Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00811/13.7BEPRT-A
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:05/30/2018
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:CERTIDÃO; ACTO IMPUGNÁVEL; ARTIGOS 62º E 63º DO CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DE 1991; ARTIGO 51º, Nº 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS.
Sumário:
1. Uma certidão que determina a possibilidade de contra o autor ser instaurada uma execução, com o consequente ónus de o seu património responder pela dividas de uma empresa, não constitui certidão do tipo das previstas nos artigos 62º e 63º do Código de Procedimento Administrativo de 1991, aplicável à data da sua emissão, porque não se limita a certificar documentos ou os elementos mencionados no artigo 63º, nº 1, alíneas a) a d), do referido Código.
2. Corporiza antes uma decisão sobre uma questão que produz efeitos jurídicos na esfera do autor pelo que é um acto impugnável.
3. Pelas mesmas razões o ofício certificativo enviado ao Chefe de Finanças e o requerimento executivo dirigido contra o autor são também actos administrativos impugnáveis, tal como definidos no artigo 51º, nº 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos. *
*Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:VD
Recorrido 1:Instituto de Emprego e Formação Profissional
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial
Decisão:
Conceder provimento ao recurso
Revogar a decisão recorrida
Ordenar a baixa dos autos
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO
Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

VD veio interpor o presente RECURSO JURISDICIONAL de parte do despacho saneador proferido pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, de 21.03.2017, pelo qual foi decidido absolver da instância os Réus Instituto de Emprego e Formação Profissional e Cases quanto aos pedidos formulados no petitório inicial na presente acção administrativa especial de pretensão conexa com actos administrativos com o seguinte teor: a) os actos e operações de execução de emissão de certidão de 31.08.2012 nos termos em que foi exarada e aqui junta como documento 1 e do requerimento de instauração de processo executivo contra o Autor efectuado a 31.08.2012 sejam julgados anulados por excederem os limites do acto exequendo consubstanciado no despacho do Sr. Dr. Delegado Regional do Norte do IEFP a 23.01.2012 pelo qual foi determinada a conversão em reembolsável do apoio fornecido a título perdido e o vencimento da totalidade da dívida no valor de €99.969,22, acrescida de juros legais ou obtida a cobrança coerciva nos termos do DL 437/78, de 28 de Dezembro, se aquela não for efectuada voluntariamente no prazo de 60 dias a contar da respetiva notificação, e do despacho de 18.07.2012 pelo qual foi ordenado que se procedesse à extracção de certidão e posterior envio à repartição de finanças; b) e, em consequência do exposto, serem os Réus condenados a comunicarem ao Serviço de Finanças 2 do Porto a desistência do processo executivo fiscal nº 3182201201126873, proveniente do IEFP, no que ao Autor diz respeito, sempre subsidiariamente, c) que o acto administrativo consubstanciado no despacho do Delegado Regional do Norte do IEFP a 23.01.2012 pelo qual foi determinada a conversão em reembolsável do apoio fornecido a título perdido e o vencimento da totalidade da dívida no valor de 99.969,22 euros, acrescida de juros legais ou obtida a cobrança coerciva nos termos do DL nº 437/78, de 28 de Dezembro, se aquela não for efectuada voluntariamente no prazo de 60 dias a contar da respetiva notificação, quando interpretado no sentido de abranger o Autor na sua estipulação, seja julgado nulo por falta de audiência prévia em acto administrativo que aplicou uma sanção, também subsidiariamente, d) que o acto administrativo identificado no ponto anterior seja julgado anulado pro vício de falta de audiência prévia e de falta de fundamentação e por violação de lei; e) e, em consequência do exposto, serem os Réus condenados a comunicarem ao Serviço de Finanças 2 do Porto a desistência do processo executivo fiscal nº 3182201201126873, proveniente do IEFP, no que ao Autor diz respeito, sempre subsidiariamente.
Invocou para tanto que o Tribunal recorrido, ao decidir pela inimpugnabilidade das operações de emissão de certidão e do requerimento executivo e ao considerar que o pedido formulado na alínea b) do petitório constitui uma mera decorrência [consequência nas palavras do Autor] do primeiro pedido, tendo, com esses fundamentos, absolvido da instância os Réus quantos aos pedidos formulados nas alíneas a) e b) do petitório inicial, fez menos feliz interpretação do disposto nos artigos 123º e 151º do Código de Procedimento Administrativo.
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Os Recorridos não contra-alegaram.
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O Ministério Público neste Tribunal não emitiu parecer.
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Cumpre, pois, decidir já que nada a tal obsta.
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I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:
1. Não pode ser rejeitada, com fundamento em irrecorribilidade do acto de execução, a impugnação de actos de execução em que são imputados a tais actos vícios próprios.
2. Na petição inicial apresentada nestes autos o Autor alegou e invocou ilegalidades próprias dos actos de execução subsequentes ao acto administrativo consubstanciado no despacho do Sr. Delegado Regional do Norte do IEFP de 23.01.2012 pelo qual foi determinada a conversão em reembolsável do apoio fornecido a título perdido e o vencimento da totalidade da dívida no valor de € 99.969,22, em específico, a circunstância do Autor não ser abrangido por tal acto administrativo e de, assim, não existir qualquer fundamento para a instauração de execução coerciva do seu património.
3. Os actos praticados e identificados na Petição Inicial e no seu petitório tendentes à execução do património pessoal do Autor são ilegais porquanto excedem e violam o acto administrativo acima identificado que visou apenas e exclusivamente a Cooperativa IEACEP, entidade jurídica beneficiária dos apoios concedidos pelo IEFP.
4. É exigência formal e material do acto administrativo que possa ser executado e imposto coercivamente pela administração a sua clareza, definição e precisão quanto ao âmbito e alcance da sua decisão, em especial, quanto às pessoas/entidades jurídicas que por ele são abrangidas.
5. O Tribunal recorrido fez menos feliz interpretação do disposto nos arts. 123º e 151º do Código de Procedimento Administrativo.
6. Como tal, deverá o douto despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que julgue provados e procedentes os pedidos de anulação dos actos de execução de acto administrativo identificados na petição inicial sob as alíneas a) e b) do petitório inicial.
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II – Matéria de facto.
Com interesse para a decisão a proferir, fixa-se a seguinte factualidade:
A) Em 23.08.2005 foi elaborado termo de responsabilidade entre o «IEFP - Instituto de Emprego e Formação Profissional, IP» e «IASSC», na qualidade de primeiros outorgantes e «NMLF », «ESCIS, IPSS, MMQC » e «VD » na qualidade de segundos outorgantes e promotores, mediante o qual o IEFP concedeu a «IEACEP, CRL» um apoio financeiro de 99.969,22 euros (cfr. termo de responsabilidade de fls. 33 a 39 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
D) Em 23.01.2012 foi proferido despacho concordante com a informação n.º 153/DN-EDC/2012, no âmbito do processo n.º 350/04-J com a proposta de decisão de devolução imediata das importâncias concedidas a «IEACEP, CRL» [cfr. da informação constante de fls. 34 a 37 do procedimento administrativo apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido].
E) Em 01.02.2012 foi elaborado o ofício n.º 227/DN/EOC/12, dirigido ao Autor com vista à sua notificação da decisão de reposição do apoio anteriormente contratualizado, remetido por via postal registada com aviso de recepção, sob o n.º RM712027680PT [cfr. cópia do ofício constante de fls. 25 e registo de fls. 22 do procedimento administrativo apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido].
F) A missiva constante do facto antecedente foi devolvida à procedência com a menção “avisado / não atendeu” [cfr. cópias do envelope de fls. 4 a 6 do procedimento administrativo apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido].
G) O Autor foi citado para a execução fiscal n.º 3182201301126873 mediante ofício de 31/01/2013 [cfr. aviso de citação constante de fls. 41 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido].
H) A presente petição inicial foi remetida por via postal registada de 25.03.2013 [cfr. envelope constante de fls. 50 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido].
I) Dá-se por reproduzido todo o teor dos documentos que integram os autos [inclusive o processo administrativo apenso].
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III - Enquadramento jurídico. Da inimpugnabilidade dos actos referidos nos pedidos formulados em a) e b) da petição inicial.
Foi apenas objecto de recurso a parte do despacho saneador que absolveu os Réus da instância quanto aos pedidos formulados nas alíneas a) e b) do petitório inicial, com base na inimpugnabilidade dos actos e operações de execução de emissão da certidão de 31.08.2012 nos termos em que foi exarada e junta com documento nº 1 com a petição inicial e do requerimento de instauração do processo executivo e ainda porque o pedido formulado na alínea b) do petitório constitui uma mera decorrência [consequência nas palavras do Autor] do primeiro pedido e com os seguintes fundamentos:
“Acto administrativo é, na acepção de Freitas do Amaral, o “acto jurídico unilateral praticado no exercício do poder administrativo, por um órgão da administração ou por outra entidade pública ou privada para tal habilitada por lei, e que traduz a decisão de um caso considerado pela Administração, visando produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta”.
Donde resulta que é acto administrativo impugnável aquele que, constituindo acto administrativo na acepção do artigo 120.º do Código de Procedimento Administrativo (de 1991; artigo 148.º do novo Código de Procedimento Administrativo), seja dotado de eficácia externa, especialmente aquele cujo conteúdo seja suscetível de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos (cfr. n.º 1 do artigo 51.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos).
Tendo presente tal enquadramento legal, importa aferir da conformidade do pedido de anulação “(…) dos actos e operações de execução de emissão de certidão de 31.08.2012 (…) e do requerimento de instauração de processo executivo contra o Autor efectuado a 31.08.2012 (…) por excederem os limites do acto exequendo consubstanciado no despacho do Delegado Regional do Norte do IEFP a 23.01.2012 pelo qual foi determinada a conversão em reembolsável do apoio fornecido a título perdido e o vencimento da totalidade da dívida no valor de € 99.969,22 (…), e do despacho de 18.07.2012 pelo qual foi ordenado que se procedesse à extracção de certidão e posterior envio à repartição de finanças (…)”.
A emissão da certidão de dívida não constitui um acto autonomamente impugnável porquanto, como resulta da sua própria nomenclatura, é um acto certificativo, ou seja, um acto que se limita a atestar uma determinada constatação efectuada por oficial público.
Tal certidão, consequentemente, não é suscetível de produzir qualquer efeito inovatório no ordenamento jurídico na medida em que, por definição, se limita a reproduzir factos anteriormente ocorridos e percepcionados.
Sendo certo que, se o teor da certificação não se mostrar consentâneo com a realidade dos factos tal como foi presenciada ou atestada, não estamos perante um excesso perante o limite do acto proferido, mas sim perante um teor desconforme do atestado.
No que tange ao pedido anulatório do requerimento de instauração do processo executivo, importa salientar que tal é uma mera operação material de execução do anterior decidido.
A lesividade é intrínseca ao acto que determinou a reposição e não nasce com a instauração da cobrança coerciva e que, em caso de procedência de um dos pedidos de declaração de nulidade ou de anulação constantes das alíneas c) e d) do petitório formulado na petição inicial, sempre ocorrerá a extinção da execução na medida em que a execução do julgado importa a reposição da situação que existiria caso o acto declarado ilegal não tivesse sido praticado.
Alega o Autor no requerimento de interposição do recurso e em contraposição ao sustentado na referida parte do despacho recorrido que:
“Com efeito, é sabido que nos termos do disposto no nº 3 do art. 151º do anterior Cód. de Procedimento Administrativo: “os interessados podem impugnar administrativa e contenciosamente os actos ou operações de execução que excedam os limites do acto exequendo”.
E que nos termos do disposto no nº 4 do mesmo preceito legal: “são também susceptíveis de impugnação contenciosa os actos e operações de execução arguidos de ilegalidade, desde que esta não seja consequência da ilegalidade do acto exequendo.”
Sendo que a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo desde há muito vem afirmando que, em regra (entre muitos outros, o acórdão de 16.03.1995, proferido no recurso n.º 34830):
“os actos de execução não são contenciosamente recorríveis se se contiverem dentro dos limites da definição jurídica definida pelo acto executado, isto é, se não alterarem uma situação jurídica já definida pelo acto que executam, só sendo passíveis de recurso contencioso autónomo quando sejam inovatórios, por alterarem, excederem ou modificarem a situação definida naquele acto. Os actos de execução, na medida em que não inovarem em relação ao acto executado, não se configuraram como verdadeiros actos administrativos, dado não definirem situações jurídicas entre a Administração e os particulares. Os actos de execução que se limitam a pôr em prática o já decidido no acto exequendo são, em regra, irrecorríveis, por serem meramente confirmativos, não assumindo autonomamente a natureza de actos lesivos de direitos ou interesses legalmente protegidos, lesão essa que, a existir, deriva do acto que anteriormente definiu a situação do interessado. (…)
O fundamento da irrecorribilidade dos actos de execução, idêntico ao que justifica a irrecorribilidade dos actos meramente confirmativos, radica na consolidação da definição jurídica estabelecida em acto anterior, exigida pelo interesse público da estabilidade dos actos administrativos, presumindo-se "jure et de jure" a concordância dos seus destinatários através da respectiva inércia contenciosa durante certo período de tempo.
Esta posição jurisprudencial encontra apoio expresso nos n.ºs 3 e 4 do art. 151.º do Código do Procedimento Administrativo, que estabelecem que «os interessados podem impugnar administrativa e contenciosamente os actos ou operações de execução que excedam os limites do acto exequendo» e que «são também susceptíveis de impugnação contenciosa os actos e operações de execução arguidos de ilegalidade, desde que esta não seja consequência da ilegalidade do acto exequendo».
Destas duas disposições, cujo campo de aplicação se sobrepõe parcialmente, infere-se que os actos de execução não são, por natureza, sempre recorríveis nem sempre irrecorríveis, dependendo a sua recorribilidade da ilegalidade que lhes é imputada.
Se é imputada ao acto que dá execução a um acto anterior uma ilegalidade própria do acto de execução, este é contenciosamente impugnável. Mas, se a ilegalidade do acto de execução derivar de alguma ilegalidade que já afectava o acto executado, é este último que deve ser impugnado, não o podendo ser autonomamente o de execução. (Neste sentido, podem ver-se MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES e J. PACHECO DE AMORIM, em Código do Procedimento Administrativo Comentado, volume II, 1.ª edição, página 245.)
O suporte normativo desta conclusão, que se encontra explicitamente no n.º 4 do art. 151.º, está também implícito no n.º 3 do mesmo artigo, pois, quando neste se refere a impugnabilidade dos actos ou operações de execução que excedam os limites do acto exequendo, está-se a pressupor a sua impugnabilidade quanto a este excesso.
Com efeito, se, nestes casos, o que justifica a possibilidade de controle da legalidade do acto de execução é a existência de um excesso do acto de execução em relação ao executado é, forçosamente, porque se considera que as ilegalidades que não sejam atinentes a tal excesso (as que não justificam a impugnabilidade) não podem relevar para anulação do acto de execução.
Por isso, também nos casos previstos neste n.º 3, em sintonia com o n.º 4 do mesmo artigo 151.º, a recorribilidade será limitada ao que no acto de execução inova em relação ao acto executado, ao que naquele não é confirmativo deste.”
Ora, seguindo o decidido no acórdão acima referido dir-se-á que o Autor alegou e invocou ilegalidades próprias dos actos de execução subsequentes ao acto administrativo consubstanciado no despacho do Sr. Delegado Regional do Norte do IEFP de 23.01.2012 pelo qual foi determinada a conversão em reembolsável do apoio fornecido a título perdido e o vencimento da totalidade da dívida no valor de 99.969,22 euros, em específico, a circunstância do Autor não ser abrangido por tal acto administrativo e de, assim, não existir qualquer fundamento para a instauração de execução coerciva do seu património.
Sendo que não é a circunstância de também terem sido apontadas ilegalidades próprias do acto administrativo em si mesmo (e da pretendida procedência destas imporem a necessária revogação dos actos de execução entretanto realizados, como correctamente assinala o douto despacho recorrido) que afasta a possibilidade legal de serem arguidos e invocados vícios e ilegalidades próprios dos actos de execução, tal como o Autor fez na presente acção.
Os actos de execução do acto administrativo acima identificado excederam o âmbito material daquele, pelo que devem os mesmos ser anulados, comunicando-se ao Serviço de Finanças 2 do Porto a desistência do processo executivo fiscal nº 3182201201126873, proveniente do IEFP, no que ao Autor diz respeito e não sendo autorizada a prática de qualquer acto de execução do património do Autor enquanto este não for pessoalmente objecto de um acto administrativo impugnável, nos termos legais.
Pelo que se crê que o Tribunal recorrido fez menos feliz interpretação do disposto nos arts. 123º e 151º do Código de Procedimento Administrativo.
Vejamos:
No pedido formulado em a) do petitório inicial pede-se a anulação dos actos e operações de execução de emissão de certidão de 31.08.2012 nos termos em que foi exarada e aqui junta como documento 1 e do requerimento de instauração de processo executivo contra o Autor efectuado a 31.08.2012.
Conforme decidido no acórdão de 10.03.2017, no processo nº 1312/14.1 PRT, com o mesmo Relator:
«O artigo 51.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos de 2002 (aplicável no tempo ao caso) define, como princípio geral, o que deve ser considerado acto contenciosamente impugnável, colocando o acento tónico na “eficácia externa”, prevendo-se no n.º 1 deste preceito legal que “… ainda que inseridos num procedimento administrativo, são impugnáveis os actos administrativos com eficácia externa, especialmente aqueles cujo conteúdo seja susceptível de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos …” .
Não pode considerar-se que o conceito de acto contenciosamente impugnável assenta no estabelecido, desde logo, no artigo 120° do Código de Procedimento Administrativo (de 1991), no qual se consideram actos administrativos as decisões dos órgãos da administração que ao abrigo de normas de direito público visem produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta, enquanto actos externos, que evidenciem um qualquer segmento decisório.
Como refere Vieira de Andrade “A Justiça Administrativa - Lições”, 2012, 12.ª edição, págs. 186/187:
“… o conceito processual de acto administrativo impugnável não coincide com o conceito de acto administrativo, sendo, por um lado, mais vasto e, por outro, mais restrito. … É mais vasto apenas na dimensão orgânica, na medida em que não depende da tradicional qualidade administrativa do seu Autor … - artigo 51.º, n.º 2. … É mais restrito, na medida em que só abrange expressamente as decisões administrativas com eficácia externa, ainda que inseridas num procedimento administrativo, em especial os actos cujo conteúdo seja susceptível de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos (artigo 51.º, n.º 1) - devendo entender-se que actos com eficácia externa são os actos administrativos que produzam ou constituam (que visem constituir, que sejam capazes de constituírem) efeitos nas relações jurídicas administrativas externas (na esfera jurídica dos destinatários), independentemente da respectiva eficácia concreta …”.
Estão excluídos do conceito de acto administrativo impugnável os chamados actos instrumentais que intervêm como auxiliares da actuação administrativas, os actos meramente preparatórios (propostas, informações, pareceres, relatórios, etc…) – cf. Mário e Rodrigo Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, páginas 342 e seguintes; Rogério Soares, Direito Administrativo (Lições), páginas 100-101, Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, volume II, páginas 269 e seguintes.
E aproveitando a pertinente citação feita pelo Ministério Público nas suas contra-alegações de Mário Aroso de Almeida, na obra “Considerações em torno do conceito de acto administrativo impugnável”, in “Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor Marcello Caetano”, Vol. II, p. 285:
“Em nossa opinião, desta circunstância resulta que o que, do ponto de vista estrutural, é decisivo para que os actos jurídicos concretos da Administração possam ser objecto de reacção contenciosa — e, portanto, de impugnação contenciosa, quando tenham conteúdo positivo — é que eles possuam conteúdo decisório, no sentido, oportunamente explicitado, de que não se esgotem na emissão de uma declaração de ciência, um juízo de valor ou uma opinião, mas exprimam uma resolução que determine o rumo de acontecimentos ou o sentido de condutas a adoptar. E isto, mesmo quando intervenham no plano de relações intra-administrativas e inter-orgânicas.
Determinante é que se trate de actos administrativos, no sentido que decorre do artigo 120.° do CPA. Do ponto de vista estrutural, deve, pois, a nosso ver, entender-se que todos os actos administrativos podem ser objecto de reacção contenciosa — e, portanto, que, quando tenham conteúdo positivo, todos eles podem ser objecto de impugnação contenciosa, pelo que são, todos eles, actos administrativos impugnáveis.”
Importa ainda reter o que na jurisprudência se tem decidido sobre este tema, da impugnabilidade dos actos administrativos, a título meramente exemplificativo e sem qualquer preocupação de exaustão:
Assim, no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 16.12.2009, no processo 0140/09 (sumário):
“I - Hoje, face ao artº 51º, nº 1 do CPTA, a impugnabilidade do acto administrativo, depende apenas da sua externalidade, ou seja, da susceptibilidade de produzir efeitos jurídicos que se projectem para fora do procedimento onde o acto se insere.
II - Assim, torna-se irrelevante, para aferir da impugnabilidade do acto, que ele seja definitivo ou não, lesivo ou não, bem como a sua localização no procedimento (início, meio ou termo).
III - Assim, qualquer decisão administrativa pode ser hoje impugnável, questão é que o seu conteúdo projecte efeitos jurídicos para o exterior, i.e. tenha eficácia externa.
(…)”.
A Autora impugna na petição inicial os actos e operações de execução de emissão de certidão de 31.08.2012 nos termos em que foi exarada e junta com a petição inicial como documento 3 e não como, certamente por lapso, se diz como sendo documento 1. Assim mesmo, o seu teor está dado como provado na alínea I dos Factos dados como Provados.
O documento junto como nº 3 com a petição inicial engloba dois actos administrativos:
1- A emissão da certidão em si mesma, que é mais extensa do que o despacho que ordenou a sua emissão, ao certificar como devedores todos os intervenientes no termo de responsabilidade com o teor dado como provado no 1º facto dos factos dados como provados, e 2- o ofício subscrito pelo Delegado Regional dirigido ao Chefe de Repartição de Finanças do Porto 2, pelo qual é pedida a instauração da execução a que se refere a alínea G) dos Factos Provados.
Cumpre nestes autos determinar se a certidão, seguida do ofício para o Chefe de Finanças, podiam ou não englobar como devedores todos os nela incluídos ou tão só a entidade que beneficiou do financiamento.
Como referem Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves, J. Pacheco de Amorim no Código do Procedimento Administrativo Comentado, 2ª edição, Almedina, nas notas ao artigo 120º, citados no acórdão supra referido:
«XIX - A decisão constitutiva do acto administrativo tanto pode ter um conteúdo positivo como negativo, tanto pode consubstanciar-se na prática de um certo acto (ainda que de efeito impositivo ou restritivo), como na recusa expressa em praticá-lo – o que aliás pode suceder em procedimentos particulares ou em procedimentos oficiosos e, dentro destes, quer nos de interesse público quer nos de “interesse particular”.
Entre os actos de conteúdo negativo, temos as recusas, os indeferimentos, as oposições, proferidos em procedimentos de primeiro ou segundo grau: é o caso de o particular ter direito a exercer uma actividade (a dispensar-se de um dever, a praticar um acto), no caso de não oposição da Administração e esta manifestar tempestivamente essa oposição.
Por outro lado, já se viu que esse efeito jurídico (externo) dos actos administrativos pode resultar não apenas de “vontades” constitutivas da Administração Pública, como também de actos com conteúdo declarativo (de factos ou posições jurídicas), na parte em que tenham um efeito (concretizador, titulador ou procedimental) inovatório e concreto.
XX- É claro que os efeitos jurídicos (externos) de que aqui se trata são efeitos jurídico-administrativos, como já estava subentendido no facto do acto administrativo ser praticado “ao abrigo de normas de direito público”.
Mesmo quando o acto administrativo aparece ligado à criação, à modificação ou extinção de relações ou situações jurídico-privadas, sejam elas entre particulares ou entre estes e Administrações Públicas – como (de uma forma ou outra) no plano constitutivo, autenticador ou fiscalizador, tantas vezes sucede – a verdade é que o que nele vale, em sede de qualificação, é o momento ou a decisão sobre a composição administrativa (no plano conformador ou titulador) dos interesses dos sujeitos da relação jurídico-privada com o interesse público cuja realização a lei quis assegurar, ao prever a intervenção administrativa na situação ou relação em causa. Só esse momento ou decisão é que tem a (valia e a) garantia jurídica de acto administrativo.”
No caso concreto, a emissão da certidão, formalizada conforme doc. nº 3 junto com a petição inicial não constitui certidão do tipo das previstas nos artigos 62º e 63º do Código de Procedimento Administrativo de 1991, aplicável à data da sua emissão, porque não se limita a certificar documentos ou os elementos mencionados no artigo 63º, nº 1, alíneas a) a d), do referido Código.
Os dois actos que do doc. nº 3 corporiza contêm uma decisão sobre uma questão que produz efeitos jurídicos na esfera do Autor, ou seja, o sentido da decisão ínsita na certidão determina a possibilidade ou impossibilidade de contra o Autor ser instaurada execução, com o consequente ónus do património do Autor responder pelas dívidas da Investigar É Aprender Cooperativa de Ensino Polivalente, CRL e, em consequência, tal certidão é um acto administrativo impugnável.
Pelas mesmas razões o ofício certificativo enviado ao Chefe de Finanças e o requerimento executivo também são actos administrativos impugnáveis, tal como definidos no artigo 51º, nº 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, segundo o qual:
“Ainda que inseridos num procedimento administrativo, são impugnáveis os actos administrativos com eficácia externa, especialmente aqueles cujo conteúdo seja susceptível de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos.”
Afigura-se-nos que neste caso, não existe dúvida, sobre a eficácia externa dos três actos administrativos, certidão, ofício e requerimento executivo, todavia, em todo o caso, na dúvida, deve entender-se que os acto s administrativos são impugnáveis.
Como se refere no acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte, de 24.05.2007, processo 00411/04.2 PNF:
“(…)
Mas, note-se, mesmo que esta eficácia externa devesse ser considerada duvidosa no presente caso, e assim não o entendemos, temos para nós que sempre o princípio pro actione [artigos 268º nº 4 da CRP e 7º do CPTA] nos imporia uma decisão favorável à impugnabilidade contenciosa do acto em causa – in dubio pro impugnatione”.
Afastamo-nos, por isto, do entendimento sustentado para uma situação em tudo semelhante à aqui em análise, no acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte, de 21.04.2016, no processo nº 1407/14.1 (com um voto de vencido), em particular da conclusão de que os serviços da Ré “veicularam uma informação, corporizada em certidão, que os seus destinatários aproveitarão como e para os efeitos que quiserem”.
Na verdade o Delegado Regional Norte do IEFP,IP não se limitou a certificar documentos, antes fez interpretação da lei aplicável a esses documentos a ponto de concluir pela responsabilidade do Autor pela dívida daquela Cooperativa.
Não vemos que outra solução reste ao Autor senão impugnar tais actos administrativos, uma vez que os considera ilegais, anuláveis.
Impõe-se, por isso, revogar o saneador-sentença recorrido e julgar improcedente a excepção peremptória da inimpugnabilidade dos actos administrativos referidos em a) e b) do petitório.
Determina o artigo 53º nº 3 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos que os actos jurídicos de execução de actos administrativos só são impugnáveis por vícios próprios, na medida em que tenham um conteúdo decisório de carácter inovador.
E como já acima afirmámos os 2º, 3º e 4º actos impugnados contêm conteúdo decisório inovador relativamente ao acto exequendo o que implica que sejam contenciosamente inimpugnáveis, pois que não se limitam a dar execução a um acto administrativo anterior, antes definem, o que não resulta em singelo da interpretação do primeiro acto – acto exequendo –, a situação jurídica do visado; o segundo, terceiro e quarto actos inovam e não pode considerar-se que se limitem a executar um acto administrativo com eficácia externa que não foi cumprido voluntariamente pela Cooperativa integrada pelo Recorrente - cfr. factos dados como provados na alínea I da matéria factual dada como provada, onde se dão como integralmente reproduzidos o teor dos documentos juntos como nºs 1 e 3 com a petição inicial.
O confronto do teor desses dois documentos evidencia o carácter inovador do documento nº 3 relativamente ao documento nº 1, inovação que tem efeitos externos e lesivos na esfera jurídica do Autor.
A decisão recorrida violou efectivamente, conclui-se, o disposto no invocado artigo 51º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, preceito à luz do qual o acto aqui impugnado é impugnável, ao contrário do decidido e também o artigo 151º do Código de Procedimento Administrativo de 1991.
Impondo-se revogar a decisão recorrida e julgar improcedente a excepção de inimpugnabilidade dos referidos três actos, o processo deve ter uma decisão de mérito, já que não se vislumbram obstáculos de natureza adjectiva a essa decisão.
Merece, pois, provimento o presente recurso, já que, contrariamente ao decidido, os actos referidos nas alíneas a) e b) do pedido são impugnáveis.
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IV- Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam CONCEDER PROVIMENTO ao presente recurso jurisdicional, pelo que:
a) Revogam a decisão do despacho saneador na parte em que julgou procedente a excepção dilatória da inimpugnabilidade.
b) Determinam a baixa dos autos ao Tribunal recorrido para aí prosseguirem os seus termos com vista ao conhecimento de mérito.
Sem custas, por os Recorridos não terem contra-alegado.
Porto, 30.05.2018
Ass. Rogério Martins
Ass. Luís Garcia
Ass. Alexandra Alendouro