Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00222/21.0BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:11/25/2022
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Luís Migueis Garcia
Descritores:CONTRA-ORDENAÇÃO. AUTORIA. MEDIDA DA PENA.
Sumário:I) – No âmbito das contra-ordenações, a imputação de um facto a um agente tem por referente legal e dogmático um conceito extensivo de autoria de matriz causal.
Recorrente:AA
Recorrido 1:Município de Guimarães
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Foi emitido parecer no sentido do não provimento do recurso.
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os juízes deste Tribunal Central Administrativo Norte, Secção do Contencioso Administrativo:
AA (R. ...), interpõe recurso jurisdicional de decisão do TAF Braga, o qual julgou totalmente improcedente o recurso interposto nos autos de contra-ordenação em que foi condenada por Vereador da Câmara Municipal de Guimarães no pagamento de coima única no montante de € 3.000,00 (três mil euros).
Conclui:
1. A sentença proferida é nula, nos termos do disposto no artº 379º nº 1 c) do CPPenal, uma vez que não se pronunciou sobre questões que devia apreciar, designadamente a impugnação da matéria de facto que a Recorrente havia apresentado.
2. A sentença enferma do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, tudo nos termos do disposto no artº 410º nº 2 a) do CPPenal, uma vez que os factos que julgou provados não permitem sustentar a decisão de condenar a Recorrente.
3. A ser alguém responsabilizado pela factualidade vertida na decisão recorrida sempre seria a Q..., Lda. e não a aqui Recorrente, que dela é somente sócia e não gerente.
4. Ainda que se verificassem todos os factos vertidos na decisão recorrida, atento o reconhecimento que é feito pela própria entidade decisora, estaríamos sempre a falar de infrações de gravidade diminuta.
5. Atento esse facto e sendo ainda mínima a culpa da Arguida, entende-se que a pena a aplicar a esta deveria ter sido a prevista no artº 51º do DL 433/82 de 27/10, ou seja a de admoestação.

A Ex.mª Procuradora-Geral Adjunta emitiu “parecer que o presente recurso não merece provimento”; respondido.
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Dispensando vistos, vêm os autos a conferência, cumprindo decidir.
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Os factos, que o tribunal “a quo” fixou como provados:
A. Em 19.11.2020, o Vereador da Câmara Municipal de ... proferiu decisão nos processos contra-ordenacionais n.ºs ...16 e 463/2017, com o seguinte teor (cf. fls. do processo administrativo junto aos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzido):
«(…) 1. AA, NIF ..., residente na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., vem acusada dos factos que deram origem aos seguintes processos:
- processo n.º ...16: de estar a construir, sem licença, um edifício (pavilhão) sito no local da sua residência, destinado a eventos, conforme auto de notícia dos serviços de fiscalização municipal de 02/09/2016.
Este facto viola o disposto no artigo 4.º, n.º 2. alínea c) do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (RJUE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16/12, alterado e republicado pelo Decreto-Lei n.º 136/2014, de 09/09, o que constituem a contraordenacão prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 98.º do mesmo diploma legal, punível com coima graduada de € 500,00 a € 200.000,00 (artigo 98.º, n.º 2 do referido diploma legal).
- processo n.º ...17: de ocupar, sem autorização de utilização, o edifício (pavilhão) sito no local da sua residência, com um evento, estando o espaço preparado para a realização de um evento - casamento -, encontrando-se as mesas decoradas e funcionários a tratar dos preparativos, tendo, à saída, constatado a chegada dos noivos e respetivos convidados, conforme auto de notícia da Polícia Municipal de 26/08/2017.
Este facto viola o disposto no artigo 4.º n.º 5 do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação ÍRJUE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16/12, alterado pelo Decreto-Lei n.º 136/2014. de 09/09, o que constitui a contraordenacão prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 98.º do mesmo diploma legal, punível com coima graduada de € 500,00 a € 100.000,00 (artigo 98.º, n.º 4 do referido diploma legal).
2. Notificada, respetivamente, em 26/04/2017 e 04/04/2018, para exercer o seu direito de defesa, nos termos do artigo 50.º do RGCO, a arguida:
No processo n.º ...16, não se pronunciou, nem apresentou qualquer elemento de prova em sua defesa.
No processo n.º ...17, apresentou defesa escrita, em 17/04/2018, alegando, em síntese, que:
- Não ocupou o edifício destinado a eventos, uma vez que não se trata de um pavilhão destinado a eventos, sendo certo que o auto de notícia não apresenta qualquer tipo de prova em como se trataria de um pavilhão de eventos;
- Sem prescindir, com efeito, na data em causa, o edifício, que faz parte da sua habitação, foi utilizado para um evento isolado, de natureza particular, a título excecional;
- Dois seus amigos casaram nesse dia e ofereceu-se, num gesto de amizade, para tratar da organização da festa de casamento e disponibilizou uma edificação na sua propriedade para o efeito;
- A propriedade constitui a sua morada de família e não se destina à realização habitual de qualquer tipo de eventos, não existindo qualquer escopo lucrativo;
- Agiu, pois, sem culpa.
Arrolou como testemunhas BB e CC, que, ouvidos nestes serviços no dia 23/05/2018, confirmaram, na generalidade, as alegações da arguida.
3. Para melhor instruir a decisão, foram efetuadas as seguintes diligências;
3.1. Foi consultado o processo de fiscalização n.s 130/2016, tendo-se apurado que:
- Os serviços de fiscalização municipal informaram, em 30/08/2016, que estava a ser construído, sem licença, um edifício (pavilhão) destinado a eventos, sito na Rua ..., Quinta ..., freguesia ..., concelho ...;
- Por despacho de 31/08/2016, foi determinado o embargo das referidas obras;
- As obras foram embargadas em 02/09/2016, tendo o despacho de embargo e o auto de embargo sido pessoalmente notificados à arguida, com a cominação de que o prosseguimento dos trabalhos constituía crime de desobediência e sido elaborado o respetivo auto de notícia contra a arguida;
- Por ofício de 21/09/2016 (rececionado em 22/09/2016), a arguida foi informada de que, na sequência do embargo lhe era concedido o prazo de 60 dias para requerer a legalização do edifício e que a desobediência a essa ordem de embargo configurava crime de desobediência;
- A arguida não se pronunciou;
- Os serviços de fiscalização municipal informaram, em 28/09/2016, que, posteriormente ao embargo, foram construídas a estrutura metálica de suporte à cobertura, a placa de cobertura do anexo destinado a WC situado mais a sul do edifício e foi concluída a estrutura do anexo destinado a cozinha situado a norte do edifício, encontrando-se executado em grosso com a placa de cobertura colocada;
- Foi participada, em 25/10/2016, ao Ministério Público, a desobediência ao embargo;
- A Polícia Municipal informou, em 29/07/2017, que o edifício encontrava-se ocupado com mesas e cadeiras, mas não havia indícios de que houvesse ou fosse haver a realização de qualquer evento;
- Foi efetuada pelo Comando Distrital de Operações de Socorro de Braga da Autoridade Nacional de Proteção Civil (ANPC), em 22/08/2017, uma inspeção ao edifício, tendo concluído que "até à implementação do projeto de segurança contra incêndios não devem ser realizados eventos uma vez que o espaço não reúne condições de segurança";
- A Polícia Municipal elaborou, em 26/08/2017, auto de notícia contra a arguida pela ocupação do edifício/(paviIhão), com um evento, sem autorização de utilização;
- Por despacha de 06/09/2017, foi manifestada a intenção de se determinar a cessação da ocupação do edifício (pavilhão) e a sua demolição;
- Por ofício de 08/09/2017, foi concedido à arguida o prazo de 15 dias para, querendo, se pronunciar por escrito acerca da anunciada decisão;
- A arguida não se pronunciou;
- Os serviços de fiscalização municipal informaram, em 08/11/2017, que o edifício (pavilhão) tem uma área de cerca de 600m3;
- Por despacho de 26/01/2018, na sequência do relatório de inspeção da ANPC e da constatação de que o edifício se encontrava ocupada pela Q..., Lda., da qual a arguida é sócio, foi manifestada a intenção de se determinar a cessação da ocupação do edifício (pavilhão) e a sua demolição;
- Por ofício de 05/02/2018, foi concedido à arguida o prazo de 15 dias para, querendo, se pronunciar por escrito acerca da anunciada decisão;
- A arguida não se pronunciou;
- A ANPC informou, em 15/02/2018, que tinha “sido dado cumprimento ao projeto de segurança contra incêndios aprovados, pelo que as referidas instalações reúnem as condições de segurança contra o risco de incêndio para o fim a que se destinam";
- Por despacho de 23/01/2019, foi determinada a cessação da utilização do edifício (pavilhão) destinado a eventos, sendo concedido, para o efeito, o prazo de 50 dias, não se determinando, para já, a sua demolição, uma vez que a exploradora do espaço se encontra a diligenciar pela legalização do mesmo, porquanto, estando o terreno localizado em Reserva Agrícola Nacional (RAN), foi solicitado, em 12/01/2018, uma certidão de interesse público para efeitos de instrução de processo para utilização de terrenos integrados em RAN, que veio a ser emitida em 02/10/2018;
-A arguida, em 25/02/2019, foi pessoalmente notificada do despacho de 23/01/2019;
- A Polícia Municipal informou, em 01/06/2019, que, pelas 09h40m se deslocou ao local e que a arguida informou que não iria ser realizado nenhum evento e que, em nova deslocação ao local, no mesmo dia, pelas 13h40m, verificaram a saída do espaço de uma carrinha de frios, tendo o condutor da mesma referido que iria haver um evento no período da tarde, não tendo sido possível verificar tais factos;
- A Polícia Municipal informou, em 17/08/2019, que os portões da quinta estavam fechados, inexistindo qualquer tipo de movimentação que aparentasse a possível realização de um qualquer evento.
3.2. Foi consultado o processo de licenciamento n.º ...9. tendo-se apurado que:
- Q..., Lda. requereu, em 18/07/2019, o licenciamento/legalização do edifício, juntando certidão comercial onde se verifica que a arguida é uma das suas sócias e certidão predial onde se verifica que a arguida é a proprietária do edifício;
- Por não ter apresentado os elementos instrutórios solicitados, o pedido foi liminarmente rejeitado por despacho de 14/01/2020;
- Até a presente data, não voltou a ser requerida a legalização do edifício.
3.3. Foi solicitado, em 19/06/2019, aos serviços de fiscalização municipal que informassem qual a situação atual, tendo estes, em 07/07/2020, informado que o pavilhão se encontrava desocupado.
4. Dos autos de notícia e dos elementos recolhidos no decurso da instrução dos presentes autos, resulta provado que:
a) A arguida, em 30/08/2016, estava a construir, sem licença, um edifício (pavilhão) sito na Rua ..., Quinta ..., freguesia ..., concelho ..., destinado a eventos, conforme constatado pelos serviços de fiscalização municipal.
b) Por despacho de 31/08/2016, foi determinado o embargo das referidas obras.
c) As obras foram embargadas em 02/09/2016, tendo o despacho de embargo e o auto de embargo sido pessoalmente notificados à arguida, com a cominação de que o prosseguimento dos trabalhos constituía crime de desobediência e sido elaborado o respetivo auto de notícia contra a arguida,
d) Por ofício de 21/09/2016 (rececionado em 22/09/2016), a arguida foi informada de que, na sequência do embargo, lhe era concedido o prazo de 60 dias para requerer a legalização do edifício e que a desobediência a essa ordem de embargo configurava crime de desobediência.
e) A arguida não se pronunciou.
f) Os serviços de fiscalização municipal informaram, em 28/09/2016, que, posteriormente ao embargo, foram construídas a estrutura metálica de suporte à cobertura, a placa de cobertura do anexo destinado a WC situado mais a sul do edifício e foi concluída a estrutura do anexo destinado a cozinha situado a norte do edifício, encontrando-se executado em grosso com a placa de cobertura colocada.
g) Foi participada, em 25/10/2016, ao Ministério Público, a desobediência ao embargo.
h) A Polícia Municipal informou, em 29/07/2017, que o edifício encontrava-se ocupado com mesas e cadeiras, mas não havia indícios de que houvesse ou fosse haver a realização de qualquer evento.
i) Foi efetuada pelo Comando Distrital de Operações de Socorro de Braga da Autoridade Nacional de Proteção Civil (ANPC), em 22/08/2017, uma inspeção ao edifício, tendo concluído que "até à implementação do projeto de segurança contra incêndios não devem ser realizados eventos uma vez que o espaço não reúne condições de segurança".
j) A arguida, em 26/08/2017, ocupava, sem autorização de utilização, o referido edifício (pavilhão), com um evento, conforme constatado pela Polícia Municipal.
k) Por despacho de 06/09/2017, foi manifestada a intenção de se determinar a cessação da ocupação do edifício (pavilhão) e a sua demolição.
l) Por ofício de 08/09/2017, foi concedido à arguida o prazo de 15 dias para, querendo, se pronunciar por escrito acerca da anunciada decisão.
m) A arguida não se pronunciou.
n) Os serviços de fiscalização municipal informaram, em 08/11/2017, que o edifício (pavilhão) tem uma área de cerca de 500m2.
o) Por despacho de 26/01/2018, na sequência do relatório de inspeção da AM PC e da constatação de que o edifício se encontrava ocupada pela Q..., Lda., da qual a arguida é sócia, foi manifestada a intenção de se determinar a cessação da ocupação do edifício (pavilhão) e a sua demolição.
p) Por ofício de 05/02/2018, foi concedido à arguida o prazo de 15 dias para, querendo, se pronunciar por escrito acerca da anunciada decisão.
q) A arguida não se pronunciou.
r) A ANPC informou, em 15/02/2018, que tinha "sido dado cumprimento ao projeto de segurança contra incêndios aprovados, pelo que as referidas instalações reúnem as condições de segurança contra o risco de incêndio para o fim a que se destinam".
s) Por despacho de 23/01/2019, foi determinada a cessação da utilização do edifício (pavilhão) destinado a eventos, sendo concedido, para o efeito, o prazo de 30 dias, não se determinando, para já, a sua demolição, uma vez que a exploradora do espaço se encontra a diligenciar pela legalização do mesmo, porquanto, estando o terreno localizado em Reserva Agrícola Nacional (RAN), foi solicitado, em 12/01/2018, uma certidão de interesse público para efeitos de instrução de processo para utilização de terrenos integrados em RAN, que veio a ser emitida em 02/10/2018.
t) A arguida, em 25/02/2019, foi pessoalmente notificada do despacho referido em s).
u) A Polícia Municipal informou, em 01/06/2019, que, pelas 09h40m se deslocou ao local e que a arguida informou que não iria ser realizado nenhum evento e que, em nova deslocação ao local, no mesmo dia, pelas 13h40m, verificaram a saída do espaço de uma carrinha de frios, tendo o condutor da mesma referido que iria haver um evento no período da tarde, não tendo sido possível verificar tais factos.
v) Q..., Lda. requereu, em 18/07/2019, o licenciamento/legalização do edifício, juntando certidão comercial onde se verifica que a arguida é uma das suas sócias e certidão predial onde se verifica que a arguida é a proprietária do edifício.
w) A Polícia Municipal informou, em 17/08/2019, que os portões da quinta estavam fechados, inexistindo qualquer tipo de movimentação que aparentasse a possível realização de um qualquer evento.
x) Por não ter apresentado os elementos instrutórios solicitados, o pedido referido em v) foi liminarmente rejeitado por despacho de 14/01/2020.
V) A ocupação, em 07/07/2020, mantinha-se, conforme constatado pelos serviços de fiscalização municipal.
z) Até a presente data, não voltou a ser requerida a legalização do edifício.
aa) A arguida sabia que não podia construir o referido edifício (pavilhão) sem a necessária licença, assim como sabia que não o podia ocupar sem a necessária autorização de utilização.
bb)A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
cc) A arguida é primária em processos de contraordenação.
Constata-se assim que a arguida, na data em que foi constatada a infração, estava a construir a referido edifício (pavilhão) sem ter obtido a necessária licença.
Dispõe o artigo 4.º, n.º 1 do RJUE que "o realização de operações urbanísticas depende de licença, comunicação prévia com prazo (...) ou autorização de utilização (...)", referindo o n.º 2, alínea c) que "estão sujeitos o licença administrativo (...) as obras de construção (...) em área não abrangida por operação de loteamento (...)“, constituindo contraordenaçào “a realização de quaisquer operações urbanísticas sujeitas o prévia licenciamento sem o respetivo alvará de licenciamento" (artigo 98.º, n.º 1, alínea a)).
Mais se constatou que, após essas obras de construção terem sido embargadas e de a arguida, por mais do que uma vez, ter sido notificada desse embargo e das consequências do seu desrespeito, prosseguiu a execução da obra, bem sabendo da ilicitude da sua conduta e que não possuía licença para a sua realização, sendo certo que nunca chegou sequer a requerer a sua legalização. De facto, apenas em 18/07/2019 (cerca de três anos após a sua construção) é que a então ocupante do edifício - a Q..., Lda. - requereu a legalização do edifício. Assim sendo, verifica-se que a arguida iniciou e concluiu a construção desse edifício bem sabendo que não possuía a necessária licença e não se coibindo de prosseguir a sua execução, mesmo após o embargo, denotando um total desrespeito pelas ordens emanadas das autoridades legalmente competentes nesta matéria.
Refira-se que, até a presente data, mais de quatro anos depois, a situação ainda se mantém por regularizar, pois não foi mais requerido o licenciamento/legalização do pavilhão, bem sabendo a arguida da ilicitude da sua conduta.
Mais se constatou que, em 26/08/2017, a arguida ocupava esse edifício com um evento, sem a necessária autorização de utilização.
De acordo com o disposto no artigo 4.º, n.º 5 do RJUE "está sujeita a autorização o utilização dos edifícios (...)", constituindo contraordenaçào "a ocupação de edifícios (...) sem autorização de utilização {...)" (artigo 98.º, n.º 1, alínea d) do mesmo diploma legal).
A arguida alegou que o edifício não se destinava a eventos e que, no dia do auto de notícia, a ocupação do mesmo se deveu a uma festa de caráter particular e excecional, tendo sido um favor que fez a uns amigos para realizar o casamento destes.
Em primeiro lugar, não é verdade que o pavilhão não se destinava à realização de eventos, pois, tal como as testemunhas declararam, no referido edifício, após esta data, foram realizados outros eventos, designadamente casamentos, sendo que sempre foi essa a intenção da arguida ao construir esse edifício.
Por outro lado, certo é que a utilização dos edifícios carece sempre de autorização de utilização, independentemente do tipo de uso, da periodicidade da ocupação e da respetiva forma. De facto, mesmo que se tivesse tratado de um evento excecional (o que, como se referiu, não se aceita), o edifício não podia ser utilizado sem a necessária autorização de utilização, o que a arguida não possuía e continua sem possuir, bem sabendo a arguida da ilicitude da sua conduta e nada fazendo para regularizar a situação.
Pelo exposto conclui-se que a arguida, com a sua conduta, violou:
- No processo n.º ...16 o disposto no artigo 4.º, n.º 2, alínea c) do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (RJUE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16/12, alterado e republicado pelo Decreto-Lei n.º 136/2014, de 09/09, tendo incorrido na prática da contraordenação prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 98.º do mesmo diploma legal, punível com coima graduada de € 500,00 a € 200.000,00 (artigo 98.º, n.º 2 do referido diploma legal).
- No processo n.º ...17, o disposto no artigo 4.º, n.º 5 do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (RJUE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16/12, alterado pelo Decreto-Lei n.º 136/2014, de 09/09, tendo incorrido na prática da contraordenação prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 98.º do mesmo diploma legal, punível com coima graduada de € 500,00 a € 100.000,00 (artigo 98.º, n.º 4 do referido diploma legal).
5. Nos termos do n.º 1 do artigo 18.º do RGCO, a determinação da coima aplicável é feita em função da gravidade da contraordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contraordenação.
5.1. Quanto à gravidade das contraordenacões praticadas: a lei faz depender a criação de novas edificações de controlo prévio, neste caso, de licença. De facto, somente perante operações urbanísticas licenciadas se pode assegurar que são alcançados os objetivos que a lei pretende tutelar, nomeadamente no que concerne ao ordenamento do território, à estética das povoações, à sua adequada inserção no ambiente urbano ou na beleza das paisagens, à proteção da segurança de pessoas e bens e ao cumprimento das leis e regulamentos aplicáveis. Assim, não se verificando este mecanismo de controlo, não se assegura que aqueles fins sejam alcançados, ficando assim os aspetos construtivos ao livre arbítrio dos particulares, o que é suscetível de, no limite, criar situações insolúveis no que respeita à sua legalização, por ausência dos pressupostos necessários para se conformar as construções com as normas aplicáveis. A falta deste mecanismo de controlo assume, por isso, relevante gravidade, atentas as consequências que podem resultar de não se terem preenchido as várias etapas que o controlo prévio das operações urbanísticas pressupõe.
Por outro lado, a exigência de prévia autorização de utilização como condição para a ocupação de edifícios visa certificar que a obra foi concluída de acordo com o projeto de arquitetura e arranjos exteriores aprovados, e com as condições de licenciamento e/ou da comunicação prévia. Assim, não se verificando este mecanismo de controlo não se assegura que aqueles fins sejam alcançados, situação que é suscetível de, no limite, se utilizarem edifícios que não assegurem as condições de segurança e saúde dos seus utilizadores. A falta de autorização de utilização assume, por isso, relevante gravidade, atentas as consequências que podem resultar de não se terem preenchido as etapas fiscalizadoras que a autorização de utilização pressupõe.
Neste caso, agrava a infração o facto de, na data em que foi constatada a infração no processo n.s ...17 (ocupação do edifício) de acordo com relatório da ANPC o edifício não reunia as condições de segurança contra o risco de incêndio, com os possíveis riscos que daí podiam advir.
5.2. Quanto à culpa: a arguida agiu com dolo, tendo agido de forma livre, voluntária e consciente da ilicitude da sua conduta, pois as questões de ordenamento do território e do urbanismo são matéria do conhecimento geral, designadamente quanto à exigibilidade de licenciamento, bem sabendo a arguida, e não o podendo ignorar, que apenas podia construir o edifício após a obtenção da respetiva licença, assim como sabia que apenas podia ocupar qualquer edificação após a obtenção da autorização de utilização, pelo que a sua conduta é censurável.
Agrava a conduta da arguida o facto de, até à presente data, ainda não ter regularizado as situações, bem sabendo da ilicitude da sua conduta e nada fazendo para regularizá-las.
Relevante é também o facto de, após ter sido determinado o embargo das obras de construção do edifício e de a arguida ter sido notificada desse embargo e das consequências do seu desrespeito, prosseguiu a execução da obra, bem sabendo da ilicitude da sua conduta e que não possuía licença para a sua realização, denotando um total desrespeito pelas ordens emanadas das autoridades legalmente competentes nesta matéria.
5.3. Quanto à situação económica do agente: desconhece-se a situação económica da arguida, uma vez que não foram recolhidos quaisquer elementos que permitam concluir pela existência de dificuldades económicas ou, pelo contrário, de rendimentos especialmente avultados.
5.4. Quanto ao benefício económico retirado da infração: também aqui se desconhece se, com a sua conduta ilícita, o arguido retirou algum benefício económico de relevo.
6. Refira-se, por último, que apesar das exigências resultantes da prevenção, deve ponderar-se sobre as eventuais consequências da aplicação de coimas de montantes elevados. Assim, decide-se aplicar à arguida:
- No processo n.s ...16, tendo em conta que a contraordenaçlo é punível com coima de entre o montante mínimo de € 500,00 a € 200.000,00, atendendo à gravidade da contraordenação, à culpa da arguida, à sua conduta posterior, ao facto de ter desobedecido ao embargo e ao facto de a situação, cerca de quatro anos depois, ainda não se encontrar regularizada, a coima de € 2.000.00 (dois mil euros);
- No processo n.s ...17, tendo em conta que a contraordenação é punível com coima de entre o montante mínimo de € 500,00 a € 100.000,00, atendendo à gravidade da contraordenação, à culpa da arguida, à sua conduta posterior, ao facto de a situação, cerca de três anos depois, ainda não se encontrar regularizada e ao facto de, atualmente, o espaço se encontrar desocupado, a coima de € 1.500.00 (mil e quinhentos euros).
7. Tendo sido praticadas duas contraordenações em concurso efetivo, deve a arguida ser condenada numa coima única, graduada de € 2.000.00 a € 3.500,00. conforme dispõe o artigo 19.º do RGCO.
Atentos os critérios de determinação da medida da coima apontados, decide-se aplicar à arguida uma coima única no montante de € 3.000,00 (três mil euros).
A arguida é ainda responsável pelo pagamento da quantia de € 25.50 (vinte e cinco euros e cinquenta cêntimos), relativa às custas dos presentes processos. (…)».
B. Em 28.11.2020, AA foi notificada da decisão proferida nos processos de contra-ordenação n.ºs 380/2016 3 .../2017, pela qual foi aplicada uma coima no valor de €3.000,00 (cf. fls. do processo administrativo junto aos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido).
C. Em 30.12.2020, AA apresentou junto da Câmara Municipal ... impugnação judicial da decisão de aplicação da coima, que se dá aqui por integralmente reproduzida (cf. fls. do processo administrativo junto a estes autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido).
D. Em 22.01.2021, o Ministério Público remeteu os autos contra-ordenacionais a este Tribunal, o que originou o presente processo (cf. fls. dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidas).
*
A apelação:
O tribunal “a quo” julgou “totalmente improcedente o presente recurso, mantendo-se a decisão de aplicação da coima.”.
O teor da decisão recorrida:
«(…)
Da ocorrência da Infracção
Preceitua o artigo 1.º do RGCO que constitui contraordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima.
A decisão administrativa de aplicação da contra-ordenação fundamenta-se na prática de duas infrações, uma que deu origem ao processo n.º ...16, na qual é imputada à Recorrente a construção, sem licença, de um pavilhão na sua residência, e outra respeitante ao processo n.º ...17, por ter ocupado, sem autorização de utilização, o dito pavilhão.
Defende a Recorrente que as aludidas infracções não lhe podem ser imputadas, mas à Quinta ..., de que é sócia.
Ocorre que a Recorrente na defesa apresentada em 14.04.2018, no âmbito do processo n.º ...17, assume a autoridade dos comportamentos, ainda que considere que não praticara qualquer infracção por o pavilhão não se destinar a eventos, alegando que o mesmo faz parte da sua habitação e por conseguinte, sendo por esta utilizado para eventos de natureza privada e particular.
Não pode, por isso, colher o argumento apresentado em sede de impugnação judicial, nem mesmo isenta a Recorrente do ilícito que lhe é imputado, a circunstância de por despacho de 26.01.2018 se ter constatado que aquele espaço estar a ser ocupada pela Q..., Lda. Nem isenta a arguida da sua responsabilidade o facto de a dita sociedade ter requerido em 18.07.2019 o licenciamento/legalização do edifício, porquanto como se disse e se reitera, a Recorrente na defesa apresentada em 14.04.2018, nada alegar a esse respeito, e de ter assumido a construção e a ocupação do pavilhão, que como diz, integra a sua residência.
Para além disso, a prática dos ilícitos remonta a 30.08.2016 (pela construção do pavilhão) e a 26.08.2017 (pela ocupação do pavilhão).
Ademais, também não colhe o argumento da insuficiência da factualidade provada, por resultar clarividente da decisão impugnada, os factos relativos à densificação do conceito de ocupação, que para além de jurídico, traduz uma realidade de facto.
Quanto a tal, e para melhor esclarecimento, importa realçar os seguintes factos dados como provados na decisão impugnada: «h) A Polícia Municipal informou, em 29/07/2017, que o edifício encontrava-se ocupado com mesas e cadeiras, mas não havia indícios de que houvesse ou fosse haver a realização de qualquer evento.
i) Foi efetuada pelo Comando Distrital de Operações de Socorro de Braga da Autoridade Nacional de Proteção Civil (ANPC), em 22/08/2017, uma inspeção ao edifício, tendo concluído que "até à implementação do projeto de segurança contra incêndios não devem ser realizados eventos uma vez que o espaço não reúne condições de segurança".
j) A arguida, em 26/08/2017, ocupava, sem autorização de utilização, o referido edifício (pavilhão), com um evento, conforme constatado pela Polícia Municipal. (…)».
*
Da medida da coima
Consagra o artigo 18.º n.º 1 do RGCO que a determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contraordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contraordenação.
Preceituando ainda o artigo 51.º, n.º1, do RGCO que: «Quando a reduzida gravidade da infracção e da culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação».
A aplicação da pena de admoestação está reservada para as situações em que se imponha a necessidade de punição, mas em que a reduzida gravidade da infracção e da culpa do agente justifique a mera aplicação de uma mera reprimenda para satisfazer os interesses preventivos e repressivos.
Ora, não existindo critério legal definidor, a gravidade da infracção terá que ser aferida atendendo às circunstâncias do caso concreto.
No entendimento da recorrente/impugnante as infracções imputadas são de reduzida gravidade uma vez que o Município tinha reconhecido o interesse público da construção em análise.
Contudo, não podemos aceitar tal argumento, já que mesmo que existisse o invocado interesse público, ainda assim se impunha que a Recorrente tivesse dado cumprimento às regras legais respeitantes à legalização dos edifícios, antes da construção e da sua ocupação, e que visam a protecção, quanto mais não seja, da segurança e saúde dos utilizadores.
Constando, inclusivamente, da decisão impugnada, quanto à gravidade da infracção, o seguinte: «(…) Neste caso, agrava a infração o facto de, na data em que foi constatada a infração no processo n.s ...17 (ocupação do edifício) de acordo com relatório da ANPC o edifício não reunia as condições de segurança contra o risco de incêndio, com os possíveis riscos que daí podiam advir. (…) Agrava a conduta da arguida o facto de, até à presente data, ainda não ter regularizado as situações, bem sabendo da ilicitude da sua conduta e nada fazendo para regularizá-las.
Relevante é também o facto de, após ter sido determinado o embargo das obras de construção do edifício e de a arguida ter sido notificada desse embargo e das consequências do seu desrespeito, prosseguiu a execução da obra, bem sabendo da ilicitude da sua conduta e que não possuía licença para a sua realização, denotando um total desrespeito pelas ordens emanadas das autoridades legalmente competentes nesta matéria.»
(…)».
A recorrente aponta a esta peça nulidade, nos termos do art.º 379º, n.º 1, c), do CPP: «Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.».
Apoia a arguição: “uma vez que não se pronunciou sobre questões que devia apreciar, designadamente a impugnação da matéria de facto que a Recorrente havia apresentado”; formulação múltipla e de exemplo, reduz-se verdadeiramente apenas à dita “impugnação da matéria de facto”, único ponto que em corpo de alegações cabe no “designadamente”.
Mas sem recolher razão.
Pois "O facto material é um elemento para a solução da questão, mas não é a própria questão" (Alberto dos Reis, "CPC Anotado", vol. V, 1984, pág. 145); “A nulidade de decisão por omissão de pronúncia apenas ocorre quando o juiz deixe de se pronunciar sobre alguma questão que as partes tenham submetido à sua apreciação e já não quando o juiz não se ocupa ou não tem em consideração eventuais factos ou argumentos e razões que as partes tenham invocado em abono do seu ponto de vista” (Ac. do STA, Pleno, de 19-05- 2016, proc. nº 01657/13).
E bem se conclui que, mesmo a despeito de controvérsia factual, não deixou o tribunal “a quo” de se pronunciar quanto à questão que a recorrente confrontou, vendo em equação se “as aludidas infracções não lhe podem ser imputadas”.
Mesmo numa perspectiva mais funcionalmente ligada ao processo, «A omissão de pronúncia em matéria contra-ordenacional traduz a falta de conhecimento pelo tribunal de uma concreta questão, que não argumentos, sobre matérias em que a lei imponha que este tome posição, condicionada a um requisito vital: “(…) que tais diligências se possam reputar de essenciais para a descoberta da verdade” [cf. art. 120.º n.º 2, al. d) in fine do CPP].» - Ac. RL, de 06-04-2011, proc. n.º 1.724/09.27FLSB -3; essencialidade que não emana, como infra decorre.
A recorrente aponta também nulidade, nos termos do art.º 410º, n.º 2, a), do CPP: «A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada».
Apoia a arguição: “uma vez que os factos que julgou provados não permitem sustentar a decisão de condenar a Recorrente”.
Umbilicalmente indigita que “A ser alguém responsabilizado pela factualidade vertida na decisão recorrida sempre seria a Q..., Lda. e não a aqui Recorrente, que dela é somente sócia e não gerente”.
Sem razão.
Preliminarmente.
Como se sabe, é princípio que “a 2.ª instância apenas conhecerá da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões” (art.º 75º, n.º 1, do RGCO).
Ainda assim, a limitação do recurso ao reexame da matéria de direito não impede este Tribunal de conhecer (até oficiosamente) dos vícios da decisão recorrida a que se refere o n.º 2 do artigo 410.º do CPP – insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova –, se eles resultarem do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência.
Os vícios enumerados no art.º 410.º, n.º 2 do CPP representam anomalias decisórias ao nível da elaboração da sentença, circunscritas à matéria de facto, devendo ser apreensíveis pelo seu próprio texto, sem recurso a quaisquer outros elementos a ela estranhos, designadamente depoimentos exarados no processo ou documentos juntos ao mesmo, impeditivos de bem se decidir, tanto ao nível da matéria de facto como de direito.” – Ac. RL, de 06-12-2017, proc. n.º 746/17.4T8LSB.L1-4.
A falta de apreciação dos meios de prova em conformidade com o juízo da ora Recorrente não enquadra qualquer destes vícios” (Ac. RL, de 03-01-2022, proc. n.º 92/21.9YUSTR.L2-PICRS).
Condensando aquele que aqui é arvorado: “A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não tem nada a ver com a eventual insuficiência da prova para a decisão de facto proferida. Ora, uma decisão incorre em tal vício, quando o tribunal recorrido podendo fazê-lo deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que essa materialidade não permite, por insuficiência a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do tribunal. Tal insuficiência determina a formulação incorreta de um juízo porque a conclusão ultrapassa as premissas, ou seja, quando os factos provados forem insuficientes para fundamentar a solução de direito encontrada. Estamos na presença da insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito quando os factos colhidos, após o julgamento, não consentem, quer na sua objetividade quer na sua subjetividade, o ilícito dado como provado (Ac. do STJ de 98.03.25, BMJ 475-502).» - Ac. do STJ, de 09-12-2021, proc. n.º 20/16.3GGVNG.P1.S1.
No particular, vejamos.
O Regime Geral das Contra-ordenações (DL 433/82, de 27/10) consagra:
Artigo 7º
Responsabilidade das pessoas colectivas ou equiparadas
1 - As coimas podem aplicar-se tanto às pessoas singulares como às pessoas colectivas, bem como às associações sem personalidade jurídica.
2 - As pessoas colectivas ou equiparadas serão responsáveis pelas contra-ordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções.
Todo o fio de lógica que vem a recurso “encaminha” que, no caso, e a caber, antes seria de efectuar imputação subjectiva à sociedade “Q..., Lda.”.
Tal brandida defesa não tem condão de inflectir ao que aqui e agora importa ver quanto à imputação de conduta contra-ordenacional à arguida/recorrente, vendo nesta apreciação se o vício brandido resulta do texto da decisão recorrida; sem embargo, na discussão de contexto emaranhada, não deixa de se evidenciar a fragilidade de imputação a terceiro, pessoa colectiva, quando desacompanhada da caracterização de condutas “praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções” (e mesmo que fosse este último o caso, porventura não excluiria só por si responsabilidade da arguida; a ter-se como comparticipante - art.º 16º do RGCO).
Ora, a narrativa factual habilita a imputar à autora/recorrente autoria.
A qual requer “a cumulação de dois elementos: pertença do agente ao círculo dos destinatários do dever; e criação por ele de um risco proibido de violação desse dever” (Augusto Silva Dias, in Direito das Contra-ordenações, Almedina, Coimbra, 2018).
Como se refere no acórdão do TC n.º 45/2014, de 09/01/2014 (DR – 2.ª série, de 11/02/2014), «no âmbito das contraordenações, a imputação de um facto a um agente tem por referente legal e dogmático um conceito extensivo de autoria de matriz causal, conceito este segundo o qual é considerado autor de uma contraordenação todo o agente que tiver contribuído causal ou cocausalmente para a realização do tipo, ou seja, que haja dado origem a uma causa para a sua realização ou que haja promovido, com a sua acção ou omissão, o facto ilícito, podendo isso ocorrer de qualquer forma (cfr. Frederico Lacerda da Costa Pinto, em “O ilícito de mera ordenação social”, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 7, Fasc. 1, pag. 25-26). (…) Esta construção é uma decorrência lógica da existência no direito de mera ordenação social de normas de dever, cujo incumprimento é sancionado com coimas. Se o sistema impõe deveres a um leque alargado de destinatários é porque lhes reconhece capacidade para os cumprir e também para os violar. Daí que, apurando-se a violação do dever legalmente estabelecido os destinatários do mesmo serão responsáveis por essa violação. “O critério de delimitação da autoria neste tipo de ilícito não é do domínio do facto, mas sim o da titularidade do dever” (Frederico Lacerda da Costa Pinto, na obra citada, pag. 48).” [entendimento reiterado nos Acs. do mesmo tribunal nºs 144/2014, 220/2014, 222/2014, e 514/2014].
Sem qualquer dúvida, emerge do que não foi nunca colocado em causa - a própria avança que disponibilizou uma edificação na sua propriedade para o efeito, propriedade onde se desenvolveu obra e foi dada utilização -, que, quer a construção da obra, quer a sua utilização, sempre decorreram em imóvel sob domínio e na guarida da arguida, e sempre com dever e possibilidade de evitar as condutas, desrespeitando o regime jus-publicista urbanístico que condiciona o gozo e exercício da coisa.
Portanto, e no critério: autora das infracções contra-ordenacionais.
Já quanto à coima concretamente aplicada.
A proporção que se estabelece é entre a sanção contra-ordenacional e os interesses protegidos com a tipificação, isto é, «a proteção do bem comum, do ordenamento social e a prossecução do interesse público, sempre sob o farol da justiça» (Tiago Lopes de Azevedo, Lições de Direito das Contraordenações, Almedina, Coimbra, 2020, pág. 38); a recorrente convoca um acolhimento de interesse público, mas esse não afasta sua realização por princípio da legalidade (vinculante tanto para a Administração como para os administrados); é também ele que faz prever sua violação pela censura contra-ordenacional.
Essa protecção é legislativamente reflectida no positivado quadro relacional de referência (RJUE); de onde se vê que não podem as infracções em causa ser apodadas de gravidade diminuta, mesmo que possamos distinguir uma de mais censurado efeito.
As coimas que se atingiram concretamente individualizadas, são, dentro da medida abstracta, extremamente frugais, em nada excedendo medida da culpa [cit. Ac. do TC: «Não se trata aqui “de uma culpa, como a jurídico-penal, baseada numa censura ética, dirigida à pessoa do agente e à sua atitude interna, mas apenas de uma imputação do facto à responsabilidade social do seu autor; dito de outra forma, da adscrição social de uma responsabilidade que se reconhece exercer ainda uma função positiva e adjuvante das finalidades admonitórias da coima” (FIGUEIREDO DIAS em “O movimento da descriminalização e o ilícito de mera ordenação social”, in “Jornadas de Direito Criminal: O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar”, I, pág. 331, da ed. de 1983, do Centro de Estudos Judiciários).»; «No ilícito de mera ordenação social o objeto da valoração jurídica não é constituído apenas pela conduta, como tal, nele assumindo também especial relevância a proibição legal. É o substrato complexo formado pela conduta e pela decisão legislativa de a proibir que suporta a valoração da ilicitude (Figueiredo Dias, em Direito Penal – Parte Geral, pág. 162, da 2.ª ed., da Coimbra Editora). Daí que o conceito de culpa, no âmbito contraordenacional, se distinga da censura ética dirigida à pessoa do agente e à sua atitude interna – característica do direito penal – consubstanciando-se antes numa imputação do facto à responsabilidade social do seu autor pela violação da proibição legalmente estabelecida ou pelo incumprimento do dever imposto por lei.» - Ac. do TC 78/2013, de 31-01-2013]; colhendo daí a pena única.
«A sanção da admoestação prevista no art. 51º do RGCO apenas deve ser aplicada nos casos de reduzida gravidade do ilícito contraordenacional e diminuta culpa do agente.» - Ac. RL, de 27-04-2022, proc. n.º 202/21.9YUSTR.L1-PICRS.
Não é o caso.
Concluindo, os fundamentos de crítica trazidos a recurso, seja por nulidade, seja por erro de julgamento, não têm boa razão.
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Acordam, em conferência, os juízes que constituem este Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento ao recurso.
Custas: pela recorrente.
Porto, 25 de Novembro de 2022.
Luís Migueis Garcia
Conceição Silvestre
Isabel Costa