Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00075/21.9BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:11/25/2022
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Maria Fernanda Antunes Aparício Duarte Brandão
Descritores:MODIFICAÇÃO OBJECTIVA DA INSTÂNCIA;
NÃO EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA POR IMPOSSIBILIDADE/INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE;
Recorrente:AA
Recorrido 1:Instituto da Segurança Social, I.P.
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Condenação à Prática Acto Devido (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Conceder provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Foi emitido parecer no sentido da procedência do recurso.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
RELATÓRIO
AA, residente na Rua ..., instaurou acção administrativa de condenação à prática de acto administrativo devido contra o Instituto da Segurança Social, I.P. pedindo a condenação deste na prática de acto administrativo que lhe atribuísse a pensão de velhice unificada e bonificada no montante total de €3.304,50 com efeitos a partir de maio de 2019.
Por decisão proferida pelo TAF de Braga foi julgada extinta a instância por inutilidade superveniente da lide e ordenado o arquivamento dos autos.
Desta vem interposto recurso.
Alegando, o Autor formulou as seguintes conclusões:
1. Estabelece o art.° 644.° n.° 2 al. g) CPC que cabe recurso de apelação da decisão proferida depois da decisão final.
2. Nos presentes autos, em 02.05.2022, foi proferida sentença a julgar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, nos termos do art.° 277.° n.° 1 al. e) CPC.
3. Em virtude de o recorrente ter requerido, ao abrigo do art.° 64.° CPTA, o prosseguimento dos autos contra o novo acto administrativo, o Tribunal a quo não alterou a sua decisão e, em 29.06.2022, proferiu despacho a considerar esgotado o poder jurisdicional para conhecer daquele pedido.
4. Tal decisão consubstancia, efectivamente, uma “decisão proferida depois da decisão final”, em particular, depois da prolação da sentença.
5. Pelo que, encontrando-se preenchidos os demais pressupostos objectivos e subjectivos deste recurso ordinário (apelação), deve o mesmo ser devidamente admitido, por legalmente admissível e tempestivo, subindo em separado, com efeito meramente devolutivo. (Art.os 638.° n.° 1, 644.° n.° 2 al. g), 645.° n.° 2, 647.° n.° 1 CPC ex vi art.os 1.° e 140.° n.° 3 CPTA)
6. Estabelece o art.° 64.° CPTA que quando, na pendência do processo, o acto impugnado seja objecto de anulação administrativa ou sucedida de nova regulação, pode o autor requerer que o processo prossiga contra o novo ato com fundamento na reincidência nas mesmas ilegalidades,
sendo aproveitada a prova produzida e dispondo o autor da faculdade de oferecer novos meios de prova.
7. Esta modificação objectiva da instância justifica-se, antes de mais, em razões de economia e celeridade processual, uma vez que dispensa o autor de apresentar uma impugnação autónoma sobre uma nova decisão final (novo acto administrativo) proferida no âmbito do mesmo processo.
8. Acontece que, o novo acto administrativo proferido pelo recorrido de revisão do valor da pensão de velhice, embora satisfazendo algumas das pretensões do autor, ora recorrente, enfermava, como enferma, de iguais ilegalidades que o anterior acto administrativo proferido em 20.05.2019.
9. O recorrente, discordando com o conteúdo vertido no novo acto administrativo, lançou mão, dentro do prazo que a lei lhe concedia e sem que tivesse ocorrido trânsito em julgado da decisão proferida, do mecanismo previsto no mencionado art.° 64.° CPTA que, permitia, assim, o prosseguimento dos autos contra o novo acto administrativo proferido, uma vez que padecia aquele (2.° acto) das mesmas ilegalidades que o primeiro.
10. O Tribunal entendeu que a pretensão do autor, ora recorrente, tinha sido satisfeita e, não obstante ter sido requerido, ao abrigo do disposto no art.° 64.° CPTA, o prosseguimento dos autos contra o novo acto administrativo, o certo é que o Tribunal não alterou a sua decisão, entendendo que o poder jurisdicional se tinha esgotado.
11. A solução perfilhada pelo Tribunal a quo não se coaduna com os princípios da economia e celeridade processuais consagrados no nosso Ordenamento Jurídico e que, em boa verdade, fundamentam a adopção de mecanismos de simplificação processual como é exemplo flagrante o previsto naquele normativo legal (art.° 64.° CPTA).
12. Em dois actos administrativos proferidos, um datado de 20.05.2019 (primeiro acto administrativo anulado) e outro de dia 25.03.2022, notificado ao autor no dia 06.04.2022, se cometeram as mesmas ilegalidades.
13. Ao contrário daquilo que a lei prescreve e estabelece, o recorrido não teve oportunidade de reagir contra o segundo acto administrativo através do mecanismo do art.° 64.° CPTA, por ter o Tribunal a quo considerado, sem mais, que a pretensão do ora recorrente estava satisfeita e, por isso, a lide revelava-se inútil.
14. A inutilidade superveniente da lide consubstancia uma das causas de extinção de instância, impedindo, por conseguinte, o conhecimento do mérito da acção. (Art.° 277.° n.° 1 al. e) CPC)
15. Tem sido entendimento pacífico dos Tribunais superiores que a inutilidade superveniente da lide só se verifica quando se trata de uma inutilidade jurídica, o que significa que não se pode considerar actividade inútil o prosseguimento do processo quando ele se destina a expurgar da ordem jurídica um acto ilegal e a proporcionar a tutela efectiva dos direitos daqueles a quem o mesmo atinge.
16. No caso em apreço nos presentes autos, não se mostram verificados os pressupostos essenciais para a declaração de inutilidade superveniente da lide, porquanto a pretensão do autor, ora recorrente, não ficou integralmente satisfeita com a prática do segundo acto administrativo proferido.
17. Ficou, aliás, prejudicada a sua possibilidade de reacção contra aquele (2.º acto), por meio do mecanismo processual mais célere, o que veio, per si, inviabilizar a tutela efectiva dos direitos do ora recorrente.
18. A única outra forma de o recorrente reagir contra o acto administrativo proferido foi intentar uma nova acção administrativa de impugnação do acto administrativo, com os fundamentos já alegados na primeira acção administrativa instaurada (08.01.2021), uma vez que as ilegalidades cometidas são as mesmas.
20. Do exposto resulta clarividente à saciedade que o recorrente foi limitado no uso de todos os mecanismos de defesa que a lei coloca à sua disposição, o que é de facto, uma situação manifesta e profundamente desequilibrada a favor do recorrido.
21. Pelo que, com a actuação supra descrita, o Tribunal a quo violou diversos princípios fundamentais que baseiam o processo administrativo, designadamente, o da economia e celeridade processuais, segurança jurídica, acesso ao direito e defesa, simplificação e agilização processual e ainda o disposto nos art.os 64.º CPTA e 20.º CRP.
Termos em que, e no que mais suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho proferido, substituindo-se por outro, tudo de molde a que seja admitida a modificação objectiva da instância, ordenando o prosseguimento dos autos contra o novo acto administrativo proferido (ofício n.º 2021100079...7) por o mesmo padecer das mesmas ilegalidades do anterior acto impugnado, com o que se fará,
JUSTIÇA.
A Entidade Demandada juntou contra-alegações, sem conclusões, finalizando assim:
Termos em que, com o suprimento, não deverá o presente recurso obter provimento, mantendo-se assim a douta decisão recorrida com a consequente absolvição do ora recorrido da instância.
JUSTIÇA.
A Senhora Procuradora Geral Adjunta, notificada nos termos e para os efeitos do artigo 146º/1 do CPTA, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
Cumpre apreciar e decidir.
FUNDAMENTOS
É objecto de recurso a decisão que ostenta este discurso fundamentador:
(…)
No caso em apreço, decorre que na pendência dos autos a Entidade Demandada emitiu acto administrativo com conteúdo que satisfez na íntegra a pretensão do Autor - a fixação da pensão de velhice unificada no valor de €3.308,22.
Deste modo, não pode a presente acção prosseguir os seus termos, por se revelar inútil qualquer apreciação ou decisão sobre o mérito da presente causa.
Ocorre assim uma situação de inutilidade superveniente da lide, determinante da extinção da presente instância, nos termos do artigo 277.º, alínea e) do CPC, aplicável ex vi do artigo 1.º do CPTA.

Vejamos,
Chamamos à colação o Acórdão deste TCAN, de 15/04/2010, no Processo n.º 02530/07.4BEPRT, cujo sumário reza assim: “No artigo 64º [nº 1 e nº 3] do CPTA está consagrada uma modificação objetiva da instância, permitida a pedido do autor, que se justifica em razões de economia e celeridade processual (...).”
E, a título de fundamentação jurídica, aí se exarou que “(...) O erro de julgamento de direito invocado pelo recorrente consiste apenas nisto: em vez de pôr termo ao processo, o tribunal a quo deveria antes tê-lo continuado, (...) pois o requerimento a que se refere o artigo 64º nº 1 e nº 3 do CPTA [estipula aquele nº 1 que quando, na pendência do processo, seja proferido ato revogatório com efeitos retroativos do ato impugnado, acompanhado de nova regulação da situação, pode o autor requerer que o processo prossiga contra o novo ato, com a faculdade de alegação de novos fundamentos e do oferecimento de diferentes meios de prova. E diz o nº 3 que o disposto no nº 1 é aplicável a todos os casos em que o ato impugnado seja, total ou parcialmente, alterado ou substituído por outro com os mesmos efeitos, e ainda no caso de o ato revogatório já ter sido praticado no momento em que o processo foi intentado, sem que o autor disso tivesse ou devesse ter conhecimento.
Esta norma do processo administrativo previne, assim, as hipóteses em que o ato impugnado é substituído por outro, durante a pendência da ação impugnatória, permitindo ao respetivo autor que requeira o prosseguimento da mesma tendo por objeto a impugnação do novo ato, mesmo com alteração da causa de pedir.
Trata-se de uma modificação objetiva da instância, permitida a pedido do autor, que se justifica em razões de economia e celeridade processual.
A continuação do primitivo processo, visando a impugnação do novo ato, é, pois, uma faculdade do autor, que a pode ou não exercer, e sem quaisquer consequências desvantajosas, porque tem sempre a possibilidade de optar por uma impugnação autónoma.
Casos haverá em que a alteração da causa de pedir exigirá uma nova petição inicial, mas nesses não se inclui o caso vertente, pois que o Autor requereu, a 16.5.2022, a admissão da modificação objectiva da instância, pedindo o prosseguimento dos autos contra o novo acto administrativo proferido pelo Recorrido (ofício n.º 2021100079...7, de 25.03.2022), de revisão do valor da pensão de velhice, já que embora, satisfaça algumas das pretensões do autor, ora recorrente, enferma de ilegalidades que o anterior acto administrativo proferido em 20.05.2019 enfermava (já que, no entender do recorrente, o método de cálculo para a determinação da pensão de velhice continua a padecer de erro que inquina o valor da pensão atribuído).
Significa isto que, o Tribunal, a requerimento do autor, ao abrigo do art.º 64.º CPTA, tem o poder/dever de dar continuidade ao processo e decidir sobre a validade/legalidade do novo acto administrativo proferido, ao invés de pôr termo ao processo.
Assim, como bem aponta a Senhora PGA, o Tribunal a quo deveria ter admitido o requerimento do Autor ao abrigo do artigo 64.º do CPTA, ao invés de se ter escudado no esgotamento, sem mais, do seu poder jurisdicional.
Concorda-se assim com o Autor/Recorrente quando afirma que tal solução perfilhada pelo Tribunal a quo afronta o espírito e a realidade prática que o legislador procurou criar com a adopção de um mecanismo como o previsto no art.º 64.º CPTA.
Aliás, tal decisão não se coaduna com os princípios da economia e celeridade processuais consagrados no nosso Ordenamento Jurídico e que fundamentam a adopção de mecanismos de simplificação processual como é exemplo flagrante do previsto naquele normativo (art.º 64.º CPTA).
De facto, a utilidade da lide está correlacionada com a possibilidade de obtenção de efeitos úteis, pelo que a sua extinção, com base em inutilidade superveniente, só deverá ser declarada quando se possa concluir que o prosseguimento da ação não trará quaisquer consequências benéficas para o autor.
Tal declaração postula e pressupõe que o julgador possa efetuar um juízo apodítico acerca da total inutilidade superveniente da lide (vide a título de exemplo os Acórdãos deste TCAN de 25/11/2011, no Processo n.º 00305/07.0BEPRT e de 17/01/2014, no Processo n.º 00364/13.6BEPNF).
A inutilidade superveniente da lide tem, pois, a ver com a perda de interesse em agir, ou seja, com a perda da necessidade do processo para obter o pedido. O que equivale a dizer que tal inutilidade se dá, se e quando o efeito jurídico pretendido através do processo foi plenamente alcançado durante a instância.
Assim, a inutilidade superveniente da lide, como causa de extinção da instância, ocorrerá sempre que, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não possa subsistir por motivos atinentes ao sujeito ou ao objeto do respetivo processo, configurando-se como um modo anormal de extinção da instância, por cotejo com a causa dita normal, traduzida na prolação de uma sentença de mérito (cfr. Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil, vol. III, págs. 364 e seguintes e Lebre de Freitas, in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, pág. 512).
Sucede que o Tribunal a quo fundamentou esta decisão, como se viu, nos seguintes termos: “(...) No caso em apreço, decorre que na pendência dos autos a Entidade Demandada emitiu acto administrativo com conteúdo que satisfez na íntegra a pretensão do Autor - a fixação da pensão de velhice unificada no valor de €3.308,22.
Deste modo, não pode a presente acção prosseguir os seus termos, por se revelar inútil qualquer apreciação ou decisão sobre o mérito da presente causa”.
Ora, atento o caso dos autos, não se mostram verificados os pressupostos essenciais para a declaração de inutilidade superveniente da lide, porquanto a pretensão do Autor, aqui recorrente, não ficou integralmente satisfeita com a prática do segundo acto administrativo proferido.
Em suma,
-Sobre esta temática, a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo entende que só se verifica a inutilidade superveniente da lide quando essa inutilidade for uma inutilidade jurídica e que, por ser assim, não se pode considerar actividade inútil o prosseguimento do processo quando ele se destine a expurgar da ordem jurídica um acto ilegal e a proporcionar a tutela efectiva dos direitos daqueles a quem o mesmo atinge. A utilidade da lide correlaciona-se, pois, com a possibilidade da obtenção de efeitos úteis pelo que a sua extinção só deve ser declarada quando se conclua, com a necessária segurança, que o provimento do recurso em nada pode beneficiar o recorrente - Acórdãos de 18/1/01, proc. 46.727, de 30/9/97, proc. 38.858, de 23/9/99, proc. 42.048, de 19/12/00, proc. 46.306 e de 29/05/2002, proc. 47.745, entre outros;
-Como decorre do artigo 2º/2 do CPTA, a utilidade de uma acção judicial afere-se pelo efeito jurídico que o autor com ela pretende obter;
-A utilidade da lide está, pois, correlacionada com a possibilidade de obtenção de efeitos úteis, pelo que a sua extinção, com base em inutilidade superveniente, só deverá ser declarada quando se possa concluir que o prosseguimento da acção não trará quaisquer consequências benéficas para o autor;
-A extinção da instância por impossibilidade ou inutilidade superveniente dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou por encontrar satisfação fora do esquema da providência/pretensão requerida, sendo que num e noutro caso a solução do litígio deixa de interessar;
-Este modo de terminar com a lide consubstancia-se naquilo a que a doutrina designa por “modo anormal de extinção da instância”, visto que a causa de extinção natural/normal é a decisão de mérito - Acórdão deste TCAN de 30/8/2019, no Processo nº 178/19.0BEMDL;
-O tribunal só pode julgar extinta a instância por essa causa (inutilidade/impossibilidade da lide) se estiver em condições de emitir um juízo apodítico acerca da ocorrência superveniente da inutilidade, já que esta modalidade de extinção da instância exige a certeza absoluta da inutilidade a declarar, o que ora não sucede;
-Tal declaração, repete-se, postula e pressupõe que o julgador possa efectuar um juízo apodítico acerca da total inutilidade superveniente da lide;
-A inutilidade superveniente da lide tem, assim, que ver com a perda de interesse em agir, ou seja, com a perda da necessidade do processo para obter o pedido;
-In casu não se mostram verificados os pressupostos essenciais para a declaração de inutilidade superveniente da lide, porquanto a pretensão do Autor, ora recorrente, não ficou integralmente satisfeita com a prática do segundo acto administrativo proferido.
DECISÃO
Termos em se concede provimento ao recurso, revoga-se a decisão recorrida e, em consequência, admite-se a modificação objectiva da instância, ordenando-se o prosseguimento dos autos contra o novo acto administrativo proferido (ofício n.º 2021100079...7), caso a tal nada mais obste.
Custas pelo Recorrido.
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Notifique e DN.
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Porto, 25/11/2022
Fernanda Brandão
Hélder Vieira
Alexandra Alendouro