Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01317/09.4BEPRT-A
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:11/30/2016
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:CESSÃO DE CRÉDITOS; HABILITAÇÃO DE CESSIONÁRIO; NOTIFICAÇÃO; CITAÇÃO;
ARTIGO 583º, N.º1, DO CÓDIGO CIVIL; ARTIGO 449º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.
Sumário:1. A citação para a acção de condenação no pagamento do crédito cedido, proposta pelo credor cessionário, produz o mesmo efeito jurídico que a notificação prevista no artigo 583º, n.º1, do Código Civil, cessando, com prática aquele acto judicial, a inoponibilidade da transmissão pelo cessionário ao devedor.
2. Se a comunicação da cessão se faz ao réu-devedor através de acção judicial e este não impugna o pedido, quem dá causa àquela é o credor-cessionário que usou injustificadamente da via judicial quando podia ter feito uma mera notificação extrajudicial. Daí que, nesta hipótese, impenda sobre ele o pagamento das custas como aquela norma estipula, em consonância, aliás, com a regra geral do artigo 449º do Código de Processo Civil.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:A... – Empresa Nacional de Arquitectura – Unipessoal, Ldª
Recorrido 1:Serviços da Acção Social da Universidade do Porto e Outro(s)...
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Outros despachos
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
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Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

A... – Empresa Nacional de Arquitectura – Unipessoal, Ldª veio interpor o presente recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto da sentença de 12.04.2016, que julgou improcedente o incidente de habilitação de cessionário que a Recorrente deduziu contra os recorridos, Serviços da Acção Social da Universidade do Porto, Massa Insolvente de A&F – Sociedade de Construções e Obras Públicas, Ldª, LMCM, Ldª..


Invocou para tanto, em síntese, que a decisão recorrida violou, por erro de interpretação, além do mais, as normas dos artigos 217º, 406º, 424º, 577º e 583º do Código Civil.

Os Recorridos Serviços da Acção Social da Universidade do Porto e Massa Insolvente de A&F – Sociedade de Construções e Obras Públicas, Ldª, contra-alegaram, pugnando pela manutenção do decidido.

O Ministério Público neste Tribunal não emitiu parecer.

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Cumpre, pois, decidir já que nada a tal obsta.
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I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:

1 – A recorrente, como cessionária, recebeu um conjunto de créditos sobre a Ré por cessão da sociedade “LMCM, L.dª”, créditos que haviam sido cedidos a esta pela “A&F, Sociedade de Construções e Obras Públicas, Ldª”, originária credora.

2 – Foi feita comunicação das referidas cessões ao devedor, pelo originário credor.

3 - O artigo 583º do Código Civil, não contém, na sua literalidade, e muito menos no seu espirito qualquer comando, que a comunicação da cessão de créditos deva ser feita pelo credor originário ou actual (para ser eficaz).

4 - Aliás, a notificação pode ser feita quer pelo cedente, quer pelo cessionário.

5 - O espírito da lei ao exigir a comunicação de créditos ao devedor, é o de dar a conhecer ao devedor a realização do negócio e identidade de quem é o novo credor, para que ele saiba a quem pagar.

6 - O que é verdade, é que, feita a comunicação da cessão ao devedor o cessionário será, para todos os efeitos o credor (ou seja, a eficácia da cessão com relação ao devedor resulta tão somente do conhecimento deste).

7 - O que importa na comunicação é a comunicação ao devedor de quem é o actual credor.

8 - Sendo que existe Jurisprudência que tem sustentado até que basta o conhecimento pelo devedor da transmissão do crédito, por parte do credor.

Por outro lado

9 - A cessão de créditos é sempre válida entre as partes.

10 - Com efeito, a comunicação visa apenas a sua produção de efeitos - eficácia - com relação ao devedor e nada tem que ver com o negócio entre si (e sua validade).

11 - A situação é tal que o novo credor pode a todo o tempo notificar o devedor da cessão.

12 - Sendo que a partir daí o devedor não pode eximir-se da sua obrigação na pessoa do actual credor.

13 - Quer dizer, ainda agora, a todo o tempo, visto que a obrigação não foi cumprida, a “A... – Empresa Nacional de Arquitectura – Unipessoal, Ldª”, pode (poderá sempre) notificar, de novo, o devedor da cessão de créditos e, neste caso, ainda que não houvesse notificação anterior (que houve) a nova notificação produzia sempre efeitos.

14 - E poderia – poderá sempre - a “A... – Empresa Nacional de Arquitectura – Unipessoal, Ldª”, requerer a sua habilitação nestes autos.

15 - Em face do que, salvo o devido respeito que é o maior, entende a recorrente que o despacho recorrido ofende a Lei, fazendo dela uma má aplicação, devendo por isso ser revogada e substituída por outra que julgue procedente a habilitação da recorrente, com todas as consequências legais.

16 - Violou, assim, por erro de interpretação a decisão recorrida, além do mais, as normas dos artigos 217º, 406º, 424º, 577º e 583º do Código Civil.


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II – Matéria de facto.

A decisão recorrida deu como provados os seguintes factos, sem reparos nesta parte:


1- Em 16.11.2012, a «A&F, Lda.» notificou os «Serviços de Acção Social da Universidade do Porto», por carta não datada, nem assinada, de que havia cedido todos os seus créditos à sociedade «A... - Empresa Nacional de Arquitectura, Unipessoal, L.da» (documentos juntos com a petição inicial e facto admitido pela Ré).

2- Em 31.12.2010 foi assinado pela empresa «A&F, Sociedade de Construções e Obras Públicas, Lda.» e por «LMCM, Lda.», um documento designado como “Contrato de cessão de créditos em dação em cumprimento”, no qual se declara que são transmitidos os créditos no valor global de 301.616,23 euros, que a «A&F» é detentora sobre os «Serviços de Acção Social da Universidade do Porto» e outros.

3- No dia 30.06.2011, foi assinado pela empresa «LMCM, Lda.» e «A... - Empresa Nacional de Arquitectura, Unipessoal, Lda.», um documento designado como “Contrato de cessão de créditos em dação em cumprimento”, no qual se declara que são transmitidos os créditos no valor global de 107.160,49 euros, que a «A&F» havia cedido a «LMCM, Lda.», por ser credora dos «Serviços de Acção Social da Universidade do Porto» e outros.


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III - Enquadramento jurídico.
Dos factos provados resulta que o crédito de “A&F” sobre os “Serviços Sociais da Universidade do Minho” foi objecto de duas cessões no tempo. A primeira, celebrada entre “A&F” na posição de cedente e “LMCM, Ldª”, na posição de cessionária, mas esta cessão não foi notificada ao devedor “Serviços Sociais da Universidade do Minho”.

A segunda cessão celebrada entre “LMCM, Ldª”, na posição de cedente e “A... – Empresa Nacional de Arquitectura, Unipessoal, Ldª”, na posição de cessionária, não tendo também esta cessão sido notificada ao devedor “Serviços Sociais da Universidade do Minho.”

Foi, depois das duas cessões, notificada ao referido devedor uma cessão que nunca existiu, a cessão de todos os créditos da empresa “A&F” à A...-Empresa Nacional de Arquitectura, Unipessoal, Lda”.

Determina o artigo 577º, nº 1, do Código Civil, que o credor pode ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito, independentemente do consentimento do devedor, contanto que a cessão não seja interdita por determinação da lei ou convenção das partes e o crédito não esteja, pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor.

Ora, desde logo, como defende a Recorrente, o artigo 583º do Código Civil, não contém nem na sua letra nem no seu espírito a restrição de que a comunicação da cessão de créditos deva ser feita pelo credor originário ou actual, para ser eficaz. Menos ainda para ser válida.

Sobre este tema cabe aqui citar o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06.11.2012, no processo 314/2002.S1.L1, explanando entendimento com o qual concordamos integralmente:

“A cessão de créditos, como negócio jurídico de transmissão da titularidade de direitos de crédito, configura um contrato pelo qual o credor transmite a terceiro um direito de crédito, independentemente do consentimento do respectivo devedor – art. 577º-1 C. Civil.

Ocorre, então, uma modificação subjectiva no vínculo obrigacional, correspondente à substituição do credor originário por um novo credor, mantendo-se os demais elementos da relação obrigacional (objecto e sujeito passivo).

Do regime legal, que é o geral em matéria de direito dos contratos, decorre, pois, como é entendimento pacífico, que os efeitos da cessão se produzem imediatamente entre as partes, isto é, por mero efeito do contrato (art. 406º C. Civil).

Assim, por via do referido contrato a Autora, ora Recorrida, viu para si transmitido o crédito da Sociedade cedente e adquiriu a qualidade de credora da Ré-recorrente, pois que não se questiona a validade do contrato de cessão nem a sua eficácia imediata inter partes.

Coisa diferente, de resto, não resulta do art. 583º, ao ressalvar apenas que os efeitos da cessão não se produzem em relação ao devedor – de boa fé, como resulta do n.º 2 do preceito - em momento anterior ao conhecimento da mesma.

Condiciona, portanto, a lei a eficácia da cessão em relação ao devedor ao conhecimento, por este, de que o crédito foi cedido, seja por via de notificação, seja de aceitação ou, apenas, por dela saber por qualquer outra fonte ou meio de conhecimento.

Por isso, como se escreveu no ac. deste Tribunal de 03/6/2004 (proc. 04B815), o que resulta das normas do art. 583º é que “o que torna a cessão eficaz em relação ao devedor é o facto de este a conhecer e esse conhecimento pode revelar-se de várias maneiras entre as quais a notificação de um dos contraentes da cessão”.

Numa palavra, a eficácia da cessão está unicamente condicionada ao conhecimento dela pelo devedor cedido.

4. 2. 3. - Importará, então, entrando no núcleo central da questão, tomar posição sobre se foi ou não dado conhecimento da cessão à Recorrente, designadamente através do acto de citação.

A razão de ser da exigência do conhecimento da cessão decorre como bem se compreende, da necessidade a protecção do interesse do devedor em saber, a cada momento, quem é o seu credor pois que, em princípio, não admite a lei eficácia liberatória da prestação feita ao credor aparente, havendo, enfim, que proteger a boa fé do devedor que confia na aparência de estabilidade subjectiva do contrato, frustrada pela omissão de informação do primitivo credor cedente. Se, nesse caso, cumpre perante este, cumpre perante quem crê ser ainda seu credor, não devendo, por isso, ser prejudicado (cfr. arts. 707º e 583º-2 C. Civil).

Como se extrai do regime acolhido pelos arts. 583º a 585º, no seu conjunto, ao consagrar a ineficácia relativa da cessão enquanto o devedor não teve conhecimento da transferência do direito, e em que, “perante ele, aparentemente, a situação não se modificou (…), a lei protege a confiança do devedor nessa aparência, impedindo que, até ao momento em que este teve conhecimento seguro da alteração no lado activo da relação, essa modificação na titularidade do crédito lhe seja oposta” (L.M. PESTANA DE VASCONCELOS, “A Cessão de Créditos em Garantia e a Insolvência”, 405).

Dirige-se, deste modo, a tutela da lei, a impedir que a modificação da obrigação quanto ao credor venha a prejudicar os meios de defesa a que o devedor poderia ter recorrido, caso ela não se tivesse verificado, meios que só lhe ficam vedados quando assentem em factos posteriores ao conhecimento da cessão (cfr. A. e ob. cit., 408).

O desiderato legal é, pois, em qualquer caso, que o devedor, como terceiro relativamente ao contrato de cessão, não veja a sua situação alterada, no sentido do agravamento, por via da transferência do direito de crédito.

Por isso, a notificação, enquanto comunicação do facto, visa, tão só, a protecção do devedor de boa fé, que deve manter-se a coberto dos riscos de um negócio a que foi alheio, marcando, a um tempo, os termos inicial e final de utilização dos meios de defesa oponíveis pelo devedor.

4, 2. 4. - A citação, como acto pelo qual se dá conhecimento a uma pessoa de que foi proposta contra ela determinada acção, de cujo conteúdo lhe é dado conhecimento, contém, como a notificação judicial, a potencialidade de dar conhecimento de um facto, no caso, do contrato de cessão (cfr. art. 228º-1 e 2 CPC).

Cumprirá, pois, a mesma função.

Sendo, como dito, o conhecimento o elemento relevante quanto à eficácia da cessão e ao momento a que se reporta, o que interessa determinar é se a citação é, ou não, um acto que dê a conhecer ao devedor a transferência do direito, seja, ou não, equiparável à notificação.

Assim, como faz notar ASSUNÇÃO CRISTAS, em anotação ao acórdão de 3 de Junho de 2004 (“Cadernos de Direito Privado”, n.º 14, pg. 63), “mesmo que se conclua que a citação não é o mesmo que notificação, ainda será necessário sustentar que ela não produz o conhecimento da transmissão por parte do devedor”.

Ora, se determinante é o “conhecimento” é indiferente, do ponto de vista do efeito jurídico, classificar a citação como notificação ou simples modo de conhecimento, e não se vê como sustentar que a citação não seja meio idóneo de transmissão ao devedor do pertinente e adequado “conhecimento”.

Daí que, como decorrência lógica do regime que se deixou enunciado, poderá afirmar-se que se a ineficácia da cessão relativamente à pessoa do devedor perdurou até à data da citação, porque não tinha conhecimento do contrato, essa ineficácia cessará no momento da citação.

Com efeito, “uma vez citado, o devedor cedido não está mais numa situação de ignorância que deva ser protegida, ainda que pretenda contestar, invocando mesmo a invalidade ou a ineficácia da transmissão, não poderá ignorar a transmissão (ainda que hipotética) e cumprir com eficácia perante o antigo credor. Se assim fizer, se cumprir perante o anterior credor, o cessionário poderá invocar o n.º 2 do art. 583º e exigir novo pagamento” (A. e Rev. cit., 64).

Com o “conhecimento” da transmissão, que se concretiza através da citação para a acção – ficando o cedido ciente da existência da cessão e da impossibilidade de invocar o seu desconhecimento (art. 583º-2 cit.) -, o direito do cessionário, que até então era inoponível ao devedor cedido, protegido pela ineficácia, passa a gozar da exigibilidade que antes daquele acto a ineficácia relativa condicionava.

4. 2. 5. - Resta, a terminar, fazer alusão expressa à tese da Recorrente sobre a necessidade de notificação prévia à instauração da acção, transcrevendo, mais uma vez, como resposta, as palavras da anotação referida: “Admitir que o cessionário não poderá propor acção contra o devedor sem o ter notificado previamente gera uma situação algo curiosa, pois também o antigo credor (cedente), no rigor técnico, o não poderá fazer, porquanto já não é credor, a este careceria legitimidade e àquele faltaria um elemento essencial da causa de pedir”, fundamento este invocado pelo ac. deste Supremo de 09/11/2000 (CJSTJ, VIII – III -121) para afastar como efeito da citação o previsto no art. 583º-1.

4. 2. 6. - Conclui-se, em conformidade com o expendido, que, por via da citação para a acção, a Ré teve conhecimento da cessão do crédito, transmissão que, a partir desse momento, se tornou plenamente eficaz, com a consequente exigibilidade da dívida pela Autora cessionária, sem necessidade da prática de outro acto, nomeadamente instauração de nova acção.

Pelo que, respondendo à questão, como inicialmente proposta, se deixa afirmado que a citação para a acção de condenação no pagamento do crédito cedido, proposta pelo credor cessionário, pode produzir o mesmo efeito jurídico que a notificação prevista no art. 583º-1 C. Civil, cessando, com prática aquele acto judicial, a inoponibilidade da transmissão pelo cessionário ao devedor.”

Apenas haverá que fazer uma ressalva quanto a custas.

Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.06.2004, processo 04B815:

“É claro que não é totalmente igual dar-se conhecimento da cessão ao devedor antes da propositura da acção condenatória ou no decurso desta através da respectiva citação; mas a diferença reporta-se tão-só ao encargo de custas tal como se infere do nº. 3 do art. 662º do C.P.C.

Se a comunicação da cessão se faz ao Réu-devedor através de acção judicial e este não impugna o pedido, quem dá causa àquela é o credor-cessionário que usou injustificadamente da via judicial quando podia ter feito uma mera notificação extra-judicial. Daí que, nesta hipótese, impenda sobre ele o pagamento das custas como aquela norma estipula, em consonância, aliás, com a regra geral do art. 449º do C.P.C.

Mas isto em nada interfere com a substância da relação material: não é por ter usado de modo excessivo uma via judicial que o credor deixa de ser titular de um direito de crédito que lhe deve ser pago.”

A decisão recorrida violou, pois, as normas jurídicas invocadas pela recorrente.

Termos em que se impõe revogar a decisão recorrida e, no provimento do recurso, julgar procedente o incidente de habilitação de cessionário que a Recorrente deduziu contra os Recorridos, Serviços da Acção Social da Universidade do Porto, Massa Insolvente de A&F – Sociedade de Construções e Obras Públicas, Ldª, LMCM, Ldª..


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IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em CONCEDER PROVIMENTO ao presente recurso jurisdicional pelo que:

A) Revogam a decisão recorrida.

B) Julgam procedente o incidente de habilitação de cessionário.

Custas na Primeira Instância pela Requerente; custas do presente recurso jurisdicional pelos Recorridos.


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Porto, 30.11.2016
Ass.: Rogério Martins
Ass.: Luís Garcia
Ass.: Alexandra Alendouro