Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00259/05.7BEVIS
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:06/23/2021
Tribunal:TAF de Viseu
Relator:Ana Patrocínio
Descritores:FACTURAS FALSAS, ÓNUS DA PROVA
Sumário:I - No caso de facturas falsas, compete à AT fazer a prova de que estão verificados os pressupostos legais que legitimam a sua actuação correctiva e, só caso o faça, passa a recair sobre o contribuinte o ónus da prova da existência e dimensão dos factos tributários que alegou como fundamento do seu direito à dedução do imposto.

II – Impõe-se, portanto, à Administração Tributária abalar a presunção de veracidade da declaração do imposto e dos respectivos documentos de suporte, atento o princípio da declaração vigente no nosso direito (artigo 75.º da LGT), só depois passando a competir ao contribuinte o ónus de provar a veracidade do declarado, o que quer dizer que se a Administração Tributária não fizer prova do bem fundado da formação do seu juízo, a questão relativa à legalidade do seu agir terá de ser resolvida contra ela, sem necessidade de ir analisar se a Impugnante logrou ou não provar, em tribunal, a veracidade da declaração.

III - Tal prova não tem de ser directa e dogmática, no sentido de evidente e intocável, antes pode resultar de circunstâncias colaterais e indirectas que, atentas a idoneidade dos respectivos meios de suporte e as regras da experiência comum, indiciem, segundo padrões de avaliação e aferição pautados por critérios de razoabilidade e normalidade, um determinado resultado como o mais legitimamente atendível.

IV – Para que a Administração Tributária, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 19.º do CIVA, obste à dedução do IVA mencionado em facturas existentes na escrita do contribuinte e relativamente às quais considera não se terem efectivamente realizado as operações nelas consubstanciadas, não tem de fazer prova da existência de acordo simulatório (existência de divergência entre a declaração e a vontade negocial das partes por força de acordo entre o declarante e o declaratário, no intuito de enganar terceiros – cfr. artigo 240.º do Código Civil) para satisfazer o ónus de prova que sobre si impende.

V - Basta à Administração Tributária provar a factualidade que a levou a não aceitar a respectiva dedução de imposto, factualidade essa que tem de ser susceptível de abalar a presunção de veracidade das operações constantes da escrita do contribuinte e dos respectivos documentos de suporte.*
* Sumário elaborado pela relatora
Recorrente:Fazenda Pública
Recorrido 1:J.
Votação:Unanimidade
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido de o recurso merecer provimento.
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Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:
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I. Relatório

A Representação da Fazenda Pública interpôs recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, proferida em 17/12/2015, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por J., contribuinte n.º (…), com domicílio na Rua (…), contra a liquidação de IVA e Juros Compensatórios, do exercício de 2000.

A Recorrente terminou as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões:

“A. A Autoridade Tributária e Aduaneira cumpriu o ónus que sobre ela recaia, uma vez que os indícios colhidos em sede inspectiva são sérios, objectivos e consistentes, passíveis de traduzir uma probabilidade elevada, de que as facturas em questão não titulam operações reais.
B. Os indícios recolhidos na esfera do Recorrido, na qualidade de utilizador das facturas qualificadas como falsas, por não terem subjacentes verdadeiras operações comerciais, foram cruzados com outros indícios relacionados com a actividade das sociedades comercias emitentes.
C. Contrariamente ao exarado na douta sentença recorrida, os serviços de inspecção tributária analisaram ao detalhe toda a actividade do Recorrido, apurando indícios que, para além de devidamente evidenciados no Relatório, também constam do ponto B dos factos dados como assentes, e de entre os quais destacamos: o tipo de cortiça alegadamente adquirido pelo Recorrido às sociedades C., Lda, e E., não faz parte do tipo de cortiça que estas compravam aos seus fornecedores; as facturas em causa foram alegadamente pagas em numerário, sendo que à data da respectiva quitação o Impugnante ainda não estava inibido do uso de cheques; os pagamentos das aludidas facturas, de acordo com os elementos relevados na contabilidade do Recorrido, foi feito por contrapartida da conta Caixa (111), a qual não comportava a saída de tais montantes, ou seja, não havia dinheiro no Caixa suficiente para dar quitação aos mesmos documentos; a conta Caixa apresentava um saldo credor de € 54.184,01 antes de dar quitação às facturas n.° 1-47 e 1-157, passando para um saldo credor de € 230.393,26, após quitação das referidas facturas; o Impugnante auferiu rendimentos no exercício de 2000 enquadráveis na alínea a) do n.° 1 do art. 1° do CIRS, mas nunca entregou, para o ano em causa, a respectiva declaração de rendimentos, ao arrepio do disposto no art. 57.° do CIRS.
D. No âmbito da sua actividade instrutória, a Autoridade Tributária e Aduaneira não está impedida de se socorrer de elementos obtidos com recurso à fiscalização cruzada, junto de outros contribuintes, para obter os referidos indícios, pelo que tais indicadores de falsidade das facturas não têm necessariamente que advir de elementos do próprio contribuinte fiscalizado.
E. Não é questionável a utilização de elementos recolhidos no âmbito de acções inspectivas realizadas aos emitentes das facturas, em sede de inspecção aos destinatários das facturas provenientes daqueles emitentes e, por conseguinte, não devem, nem podem ser ignoradas, indícios concludentes que revelam uma elevadíssima probabilidade de se estar perante operações simuladas.
F. Mas foi precisamente isto que fez o Meritíssimo juiz a quo, na medida em que não atribui qualquer relevância aos elementos recolhidos pelos serviços de inspecção tributária e vertidos no respectivo Relatório, referentes aos emitentes das facturas, pela simples razão de se ter usado «no relatório factos extraídos de outras Inspecções».
G. Sobre materialidade fáctica oferecida pela Fazenda Pública, em sede de alegações apresentadas nos termos do art. 120.° do CPPT, o Tribunal o quo não dedicou qualquer análise crítica, apesar de entendermos que ela era imprescindível para se poder aquilatar da elevada probabilidade das facturas in quaestao não traduzirem reais transmissões de mercadorias.
H. Entre a factualidade que o Meritíssimo juiz a quo não apreciou nem valorou, destacamos:
- A C., Lda., emitente da factura n.° 1-157 de 09.05.2000, já tinha sido objecto de acção de inspecção que abrangeu os exercícios de 1993 a 1998. No âmbito da referida fiscalização ficou demonstrado que, nos períodos em causa, a sociedade C., Lda., era uma usual emitente e utilizadora de facturas falsas. Por sua vez, as liquidações emitidas na sequência do referido procedimento de inspecção tributária foram confirmadas na ordem jurídica por sentença proferida pelo TAF de Viseu, em 24.05.2004 (cfr. doc. 1 anexo às alegações).
- A E., Lda., emitente da factura n.° 1-47 de 05.05.2000, também já tinha sido objecto de acção de inspecção que abrangeu os exercícios de 1993 a 1998. No decurso da referida fiscalização ficou demonstrado que, nos períodos em causa a sociedade E., Lda., era uma usual emitente e utilizadora de facturas falsas. Por sua vez, as liquidações emitidas na sequência do referido procedimento de inspecção tributária foram confirmadas na ordem jurídica por sentenças proferidas pelo TAF de Viseu, em 24.05.2004 e 03.12.2004 (cfr. doc. 2 e 3 anexos às alegações).
- Estas duas empresas persistiram na emissão e utilização de facturas falsas, nos exercícios de 2000 a 2002. Disso dão conta os factos evidenciados nos RIT, elaborados no âmbito dos procedimentos instaurados ao abrigo das ordens de serviço n.°s 32.792 de 17.02.2003 e 32.492 de 24.09.2002 (cfr. doc. 4 e 5 anexos às alegações).
- Quer a sociedade E., Lda., quer a sociedade C., Lda., foram constituídas arguidas no processo-crime autuado sob o n.° 43103.5IDAVR, no 2.° Juízo Criminal do TJSM da Feira (cfr. doc. 6 - páginas 1 e seguintes da sentença anexas às alegações).
- No âmbito do referido processo, foi proferida sentença em 25.05.2012, onde foi dado como provado, relativamente aos anos de 1999 a 2003, que aquelas empresas utilizavam e emitiam facturas falsas.
- Ainda no âmbito do mesmo processo-crime foi apurado que o prejuízo causado por estas duas empresas, em sede de IVA, com a emissão e utilização de facturas falsas, nos anos de 1999 a 2003, totalizou a verba de €11.227.576,88 (cfr. doc. 6 - página 1183 da sentença anexa às alegações).
- Pela sua conduta criminosa a E., Lda. foi condenada na pena de 1100 dias de multa, à taxa diária de € 10, perfazendo € 11.000,00 e a C., Lda. foi condenada na pena de 1000 dias de multa, à taxa diária de € 10, perfazendo € 10.000,00 (cfr. doc. 6 - página 1183 da sentença anexa às alegações).
l. Face ao quadro indiciário que suporta a conclusão da Autoridade Tributária e Aduaneira, no sentido de que as facturas em causa não se reportam a serviços efectivos (cumprido que está, nos termos já expostos, o ónus da prova que, neste ponto, lhe competia) impunha-se ao Impugnante, fazer a prova de que adquiriu a cortiça nelas mencionada e que a mesma foi efectivamente fornecida pelos emitentes das facturas.
J. Ónus que, inquestionavelmente não cumpriu, atenta factualidade dada como provada.
K. Entendemos, assim, que a douta sentença recorrida, ressalvado o devido respeito,
- Padece de erro de julgamento de facto, consubstanciado numa incorrecta apreciação e valoração da matéria de facto dada como assente, e, concomitantemente, em errónea subsunção da matéria considerada como provada às normas que regem o ónus da prova e o direito à dedução do IVA (cfr. artigos 74.° da LGT, 19.º, n.° 3, do CIVA, 125.°, n.° 1 do CPPT e 607.°, n.° 4 do CPC);
- E incorre também em erro de julgamento ao realizar uma incorrecta valoração dos factos evidenciados nos autos e ao operar uma deficiente selecção da matéria de facto relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito controvertida (cfr. art. 125.°, n.° 1 do CPPT).
Nos termos vindos de expor e nos que V.as. Exas, sempre mui doutamente, poderão suprir, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, substituir a decisão por outra que julgue a Impugnação Judicial improcedente, como se nos afigura estar mais consentâneo com o Direito e a Justiça.”
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O Recorrido não contra-alegou.
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O Ministério Público junto deste tribunal emitiu parecer no sentido de o recurso merecer provimento e, consequentemente, dever ser revogada a sentença recorrida e julgada a impugnação judicial improcedente.
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Com dispensa dos vistos legais, tendo-se obtido a concordância dos Meritíssimos Juízes-adjuntos, nos termos do artigo 657.º, n.º 4 do CPC; submete-se o processo à Conferência para julgamento.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO – QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sendo que importa decidir se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento ao considerar não estarem verificados os pressupostos legais que legitimam a actuação da AT em recusar o direito à dedução de IVA por existência de “facturação falsa”.

III. Fundamentação

1. Matéria de facto

Na sentença prolatada em primeira instância foi proferida decisão da matéria de facto com o seguinte teor:

«III-A – Factos provados
Com interesse para a decisão a proferir, resultam provados os seguintes factos:
A). A Impugnante foi objecto de acção inspectiva, relativa ao período de 2000, cfr. Relatório da Inspecção Tributária de fls. 1 a 29 do Processo Administrativo (PA).
B). Foi seguidamente elaborado o respectivo Relatório, que se encontra junto a fls. 1 a 51 do PA, e aqui se dá por integralmente reproduzido, bem como os seus anexos, do qual consta o seguinte:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

C). O Impugnante foi notificado das liquidações de IVA de 2000 n.º 04279821, no valor de € 25.608,28 e de JC do mesmo período n.º 04279820, no valor de € 6.143,18, cujo prazo de pagamento voluntário terminou em 31-10-2004, cfr. teor de fls. 3 dos autos (p.f.);
D). A presente impugnação foi apresentada no TAF de Viseu em 27-01-2005, cf. teor do doc. de fls. 6 dos autos.
E). O Impugnante e a sua mulher M. foram inibidos do uso de cheques pelo Banco de Portugal no último trimestre de 2000, cfr. teor de fls. 30 a 37 dos autos (p.f.).
F). As instalações do Impugnante sofreram uma queda de árvores e inundação por chuva forte em Março de 2001, cfr. prova testemunhal.
G). Os funcionários do Impugnante transportaram várias cargas de cortiça das instalações da “E.” e da “C.” para serem cozidas nas instalações de “Joaquim Beire da Rocha”, cfr. prova testemunhal.
H). Foram emitidas as seguintes livranças, que constam de fls. 18, 19, 27 e 28 dos autos (p.f.):
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

III-B – Factos não provados
Inexistem, com relevância para a decisão a proferir.

Motivação:
A factualidade supra referida, foi apurada com base nos documentos juntos aos autos e no Processo Administrativo anexo ao mesmo.
Relevou-se ainda o depoimento das testemunhas arroladas pelo Impugnante, designadamente, quanto ao ponto F) da matéria assente, de A., J. e Carlos Alberto Pereira Ferreira, que afirmaram de forma coerente e precisa a queda de árvores e inundação ocorridas. Quanto ao ponto G), tal factualidade foi confirmada com pormenor e de forma coerente pelas testemunhas A., J. e M..”

2. O Direito

A questão central objecto do presente recurso consiste em saber se a AT fez a prova que lhe competia na demonstração da falsidade das facturas desconsideradas para efeitos de dedutibilidade do IVA nelas mencionado.

Dispõe o n.º 3 do artigo 19.º do CIVA, em que se apoiam de direito as correcções em causa (cfr. fls. 98 do processo instrutor apenso – relatório de inspecção tributária - RIT), que «não poderá deduzir-se imposto que resulte de operação simulada ou em que seja simulado o preço constante da factura ou documento equivalente».

Como tem sido realçado, reiterada e uniformemente, pela jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, nomeadamente por este Tribunal Central Administrativo Norte, quando a Administração Tributária desconsidera as facturas que reputa de falsas, aplicam-se as regras do ónus da prova do artigo 74.º da Lei Geral Tributária (LGT), competindo à Administração fazer prova de que estão verificados os pressupostos legais que legitimam a sua actuação, ou seja, de que existem indícios sérios de que as operações constantes das facturas não correspondem à realidade. Feita esta prova, passa a recair sobre o sujeito passivo o ónus da prova da veracidade da transacção – vide, entre muitos outros, os acórdãos do STA, de 20/11/2002, processo n.º 01483/02 e do TCA Norte de 24-01-2008, processo n.º 01834/04 Viseu, de 24-01-2008, processo n.º 2887/04 Viseu, de 27-01-2011, processo n.º 455/05.7BEPNF e de 18-03-2011, processo n.º 456/05BEPNF.

Assim sendo, importa analisar se a Administração Tributária fez a prova que lhe competia da verificação de indícios que permitem concluir que às facturas contabilizadas pelo Impugnante, ora Recorrido, não subjazem as operações que, alegadamente, teriam implicado a respectiva emissão.

Tenha-se em conta, como também é aceite, que não é imperioso que a Administração efectue uma prova directa da simulação. Como em muitos outros casos, haverá que recorrer à prova indirecta, a “factos indiciantes, dos quais se procurará extrair, com o auxílio das regras de experiência comum, da ciência ou da técnica, uma ilação quanto aos factos indiciados. A conclusão ou prova não se obtém directamente, mas indirectamente, através de um juízo de relacionação normal entre o indício e o tema de prova” – cfr. Alberto Xavier, “Conceito e Natureza do Acto Tributário”, pág. 154; também neste sentido, entre outros, o acórdão do TCAN, de 26/04/2012 (processo n.º 00964/06.0 BEPRT).

Ou seja, a Administração Tributária não tem que demonstrar a falsidade das facturas, bastando-lhe evidenciar a consistência desse juízo (cfr. acórdão do STA, de 27/10/2004, Processo n.º 810/04), invocando factos que traduzem uma probabilidade elevada de as operações referidas nas facturas serem simuladas, probabilidade elevada capaz de abalar a presunção legal de veracidade das declarações dos contribuintes e dos dados constantes da sua contabilidade – artigo 75.º da LGT.

Os indícios são definidos por João de Castro Mendes como aqueles factos que “permitem concluir pela verificação ou não verificação de outros factos, em virtude de leis naturais conhecidas pelos homens e que funcionam como máximas de experiência” - citado por Saldanha Sanches, “A Quantificação da Obrigação Tributária”, 2ª edição, pág. 311.
Nesta tarefa e como é salientado no acórdão deste TCA Norte de 28/02/2013, proferido no processo n.º 00383/08.4BEBRG, poderá a Administração Tributária lançar mão de elementos obtidos com recurso à fiscalização cruzada, junto de outros contribuintes, para obter os referidos indícios, pelo que tais indicadores de falsidade das facturas não têm necessariamente que advir de elementos do próprio contribuinte fiscalizado, revelando-se até a fiscalização cruzada um procedimento crucial no combate à fraude e evasão fiscais.

Vertendo nos autos os considerandos doutrinais e jurisprudenciais expostos, decorre do RIT que a AT, em acção inspectiva ao sujeito passivo impugnante, concluiu que as facturas por ele contabilizadas no exercício de 2000 dos emitentes “E. , Lda.” e “C. , Lda.” não representam reais e efectivas operações económicas.

O tribunal recorrido não confirmou esta conclusão, além do mais, com o seguinte discurso fundamentador:
“(…)Extrapolando agora para o caso aqui em análise, no relatório da inspecção tributária fundamenta-se as correcções efectivadas da seguinte forma: “As supostas aquisições de Cortiça (em raça) às sociedades C. e E. são muito estranhas, porquanto, as conclusões dos procedimentos de inspecção levados a efeito àquelas sociedades (vd. Ponto II.1.3), apontam no sentido da totalidade dos “inputs” daquelas serem suportados por papel falso não tendo adquirido cortiça a outros contribuintes, ainda que sem factura, segundo o gerente das mesmas Sr. A.. Daí ser questionável a venda de algo que não se comprou.
(…) Analisada a contabilidade do SP. verificamos que os pagamentos das aludidas facturas é feita por contrapartida da conta Caixa (111) – anexo 2, que não comporta a saída de tais montantes, ou seja não há dinheiro no Caixa suficiente para dar quitação às referidas facturas, daí o elevado saldo credor que a conta apresenta em 31-12-2000. Importa informar que a conta Caixa apresentava um saldo credor de 54.184,01€ antes de dar quitação às facturas n.ºs 1-47 (da E.) e 1-157 (da C.), passando para um saldo credor de 230.393,26€, após quitação das referidas facturas (vd. Anexo 2, Maio 2000)”

Nada mais fez a inspecção tributária, quanto à imputação de utilização, por parte do Impugnante, de “facturas falsas”.

Quase nada averiguou quanto ao Impugnante em concreto e à sua actividade, usando no relatório factos extraídos de outras inspecções, referindo-se sempre aos emitentes das facturas. Acresce que quanto à Impugnante, em concreto, não relatou quaisquer factos que por si só sejam susceptíveis de indiciar o que é pretendido, ou seja, as operações simuladas.

O que transparece do relatório que sustenta as liquidações impugnadas é que o trabalho investigatório levado a cabo sustentou-se apenas em conclusões e factos apurados em outras inspecções a outros contribuintes, nada mais. Foi analisada a “conta caixa”, em sede contabilística, mas ficou-se por aí. Não se investigou, por exemplo, os movimentos bancários do Impugnante, para tentar perceber se havia movimentações financeiras que sustentassem os lançamentos contabilísticos.

Pelo exposto, só se poderá concluir que a Autoridade Tributária não cumpriu o ónus que lhe incumbia de provar a simulação de transacções comerciais, incorrendo, por isso, em erro sobre os pressupostos, tendo tal erro também repercussões nos pressupostos de aplicação de métodos indirectos e na quantificação da matéria colectável efectivada, a final, pela inspecção tributária, o que acarreta a anulação da liquidação impugnada, por vício de violação de lei, ficando prejudicado, por esse motivo, o conhecimento das restantes questões enunciadas pelo Impugnante. (…)”

Importa verificar se a sentença recorrida fez correcta apreciação dos indícios recolhidos pela Administração Tributária vertidos no relatório e se são suficientes para não aceitar as deduções de IVA efectuadas pelo Impugnante / Recorrido relativamente aos fornecedores E. , Lda. e C. , Lda.

A este propósito, acentuamos que esses factos, em que assentou a decisão de correcção da AT, devem ser colhidos na fundamentação/motivação contemporânea do acto em análise – cfr. ponto B da decisão da matéria de facto. E não junto de outros elementos exteriores/externos ou posteriores ao acto impugnado, como os que a AT pretende sejam valorados, e não o terão sido na sentença recorrida, conforme vertido nas conclusões G e H das alegações do recurso.

Nestas alegações do recurso, a AT aponta para diversa factualidade que a Meritíssima Juíza não terá apreciado nem valorado em primeira instância. Parecendo olvidar que nos presentes autos estamos perante um contencioso de mera legalidade, como é o caso do processo de impugnação judicial, onde o tribunal tem de quedar-se pela formulação do juízo sobre a legalidade do acto sindicado tal como ele ocorreu, apreciando a respectiva legalidade em face da fundamentação contextual integrante do próprio acto.

Sufragamos a ideia de que o ponto de partida para a interpretação das regras de repartição do ónus da prova deve ser feita por reporte à previsão da norma que consagra o direito invocado pela AT na fundamentação do acto. Situando-se o problema ao nível da subsunção dos factos à norma jurídica invocada, pois que as regras de repartição do ónus da prova devem ser interpretadas e aplicadas à luz do direito substantivo, onde cada litigante tem de provar todos os pressupostos, positivos e negativos, das normas favoráveis à sua pretensão – cfr. Miguel Teixeira de Sousa in “As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa”, (1995), página 222.
Nesta conformidade, é nossa convicção não nos devermos apoiar na matéria vertida nas conclusões G e H para averiguar se a AT fez a prova que lhe competia na demonstração da falsidade das facturas desconsideradas para efeitos de dedutibilidade do IVA nelas mencionado, isto é, importa analisar se destacou no acto factos indiciantes subsumíveis à norma em que fundou o direito de realizar as correcções em causa – cfr. o n.º 3 do artigo 19.º do CIVA.

Resulta da matéria assente que a Administração desconsiderou a factura que o impugnante / Recorrido registou na sua contabilidade de aquisição de bens e serviços à E., Lda., no ano de 2000, com o número 1-47, datada de 05/05/2000, com o valor líquido de 15.300.000$00, que acrescido de IVA perfaz a quantia global de 17.901.000$00 (€89.289,81). E a factura de aquisição de bens e serviços à C., Lda., no mesmo ano de 2000, com o número 1-157, datada de 09/05/2000, com o valor líquido de 14.900.000$00, que acrescido de IVA perfaz a quantia global de 17.433.000$00 (€86.955,44), ambas relativas a cortiça de raça escolhida de 1.ª a 4.ª.

A Administração Tributária apresentou um grupo de indícios relativos aos emitentes das facturas, referindo, nomeadamente, que, na sequência dos procedimentos de inspecção levados a efeito às sociedades C. e E. (abrangendo, também, a empresa W. e concluindo a AT, em termos económicos, estarmos perante uma só empresa), empresas dos mesmos sócios, se prova que estas sociedades estão indiciadas no crime de fraude fiscal pela utilização e emissão de “Facturas Falsas”, descrevendo, além do mais, o seguinte:
(…) Prática continuada de crimes fiscais perpetrados pelos gerentes das sociedades acima identificadas;
(…) As compras registadas pelas sociedades E. e C. nos anos de 1999 a 2002 são, na sua quase totalidade, suportadas por facturas falsas;
(…) Confrontado (o gerente) com o facto da quase totalidade das compras registadas estarem suportadas por facturas timbradas em nome de “pseudo-fornecedores”, o mesmo respondeu que tem a noção de que foi enganado, o que não acreditamos, pelo facto de todos eles serem já bem conhecidos no meio há bastantes anos;
(…) Questionado acerca da possibilidade de nos identificar os “fornecedores reais”, o mesmo não identificou nenhum fornecedor;
(…) Todas as compras suportadas por este tipo de facturas eram pagas sempre em dinheiro, apesar dos elevadíssimos montantes envolvidos;
(…) Após o início do procedimento de inspecção a estas empresas, o qual durou quase um ano, não mais se registaram movimentos de entradas e/ou saídas de carros carregados com cortiça ou produtos derivados, o que evidencia bem o tipo de actividade que estas empresas desenvolviam efectivamente.
(…) A actividade da E./C. se resume à compra e venda de rolhas de fracas qualidades, formatos especiais e à prestação de alguns serviços (atente-se que tal consideração é baseada na premissa que sempre nos norteou, e que se consubstancia no facto de não olharmos para aquelas empresas isoladamente, mas sim integradas num todo – E. – C. e W.), pois se as considerássemos isoladamente, não se nos afigurava qualquer possibilidade de que estas pudessem desenvolver qualquer actividade.
Os “outputs” são constituídos na sua maioria por vendas de rolhas de qualidade extra, superior, 1.ª, 2.ª e 3.ª, indiciam que sejam falsos, porque ninguém vende aquilo que não possui (porque não comprou, não produziu, nem herdou). (…)”

A Administração Tributária também recolheu indícios de operações fictícias junto do utilizador, indicando, em síntese, no relatório, que «(…) Analisadas em pormenor as facturas contabilizadas pelo SP, quer da C., quer da E., verificamos que o SP adquiriu à C. e à E. cortiça raça.
As supostas aquisições de cortiça (em raça) às sociedades C. e E. são muito estranhas, porquanto, as conclusões dos procedimentos de inspecção levados a efeito àquelas sociedades (vd. Ponto II.1.3), apontam no sentido da totalidade dos “imputs” daquelas serem suportados por papel falso não tendo adquirido cortiça a outros contribuintes, ainda que sem factura, segundo o gerente das mesmas Sr. A.. Daí ser questionável a venda de algo que não se comprou. (…)»

Relativamente, aos meios de pagamentos utilizados, também a AT se debruçou sobre os mesmos da seguinte forma: «(…) O SP pagou as pseudo facturas, quer da C. (cfr. Quadro 1), quer da E. (cfr. Quadro 2) a dinheiro. Os recibos de quitação são datados com a mesma data da factura, tal como acontece com a Guia de Remessa.
Analisada a contabilidade do SP. verificamos que os pagamentos das aludidas facturas é feita por contrapartida da conta Caixa (111) – Anexo 2, que não comporta a saída de tais montantes, ou seja não há dinheiro no Caixa suficiente para dar quitação às referidas facturas, daí o elevado saldo credor que a conta apresenta em 31-12-2000. Importa informar que a conta Caixa apresentava um saldo credor de 54.184,01€ antes de dar quitação às facturas n.ºs 1-47 (da E.) e 1-157 (da C.), passando para um saldo credor de 230.393,26€, após quitação das referidas facturas (vd. Anexo 2, Maio 2000). (…)»

Nesta conformidade, atendendo à actividade desenvolvida pelo Recorrido, a caracterização dos emitentes das facturas, seus fornecedores e dos elementos constantes no relatório de inspecção, conjugado entre si e à luz da experiência, permite concordar com a Recorrente, que representam indícios sérios e credíveis, dada a sua objectividade e seriedade, indiciadores de que a escrita do impugnante não merece credibilidade e as facturas emitidas pela E., Lda. e pela C. para Vinhos, Lda., no ano de 2000 (Maio), eram facturas que não tinham subjacentes fornecimentos de matérias-primas nem prestação de serviços.

Nem a C., nem a E. poderiam ter sido os verdadeiros fornecedores das mercadorias subjacentes às facturas em apreço, pois, pese embora o facto de possuírem instalações (apesar de não serem próprias e se resumirem a um escritório arrendado pela W. – cfr. teor do relatório inspectivo), ficou provado, através das investigações levadas a efeito, que as transacções subjacentes às facturas em apreço não podiam ter sido efectuadas por estas, dado a única actividade comprovadamente efectuada por ambas ser, nessa altura, a de alguma prestação de serviços e o tratamento e comercialização de rolhas de formatos especiais e de qualidade inferior, não tendo adquirido cortiça, pelo que não poderiam vendê-la.

Para formar o seu juízo quanto à falsidade das facturas dos emitentes, e como também decorre do RIT, a AT baseou-se em factos colhidos no âmbito de outros procedimentos inspectivos envolvendo aqueles emitentes, que lhe permitiram constatar, destacadamente, que a actividade da “C. , Lda.” e da E., Lda. se resumia à compra e venda de rolhas de fraca qualidade, formatos especiais e à prestação de alguns serviços e os “outputs” são constituídos, na sua grande maioria, por venda de rolhas de qualidade extra superior, 1.ª, 2.ª e 3.ª e cortiça; que não compraram nem produziram.

Nesta conformidade, procedem as conclusões da Recorrente, uma vez que, a Administração Fiscal, cumprindo o artigo 74.º da Lei Geral Tributária, prova os pressupostos legais que legitimam a sua actuação, ou seja, de que existem indícios sérios de que as operações constantes das facturas não correspondem à realidade.

A sentença recorrida acentua que o relatório inspectivo se circunscreve a factos extraídos de outras inspecções, referindo-se sempre aos emitentes das facturas, afirmando que a AT quase nada averiguou quanto ao Impugnante em concreto e à sua actividade, concluindo transparecer do relatório que sustenta as liquidações impugnadas que o trabalho investigatório levado a cabo sustentou-se apenas em conclusões e factos apurados em outras inspecções a outros contribuintes, nada mais.

Esta abordagem, assim colocada, poderia resumir-se a saber se a Administração Tributária pode bastar-se com factos exclusivamente relativos aos emitentes das facturas indiciadores da falsidade, para obviar à dedução do IVA.

A resposta é afirmativa, como reiteradamente tem decidido o STA, designadamente, no Acórdão do Pleno do STA, de 17/02/2016, proferido no âmbito do processo n.º 0591/16.

Mas, nem nos parece que seja essa, verdadeiramente, a questão que se ajusta aos presentes autos, na medida em que, repristinando as partes relevantes do RIT, se constata que a AT recolheu indícios não só junto dos emitentes das facturas, mas também junto do utilizador, aqui Recorrido, tendo cruzado todos os factos e informação e, ainda, apreciado os meios de pagamento utilizados com referência às facturas em crise.

De acordo com a prova alcançada, os factos indiciadores de falsidade da facturação recolhidos pela AT são os que se mostram transcritos na decisão da matéria de facto, e a que já nos referimos entretanto, e que até reproduzimos com um pouco mais de detalhe supra.

Todo este acervo factual devidamente articulado entre si - e não de uma forma isolada e atomística -, lido à luz das regras da experiência comum, revela um conjunto fortemente indiciador de que as facturas emitidas por estes sujeitos é falsa e não pode corresponder a verdadeiras transacções.
É preciso notar que na designada facturação falsa, na superfície e à primeira vista, tudo se passa de modo regular. Há facturação de mercadoria, há (por vezes) documentos de transporte e até se podem verificar “pagamentos” ou pelo menos emissão de cheques (o que nem sequer corresponde ao nosso caso).

Mas, quando se aprofunda um pouco mais cada um destes procedimentos detectam-se as incongruências e vêm à superfície os indícios de falsidade que estavam “mascarados” pela aparente regularidade formal e documental. É este trabalho que se mostra espelhado no RIT.

Contrariamente ao exarado na sentença recorrida, os serviços de inspecção tributária analisaram ao detalhe toda a actividade do Recorrido, apurando indícios devidamente evidenciados no relatório inspectivo, sendo de destacar que o tipo de cortiça, alegadamente adquirido pelo Recorrido às sociedades C., Lda. e E., Lda., não faz parte do tipo de cortiça que estas compravam aos seus fornecedores; as facturas em causa foram alegadamente pagas em numerário, sendo que à data da respectiva quitação o Impugnante ainda não estava inibido do uso de cheques; os pagamentos das aludidas facturas, de acordo com os elementos relevados na contabilidade do Recorrido, foi feito por contrapartida da conta Caixa (111), a qual não comportava a saída de tais montantes, ou seja, não havia dinheiro no Caixa suficiente para dar quitação aos mesmos documentos; a conta Caixa apresentava um saldo credor de €54.184,01 antes de dar quitação às facturas n.º 1-47 e n.º 1-157, passando para um saldo credor de €230.393,26, após quitação das referidas facturas.

Se, porventura, a fiscalização verificasse apenas a regularidade formal da contabilidade, é fácil compreender que a maior parte da fraude fiscal decorrente da facturação falsa não seria detectada.

Os indícios devem ser suficientemente fortes para que não subsistam dúvidas quanto à falsidade da operação e à consequente tributação ou não dedução do imposto e não podem deixar de ser lidos com prudência e devidamente contextualizados. O objectivo de perseguição da fraude e evasão fiscal não pode permitir abrandar as exigências de rigor e justiça próprias de um Estado de Direito.

Queremos com isto dizer que estando cada um dos sujeitos onerado com a prova de determinados factos índice, essa prova deverá ser exigente e rigorosa, sob pena de deixar intocada a realidade que pretendia alterar.
Se a AT pretende ilidir a presunção de veracidade das declarações e escrita do contribuinte tem de provar os fundados indícios que a abalam (artigo 75.º LGT) sob pena de sofrer as consequências desfavoráveis de um ónus não satisfeito (artigo 414.º do actual CPC); por seu turno, se o contribuinte pretende demonstrar a veracidade das operações facturadas, tem de intervir com a mesma exigência e rigor probatórios, com a mesma cominação.

Ora, a falsidade indiciária da facturação relativa a estes emitentes está amplamente demonstrada. Apesar de não ter sido reconhecida em primeira instância, é nossa convicção não haver que demonstrar que o Recorrido sabia ou devia saber que quem lhe estava a vender ou a prestar serviços não era a sociedade que figurava nas facturas. Assim, sendo dispensável a prova indiciária deste “conhecimento”, e estabelecida em tudo o mais a indiciação de falsidade da facturação, endereça-se ao contribuinte o ónus de provar a materialidade das operações.

Relembramos, considerando o disposto no artigo 19.º, n.º 3 do Código do IVA, para que a Administração Tributária obste à dedutibilidade do IVA mencionado em facturas existentes na escrita do contribuinte e relativamente às quais considera não se terem efectivamente realizado as operações nelas consubstanciadas, não tem de fazer prova da existência de acordo simulatório (existência de divergência entre a declaração e a vontade negocial das partes por força de acordo entre o declarante e o declaratário, no intuito de enganar terceiros - cfr. artigo 240.º do Código Civil) para satisfazer o ónus de prova que sobre si impende – cfr. Acórdão do Pleno do STA, de 17/02/2016, proferido no âmbito do processo n.º 0591/16.

O que deixámos exposto é suficiente para concluir que o tribunal recorrido errou no julgamento quando decidiu que a Autoridade Tributária não cumpriu o ónus que lhe incumbia de provar a simulação de transacções comerciais, não incorrendo, por isso, em erro sobre os pressupostos.

Aqui chegados, e considerando que Administração Fiscal satisfez o ónus da prova que sobre si recaia, importa avançar para o outro elemento que se prende com a prova da veracidade das transacções em causa, sendo inequívoco que cabe ao contribuinte a demonstração de tal realidade.

Destarte, recaindo o ónus da prova sobre o Recorrido, competia-lhe demonstrar a materialidade das operações económicas subjacentes às facturas, nomeadamente, que os fornecimentos e aquisições de serviços se haviam efectivado com as sociedades emitentes, e não com qualquer outra entidade, as quantidades de mercadorias em causa, o local, a natureza, os preços praticados em relação aos bens que estariam em causa em cada uma das facturas.

Cabia, pois, ao Recorrido demonstrar a existência das operações materiais tituladas pelas facturas desconsideradas, nomeadamente, uma pormenorizada e detalhada descrição da matéria-prima adquirida (natureza, quantidades, locais e datas da realização das operações subjacentes às facturas), eventuais trabalhadores utilizados ou afectos a essa actividade, meios de transporte entre outros elementos. De salientar que tão-pouco o Recorrido alegou que os bens tivessem sido fornecidos directamente por uma entidade terceira. É verdade que as circunstâncias descritas relativamente às sociedades “E.” e “C.” não as impediam hipoteticamente de efectuar realmente as transacções descritas nas facturas reputadas como falsas. Contudo, no pressuposto de que esses bens tivessem sido fornecidos directamente por uma entidade terceira, cumpria ao Impugnante alegar e demonstrar a existência desse fornecimento, nomeadamente identificando o concreto fornecedor “terceiro”, já que esses factos não constam das contabilidades do Impugnante nem das sociedades “E.” e “C.”. Note-se que a AT verificou que não existe registo de compras a outros fornecedores por parte das sociedades “E.” e “C.”.

Salientamos que, na sua petição de impugnação, o Recorrido se concentra, essencialmente, em vincar o vício que a sentença recorrida entendeu verificar-se, mas que, como vimos, não ocorre. Com efeito, o acto impugnado não enferma de vício de falta de fundamentação material/substancial, pelo que, logicamente, também não poderá incorrer em falta de fundamentação formal, ou seja, o procedimento tributário que culminou na liquidação impugnada não violou nem o artigo 58.º, nem o artigo 74.º, n.º 1, ou o artigo 75.º, n.º 1, nem o artigo 77.º, n.º 1, todos da Lei Geral Tributária.

Partindo deste óbice, que na sua óptica se verificaria, conclui o impugnante pela inexistência do facto tributário – cfr. artigo 27.º da petição inicial: “Se no plano da fundamentação, as liquidações são omissas quanto aos motivos suficientes para sustentar a liquidação notificada, também o são os seus aspectos legais, pelo que inexiste facto tributário que constitui pressuposto da liquidação agora impugnada”.

Como começámos por dizer, o acto impugnado funda-se, de direito, no artigo 19.º, n.º 3 do Código do IVA, sendo destituído chamar à colação, em sede contenciosa, o artigo 35.º do Código do IVA, que, por não estarem em causa quaisquer requisitos formais das facturas (ou a falta deles), a AT não utilizou na fundamentação do acto, nem, tão-pouco, se verteu qualquer motivação de facto nesse sentido na petição de impugnação. Também não se compreende a mera alusão ao artigo 23.º do Código do IRC, na medida em que se mostra impugnada uma liquidação de IVA.

Nesta conformidade, somente inexistirá o facto tributário, como conclui o Recorrido na petição de impugnação, se, de facto, as relações comerciais espelhadas nas duas facturas em apreço se tiverem traduzido na compra efectiva e real por parte do impugnante à E., Lda. e à C., Lda. de cortiça de raça escolhida de 1.ª a 4.ª.

O impugnante limita-se a invocar, de forma conclusiva, que, no exercício da sua actividade, no ano de 2000, estabeleceu relações comerciais com essas sociedades emitentes das facturas, que as compras de cortiça foram reais e que as facturas foram pagas através do aceite de letras de câmbio, tendo sido pagas em dinheiro – cfr. artigos 3.º, 5.º, 7.º e 8.º da petição inicial e ponto H) do probatório.

Explicou, ainda, o impugnante a razão para os pagamentos das suas compras de cortiça terem sido efectuados em dinheiro: deveu-se ao facto de ele e a sua mulher terem sido inibidos de emitir cheques pelo Banco de Portugal no último trimestre de 2000 – cfr. artigo 9.º da petição inicial e ponto E) da decisão da matéria de facto.

Considerou provado, ainda, o tribunal recorrido, por via da prova testemunhal produzida, que os funcionários do impugnante transportaram várias cargas de cortiça das instalações da “E.” e da “C.” para serem cozidas nas instalações de “Joaquim Beire da Rocha” – cfr. ponto G) do probatório.

A verdade é que as facturas em crise não conseguem, só por si, comprovar a realidade que se pretende demonstrar, nem mesmo os outros elementos documentais constantes da contabilidade, bem como a prova testemunhal produzida.

Analisado o relatório de inspecção, a prova documental e a prova testemunhal, resulta que o Recorrido não logrou demonstrar que comprou as matérias que constam das facturas e que as mesmas foram fornecidas pelos emitentes das mesmas; não tendo feito tal prova, a impugnação terá de improceder.

Efectivamente, não existe nos autos qualquer comprovativo de que as mercadorias descritas nas facturas tenham sido pagas, dado não ser possível realizar qualquer nexo entre as letras reproduzidas no ponto H) do probatório e as compras de cortiça em apreço, tanto mais que, segundo é invocado, tais títulos terão sido pagos em numerário posteriormente às datas em que foram emitidas as facturas. Como bem alerta a AT, os recibos juntos aos autos, que supostamente dão quitação dessas compras, estão datados com a mesma data das respectivas facturas (05/05/2000 recibo 1-47; 09/05/2000 recibo 1-157 – cfr. fls. 25 e 29 do processo físico).

Por outro lado, se as facturas se reportam a transacções efectuadas em Maio de 2000, a inibição de emissão de cheques no último trimestre de 2000 não explica o pagamento das compras de cortiça em dinheiro na data da emissão dos respectivos recibos (em Maio de 2000).

Neste circunstancialismo, perde força probatória o facto de os funcionários do impugnante terem transportado várias cargas de cortiça das instalações da “E.” e da “C.” para serem cozidas nas instalações de “J.”, principalmente porque, mais uma vez, nenhum nexo ou relação causal é possível realizar com respeito às mercadorias, em concreto, descritas nas facturas em crise. Realmente, não está demonstrado que tenha sido a cortiça adquirida pelo impugnante através das duas facturas emitidas em apreço que tenha sido transportada em várias cargas para ser cozida na caldeira do Senhor J., industrial da freguesia de Santa Maria de Lamas.

Donde resulta que a AT demonstrou haver indícios suficientes de facturação falsa, não conseguindo o Recorrido cumprir a sua parte do encargo probatório mediante prova da materialidade das operações facturadas, procedendo as conclusões I e J das alegações do recurso. Por conseguinte, existe o facto tributário e o Recorrido não terá, então, direito à dedução do IVA, pelo que andou bem a AT.

Nesta conformidade, impõe-se conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e julgar a impugnação judicial improcedente.

Conclusões/Sumário

I - No caso de facturas falsas, compete à AT fazer a prova de que estão verificados os pressupostos legais que legitimam a sua actuação correctiva e, só caso o faça, passa a recair sobre o contribuinte o ónus da prova da existência e dimensão dos factos tributários que alegou como fundamento do seu direito à dedução do imposto.

II – Impõe-se, portanto, à Administração Tributária abalar a presunção de veracidade da declaração do imposto e dos respectivos documentos de suporte, atento o princípio da declaração vigente no nosso direito (artigo 75.º da LGT), só depois passando a competir ao contribuinte o ónus de provar a veracidade do declarado, o que quer dizer que se a Administração Tributária não fizer prova do bem fundado da formação do seu juízo, a questão relativa à legalidade do seu agir terá de ser resolvida contra ela, sem necessidade de ir analisar se a Impugnante logrou ou não provar, em tribunal, a veracidade da declaração.

III - Tal prova não tem de ser directa e dogmática, no sentido de evidente e intocável, antes pode resultar de circunstâncias colaterais e indirectas que, atentas a idoneidade dos respectivos meios de suporte e as regras da experiência comum, indiciem, segundo padrões de avaliação e aferição pautados por critérios de razoabilidade e normalidade, um determinado resultado como o mais legitimamente atendível.

IV – Para que a Administração Tributária, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 19.º do CIVA, obste à dedução do IVA mencionado em facturas existentes na escrita do contribuinte e relativamente às quais considera não se terem efectivamente realizado as operações nelas consubstanciadas, não tem de fazer prova da existência de acordo simulatório (existência de divergência entre a declaração e a vontade negocial das partes por força de acordo entre o declarante e o declaratário, no intuito de enganar terceiros – cfr. artigo 240.º do Código Civil) para satisfazer o ónus de prova que sobre si impende.

V - Basta à Administração Tributária provar a factualidade que a levou a não aceitar a respectiva dedução de imposto, factualidade essa que tem de ser susceptível de abalar a presunção de veracidade das operações constantes da escrita do contribuinte e dos respectivos documentos de suporte.

IV. Decisão

Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e julgar a impugnação judicial improcedente.
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Custas a cargo do Recorrido em ambas as instâncias; sendo que, nesta instância, as custas não incluem a taxa de justiça, uma vez que não contra-alegou.
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Porto, 23 de Junho de 2021


Ana Patrocínio
Cristina Travassos Bento
Celeste Oliveira