Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01163/06.7BEPRT
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:01/28/2010
Relator:Álvaro Dantas
Descritores:CONTRA-ORDENAÇÃO - IVA - FALTA ENTREGA DO IMPOSTO LIQUIDADO
Sumário:1. A conduta tipicamente prevista no artigo 114º nºs 1 e 2 do RGIT é a não entrega, total ou parcial, ao credor tributário, da prestação tributária deduzida nos termos da lei;
2. No âmbito do imposto sobre o valor acrescentado, fala-se de dedução de imposto relativamente ao imposto que o sujeito passivo tem a receber, nos termos dos artigos 19.º a 25.º do CIVA, não se referindo qualquer situação em que o sujeito passivo tenha de entregar imposto que tenha deduzido;
3. Nos casos em que o sujeito passivo tenha recebido efectivamente o imposto daqueles a quem vendeu mercadorias ou prestou serviços e não o entrega à administração tributária, havendo obrigação de entrega por se comprovar que há um saldo positivo a favor desta no confronto da globalidade do imposto liquidado e pago pelo sujeito passivo em determinado período, exige-se o efectivo recebimento da quantia referente a imposto por parte do sujeito passivo de IVA, para se ter por preenchida a factualidade típica da contra-ordenação prevista no artigo 114º nº 3 do RGIT;
4. Não se provando esse recebimento, a consequência não pode ser outra que não a absolvição da arguida.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

1. Relatório
O Digno Magistrado do Ministério Público (doravante, Recorrente), não se conformando com a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que concedeu provimento ao recurso da decisão de aplicação da coima no montante de 3.158,91 euros interposto pela Arguida Geldouro , S.A., NIF , com sede no Lugar da Fonte – Modivas, Vila do Conde (doravante, Recorrida) e a absolveu da prática da contra-ordenação p. e p. pelos artigos 26º nº 1 e 40º nº 1 do Código do IVA e artigo 114º nºs 1 e 2 do RGIT que lhe era imputada, veio dela recorrer.
Concluiu, em sede de alegações:
1°- A desaplicação da norma do art. 114° nºs 1 e 2 do RGIT, pressupõe que o imposto (IVA) não entregue não está em poder do sujeito passivo;
2° - Tal circunstância há-de resultar da prova inequivocamente produzida nesse sentido em sede de audiência de julgamento, complementada com a inerente prova documental;
3° - Ao dar como provado que a recorrente atravessou um período de grandes dificuldades económico-financeiras que ocorreram essencialmente por atraso na cobrança dos seus créditos, que a impediu de cumprir pontualmente as suas obrigações tributárias, o Tribunal não podia concluir que essa foi a única causa do incumprimento;
4°- Com efeito, a expressão "essencialmente" não tem o alcance decisivo e unívoco da expressão "exclusivamente", donde, outras causas existiram para além das imputáveis ao atraso na cobrança dos créditos da recorrente;
5° - O depoimento obedientemente debitado pelas duas únicas testemunhas, ambas trabalhadoras da recorrente, não é prova bastante para fundar a convicção do Tribunal;
6° - Com efeito, a prova da indisponibilidade da prestação tributária pela recorrente, terá forçosamente de se alicerçar em prova documental que, caso a caso, demonstre inequivocamente que o IVA não entregue não estava em poder do sujeito passivo;
7° - Os requisitos de isenção da coima previstos no art. 32° do RGIT são de verificação cumulativa, sendo certo que a falta de entrega da prestação tributária nos cofres do Estado no prazo legal, ocasiona sempre prejuízo efectivo, o que afasta liminarmente a possibilidade da isenção da coima.

Foram apresentadas contra-alegações pela Arguida no sentido da manutenção do decidido na sentença recorrida.

O Digno Procurador-Geral-Adjunto junto deste Tribunal emitiu douto parecer em que concluiu no sentido de ser dado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais, importa apreciar e decidir.

2. Fundamentação
2.1. Matéria de facto
É a seguinte a decisão sobre a matéria de facto proferida na 1ª instância e que aqui passamos a reproduzir ipsis verbis:
Dos Factos
Considero provados os seguintes factos, com relevância para a apreciação da questão colocada:
a) Em 02/01/2003, a arguida, doravante Recorrente, enviou ao SAlVA a declaração periódica relativa ao período de 11/02, sem o correspondente meio de pagamento do imposto liquidado no montante de 63.178,13€, tendo o prazo de pagamento terminado em 10/01/2003, cf. fls. 3 e 2 dos autos.
b) O Chefe do Serviço de Finanças de Vila do Conde proferiu, em 10/10/2005, decisão através da qual condenou a recorrente pela infracção ao disposto nos artigos 26, nº 1 e 40° nº 1 alínea a) do CIVA, punível pelos artigos 114º, nº 2, na coima de 3.158,91€, em razão do facto referido na alínea anterior, nos termos e com os fundamentos que constam de fls. 9 dos autos e que aqui se dão por reproduzidos.
c) A recorrente foi notificada da decisão em 27/10/2005 e apresentou o presente recurso em 07/11/2005.
d) A recorrente regularizou a situação tributária em falta, e aqui em causa, em 2/01/2003, cf. fls. 7 dos autos.
e) Durante o período de 2001 a 2003, a recorrente atravessou um período de grandes dificuldades económico-financeiras que ocorreram, essencialmente, por atraso na cobrança de créditos, o que a impediu de cumprir pontualmente as obrigações tributárias, nomeadamente o pagamento atempado do IVA, cf. depoimento de testemunha.
f) Há (sic) medida que os créditos eram regularizados a recorrente procedeu de imediato à entrega do IVA, correspondente a esses créditos, cf. depoimento de testemunha.

FACTOS NÃO PROVADOS
Não se provou que a recorrente tenha recebido o valor do imposto exigível em momento anterior à entrega à Administração da declaração periódica referida na alínea B) da matéria de facto dada como provada, uma vez que não foi trazido aos autos qualquer elemento nesse sentido pela Fazenda Pública.

A decisão sobre a matéria de facto assentou na análise crítica da prova documental e testemunhal produzida nos autos.

Sem prejuízo de relegarmos para momento ulterior o juízo sobre a necessidade de apreciação do invocado erro do julgamento de facto, podemos desde já corrigir o disposto nas alíneas a), b) e d) supra, de modo a que nelas se leve em conta que:

- Em 20/10/2003, a arguida, doravante Recorrente, enviou ao SAlVA a declaração periódica relativa ao período de 11/02, com o correspondente meio de pagamento do imposto liquidado no montante de 63.178,13€, tendo o prazo para cumprimento da obrigação terminado em 10.01.2003, como resulta da decisão junta a fls. 10;

- A decisão administrativa de aplicação da coima foi proferida, não pelo Chefe do Serviço de Finanças de Vila do Conde, mas por um funcionário da Direcção de Finanças do Porto, em quem o Director de Finanças delegou competências para esse efeito, tudo como resulta da cópia dessa decisão junta a fls. 10;

- A recorrente regularizou a situação tributária aqui em causa em 20/10/2003.

2.2. O direito aplicável
A questão que importa apreciar e decidir é a de saber se a factualidade que se encontra provada integra a prática, por parte da Arguida, da infracção contra-ordenacional que lhe é imputada e que, recorde-se, era a que se encontra p. e p. pelas normas conjugadas dos artigos 26º nº 1 e 40º nº 1 do Código do IVA (CIVA) e do artigo 114º nºs 1 e 2 do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT).

Estabelecia o art. 26º nº 1 do CIVA, na redacção vigente no ano de 2003 e, portanto, aqui aplicável que, “sem prejuízo do disposto regime especial referido nos artigos 60º e seguintes, os sujeitos passivos são obrigados a entregar o montante do imposto exigível, apurado nos termos dos artigos 19º a 25º e 71º, na Direcção de Serviços de Cobrança do Imposto Sobre o Valor Acrescentado, simultaneamente com as declarações a que se refere o artigo 40º, ou noutros locais de cobrança legalmente autorizados” (sublinhado nosso).

Por sua vez, a norma do art. 114.º do RGIT, na redacção aqui aplicável, estabelecia o seguinte:
1. A não entrega, total ou parcial, pelo período até 90 dias, ou por período superior, desde que os factos não constituam crime, ao credor tributário, da prestação tributária deduzida nos termos da lei é punível com coima variável entre o valor da prestação em falta e o seu dobro, sem que possa ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido.
2. Se a conduta prevista no número anterior for imputável a título de negligência, e ainda que o período da não entrega ultrapasse os 90 dias, será aplicável coima variável entre 10% e metade do imposto em falta, sem que possa ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido.
3. Para os efeitos do disposto nos números anteriores considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de liquidar nos casos em que a lei o preveja.
(…)”.

Situações semelhantes àqueles que se controvertem nos presentes autos já foram objecto de sucessivas decisões por parte do Supremo Tribunal Administrativo, tendo-se formado uma orientação jurisprudencial firme que agora iremos seguir.

Essencialmente, o que se discute é a questão de saber se, tendo a Arguida enviado tardiamente a declaração periódica de IVA acompanhada ou não do respectivo meio de pagamento incorre a mesma na prática da contra-ordenação prevista na norma do artigo 114º nº 2 do RGIT por referência ao nº 1 do mesmo artigo.

Como vimos, a conduta tipicamente prevista no artigo 114º nºs 1 e 2 do RGIT é a não entrega, total ou parcial, ao credor tributário, da prestação tributária deduzida nos termos da lei.

Daí que, o que importa definir é se a Arguida ao não ter enviado atempadamente a declaração periódica de IVA e, portanto, ao não ter entregue em devido tempo o IVA liquidado (pois que essa entregue deve ser feita quando do envio da referida declaração) preencheu o elemento típico do ilícito contra-ordenacional que referimos: a não entrega de prestação tributária deduzida nos termos previstos na lei.

Vejamos.
Como se refere no acórdão STA 29 Mai. 2008, processo 0279/08, www.dgsi.pt, que acompanharemos de muito perto, “no âmbito do imposto sobre o valor acrescentado, fala-se de dedução de imposto relativamente ao imposto que o sujeito passivo tem a receber, nos termos dos artigos 19.º a 25.º do CIVA, não se referindo qualquer situação em que o sujeito passivo tenha de entregar imposto que tenha deduzido”.

O imposto sobre o valor acrescentado (IVA) apresenta-se como um imposto sobre o consumo em que o montante da dívida de cada sujeito passivo é apurado através do chamado método de dedução do imposto, do crédito do imposto ou método indirecto subtractivo, nos termos do qual esse montante nos é dado pela diferença entre aquele que resulta da aplicação da taxa ao valor das vendas ou prestações de serviços, durante determinado período, e o montante do imposto suportado nas aquisições efectuadas durante o mesmo período - nestes precisos termos, José Casalta Nabais, Direito Fiscal, Almedina, 2000, págs. 384-385.

Ora, sendo este o mecanismo básico de funcionamento do IVA, verifica-se que os sujeitos passivos não têm de entregar à administração uma prestação tributária que tenham deduzido. O que têm de entregar é o montante que resulta da diferença atrás referida ou, dito de outra forma, têm de entregar imposto na medida em que excede o IVA a cuja dedução têm direito.

Por outro lado, com a utilização, na norma punitiva do artigo 114º nºs 1 e 2 do RGIT, da expressão “prestação tributária deduzida”, pretendeu-se aludir a todas as situações em que é apurada uma prestação tributária pelo sujeito passivo através de uma subtracção a uma quantia global e essa quantia deduzida tem de ser entregue à administração tributária (é o que sucede, por exemplo, nas situações de retenção na fonte previstas no artigo 71.º do CIRS, de rendimentos sujeitos a taxas liberatórias, em que a retenção do imposto na fonte é efectuada pelo sujeito passivo a título definitivo) – continuamos a seguir o acórdão STA 28 Mai. 2008, processo 0279/08, www.dgsi.pt.

Desta forma, impõe-se a conclusão que a conduta da Arguida não preenche os pressupostos da factualidade típica da infracção prevista na norma punitiva do artigo 114º nºs 1 e 2 do RGIT, por isso que o IVA apurado no período de tributação relevante não pode qualificar-se como “prestação tributária deduzida nos termos da lei”.

Certo que, no âmbito do sistema do IVA, existem situações de dedução do imposto pelo sujeito passivo, no sentido literal atrás referido. É o que sucede nos casos em que o imposto liquidado nas facturas é recebido pelo sujeito passivo daqueles a quem vende mercadorias ou presta serviços: neste caso, ao total recebido, o sujeito passivo tem de abater o imposto pago e entregá-lo à administração tributária quando o saldo é favorável a esta, no período em causa.

Porém, nesses casos em que o sujeito passivo tenha recebido efectivamente o imposto daqueles a quem vendeu mercadorias ou prestou serviços e não o entrega à administração tributária, havendo obrigação de entrega por se comprovar que há um saldo positivo a favor desta no confronto da globalidade do imposto liquidado e pago pelo sujeito passivo em determinado período, são especialmente previstas não nos nºs 1 e 2 mas sim na parte final do n.º 3 do artigo 114.º do RGIT – assim, acórdão STA 28 Mai. 2008, processo 0279/08, www.dgsi.pt.

Ora, como resulta do texto deste n.º 3 do artigo 114.º do RGIT, para se ter por preenchida a factualidade típica da contra-ordenação ali prevista, exige-se o efectivo recebimento da quantia referente a imposto por parte do sujeito passivo de IVA - excluindo as situações de autoliquidação em que não há recebimento do imposto do âmbito do art. 24.º, n.º 2, do RJIFNA, que continha expressão idêntica, Alfredo José de Sousa, Infracções Fiscais (Não Aduaneiras), 3.ª edição, páginas 109-110.

Em sede processual, a conclusão que antecede implica que haja de se fazer a prova de que a Arguida efectivamente recebeu as quantias referentes ao IVA e, por isso, resulta insufragável a tese do Recorrente, plasmada nas Conclusões 1ª, 2ª e 6ª das alegações do recurso e que aponta no sentido de seria à Arguida que caberia o ónus da prova de que não recebeu as quantias de imposto.

A falta de prova positiva da integralidade da factualidade típica infracção tem, necessariamente, de ser valorada a favor da Arguida.

No caso dos autos não vem provado (aliás, nem sequer consta da decisão da decisão da entidade administrativa que aplicou a coima) o efectivo recebimento do imposto por parte da Arguida.

Neste contexto, ficando por provar o preenchimento por parte da Arguida dos elementos objectivos do tipo legal de contra-ordenação, terá de considerar-se que a sua conduta não é subsumível à norma punitiva do artigo 114º nº 3 do RGIT – no mesmo sentido, entre outros, acórdão STA 15 Out. 2008, recurso 0481/08, acórdão STA 12 Nov. 2008, recurso 577/08; acórdão STA 7 Jan. 2009, recurso 0478/08 e acórdão STA 11 Fev. 2009, recurso 578/08, www.dgsi.pt.

Uma última nota em reforço da argumentação que antecede e que também é salientada pelo Supremo Tribunal Administrativo no acórdão STA 28 Mai. 2008 que temos vindo a seguir e que passamos a citar: “a conduta de quem não entrega IVA liquidado nas facturas mas não recebido dos adquirentes das mercadorias ou utilizadores de serviços estava expressamente punida no art. 95.º do CIVA, em que se previa como transgressão “a falta de entrega ou a entrega fora dos prazos estabelecidos de todo ou parte do imposto devido”, contudo, a norma deste artigo 95.º, inserido no Capítulo VIII do CIVA, foi expressamente revogada pela alínea c) do artigo 2.º da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho”.

Por outro lado, as referências à “prestação tributária que nos termos da lei deduziu” e à “prestação tributária deduzida nos termos da lei”, que se utilizam no artigo 114.º do RGIT, têm um evidente alcance restritivo em relação à expressão “imposto devido”, que era utilizada no referido artigo 95.º do CIVA, pois as primeiras apenas abrangem situações em que o sujeito passivo procede à dedução do imposto, subtraindo-a de uma quantia global.

Aliás, foi para abranger no âmbito da punição prevista na norma do artigo 114º as situações em que em que o sujeito passivo de IVA não entrega o imposto devido que tenha sido liquidado, que se procedeu à alteração do nº 5 do art. 114º do RGIT através do artigo 113º da Lei 64-A/2008, de 31 de Dezembro inaplicável, no entanto, aos factos aqui em apreço, o que não deixa de constituir o reconhecimento, por parte do legislador, de que, anteriormente, aquela conduta (não entrega do IVA liquidado) não era objecto de punição contra-ordenacional.

Pelo que vimos de dizer, somos a concluir que improcedem na íntegra as conclusões do recurso apresentado pelo Ministério Público e que bem andou a sentença recorrida ao ter decidido que a Arguida não praticou a contra-ordenação que lhe era imputada.

3. Decisão

Assim, pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte em:

Negar provimento ao recurso.

Sem custas.

Notifique.

Porto, 28 de Janeiro de 2010

lvaro António Dantas)

(Francisco Areal Rothes)

(Moisés Moura Rodrigues)