Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00134/17.2BELSB
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:10/28/2022
Tribunal:TAF de Coimbra
Relator:Ricardo de Oliveira e Sousa
Descritores:INCENTIVOS FINANCEIROS – CONFISSÃO – PRECLUSÃO - ERRO NOS PRESSUPOSTOS DE FACTO
Sumário:I – O reconhecimento por parte da Autora que a fórmula dos produtos [enchidos] destinados ao mercado da União Europeia/nacional tem na sua composição proteína de soja esbarra com a aquisição processual de que estes não eram os produtos objeto das restituições à exportação, não podendo, por isso, projetar os seus efeitos no âmbito de tal procedimento.
II- A circunstância da Recorrida nada ter alegado no procedimento administrativo a propósito da existência de um eventual erro na identificação da fórmula dos produtos objeto de auditoria em nada preclude a possibilidade de apuramento da representação correta [ou não] da realidade detida por parte da Administração.
III. E nada obsta a tal averiguação por parte dos Tribunais Administrativos.
IV. De facto, os Tribunais Administrativos dispõem de poderes de jurisdição e de cognição plena no que tange à tarefa de saber se as pressuposições fácticas convocadas pela Administração são corretas ou incorretas.
V. Divergindo frontalmente a perceção da realidade detida pelo Réu - e que se mostra explanada no ato impugnado - frontalmente com a realidade concreta, incorreu este em erro nos seus pressupostos de facto.
Recorrente:INSTITUTO DE FINANCIAMENTO DA AGRICULTURA E PESCAS, I.P
Recorrido 1:K..., SA
Votação:Maioria
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:NEGAR PROVIMENTO ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido da procedência do presente recurso.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
I – RELATÓRIO
O INSTITUTO DE FINANCIAMENTO DA AGRICULTURA E PESCAS, I.P [doravante IFAP], devidamente identificado nos autos, vem intentar o presente RECURSO JURISDICIONAL da sentença promanada nos autos, que, em 31.03.2022, julgou “(…) a presente ação administrativa procedente e, em consequência, anul[ou] o ato impugnado, pelo qual o R. decidiu no sentido da reposição dos valores recebidos pela A. no âmbito das restituições à exportação de carne de suíno, no montante global de € 14.937,03 (…)”.
Alegando, o Recorrente formulou as seguintes conclusões:”(…)
A. Vem o presente recurso jurisdicional interposto de sentença de 31/3/2022 do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra que julgou procedente a ação e, em consequência foi anulado “.o ato impugnado, pelo qual o R. decidiu no sentido da reposição dos valores recebidos pela A. no âmbito das restituições à exportação de carne de suíno, no montante global de € 14.937,03.”, no entendimento que “.o R. não logrou provar que os enchidos exportados pela A. e indicados no relatório de inspeção tivessem realmente, na sua composição, proteína não animal, mas apenas provou que aos inspetores da AT foi entregue, quer pela A., quer pela A..., SA, em sede de controlo cruzado, uma documentação que assim indicava”.
B. Salvo melhor entendimento, o Tribunal não faz uma correta interpretação dos factos e aplicação do direito, quando entende que bastava à recorrida, enquanto beneficiária de uma ajuda comunitária, colocar em dúvida a validade e efetiva existência dos pressupostos de facto subjacentes à decisão impugnada.
C. Este entendimento não parece correto e revela algumas contradições.
D. Desde logo, como salienta o Tribunal a quo "... segundo o relatório de controlo, a documentação (erradamente) fornecida pela própria A. e pela A..., SA apontava para uma receita ou fórmula de enchidos que continha proteína vegetal (soja).”
E. Na situação em apreço, verifica-se que na documentação fornecida pela própria recorrida, continha uma confissão. (Vide acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido em 28/12/2013, no âmbito do Proc. ...2, onde se discutia uma situação semelhante)
F. No entanto, caso assim não se entenda, o que só por mero dever de patrocínio se concebe, sempre se dirá que a recorrida, enquanto beneficiária de uma ajuda comunitária, teria de colocar em dúvida a validade e efetiva existência dos pressupostos de facto subjacentes à decisão impugnada, no tempo certo para o fazer, mais concretamente, no decurso do procedimento administrativo.
G. No entanto, nunca o fez, não obstante, como resulta dos pontos 5 e 6 da matéria de facto dada como provada na sentença, ter notificada pela AT para se pronunciar sobre as irregularidades detetadas em sede do controlo contabilístico, bem como pelo ora recorrente para efeitos de audiência prévia, onde foi expressamente indicado que a intenção de recuperação das verbas indevidamente pagas tinha como “. fundamento na circunstância de terem sido utilizados aditivos que continham proteína não animal e de, em consequência, o produto final não ser elegível para beneficiar de restituições à exportação”.
H. Ou seja, como resulta expressamente do ponto 7 da matéria de facto dada como provada, a ora recorrida veio defender-se apenas invocando a prescrição, nada referindo, quanto à existência de lapsos nas fichas técnicas dos produtos, e, salvo melhor opinião, era este o momento certo para se pronunciar sobre o assunto e colocar em dúvida a validade e efetiva existência dos pressupostos de facto subjacentes à intenção de recuperação dos montantes indevidamente pagos.
I. Entende o Tribunal a quo, que o ora recorrente “. não logrou provar que os enchidos exportados pela A. e indicados no relatório de inspeção tivessem realmente, na sua composição, proteína não animal”.
J. O ora recorrente logrou demonstrar que existia documentação que demonstrava que havia documentos no procedimento administrativo que demonstravam a existência de aditivos que continham proteína não animal e de, em consequência, o produto final não ser elegível para beneficiar de restituições à exportação”.
K. Razão pela qual, não tendo a recorrida, no âmbito do procedimento administrativo, vindo informar as entidades administrativas da existência de um lapso, não obstante ter tido duas oportunidades para o fazer, perante os elementos disponíveis no procedimento administrativo, à data da prolação da decisão final, verifica-se que esta não só é correta como a única possível.
L. Face ao exposto, salvo melhor entendimento, a sentença proferida pelo Tribunal a quo não faz uma correta interpretação dos factos e da legislação aplicável, razão pela qual, deve o presente recurso ser admitido e julgado procedente por provado e em consequência ser proferido acórdão revogando a sentença recorrida, substituindo-a por outra em que se considere que a decisão final é correta (…)”.
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Notificada que foi para o efeito, a Recorrida K..., SA, não contra-alegou.
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O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso interposto, fixando os seus efeitos e o modo de subida.
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A Digna Magistrada do Ministério Público junto deste Tribunal Superior emitiu parecer no sentido da procedência do presente recurso jurisdicional.
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Com dispensa de vistos prévios, cumpre, pois, apreciar e decidir, já que nada a tal obsta.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A DECIDIR
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, de acordo com o disposto nos artigos 144.º n.º 2 e 146.º n.º 4 do C.P.T.A. e dos artigos 5.º, 608.º n.º 2, 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º do novo CPC ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA.
Neste pressuposto, a questão essencial a dirimir é a de saber se a sentença recorrida, ao julgar nos termos e com o alcance descritos no ponto I) do presente Acórdão, “(…) não faz uma correta interpretação dos factos e da legislação aplicável (…)”.
É na resolução de tal questão que se consubstancia a matéria que a este Tribunal Superior cumpre solucionar.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
III.1 – DE FACTO
O quadro fáctico [e respetiva motivação] apurado na decisão judicial recorrida foi o seguinte:“(…)
1) A A. apresentou junto do R., no âmbito das restituições à exportação de carne de suíno, os seguintes pedidos de pagamento, com base nos respetivos Documentos Administrativos Únicos (DAU):
- DAU n.° 20.855.105, de 23/06/2010, no valor de € 928,20, referente ao produto “Enchidos”, com o código ...20, com destino a Angola;
- DAU n.° 20.417.507, de 24/03/2010, no valor de € 1.109,39, referente aos produtos “Enchidos”, com o código ...20, e “Presuntos”, com o código ...00, com destino a Angola;
- DAU n.° 20.925.166, de 07/07/2010, no valor de € 966,00, referente aos produtos “Enchidos”, com o código ...20, e “Presuntos”, com o código ...00, com destino a Angola;
- DAU n.° 21.383.037, de 30/09/2010, no valor de € 1.819,35, referente ao produto “Enchidos”, com o código ...20, com destino a Angola;
- DAU n.° 21.507.374, de 25/10/2010, no valor de € 2.651,58, referente ao produto “Enchidos”, com o código ...20, com destino a Angola;
- DAU n.° 21.034.703, de 28/07/2010, no valor de € 1.473,50, referente ao produto “Enchidos”, com o código ...20, com destino a Angola;
- DAU n.° 21.543.177, de 27/10/2010, no valor de € 2.665,72, referente aos produtos “Enchidos”, com o código ...20, e “Presuntos”, com o código ...00, com destino a Angola;
- DAU n.° 21.263.990, de 07/09/2010, no valor de € 3.517,38, referente aos produtos “Enchidos”, com o código ...20, e “Presuntos”, com o código ...00, com destino a Angola;
- DAU n.° 21.069.831, de 03/08/2010, no valor de € 1.494,09, referente ao produto “Enchidos”, com o código ...20, com destino a Angola;
- DAU n.° 21.452.374, de 13/10/2010, no valor de € 2.802,00, referente aos produtos “Enchidos”, com o código ...20, e “Presuntos”, com o código ...10, com destino a Angola
(cfr. docs. de fls. 100, 154, 199, 240, 273, 316, 340, 382, 417 e 446 do processo administrativo).
2) O R. procedeu ao pagamento à A. das restituições à exportação a que se referem os pedidos que antecedem nas seguintes datas e com os seguintes valores:
- o valor de € 928,20, relativo ao DAU n.° 20.855.105, foi pago em 25/11/2011;
- o valor de € 1.109,39, relativo ao DAU n.° 20.417.507, foi pago em 30/11/2011;
- o valor de € 966,03, relativo ao DAU n.° 20.925.166, foi pago em 10/11/2011;
- o valor de € 1.819,41, relativo ao DAU n.° 21.383.037, foi pago em 10/11/2011;
- o valor de € 3.105,18, relativo ao DAU n.° 21.507.374, foi pago em 30/11/2011;
- o valor de € 1.473,91, relativo ao DAU n.° 21.034.703, foi pago em 30/11/2011;
- o valor de € 2.542,40, relativo ao DAU n.° 21.543.177, foi pago em 30/07/2012;
- o valor de € 3.517,97, relativo ao DAU n.° 21.263.990, foi pago em 30/08/2012;
- o valor de € 1.494,09, relativo ao DAU n.° 21.069.831, foi pago em 29/08/2013;
- o valor de € 1.503,30, relativo ao DAU n.° 21.452.374, foi pago em 28/02/2014;
(cfr. docs. de fls. 83, 121, 182, 223, 256, 295, 335, no verso, 369, 407, 440 e 504 a 507 do processo administrativo).
3) A A. foi alvo de um controlo contabilístico ex post, realizado pela Direção de Serviços Antifraude Aduaneira da Autoridade Tributária (AT) no âmbito do Capítulo III do Título V do Reg. (UE) n.° 1306/2013 (programa de controlos 2013/2014), com o objetivo de confirmar a realidade e a regularidade dos pagamentos efetuados à A. pelo R., no exercício FEAGA 2012, a título de restituições à exportação de produtos do setor da carne de suíno (cfr. doc. de fls. 4 e 5 do processo administrativo).
4) Do controlo acima referido resultou um Relatório, do qual consta, além do mais, a seguinte análise e conclusões:
“ 9.7 - Controlos cruzados
A K... não produziu a mercadoria exportada nem interagiu diretamente com o destinatário final num país terceiro (no caso, Angola).
Tendo em vista a obtenção de elementos que permitissem documentar e avaliar o circuito de produção e exportação da mercadoria que beneficiou de restituições à exportação foram realizados controlos cruzados às empresas A.... e BB, que se descrevem nos pontos seguintes.
9.7.1. A..., SA
A empresa A..., SA, NIF ..., está identificada nos processos de exportação como produtor da mercadoria beneficiária de restituições à exportação.
No âmbito do controlo cruzado a esta empresa foi efetuada uma deslocação às suas instalações fabris, sitas em ..., por forma a conhecer o seu processo produtivo.
O representante da A... indicou que esta empresa não possui qualquer certificação de qualidade, nem dispõe de fluxograma de produção, dispondo apenas de fichas técnicas dos produtos.
Relativamente aos controlos de qualidade dos seus produtos, os mesmos são efetuados de acordo com o seu programa anual de análises e visam o controlo das condições para consumo (análises microbianas e químicas). Atendendo a que a A... não possui condições técnicas para realização destas análises, celebrou contrato de prestação de serviços com a empresa C....
Foram recolhidas junto da K..., as Fichas Técnicas dos produtos exportados, das quais constam, entre outros, os seguintes pontos: designação do produto, lista de ingredientes, instruções de utilização e os alergénios.
Para validação da informação constante nas fichas técnicas, relativamente aos ingredientes utilizados, foi efetuada uma amostra de lotes exportados no período em análise, para os quais se recolheram os mapas “Registo da matéria prima utilizada na produção” mantidos em arquivo pela A....
Da análise efetuada concluiu-se que no fabrico de duas das referências exportadas pelo código 1601 00 91 ...20 são utilizados aditivos que contêm proteína não animal (de soja). No mapa seguinte encontram-se identificados os aditivos utilizados em cada referência:
Código artigoDesignaçãoAditivo c/proteína vegetal
16024Chouriço corrente paresProtami e isolado de soja
16150ChouriçãoCHMIX SBS

Foram também recolhidas as especificações técnicas de alguns aditivos, designadamente dos identificados no mapa anterior e cuja utilização implica que o produto final não é elegível para benefício de restituições à exportação, nos termos do Anexo I do Regulamento (CE) n.° 903/2008, nos casos em que a mercadoria seja classificada como ...20 - enchidos não cozidos.
Atendendo a que a empresa não dispõe de fluxograma do processo produtivo, para determinação das fases e condições técnicas de fabrico dos enchidos exportados foi selecionada uma amostra de lotes exportados no período em análise, para os quais se solicitaram as respetivas fichas de controlo de produção (documento Mod10).
Da análise das fichas de controlo de produção concluiu-se que o processo produtivo é comum às diversas referências exportadas, podendo resumir-se da seguinte forma:
(...)
Da análise dos documentos Modº .10 - controlo de produção' constata-se que a fase descrita como ‘estufa secagem' é realizada a uma temperatura de 68.°C.
Dos documentos que acompanham a produção constam os lotes das matérias primas utilizadas em cada operação de fabrico. Com base nessa informação, foram localizadas as faturas de aquisição da matéria prima principal (carnes), tendo-se concluído que a mesma foi adquirida no mercado comunitário, maioritariamente à empresa ‘K... Indústria Alimentar, S.A.' e ‘... -Hipermercados, S.A.'.
Assim, as conclusões do controlo cruzado à A... são:
a) o processo produtivo dos enchidos exportados manteve-se constante ao longo do período analisado, quer quanto ao tipo de ingredientes utilizados quer quanto às condições técnicas de fabrico;
b) no fabrico das referências ...24 - Chouriço corrente pares e 16150 - Chourição, exportadas sob o código ...20, foram utilizados aditivos (Protami, isolado de soja e CHMIX SBS) em cuja composição consta a proteína de soja;
c) durante o fabrico dos enchidos os produtos são sujeitos a um processo de secagem à temperatura máxima de 68.°C, o que acontece aquando da sua passagem pela estufa.
(…)
10.2 - Análise da composição dos enchidos exportados
Foram recolhidas junto da K... as especificações técnicas da mercadoria exportada. Da sua análise resultou que na composição de 4 referências é indicada a presença de proteína vegetal.
Referência do
artigo p/a empresa
Designação
Ingrediente
16024
Chouriço corrente paresProteína (soja e láctea)
16040
Salpicão finoProteína de soja
16051
Chourição miniProteína (soja)
16150
ChouriçãoProteína (soja)

Para validação da informação constante das fichas técnicas, relativamente aos ingredientes utilizados, foi efetuada uma amostra de lotes exportados no período em análise, para os quais se recolheram os mapas “Registo da matéria prima utilizada na produção” junto do fabricante (A...). Concluiu-se pela utilização de aditivos em cuja composição consta a proteína de soja, como descrito no mapa seguinte:
Código artigoDesignaçãoAditivo c/proteína vegetal
16024Chouriço corrente paresProtami e isolado de soja
16150ChouriçãoCHMIX SBS
11 - Conclusões
Do exposto conclui-se que:
a) A beneficiária das restituições à exportação, K... - Indústria Alimentar, SA, é uma empresa que se dedica ao fabrico e comercialização de produtos à base de carne, exportando para o mercado angolano;
b) No exercício de 2012 a empresa recebeu restituições à exportação no montante de € 54.217,74 referente à medida Principal ...01 - Restituições à exportação para a Carne de Suíno, Enchidos e ...;
c) O universo de pedidos de restituições à exportação apresentados pela empresa K..., no período em análise, é de 34 processos, pelo que se procedeu à recolha de informação para todos eles;
d) Da análise da informação recolhida junto do IFAP concluiu-se que os pedidos de restituições à exportação apresentados pela K... respeitavam a uma gama reduzida de produtos, com destino a um único mercado (Angola), pelo que foi selecionada para análise na empresa uma amostra de 19 processos;
e) Foi analisada a contabilização de todos os processos, tanto ao nível da venda e pagamento da mercadoria, como do registo dos subsídios, tendo-se confirmado que todos os processos constam da contabilidade da empresa;
f) Verificou-se que, no que diz respeito à contabilização das restituições, a empresa cumpre o Princípio da Especialização do Exercício;
g) A K... não produziu a mercadoria exportada, tendo esta sido adquirida a uma empresa sua participada - A..., SA;
h) Foi efetuado controlo cruzado junto desta empresa a fim de determinar qual a composição dos produtos exportados bem como as condições técnicas em que foi produzido;
i) Durante o exercício financeiro de 2012, a K... recebeu 34.164,04 € a título de restituições à exportação para enchidos, distribuídos por dois códigos pautais: ...20 e ...10;
j) Com base nos elementos que compõem os processos remetidos pelo IFAP, designadamente, das faturas e dos packing list associados às declarações de exportação constata-se que as referências dos produtos exportados se mantiveram constantes ao longo de todo o período, pelo que a classificação do produto em dois códigos pautais distintos não se justifica por uma alteração no produto exportado;
k) Através de controlo cruzado realizado junto da empresa fabricante dos produtos exportados - A... - foi possível confirmar que as condições técnicas de produção dos enchidos se mantiveram constantes ao longo do período a que se referem as exportações em análise;
l) Da análise dos documentos ‘Modº 10 - controlo de produção' fornecidos pela empresa, constata-se que os enchidos atingem uma temperatura máxima de 68. "C, aquando da passagem pela fase de produção realizada na ‘estufa secagem'.
m) De acordo com as Notas Explicativas à Nomenclatura Combinada, Secção IV, Capítulo 16, subposição ...91, os enchidos são classificáveis nesta subposição desde que não apresentem uma coagulação total das albuminas, provocada por um tratamento térmico qualquer, como a fumagem a temperatura elevada';
n) Foi obtido junto da DSTA parecer sobre a classificação dos enchidos sujeitos a temperaturas de até 68.°C durante o seu processo produtivo, tendo sido indicado que: ‘Informa-se que não se considera que tenha uma coagulação total das albuminas pois de acordo com informação anexa do ex Instituto de Proteção da Produção Agroalimentar a coagulação só se verifica a partir dos 80. °C. Assim a mercadoria deve ser classificada na posição NC ...91';
o) Face ao teor do parecer emitido pela DSTA, conclui-se que todos os enchidos exportados pela K... com benefício de restituição à exportação se devem classificar pela posição NC ...91;
p) Desta forma, relativamente às exportações efetuadas a partir de 29/11/2010 constata-se que o código pautal declarado não corresponde à mercadoria exportada, não havendo assim identidade entre o produto exportado e o que consta no certificado de exportação;
q) Da conjugação do disposto no Regulamento (CE) n.° 612/2009 da Comissão, de 7 de julho, que estabelece as regras comuns de execução do regime das restituições à exportação para os produtos agrícolas, com o disposto no Regulamento (CE) n.° 376/2008 da Comissão, de 23 de abril, que estabelece as normas comuns de execução do regime de certificados de importação, de exportação e de prefixação para os produtos agrícolas, resulta que a concessão de restituições à exportação está condicionada à apresentação de um certificado com prefixação da restituição, do qual deve constar, obrigatoriamente, o código do produto, com 12 algarismos, da nomenclatura dos produtos agrícolas para as restituições à exportação;
r) Assim, constata-se que a K... não dispunha de certificado válido para a mercadoria que efetivamente exportou a partir de 29/11/2010, tendo igualmente declarado uma errada classificação pautal da mercadoria aquando da apresentação da respetiva declaração de exportação;
s) Desta forma, a K... solicitou restituições à exportação no montante de € 20.978,99 referentes a exportações de 138.019,63 Kg de enchidos em cujas declarações de exportação foi declarada uma errada classificação pautal, não dispondo ainda de certificado de exportação válido para o código da nomenclatura dos produtos agrícolas para as restituições à exportação aplicável à mercadoria efetivamente exportada;
t) Por outro lado, após compilação das Fichas Técnicas e dos ‘Registos da matéria prima utilizada na produção' disponibilizados pela A... , concluiu-se pela presença de proteína vegetal (essencialmente, soja) nos enchidos exportados para Angola pelo código de restituição ...20;
u) De acordo com a alínea c) do Anexo I ao Regulamento (CE) n. ° 903/2008 da Comissão, de 17 de setembro, que estabelece as condições particulares para que os produtos do setor da carne de suíno possam beneficiar da concessão de restituições à exportação, está proibida a presença de proteínas não animais nos enchidos para que estes possam ser classificáveis pelo código de restituição ...20. Assim, o presente controlo foi alargado aos processos cujas restituições à exportação foram pagas pelo IFAP nos exercícios financeiros posteriores a 2012, bem como aos processos em análise por este organismo;
v) Da análise dos elementos recolhidos no controlo cruzado à A... e nos processos mantidos pelo IFAP, explanada no ponto 10.2 do presente relatório, concluiu-se que a empresa exportou 102.918,09 Kg de enchidos que não cumpriam as condições particulares previstas na alínea c) do Anexo I ao Regulamento (CE) n.° 903/2008 da Comissão, de 17 de setembro para poderem beneficiar de restituições à exportação.
O controlo desenvolvido na empresa, tal como definido no Reg. (UE) 1306/2013, complementado com os controlos cruzados efetuados, permitiu concluir que:
a) os enchidos exportados pela K... são classificáveis no código da nomenclatura dos produtos agrícolas para as restituições à exportação ...20, pelo que a mercadoria exportada por esta empresa a partir de novembro de 2010 sob o código ...10 não cumpria o disposto no Regulamento (CE) n.° 612/2009 da Comissão, de 7 de julho, que estabelece as regras comuns de execução do regime das restituições à exportação para os produtos agrícolas, conjugado com o Regulamento (CE) n.° 376/2008 da Comissão, de 23 de abril, que estabelece as normas comuns de execução do regime de certificados de importação, de exportação e de prefixação para os produtos agrícolas.
b) os produtos ‘chouriço corrente pares' e ‘chourição' exportados para Angola não preenchiam as condições particulares para beneficiar de restituições à exportação previstas no Regulamento (CE) n. ° 903/2008 da Comissão, de 17 de setembro pois incluíam na sua composição proteína não animal.
Estes factos constituem uma irregularidade nos termos do n.° 2 do artigo 1.° do Regulamento (CE, EURATOM) n.° 2988/85 do Conselho de 18 de dezembro. Nos termos do n.° 1 do artigo 4.° do Regulamento (CE, EURATOM) n.°2988/85 do Conselho de 18 de dezembro, a K... incorre na obrigação de reembolsar os montantes indevidamente recebidos de restituições à exportação referentes a estes produtos.
O montante total de restituições indevidamente pedido pela K... foi de € 40.615,11, dos quais € 20.978,98 referentes a mercadoria com declaração de errada classificação pautal e € 19.636,13 referentes a mercadoria que não cumpria as condições especiais para beneficiar de restituições à exportação, conforme mapas de recuperação I, II e III, constantes das páginas 52, 55 e 56.
Mais se informa que relativamente aos factos aduaneiros que deram origem à proposta de reposição de restituições à exportação (errada classificação pautal), foi elaborado Auto de Notícia para instrução do respetivo processo de contraordenação, nos termos do artigo 92.° conjugado com o artigo 108.°, ambos do RGIT”
(cfr. doc. de fls. 6 a 37 do processo administrativo).
5) Através de ofício de 17/10/2014, a AT enviou ao R. uma cópia do relatório da ação de controlo que antecede, bem como uma cópia do auto de notícia do qual constam os factos suscetíveis de constituírem contraordenação aduaneira e imputados à A. (cfr. docs. de fls. 2 a 5 do processo administrativo).
6) A A. foi notificada para se pronunciar, querendo, em sede de audiência prévia, sobre a intenção do R. de “recuperar o valor indevidamente pago” nas exportações a que se referem os DAU indicados supra no ponto 1), com fundamento na circunstância de terem sido utilizados aditivos que continham proteína não animal e de, em consequência, o produto final não ser elegível para beneficiar de restituições à exportação, através dos seguintes ofícios:
- ofício n.° 072249/20..., remetido em 03/11/2015, relativo ao DAU n.° 20.855.105;
- ofício n.° 072253/20..., remetido em 03/11/2015, relativo ao DAU n.° 20.417.507;
- ofício n.° 072241/20..., remetido em 03/11/2015, relativo ao DAU n.° 20.925.166;
- ofício n.° 072244/20..., remetido em 03/11/2015, relativo ao DAU n.° 21.383.037;
- ofício n.° 072282/20..., remetido em 03/11/2015, relativo ao DAU n.° 21.507.374;
- ofício n.° 072291/20..., remetido em 03/11/2015, relativo ao DAU n.° 21.034.703;
- ofício n.° 072307/20..., remetido em 03/11/2015, relativo ao DAU n.° 21.543.177;
- ofício n.° 072310/20..., remetido em 03/11/2015, relativo ao DAU n.° 21.263.990;
- ofício n.° 072311/20..., remetido em 03/11/2015, relativo ao DAU n.° 21.069.831;
- ofício n.° 072321/20..., remetido em 03/11/2015, relativo ao DAU n.° 21.452.374
(cfr. docs. de fls. 44, 45, 48, 49, 52, 53, 56, 57, 60, 61, 64, 65, 68, 69, 72, 73, 76, 77, 80 e 81 do processo administrativo).
7) Através de requerimento enviado em 17/11/2015, a A. exerceu o direito de audiência prévia, tendo invocado a prescrição do procedimento e concluindo que não podia ser exigido o pagamento das quantias em causa (cfr. docs. de fls. 39 e 40 do processo administrativo).
8) A... foi notificada da decisão final proferida pelo Presidente do Conselho Diretivo do R., pela qual foi julgada improcedente a alegação da prescrição do procedimento e, em consequência, foi determinada a reposição das quantias pagas e recebidas nas exportações a que se referem os DAU indicados supra no ponto 1), no valor global de € 14.937,03, através dos seguintes ofícios:
- ofício n.° 010161/20..., remetido em 18/10/2016 e recebido pela A. em 19/10/2016, para efeitos de reposição da quantia de € 928,20, relativa ao DAU n.° 20.855.105;
- ofício n.° 010158/20..., remetido em 18/10/2016 e recebido pela A. em 19/10/2016, para efeitos de reposição da quantia de € 587,59, relativa ao DAU n.° 20.417.507;
- ofício n.° 010155/20..., remetido em 18/10/2016 e recebido pela A. em 19/10/2016, para efeitos de reposição da quantia de € 795,60, relativa ao DAU n.° 20.925.166;
- ofício n.° 010150/20..., remetido em 18/10/2016 e recebido pela A. em 19/10/2016, para efeitos de reposição da quantia de € 1.759,68, relativa ao DAU n.° 21.383.037;
- ofício n.° 010147/20..., remetido em 18/10/2016 e recebido pela A. em 19/10/2016, para efeitos de reposição da quantia de € 3.105,18, relativa ao DAU n.° 21.507.374;
- ofício n.° 010143/20..., remetido em 18/10/2016 e recebido pela A. em 19/10/2016, para efeitos de reposição da quantia de € 1.473,91, relativa ao DAU n.° 21.034.703;
- ofício n.° 010139/20..., remetido em 18/10/2016 e recebido pela A. em 19/10/2016, para efeitos de reposição da quantia de € 1.743,30, relativa ao DAU n.° 21.543.177;
- ofício n.° 010138/20..., remetido em 18/10/2016 e recebido pela A. em 19/10/2016, para efeitos de reposição da quantia de € 2.359,18, relativa ao DAU n.° 21.263.990;
- ofício n.° 010137/20..., remetido em 18/10/2016 e recebido pela A. em 19/10/2016, para efeitos de reposição da quantia de € 1.494,09, relativa ao DAU n.° 21.069.831;
- ofício n.° 010127/20..., remetido em 18/10/2016 e recebido pela A. em 19/10/2016, para efeitos de reposição da quantia de € 690,30, relativa ao DAU n.° 21.452.374
(cfr. docs. de fls. 41, 42, 43, 46, 47, 50, 51, 54, 5558, 59, 62, 63, 66, 67, 70, 71, 74, 75, 78 e 79 do processo administrativo e docs. de fls. 36, no verso, a 56 do suporte físico do processo).
9) Aquando da solicitação de documentação por parte da Direção de Serviços Antifraude Aduaneira da AT, no âmbito do controlo contabilístico ex post referido supra no ponto 3), a A. enviou, por lapso, as fichas técnicas dos produtos (enchidos) que se destinavam ao mercado da União Europeia/nacional.
10) A A..., SA, empresa que produziu os enchidos exportados pela A. e que beneficiaram das restituições à exportação, tinha duas fórmulas e dois processos produtivos distintos consoante o produto se destinasse ao mercado africano ou ao mercado europeu/nacional.
11) A cada um dos produtos acima referidos, destinados ao mercado africano ou ao mercado europeu/nacional, correspondiam fichas técnicas diferentes.
12) Segundo a respetiva fórmula e processo produtivo, os enchidos exportados para o mercado africano não continham, nos seus ingredientes, proteína vegetal.
13) Segundo a respetiva fórmula e processo produtivo, os enchidos destinados ao mercado europeu/nacional continham, nos seus ingredientes, proteína vegetal.
14) Da ficha técnica referente ao produto “Chouriço de Carne Corrente Argola (Export África)”, edição 01, revisão 01, data de 04/09/2010, elaborada pela A..., SA, consta que a respetiva lista de ingredientes é composta por “Carne e Gordura de Suíno, Massa de Pimentão, Sangue e Couratos de Suíno, Sal, Alho, Emulsionantes (E450, E451), Açúcares (Dextrose, Sacarose), Antioxidantes (E316, E331), Conservantes (E250, E252) e Especiarias” (cfr. doc. de fls. 11 e 12 do suporte físico do processo).
15) Da ficha técnica referente ao produto “Chourição (Export África)”, edição 01, revisão 02, data de 04/09/2010, elaborada pela A..., SA, consta que a respetiva lista de ingredientes é composta por “Carne, Gordura e Courato de Suíno, Vinho Branco (Sulfitos), Massa de Pimentão, Sangue de Suíno, Sal, Alho, Açúcares (Dextrose, Sacarose), Emulsionantes (E450, E451), Antioxidantes (E316, E331), Conservantes (E250, E252) e Especiarias” (cfr. doc. de fls. 13 e 14 do suporte físico do processo).
16) Da ficha técnica referente ao produto “Chourição Mini (Export África)”, edição 01, revisão 02, data de 04/09/2010, elaborada pela A..., SA, consta que a respetiva lista de ingredientes é composta por “Carne, Gordura e Courato de Suíno, Vinho Branco (Sulfitos), Massa de Pimentão, Sangue de Suíno, Sal, Alho, Açúcares (Dextrose, Sacarose), Emulsionantes (E450, E451), Antioxidantes (E316, E331), Conservantes (E250, E252) e Especiarias” (cfr. doc. de fls. 15 e 16 do suporte físico do processo).
17) Da ficha técnica referente ao produto “Salpicão Fino (Export África)”, edição 01, revisão 01, data de 25/09/2010, elaborada pela A..., SA, consta que a respetiva lista de ingredientes é composta por “Carne, Gordura e Sangue de Suíno, Água, Vinho (Sulfitos), Sal, Açúcares (Dextrose, Sacarose), Alho, Emulsionantes (E450, E451), Antioxidantes (E316, E331), Conservantes (E250, E252) e Especiarias” (cfr. doc. de fls. 17 e 18 do suporte físico do processo).
18) A petição inicial da presente ação deu entrada em juízo no dia 17/01/2017 (cfr. doc. de fls. 2 do suporte físico do processo).
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Factos não provados:
Não há factos que cumpra julgar não provados com interesse para a decisão da causa, de acordo com as várias soluções plausíveis de direito.
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Motivação:
A convicção do Tribunal baseou-se numa apreciação livre da prova testemunhal produzida em sede de audiência final (art.° 396.° do Código Civil), conjugada com a prova documental oferecida pelas partes e constante do processo administrativo (art.° 607.°, n.° 5, do CPC), nos termos expressamente referidos no final de cada facto.
No que respeita, em particular, à factualidade vertida nos pontos 9) a 13) - relativa ao lapso no envio da documentação à AT, às duas fórmulas e processos produtivos existentes na A..., SA consoante o mercado de destino dos enchidos (mercado africano ou mercado europeu/nacional) e à incorporação, ou não, de proteína vegetal, à luz dessas fórmulas -, o Tribunal formou a sua convicção a partir dos depoimentos, seguros e objetivos, de VV, que exerce, desde 2006, as funções de Chefe do Departamento de Contabilidade e Recursos Humanos na A., e de ZZ, que trabalhou no grupo da A. entre 2002 e 2014, tendo exercido, cronologicamente, as funções de comercial, de diretor de produção e de responsável/diretor geral da fábrica da A..., SA em .... Atentas as funções desempenhadas, ambas as testemunhas revelaram um conhecimento direto e pessoal dos factos alegados, tendo os seus depoimentos sido valorados como globalmente credíveis pelo Tribunal.
Com efeito, VV explicou ao Tribunal que foi a própria que, no âmbito da inspeção realizada pela AT, forneceu a documentação solicitada a respeito dos produtos objeto das restituições à exportação, nomeadamente elementos contabilísticos e fichas técnicas dos produtos. Quanto a estas últimas, porque não conhece o processo produtivo e porque desconhecia, à data, que havia fichas técnicas diferentes consoante o mercado a que os produtos se destinassem, referiu que se limitou a fornecer à AT as fichas técnicas que, no departamento de contabilidade, se encontravam organizadas numa “pasta de arquivo”, sem se aperceber se as mesmas correspondiam ou não às fichas técnicas dos produtos que eram exportados para o mercado africano (em concreto, para Angola). Mais explicou que só se apercebeu que tinha havido um lapso — porque enviara as fichas técnicas erradas, relativas aos produtos destinados ao mercado europeu/nacional - e que, afinal, existiam várias fichas técnicas consoante o mercado de destino dos produtos quando o procedimento de restituição das ajudas foi iniciado pelo IFAP e a A. foi notificada para se pronunciar quanto a essa questão. A testemunha foi, ainda, confrontada com as fichas técnicas juntas com a petição inicial - as quais contêm a menção “Export África” -, tendo confirmado que não foram estas as fichas que enviara à AT, uma vez que as fichas que remetera não continham qualquer referência ou indicação do mercado para onde iam, ou seja, eram genéricas.
Por seu turno, a testemunha ZZ explicou, com clareza, ao Tribunal que a A..., SA produzia os enchidos em causa de acordo com duas fórmulas e preparados distintos (preparados esses adquiridos previamente à empresa “**”), consoante os produtos se destinassem ao mercado africano ou ao mercado europeu e nacional, sendo que a cada um desse grupo de produtos correspondia uma ficha técnica própria, com indicação dos ingredientes e aditivos utilizados na sua produção. Mais afirmou, perentoriamente e sem hesitações de relevo, que nunca incorporavam proteína vegetal nos produtos destinados ao mercado africano, porque sabiam, além do mais (e a testemunha era diretor de produção), que tal incorporação lhes estava legalmente vedada, sendo que foram várias vezes inspecionados (mormente, através de controlos físicos na Alfândega) e as análises nunca deram positivo à presença de proteína não animal nos enchidos exportados para Angola. Adiantou, ainda, que os preparados (massas com base nas quais confecionavam os enchidos) eram adquiridos à “**” e que os preparados dos produtos para África não continham qualquer proteína vegetal, sendo que nunca lhes poderiam ter acrescentado essa proteína (nomeadamente, soja) porque não a possuíam nas suas instalações e porque, aliás, os produtos com e sem proteína vegetal eram produzidos em dias diferentes. Por fim, explicou que a referência, nas fichas técnicas dos produtos para o mercado africano, a “vestígios de soja” deriva do facto de os produtos serem confecionados nas mesmas bancadas e com os mesmos equipamentos que os produtos que contêm proteína vegetal, pelo que, pese embora as bancadas serem regularmente higienizadas e de os produtos (com e sem proteína vegetal) serem preparados em dias diferentes, tal circunstância podia, ainda assim, levar a uma “contaminação” dentro da mesma unidade produtiva.
Relativamente às testemunhas Xx, inspetora da AT que realizou o controlo contabilístico que está em causa nos autos e que foi, nessa qualidade, uma das autoras do relatório a que se refere o ponto 4) dos factos provados, e PP, Chefe da Unidade de Medidas de Intervenções em Mercados do Departamento de Apoios de Mercado do R. IFAP, o Tribunal valorou os seus depoimentos apenas na medida em que confirmaram, no essencial, que as conclusões vertidas no relatório de controlo efetuado pela AT às restituições à exportação de que a A. foi beneficiária foram apuradas a partir da análise das especificações técnicas dos produtos e dos documentos de produção obtidos no controlo cruzado com a A..., SA, tendo o R. IFAP iniciado o procedimento de restituição das ajudas exclusivamente com base nas conclusões do relatório.
Os restantes factos alegados não foram julgados provados ou não provados em virtude de constituírem considerações pessoais ou conclusões de facto ou de direito e não terem relevância para a decisão da causa. (…)”.
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III.2 - DO DIREITO
1. A Autora, aqui Recorrida, intentou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra a presente Ação Administrativa contra o Réu, aqui Recorrente, peticionando, em substância, a invalidade da decisão final, proferida pelo R., tendente à reposição das verbas recebidas a título de restituições à exportação.
2. Ancorou tal pretensão jurisdicional no entendimento de que o procedimento visado nos autos já se mostrava prescrito à luz do Regulamento (CE) n.° 2988/95 do Conselho, de 18/12/1995, bem como na convicção de que o ato impugnado enfermava dos vícios de forma e de violação de lei, por preterição de formalidade essencial e erro nos pressupostos de facto, respetivamente.
3. Após algumas vicissitudes processuais, o T.A.F. de Coimbra julgou esta ação procedente, consequentemente, anulando o ato impugnado.
4. Fê-lo, exclusivamente, na convicção de que o ato impugnado enfermava de erro nos pressupostos de facto, já que decorria “(…) da factualidade apurada nos autos que o ato impugnado teve por base uma fórmula de fabrico dos produtos exportados para Angola entre março e outubro de 2010 - de acordo com a qual seria utilizada proteína não animal - que não foi a fórmula efetivamente utilizada pela A. (melhor, pela A..., SA) no fabrico desses mesmos produtos - de acordo com a qual não era, em caso algum, utilizada proteína não animal, em conformidade com as exigências da legislação europeia ao caso aplicável (…)”, não logrando o Réu provar “(…) que os enchidos exportados pela A. e indicados no relatório de inspeção tivessem realmente, na sua composição, proteína não animal, mas apenas provou que aos inspetores da AT foi entregue, quer pela A., quer pela A..., SA, em sede de controlo cruzado, uma documentação que assim indicava. A..., por sua vez, logrou provar, nos presentes autos, que a fórmula dos enchidos em causa, destinados a países terceiros (em especial, Angola) e objeto das restituições à exportação, não continha, na sua composição, proteína vegetal (…)”.
5. Vem agora o Recorrente, por intermédio do recurso sub juditio, colocar em crise a decisão judicial assim promanada.
6. Realmente, patenteiam as conclusões alegatórias que o Réu, aqui Recorrente, insurge-se quanto ao assim fundamentado e decidido, imputando-lhe erro de julgamento, o que estriba na crença de que:
(i) A constatação com base em documento fornecido pela autora de que a fórmula de chouriço, objecto da decisão de restituição de ajudas comunitárias, tinha na sua composição proteína de soja” corresponde a uma confissão nos termos do art. 352º do CC;
(ii) A recorrida nada invocou em sede procedimental no tocante à existência de lapsos nas fichas técnicas dos produtos, devendo entender-se que este era “(…) momento certo para se pronunciar sobre o assunto e colocar em dúvida a validade e efetiva existência dos pressupostos de facto subjacentes à intenção de recuperação dos montantes indevidamente pagos (…)”.
(iii) Assim, perante os elementos disponíveis no procedimento administrativo, à data da prolação da decisão final, verifica-se que esta não só é correta como a única possível.
7. Salvo o devido respeito, esta argumentação é absolutamente imprestável para demonstrar a existência de qualquer erro de julgamento da decisão judicial recorrida.
8. Na verdade, e com reporte ao argumentado no sobredito ponto (i), cabe notar que não se ignora o pensamento jurisprudencial vertido no aresto do STA, de 28.02.2013, tirado no processo nº. 01175/12, no sentido de que “(…) A constatação, na matéria de facto dada como provada, com base em documento fornecido pela autora, de que “A fórmula de chouriço, objecto da decisão de restituição de ajudas comunitárias indicado em C), destinado ao mercado extra-comunitário tinha, na sua composição, proteína de soja”, corresponde a uma confissão nos termos do art. 352º do CC (…)”.
9. Contudo, a aplicação deste pensamento jurisprudencial no caso em análise esbarra com a aquisição processual do tecido fáctico coligido nos pontos 9) a 13) do probatório, a saber:
9) Aquando da solicitação de documentação por parte da Direção de Serviços Antifraude Aduaneira da AT, no âmbito do controlo contabilístico ex post referido supra no ponto 3), a A. enviou, por lapso, as fichas técnicas dos produtos (enchidos) que se destinavam ao mercado da União Europeia/nacional.
10) A A..., SA, empresa que produziu os enchidos exportados pela A. e que beneficiaram das restituições à exportação, tinha duas fórmulas e dois processos produtivos distintos consoante o produto se destinasse ao mercado africano ou ao mercado europeu/nacional.
11) A cada um dos produtos acima referidos, destinados ao mercado africano ou ao mercado europeu/nacional, correspondiam fichas técnicas diferentes.
12) Segundo a respetiva fórmula e processo produtivo, os enchidos exportados para o mercado africano não continham, nos seus ingredientes, proteína vegetal.
13) Segundo a respetiva fórmula e processo produtivo, os enchidos destinados ao mercado europeu/nacional continham, nos seus ingredientes, proteína vegetal (…)”
10. De facto, mesmo admitindo-se a existência de um reconhecimento por parte da Autora que a fórmula dos produtos [enchidos] destinados ao mercado da União Europeia/nacional tinha na sua composição proteína de soja, não pode ignorar-se que estes não eram os produtos objeto das restituições à exportação.
11. Em rigor, os produtos que beneficiaram das aludidas restituições foram os exportados para o mercado africano [in casu, para Angola] e não para os exportados para o mercado da União Europeia/nacional.
12. Assim, nunca a invocada confissão poderia projetar os seus efeitos no âmbito do procedimento de reposição das verbas recebidas a título de restituições à exportação de produtos para o mercado africano, ou seja, no procedimento visado nos autos.
13. Por conseguinte, falecem as objeções do Autor no particular conspecto em análise.
14. Idêntica asserção é atingível no tocante à alegação contida no sobredito ponto (ii).
15. Realmente, a circunstância da Recorrida nada ter alegado no procedimento administrativo a propósito da existência de um eventual erro na identificação da fórmula dos produtos objeto de auditoria em nada preclude a possibilidade de apuramento da representação correta [ou não] da realidade detida por parte da Administração.
16. E nada obsta a tal averiguação por parte dos Tribunais Administrativos.
17. De facto, os Tribunais Administrativos dispõem de poderes de jurisdição e de cognição plena no que tange à tarefa de saber se as pressuposições fácticas convocadas pela Administração são corretas ou incorretas.
18. O que nos remete para a definição do “erro nos pressupostos de facto”.
19. O erro nos pressupostos de facto, como é consabido, “(…) consiste na errada perceção da realidade, isto é, na divergência entre a realidade e a perceção que dela detém a entidade recorrida (…) ” [cfr. Ac. do STA de 14/4/99 – Rec. nº 43848].
20. Assim, o que deve relevar não é tanto o erro em que incorreu a Recorrida ao enviar a documentação errada, mas sim a representação correta [ou não] da realidade detida por parte da Administração.
21. Neste domínio, cabe que o probatório coligido nos autos é inequívoco na afirmação de que a fórmula dos enchidos em causa, destinados a países terceiros [Angola] e objeto das restituições à exportação, não continha, na sua composição, proteína vegetal.
22. No quadro em apreço, é evidente que a perceção da realidade detida pelo Réu, e que se mostra explanada no ato impugnado, no sentido do produtos objeto de financiamento continham proteína vegetal, diverge frontalmente com a realidade concreta.
23. Sendo assim, não se descortina, quanto ao aspeto ora tratado, quaisquer razões legais sustentáveis para sustentar o invocado erro de julgamento de direito.
24. Concludentemente, improcedem as todas conclusões de recurso em análise.
25. Mercê de tudo o quanto ficou exposto, deverá ser negado provimento ao presente recurso jurisdicional e mantida a decisão judicial recorrida.
26. Ao que se provirá no dispositivo.
* *
IV – DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Administrativa deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202º da CRP, em NEGAR PROVIMENTO ao recurso jurisdicional “sub judice”, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo Recorrente.
Registe e Notifique-se.
* *
Porto, 28 de outubro de 2022,
Ricardo de Oliveira e Sousa
Luís Migueis Garcia
Rogério Martins – com a seguinte declaração de voto
Declaração de voto:
Concordo com a decisão e em particular com a afirmação de que “os Tribunais Administrativos dispõem de poderes de jurisdição e de cognição plena no que tange à tarefa de saber se as pressuposições fácticas convocadas pela Administração são correctas ou incorretas”.
Mas no que diz respeito a esta afirmação com o esclarecimento que os poderes de cognição do Tribunal não passam por fazer tábua rasa da prova produzida no procedimento administrativo, mas antes pela análise da mesma, sob pena de violação do princípio da separação de poderes, consagrado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa”.