento desse sigilo.
No mesmo despacho, frisou-se que existem pelo menos três testemunhas abarcadas por esta circunstância: o já referido M.; C.; e C.. Foi assim declarado aberto o incidente quanto a todas essas testemunhas, desde logo se determinando o contraditório das partes.
Apenas o réu se veio pronunciar, referindo que não há notícia nos autos de que alguma das mencionadas testemunhas tenha deduzido escusa com fundamento na violação do sigilo profissional, sendo que uma delas até chegou a depor, pelo que considera que não estão preenchidos os pressupostos do incidente a que se reporta o art.º 135.º do CPP, aplicável por remissão do art.º 417.º do CPC. Mais concluindo que as testemunhas em causa devem ser notificadas para, antes de mais, declararem se se escusam a depor, só depois devendo ser tramitado o incidente.
Apreciando.
Tal como explicado no anterior despacho (que aqui se dá por reproduzido), as testemunhas em causa estão sujeitas a sigilo profissional, nos termos do Estatuto da Ordem dos Advogados, na medida em que duas delas são advogados e a outra era funcionária da testemunha C. (estando por isso igualmente sujeita ao dever se sigilo). Mais, decorreu do desenrolar da audiência que em relação a todas elas se pretende a inquirição relativa a factos relacionados com o processo executivo no âmbito do qual, alegadamente, terá ocorrido a atuação do réu que funda a responsabilidade.
Acontece que em relação a estas pessoas não é necessário haver escusa. De facto, o n.º 4 do art.º 417.º do CPC refere-se à escusa; todavia, importa aqui considerar a previsão especial do art.º 497.º, n.º 3, do mesmo código, segundo o qual devem escusar-se a depor os que estejam adstritos ao segredo profissional, ao segredo de funcionários públicos e ao segredo de Estado, relativamente aos factos abrangidos pelo sigilo, aplicando-se neste caso o disposto no n.º 4 do artigo 417.º.
Ou seja, nesta situação em particular não existe qualquer direito à escusa, mas sim um dever de escusa, que se afigura indisponível. O mesmo é dizer que, independentemente de qualquer declaração de escusa, as pessoas em causa não podem depor por sua livre iniciativa.
Assim sendo, não havendo in casu a necessidade de qualquer declaração de escusa, pois que a mesma é imposta ope legis, importa atender ao que se estabelece no art.º 135.º do CPP, podendo aí ler-se o seguinte:
“1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.
2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.
3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
4 - Nos casos previstos nos nº.s 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.
5 - O disposto nos nº.s 3 e 4 não se aplica ao segredo religioso.”
No caso concreto, e como referido, não se suscitam dúvidas sobre a legitimidade para não depor, dado que a mesma decorre diretamente da lei.
Não obstante, e uma vez que toda a matéria em discussão nestes autos perpassa em grande medida pela atuação do réu enquanto agente de execução no processo executivo em que intervieram as três testemunhas acima referidas, atendendo ao princípio da prevalência do interesse preponderante, entende-se que existe todo o interesse, para o apuramento da verdade material quanto à atuação do réu (e isto, quer do ponto de vista da autora, quer do ponto de vista da defesa), que aquelas testemunhas sejam ouvidas em audiência.
Assim sendo, os presentes autos deverão ser remetidos ao TCA Norte, nos termos do art.º 135.º, n.º 3, do CPP, ex vi dos artigos 497.º, n.º 3, e 417.º, n.º 4, do CPC, a fim de que esse tribunal decida sobre o levantamento do sigilo.
Porém, e antes disso, por forma a habilitar a tomada de decisão por parte do tribunal superior, impõe-se cumprir o contraditório das pessoas visadas (às partes, o mesmo já foi concedido) e, seguidamente, obter o parecer do respetivo órgão da Ordem dos Advogados.
Nestes termos, por agora, e pelo exposto, determino que se notifiquem pessoalmente as testemunhas visadas pelo levantamento do sigilo profissional para, querendo, se pronunciarem sobre o assunto, em obediência ao princípio do contraditório
Para o que se fixa o prazo de 10 dias “ [cfr. fls. 940 dos autos - suporte digital, cujo teor se dá por integralmente reproduzido].
6- Finalmente, em 27.09.2021, o Sr. Juiz a quo mais promanou despacho do seguinte teor: “(…)
Encontrando-se concluídas as diligências prévias para o efeito, nomeadamente ouvida a Ordem dos Advogados (nos termos em que o decidiu fazer), remeta os autos ao venerando TCA Norte nos termos e para os efeitos do art.º 135.º, n.º 3, do CPP, aplicável, com as devidas adaptações, ex vi dos artigos 417.º, n.º 4, e 497.º, n.º 3, ambos do CPC (…)” [cfr. fls. 1009 e seguintes dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido].
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II.2 - DO DIREITO

A questão decidenda traduz-se em decidir sobre o levantamento de sigilo profissional para prestação de depoimento das testemunhas M., C. e C..
O que reclama a verificação prévia dos legais pressupostos de que depende a intervenção deste Tribunal Superior no âmbito do suscitado incidente de levantamento de sigilo profissional.
Neste domínio, adiantar-se-á, desde já, que os termos que foi convocada a intervenção deste Tribunal Superior a fim de decidir o suscitado incidente de levantamento de sigilo profissional pecam, salvo devido respeito, por clara impropriedade e manifesta intempestividade.
De facto, esta matéria está predominantemente regulada nos nº.s 2 a 4 do artigos 417º do CPC.
Ali se prevê, para o que ora nos interessa, que as pessoas que recusem colaborar para a descoberta da verdade incorrem em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis.
Porém, se o recusante for parte, o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sendo, porém, a recusa legítima quando importar, de entre outros fundamentos, a violação do sigilo profissional.
Assim, deduzida escusa com tal fundamento, deve ser averiguada a legitimidade da mesma e a dispensa de sigilo invocado nos termos preconizados no processo penal, ou seja, nos termos do artigo 135º do C.P.C.
Do que se vem de expor grassa à evidência, para o que ora nos interessa, que constitui pressuposto da averiguação da legitimidade da dispensa de sigilo profissional, a dedução em plena audiência de julgamento de pedido de escusa de depoimento testemunhal com fundamento em violação de segredo profissional.
Pois bem, escrutinado o probatório coligido nos autos, logo se constata que as testemunhas M. e C. prestaram o seu depoimento sem manifestação de qualquer reserva, não tendo deduzido qualquer escusa com fundamento na eventual violação de sigilo profissional.
Realmente, ambas testemunhas foram expressivas na declaração da inexistência de qualquer situação impeditiva de afirmação da verdade.
Logo, quanto a estas, por não ter sido expressamente deduzido qualquer pedido de escusa de prestação de depoimento com fundamento em violação de segredo profissional, não deveria ter sido declarado aberto de incidente de levantamento de sigilo profissional, por falta de fundamento legal.
Se, porventura, se suscitavam dúvidas ao Tribunal a quo no tocante à eventual conformidade do depoimento destas testemunhas com a obrigação de defesa do segredo profissional, então este deveria ter interrompido os trabalhos e solicitado esclarecimentos adicionais à Ordem dos Advogados.
Certo que é que não pode, uma vez findo os trabalhos e na ausência de qualquer pedido de escusa por parte das ditas testemunhas, proceder oficiosamente à averiguação da legitimidade da legitimidade da dispensa de sigilo profissional.
Realmente, a atuação do Tribunal a quo quanto às testemunhas M. e C. carece de manifesto fundamento legal, pelo que não devia ter sido produzida, aqui entroncando a declaração de verificação de nulidade processual, que é, pelas razões que se vêm de apontar, de rigor plenamente discutível.
Idêntica conclusão é atingível no que tange à testemunha C..
De facto, não tendo ainda sequer sido produzido o seu depoimento, e, qua tale, produzido qualquer pedido de escusa com base em eventual violação de segredo profissional, não existe qualquer razão para acobertar qualquer processo de averiguação da legitimidade da legitimidade da dispensa de sigilo profissional.
Por tudo o exposto, e sem necessidade de outros considerandos, temos que não estão reunidos, no caso concreto, os requisitos necessários à abertura do incidente do levantamento do sigilo profissional previsto no artigo 417º, nº. 3 e 4 do CPC.
Pelo que se mostra carecida de fundamento a intervenção deste Tribunal Superior para a decisão do incidente de levantamento de sigilo profissional, o que importa o não conhecimento do mesmo.

Mercê do exposto, deverá por rejeitado o conhecimento do incidente de levantamento de sigilo profissional.

Ao que se provirá no dispositivo.
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III – DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Administrativa deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202º da CRP, em REJEITAR o conhecimento do incidente de levantamento de sigilo profissional.
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Sem custas.
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Notifique-se.
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Porto, 22 de outubro de 2021,

Ricardo de Oliveira e Sousa
João Beato
Luís Migueis Garcia