Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00929/19. 2BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:10/31/2019
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Sumário:1. No caso de arrendamento apoiado não está em causa, em princípio, qualquer direito fundamental, em particular o direito à habitação, em termos absolutos ou isolados, mas em concurso com o direito à habitação por parte de outros pretendentes a esse apoio.

2. Pelo que a impugnação do acto que ordena o despejo do locado está sujeito ao prazo de 3 meses a que alude 58º, n.º1, alínea b), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

3. Não tendo sido proposta a acção principal neste prazo, é de indeferir o pedido de suspensão da eficácia, face à ausência do requisito da aparência do bom direito, consignado no n.º 1 do artigo 120.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (de 2015)*
* Sumário elaborado pelo relator.
Recorrente:D.F.S.S.
Recorrido 1:Município de G...
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Procedimento Cautelar Suspensão Eficácia (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
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Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

D.F.S.S. veio intentar o presente RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, de 26.07.2019, pela qual foi julgada improcedente a providência cautelar intentada contra o Município de G... para suspensão da eficácia do acto de despejo do locado municipal que ocupa.

Invocou para tanto, em síntese, que: o Juiz a quo errou ao não entender estarem preenchidos os requisitos do artigo 76º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos; foram várias e complexas as questões suscitadas pelo Requerente o eu justificaria um prazo mais alargado; o município de G... actuou com “tiques” preconceituosos por o Requerente ser de etnia cigana, para se ver livre deste agregado familiar a favor de outros munícipes que diariamente reivindicam habitações da autarquia; a verificar-se o despejo este agregado familiar sofrerá dolorosas privações e prejuízos irreparáveis; o Requerente está a lutar em desigualdade de armas dado o Município ter um Departamento Jurídico competente; finalmente, a sentença é nula por não estar assinada.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O Ministério Público junto deste Tribunal não emitiu parecer.

O Juiz a quo proferiu despacho de sustentação defendendo não se verificar a apontada nulidade por a sentença estar assinada digitalmente.
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Cumpre decidir já que nada a tal obsta.
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I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:

a) O Recorrente não se conforma com o facto de o M.mo Juiz "a quo" entender não estarem preenchidos os requisitos enunciados no artigo 76º da LPTA para ser conhecida a providência cautelar requerida.

b) Foram várias as questões que em tal peça processual o recorrente indicou, às quais o Meritíssimo Julgador não se pronunciou e que este deveria fazê-lo oficiosamente, que pela sua relevância a após diligências probatórias, implicaria uma decisão diferente.

c) Em outros processos judiciais e administrativos, o prazo para apresentação de acção de que depende a suspenso de eficácia como procedimento cautelar, são muito mais alargados e neste particular caso tal justifica-se pela excepcional complexidade e dificuldade da prova e de todo um processo burocrático intentado pelo Município de G....

d) O Recorrente e o seu agregado familiar é de etnia cigana, o que desde logo, provoca um desconforto em lidar com a situação, são notórios os "tiques" preconceituosos e xenófobos do Município de G..., ora Recorrido, que deveria ter um particular cuidado em lhes veicular uma melhor informação, atendendo ainda ao demasiado baixo grau académico do Recorrente e do seu clã ou agregado familiar.

e) A verificar-se o despejo, esta família sofrerá dolorosas privações e prejuízos irreparáveis que, nesta altura e pelo já foi dito, são insusceptíveis de serem contabilizados.

f) Inexistem dúvidas de que o que motivou o Município de G... de optar por um despejo contra uma família desta etnia, é a pressão que sofre diariamente dos munícipes que reivindicam habitações que são propriedade da autarquia e que esta se vê incomodada e a braços com um problema de não fácil resolução, pelo que procura-se o "elo mais fraco".

g) O Recorrente está a travar uma luta desigual, devendo reconhecer-se que estão em confronto duas realidades distintas, uma pobre e sem meios e outra até dotada com um Departamento Jurídico competente, mas que neste caso andou mal e aconselhou ainda pior.

h) Para o Recorrente, a decisão do Senhor Juiz "a quo" manifesta uma insuficiência factual para a boa decisão da causa, uma vez que foram omitidas diligências probatórias que impunham outra decisão, porventura mais favorável àquele.

i) É lícito ao recorrente arguir a nulidade da douta sentença, ora em crise - data vénia ao Ilustríssimo Julgador - por faltar a assinatura do magistrado que a proferiu, o que constitui nulidade da mesma nos termos dos artigo 613º, nº 2, 615º, nº 1 al. a) "ex vi" art. 666º, nº 1, todos do CPC, o que expressamente se invoca.
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II –Matéria de facto.
A decisão recorrida deu como (indiciariamente) provados os seguintes factos, sem reparos nesta parte:

A) O Requerente foi notificado por Edital datado de 26.11.2018 e afixado em 29.11.2018, de que estava obrigado a desocupar a habitação e a entrega-la livre de pessoas e bens, no prazo de 30 dias no dia 04.01.2019, sob pena de ser ordenado e executado o despejo (vide folhas 11 dos autos e folhas 12/13 de páginas 400 a 458 do processo administrativo eletrónico).

B) Em 06.12.2018, o Requerente apresentou um requerimento na Câmara Municipal de G..., pedindo que as conclusões do Edital sejam reanalisadas e a família mantenha o direito a ser considerada real e legítima arrendatária da habitação (folhas 16 a 18 de páginas 460 a 531 do processo eletrónico).

C) O Requerente intentou a presente providência cautelar no dia 11.04.2019 (vide folhas 2 dos autos).

D) Até ao dia 25.07.2019, o Requerente não tinha instaurado qualquer outro processo neste tribunal (vide informação que antecede e print retirado do SITAF na página 75 do SITAF).
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III - Enquadramento jurídico

1. A nulidade da sentença.

Ao contrário do que refere o Recorrente, o Juiz a quo assinou a sua sentença, digitalmente, pelo que não se verifica a nulidade que invoca, a da falta de assinatura que, de resto, sempre seria suprível – n.º2 do artigo 615º do Código de Processo Civil.

Improcede, pois, esta arguição.
2. O pedido de suspensão da eficácia; o requisito do fumus boni iuris (a aparência do bom direito).
O n.º 1 do artigo 120.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (de 2015) determina:

“Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, as providências cautelares são adotadas quando haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal e seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente.”

Face ao teor deste preceito - que não distingue entre providências conservatórias, como o pedido de suspensão da eficácia de um acto, e providências antecipatórias - é necessário, além do mais, que seja “provável que a pretensão formulada ou a formular no processos principal venha a ser julgada procedente para que uma providência antecipatória possa ser concedida. Como, neste domínio, o requerente pretende, ainda que a título provisório, que as coisas mudem a seu favor, sobre ele impende o encargo de fazer prova que as coisas mudem a seu favor, sobre ele impende o encargo de fazer prova sumária do bem fundado da sua pretensão deduzida no processo principal” – Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2005, página 609.

O procedimento cautelar caracteriza-se pela sua instrumentalidade, (dependência da acção principal), provisoriedade (não está em causa a resolução definitiva de um litígio) e sumariedade (summaria cognitio do caso através de um procedimento simplificado e rápido - Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo processo civil, Lex, 1997, paginas 228 a 231.

Ora sumariamente apreciada a questão da tempestividade da acção principal, com reflexos na apreciação dos requisitos da providência cautelar, tem de se concluir que a decisão recorrida, ao contrário do pretendido pelo ora Recorrente, se mostra acertada.

O Recorrente, de resto, espraia-se em considerandos que passam ao largo dos fundamentos da decisão recorrida.

A decisão recorrida afirma que a acção principal não foi intentada no prazo de três meses desde a notificação do acto suspendendo, pelo que se verifica a “ausência manifesta da aparência do direito”.

Com efeito dispõe o artigo 58º, n.º1, alínea b), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, que salvo disposição legal em contrário, a impugnação de actos nulos não está sujeita a prazo e a de actos anuláveis deve ser intentada no prazo de 3 meses.

Isto sendo certo que a Lei de Processo nos Tribunais Administrativos há muitos anos foi revogada, entrando então em vigor o Código de Processo nos Tribunais Administrativos (2003).

É, portanto, irrelevante, para a contagem deste prazo, a complexidade do processo.

O que importa é saber se a impugnação está sujeita ao prazo de 3 meses, se o acto for meramente anulável, ou não está sujeita a prazo, se o acto fôr nulo.

A regra geral de invalidade dos actos é a anulabilidade, sendo excepcional a verificação da sua nulidade – artigos 162º e 163º do Código de Procedimento Administrativo (de 2015).

No caso apenas se poderia configurar, nos termos em que o requerimento de suspensão da eficácia foi apresentado, a ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental, a prática de um acto que constitua ou seja determinado pela prática de um crime, ou o vício de desvio de poder para fins de interesse privado – alíneas d) e e) do Código de Procedimento Administrativo.

O que não se verifica.

Como se refere no acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 06.03.2015, processo n.º 1064/13.2 PRT “…o direito à habitação, enquanto direito fundamental de natureza social, “pressupõe a mediação do legislador ordinário destinada a concretizar o respetivo conteúdo” (Acórdão do TC n.º 829/96), dele não se retirando um “direito imediato a uma prestação efetiva” (Acórdão do TC n.º 280/93.”.

Está aqui em causa não o direito à habitação com apoio social por parte do inquilino actual em termos isolados e absolutos, mas também o direito à habitação por parte de candidatos que ainda não o têm, num contexto social de carência de meios financeiros públicos e aumento do número de pessoas com dificuldade em arranjar habitação condigna.

Neste sentido os acórdãos deste Tribunal Central Administrativo Norte, de 04.03.2016, no processo 2178/15.0 PRT e de 25.01.2019, no processo 2681/17.7 PRT.

No contexto do caso concreto, o eventual benefício de terceiros não se trata de mero interesse privado, tendo em conta o disposto na alínea e) do Código de Procedimento Administrativo, mas ainda interesse público, de apoio social na satisfação de necessidades de habitação por parte de pessoas economicamente carenciadas.

Finalmente, apesar das imputações de “tiques” racistas por parte do Município demandado, nada nesse ponto é concretizado e, menos ainda se pode configurar a prática de um crime de discriminação racial, previsto e punível pelo artigo 240º do Código Penal. A simples circunstância de o Requerente ser de raça cigana, acompanhado do indeferimento da sua pretensão, não permite concluir que existiu por parte do Município uma urdição racial. Caso contrário, teríamos de concluir que todos os indeferimentos seriam motivados por motivos raciais e apenas o deferimento seria legal e válido, o que, como é evidente, não fara sentido.

Não se verificando, em abstracto, a nulidade do acto suspendendo, o Requerente tinha o prazo aplicável ao caso era de 3 meses.

Como o acto foi publicado e tinha uma data para produzir efeitos, o dia 04.01.2019 (facto provado sob a alínea A), o Requerente tinha até ao dia 04.04.2019 para intentar a acção.

Ora até ao dia 25.07.2019 não o tinha feito (facto provado sob a alínea D).

Pelo que deixou esgotar o prazo de 3 meses que tinha para impugnar o acto suspendendo.

O que significa que não é provável o êxito da acção, pelo contrário, é provável que claudique pela verificação da excepção de caducidade.

Termos em que se impõe manter a decisão recorrida, de indeferir o pedido de providência cautelar por não se verificar o requisito fumus boni iuris, a aparência do bom direito.
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IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em NEGAR PROVIMENTO ao presente recurso jurisdicional pelo que mantém a decisão recorrida.

Custas pelo Recorrente.
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Porto, 31.10.2019

Rogério Martins
Luís Garcia
Conceição Silvestre