Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00567/13.3BEPNF
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:05/15/2014
Tribunal:TAF de Penafiel
Relator:Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos
Descritores:VENCIMENTO DA OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA; SUSTAÇÃO DA EXECUÇÃO FISCAL; INSOLVÊNCIA
Sumário:1. O Tribunal Central Administrativo é hierarquicamente competente para o conhecimento do recurso em que tenha sido invocado, nas conclusões respetivas, um facto que não tem suporte na decisão recorrida;
2. Mas se esse facto não foi alegado oportunamente e não podia ter sido oficiosamente considerado, também não pode ser provido o recurso que tenha por base a sua ocorrência.
3. A declaração de insolvência não determina a sustação da execução fiscal instaurada para cobrança de crédito vencido posteriormente – artigo 180.º, n.º 6, do Código de Procedimento e de Processo Tributário.
4. O crédito decorrente de facto tributário ocorrido antes da declaração da insolvência mas que só foi determinado posteriormente constitui crédito vencido após a declaração da insolvência.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:S..., S.A.
Recorrido 1:Fazenda Pública
Decisão:Negado provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

1. Relatório

1.1. S..., S.A., n.i.f. 5…, com sede na Rua…, 4440-049 Campo Valongo, recorre da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel que julgou improcedente a presente reclamação de atos do órgão de execução fiscal, interposta a coberto dos artigos 276.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

Com a interposição do recurso, apresentou as respetivas alegações e formulou as conclusões que a seguir transcrevemos:

«Conclusões:

a) De acordo com o artigo 88.° do CIRE “a declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas…”.

b) O mesmo estabelece o artigo 180°, n.° 1 do CPPT;

c) Porém, o n.° 6 do artigo 180.° do CPPT estabelece uma excepção ao referir que a declaração de insolvência não determina a suspensão dos processos de execução fiscal se o crédito se venceu após a declaração de insolvência;

d) Ora, na realidade não há créditos vencidos após a declaração de insolvência, pois esta determina o imediato vencimento de todas as dívidas do devedor, conforme o disposto no n.° 1 do artigo 91.° do CIRE.

e) O que poderá é haver impostos não liquidados á data da declaração de insolvência, para além de dívidas de imposto originadas por factos posteriores à declaração de insolvência.

f) Na verdade, as disposições aplicáveis do CPPT não revogam a disciplina prevista no artigo 88°, n.° 1 do CIRE.

g) Neste sentido, seguindo os ensinamentos do Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, “...só pode entender-se que a lei geral revoga uma lei especial quando for detectável uma intenção inequívoca do legislador nesse sentido, como impõe o n.° 3 do art. 7.° do CC” – Cfr. Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário, volume III, 6.ª edição 2011, página 324 e, no mesmo sentido veja-se a título de exemplo o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 15.11.2006, processo n.° 625/06.

h) Não é claramente essa a intenção inequívoca do legislador, dado que se assim fosse, o legislador teria acrescentado um número ao artigo 180.° do CPPT, da mesma forma que o fez quando acrescentou o rt° 3 ao artigo 30.° da LGT, referindo que “o disposto no número anterior (n.° 6 do artigo 180.° do CPPT) prevalece sobre qualquer legislação especial”.

i) Não o tendo feito, a lei especial revoga a lei geral, conforme o disposto no n.° 3 do artigo 7° do Código Civil.

j) Para além disso, se de facto o legislador quisesse excepcionar os créditos tributários teria referido “impostos liquidados após a declaração de insolvência” e não “créditos vencidos após a declaração de insolvência”, como o fez.

k) O seguimento dos termos normais dos processos de execução fiscal no caso de créditos vencidos após a declaração de insolvência só deverá entender-se “ em consonância com as normas do CIRE, sob pena de se abrir a porta à possibilidade de se inutilizar todo o esforço de recuperação da empresa e de satisfação equilibrada dos direitos dos credores que se visa com estes processos especiais, o que seria uma solução manifestamente desacertada, atentos os fins de interesse público e social que estão subjacentes àqueles” – cfr. Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário, volume III, 6ª. edição 2011, página 324.

l) Como bem transcreve, mas não aplica, a sentença ora recorrida “ […] a interpretação razoável daquele n.º 6, que se compagina com a unidade do sistema jurídico, que é o elemento primacial da interpretação jurídica (artigo 9.º, n.º 1 do Código Civil), é a de que só será viável o prosseguimento dos processos de execução fiscal por créditos vencidos após a declaração de falência ou insolvência ou do despacho de prosseguimento da acção de recuperação da empresa se forem penhorados bens não apreendidos naqueles processos de falência ou recuperação ou insolvência” – cfr. Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário, volume III, 6ª. edição 2011, página 324 e página 11 da sentença (sublinhado nosso).

m) Acontece que, no âmbito dos presentes autos foi penhorado o veículo com matrícula GM, veículo esse apreendido para a massa insolvente – cfr. lista de bens compreendido no processo de insolvência da ora Recorrente que ora se junta e cujo conteúdo se dó aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais sob o documento n.° 1.

n) Nessa conformidade, não é viável o prosseguimento dos presentes autos, dado que foi penhorado um veículo compreendido no processo de insolvência.

o) Para além disso, entendeu o tribunal a quo que os presentes autos de execução fiscal não deveriam ser sustados pelo facto da sentença homologatória do plano de insolvência referir que “o plano aprovado não produz efeitos relativamente aos créditos fiscais reclamados pela Fazenda Pública”.

p) Acrescentando que “[d]este modo, os processos de execução fiscal terão o seu curso normal, e já nem sustados ficarão, pois a insolvência não passou à fase de liquidação do activo”.

q) Note-se que o plano de insolvência tanto pode destinar-se à liquidação como à recuperação do insolvente.

r) O facto da insolvência da ora Recorrente não ter passado para a fase de liquidação, não quer dizer que o processo de insolvência foi encerrado, muito pelo contrário.

s) Nestes termos, vigorando ainda o processo de insolvência, os presentes autos de execução fiscal têm que ser sustados.

t) Por fim, refere a sentença ora recorrida que “de acordo com o disposto no art.° 30°, n.° 2 e 3, da LGT, não havendo norma legal que permita a redução do crédito fiscal, poderá o processo de execução fiscal prosseguir os seus trâmites legais, que não obsta a elaboração do plano de insolvência”.

u) Note-se que na reclamação apresentada, a ora Recorrente peticionou a suspensão dos presentes autos de execução fiscal face à sua declaração de insolvência, não tendo peticionado qualquer perdão ou redução da dívida fiscal, dado que tal se encontra vedado pelo princípio da indisponibilidade do crédito tributário.

v) Desta forma, o facto do plano de insolvência aprovado não produzir efeitos relativamente aos créditos tributários reclamados pela Fazenda Pública, nada tem a ver com a suspensão dos presentes autos de execução fiscal.

w) Nada na lei nos refere que não sendo aplicável o plano de insolvência para determinado credor, o processo de execução fiscal prossegue os seus trâmites normais, muito pelo contrário.

x) As únicas limitações que o CPPT faz relativamente à suspensão dos processos de execução fiscal face à declaração de insolvência do executado, como bem referiu o Tribunal a quo, são as previstas no n.º 5 e n.° 6 do artigo 180.º do CPPT.

y) Assim, a sentença ora recorrida, ao não suspender os presentes autos com o fundamento de que o plano de insolvência não se aplica aos créditos fiscais reclamados pela Fazenda Nacional, viola claramente o principio da legalidade a que se encontram submetidos os Tribunais, por força do artigo 203.° da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade essa que, desde já e expressamente, se invoca.

z) Atento o prejuízo irreparável que causaria a uma empresa em fase de recuperação o prosseguimento dos presentes autos de execução fiscal e ainda o facto da Fazenda Pública já se encontrar munida de garantia através da penhora de dois imóveis da Recorrente, deverá o presente recurso subir imediatamente, atribuindo-se-lhe efeito suspensivo dos autos de execução fiscal.

Termos em que deve ser dado inteiro provimento ao presente recurso e, consequentemente ser ordenada a suspensão dos presentes autos de execução fiscal e ser declarada a inconstitucionalidade expressamente invocada.».

1.2. O recurso foi admitido com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

O Recorrido não apresentou contra-alegações.

Remetidos os autos a este tribunal, o Exm.º Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido de que o recurso interposto versa exclusivamente matéria de direito e que, por conseguinte, este tribunal é absolutamente incompetente para dele conhecer.

Nenhuma das partes se pronunciou quanto esta exceção.

Com dispensa dos vistos legais (artigos 36.º, n.º 2, do Código de Processo dos Tribunais Administrativos e 707.º, n.º 4, do Código de Processo Civil), cumpre agora apreciar e decidir, visto que nada a tal obsta.

2. Do Objeto do Recurso

São as seguintes as questões a decidir:

a) Saber se o Tribunal Central Administrativo Norte é incompetente, em razão da hierarquia, para conhecer do recurso;

b) Saber se o tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento ao concluir que a sentença homologatória do plano de insolvência da executada, aprovado com o voto contra da Fazenda Pública, não produz feitos em relação a esta e não obsta ao prosseguimento da execução fiscal.

3. Questão Prévia: da Incompetência Hierárquica

Tendo sido suscitada pelo Exm.º Senhor Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal a questão da incompetência deste tribunal para apreciar o recurso, por não haver controvérsia factual a dirimir, importa conhecer de tal questão dado que a mesma merece imediata e prioritária apreciação face ao disposto nos artigos 16.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário e 13.º do Código do Processo nos Tribunais Administrativos.

Resulta do disposto nos artigos 26.º, alínea b), e 38.º, alínea a), ambos do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais que a Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo conhece em segundo grau de jurisdição dos recursos de decisões dos tribunais tributários com exclusivo fundamento em matéria de direito; e a Secção do Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo conhece em segundo grau de jurisdição dos recursos de decisões dos tribunais tributários que não tenham como exclusivo fundamento matéria de direito.

O Supremo Tribunal Administrativo tem entendido que para determinação da competência hierárquica, à face do preceituado nos artigos 26.º, alínea b), e 38.º, alínea a) do E.T.A.F. e artigo 280º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, o que é relevante é que o recorrente, nas alegações de recurso e respetivas conclusões, suscite qualquer questão de facto ou invoque, como suporte da sua pretensão, factos que não foram dados como provados na decisão recorrida. E que o recurso não versa exclusivamente matéria de direito, se nas respetivas conclusões se questionar a questão factual, manifestando-se divergência, por insuficiência, excesso ou erro, quanto à matéria de facto provada na decisão recorrida, quer porque se entenda que os factos levados ao probatório não estão provados, quer porque se considere que foram esquecidos factos tidos por relevantes, quer porque se defenda que a prova produzida foi insuficiente, quer ainda porque se divirja nas ilações de facto que se devam retirar dos mesmos.

Ora, a Recorrente alega e conclui [pontos “12” e “13” das doutas alegações de recurso; conclusões “l)” e “m)”] que o tribunal recorrido – depois de referir que só é viável o prosseguimento dos processos de execução fiscal se forem penhorados bens não compreendidos no processo de recuperação ou insolvência – não aplicou esse entendimento ao caso dos autos, pois que o veículo penhorado nos autos foi apreendido para a massa insolvente.

Ou seja, a Recorrente invoca como fundamento da sua pretensão um facto que não tem suporte na decisão recorrida: que o veículo penhorado nos autos foi apreendido para a massa insolvente.

Facto este cujo relevo para a decisão do recurso não pode à partida ser afastado, visto que, [premissa maior] se só é viável o prosseguimento dos processos de execução fiscal se forem penhorados bens não compreendidos no processo de recuperação ou insolvência e [premissa menor] se na execução fiscal foram penhorados bens compreendidos no processo de recuperação ou insolvência, a conclusão de que não é viável o prosseguimento dessa execução fiscal cabe (pelo menos numa primeira análise) nas que é logicamente possível extrair das indicadas premissas.

Assim sendo, a Recorrente coloca uma questão factual que importa dirimir em via de recurso.

Sendo que para a questão da competência não releva se esse facto pode ser considerado, visto que «a questão da competência, por ser de conhecimento prioritário em relação a qualquer outra (art. 13.º do CPTA), tem que ser decidida em face do quid disputatum e ou quid decidendum e não em face daquilo que, na sequência da actuação do tribunal competente, será mais tarde o quid decisum» (JORGE LOPES DE SOUSA, in «Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado», I volume, Áreas Editora 2011, pág. 224).

Razão porque, nos julgamos hierarquicamente competentes para apreciar o presente recurso.

4. Do Efeito do Recurso

O presente recurso tem por objeto uma sentença do tribunal de primeira instância que apreciou a reclamação de uma decisão do órgão de execução fiscal, interposta ao abrigo dos artigos 276.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

Essa reclamação subiu imediatamente nos termos do artigo 278.º, n.º 3, do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

Ora, tem-se entendido que os recursos das decisões proferidas em reclamações com subida imediata e efeito suspensivo têm também efeito suspensivo da decisão recorrida. Vão neste sentido os acórdãos da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 16 de Agosto de 2006, proferido no processo com o n.º 689/06, publicado no Apêndice ao Diário da República de 20 de Abril de 2007, págs. 1249 a 1252, de 8 de Novembro de 2006, proferido no processo com o n.º 938/06, publicado no Apêndice ao Diário da República de 16 de Novembro de 2007, págs. 1803 a 1809, e de 28 de Fevereiro de 2007, proferido no processo com o n.º 62/07, publicado no Apêndice ao Diário da República de 14 de Fevereiro de 2008, págs. 435 a 442.

Razão porque se decide atribuir efeito suspensivo ao recurso.

5. Do Julgamento de Facto

Na douta sentença foi o seguinte o julgamento de facto:

«Factos provados com relevância para a decisão da presente Reclamação com base nos elementos de prova documental existentes nos autos.

1º. Em 14.01.2013, foi instaurado pelo serviço de finanças de Valongo1 contra a ora reclamante (S..., SA), o processo de execução fiscal n.º1899201301002708, para cobrança coerciva de IRC de 2010 e respetivos juros, cuja data limite de pagamento encerrou em 22.12.2012, no valor de € 56.539,82 - cf.doc. de fls.25 a 26 dos autos.

2º. Em 25.01.2013 a ora reclamante foi citada pessoalmente, via postal, através de carta registada -cf. doc. de fls.26 dos autos.

3º. Em 28.11.2011 foi proferida sentença no âmbito do Processo n.º555/11.4TYVNG.

4º. Nessa mesma data, foi declarado o incidente de qualificação da insolvência com caráter pleno - cf.doc. de fls.30 a 32 dos autos.

5º. Foi reclamada a dívida vencida, no âmbito do processo de insolvência, do qual constava que a dívida que se encontrava em cobrança coerciva respeitava apenas ao processo de execução fiscal n.º1899201101010131.

6º. No âmbito do Processo de Insolvência foi aprovado em assembleia de credores o plano de insolvência da sociedade ora reclamante, tendo o Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional, votado desfavoravelmente - cf. doc. de fls.83 a 85 dos autos - cf.doc. de fls.33 a 38 dos autos.

7º. Em 29.04.2013 foi proferido despacho de aprovação da proposta de plano de insolvência - cf. doc. de fls.39 dos autos.

8º. Em 08.07.2013 foi proferida a sentença homologatória do plano de insolvência, na qual se refere que o plano não terá efeitos relativamente aos créditos reclamados pela Fazenda Nacional - cf. doc. de fls.40 a 41 dos autos.

9º. Na sequência da tramitação dos autos foi efetuado, via informática, o pedido de penhora do veículo, com a matrícula GM, registado sob o n.º189920130000053888, cujo registo de penhora se concretizou em 05.07.2013.

10º. A sociedade ora reclamante foi notificada da penhora em 06.09.2013.

11º. Em 17.09.2013 foi rececionada no serviço de finanças a presente reclamação ao despacho do órgão de execução fiscal que ordenou a penhora do referido veículo, nos termos do disposto no art.276º, do CPPT - cf.doc. de fls.4 dos autos.

Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a resolução da presente reclamação.

Motivação:

O Tribunal julgou provada a matéria de facto relevante para a decisão da causa com base nos documentos juntos aos autos, que não foram impugnados, identificados em cada um dos factos.

A restante matéria de facto alegada não foi julgada provada ou não provada, por revelar-se inútil para a decisão da causa ou por constituírem conceitos de direito ou alegações conclusivas.».

6. Do Julgamento de Direito

6.1. Vem o presente recurso interposto da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel que, tendo concluído que o processo de execução fiscal pode prosseguir os seus trâmites legais e que a tal não obsta a elaboração do plano de insolvência, julgou improcedente a reclamação e manteve o despacho reclamado.

Com o assim decidido não se conforma a Recorrente por entender, desde logo, que o crédito exequendo não é um crédito vencido após a declaração da insolvência (para os efeitos do artigo 180.º, n.º 6, do Código de Procedimento e de Processo Tributário). O que levanta a questão de saber o que se deve entender por crédito vencido após a declaração da insolvência, para os efeitos deste dispositivo legal.

A obrigação tributária constitui-se no momento em que ocorre o facto tributário previsto na norma de incidência real do tributo mas, na maioria dos tributos, só se torna exigível depois da determinação da matéria tributável e de liquidação (e da sua notificação ao contribuinte, no caso dessa determinação ser efetuada através de um ato da administração tributária). E só se vence com o decurso do prazo do pagamento voluntário respetivo.

O que sucede porque a obrigação do imposto não é, na maioria dos casos, uma obrigação de imposto fixo, mas uma obrigação de imposto variável, no sentido de que o seu valor não está previamente determinado pelo legislador (o que está previamente determinado é o conteúdo das regras que presidem à sua fixação) e varia de ano para ano, dependendo de operações mais ou menos complexas de determinação da matéria tributável. Entre o momento de constituição dessa obrigação e o da liquidação decorre, assim, «uma fase de indefinição da situação jurídica do vínculo obrigacional, em que ao contribuinte e à administração tributária corresponde uma situação meramente potestativa» [VITOR FAVEIRO, in «O Estatuto do Contribuinte», pág. 853; em sentido convergente, vd. SALDANHA SANCHES, in «Manual de Direito Fiscal», 3.ª Edição, pág. 255; na jurisprudência, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 2012/02/29 (processo n.º 0885/11, disponível in http://www.dgsi.pt); neste Tribunal Central Administrativo Norte, o recente acórdão de 2014/04/30, que corre termos entre as mesmas partes (Processo n.º 656/13.4BEPNF)].

Assim sendo, na generalidade dos tributos, só é possível falar de crédito vencido quando, simultaneamente, tenha ocorrido o facto tributário, tenha sido determinado o valor do tributo e tenha decorrido o prazo de pagamento respetivo. É o que sucede com o imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas, em que a base tributável é constituída pelo lucro da atividade da empresa e é determinada com base nos elementos da contabilidade e da declaração.

No caso dos autos, ficou provado que a «data limite de pagamento encerrou em 22.12.2012». O que indica, de resto, que a obrigação exigida resultou de uma liquidação adicional ou oficiosa, da iniciativa da administração tributária, e que, por conseguinte, a obrigação de pagamento respetivo não decorreu nos prazos normais a que aludem os artigos 104.º e seguintes do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, mas no prazo a que alude o artigo 110.º do mesmo Código. Sendo, por conseguinte, aquela a data em que se venceu a obrigação respetiva.

Contrapõe, a Recorrente que «não há créditos vencidos após a declaração de insolvência, pois esta determina o imediato vencimento de todas as dívidas do devedor». E invoca para tal o disposto no artigo 91.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Não podemos concordar com tal entendimento. Este dispositivo legal pressupõe que esteja determinada uma dívida na data da declaração de insolvência, o que não sucede com as obrigações tributárias relativas a factos pretéritos (à data da declaração da insolvência) mas que ainda não foram determinadas ou se encontram pendentes de determinação. O que, manifestamente, não sucedeu no caso, visto que a insolvência foi declarada em 2011 e o prazo de pagamento voluntário do tributo em causa decorreu no final do ano de 2012.

Pelo que o recurso não pode merecer provimento por aqui.

6.2. Mas a Recorrente também não se conforma com o decidido em primeira instância por entender que contradiz o disposto no artigo 88.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que deve prevalecer sobre as leis tributárias e o artigo 180.º, n.º 6, do Código de Procedimento e de Processo Tributário em particular, visto que só pode entender-se que a lei geral revoga uma lei especial quando for detetada uma intenção inequívoca do legislador nesse sentido – artigo 7.º, n.º 3, do Código Civil.

E remata dizendo que não é essa, claramente a intenção inequívoca do legislador, pois que, se assim fosse, o legislador teria acrescentado um número ao artigo 180.° do Código de Procedimento e de Processo Tributário (com fez quando acrescentou o n.º 3 ao artigo 30.° da Lei Geral Tributária), referindo que “o disposto no número anterior prevalece sobre qualquer legislação especial”.

Mas o entendimento da Recorrente assenta, nesta parte, num equívoco: o de que o artigo 180.º, n.º 6, do Código de Procedimento e de Processo Tributário constitui a lei geral e o artigo 88.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas integra a lei especial.

Na verdade, o dispositivo indicado do Código de Procedimento e de Processo Tributário é que constitui uma norma especialíssima que introduz importantes desvios às regras gerais do artigo 88.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (que é dirigida às ações executivas em geral ou a quaisquer diligências executivas).

A este propósito, refere com interesse o Sr. Conselheiro Jorge Lopes de Sousa (in «Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado», II volume, Áreas Editora 2007, pág. 232): «poderia aventar-se que as normas do CIRE, por serem posteriores ao CPPT, revogaram o n.º 6 deste artigo 180.º, quanto à possibilidade de instauração de novos processos de execução fiscal. Porém, esta proibição de instauração de qualquer acção executiva contra o falido após a declaração de falência já constava do art. 154.º, n.º 3, do CPEREF, anterior ao CPPT, pelo que tem de concluir-se que no n.º 6 do art.º 180.º deste Código, que não tinha norma correspondente no CPT, pretendeu introduzir-se um regime especial para as execuções fiscais» (sublinhado nosso).

E adiante (na pág. 233 da mesma obra): «Sendo assim, a mera repetição no CIRE da norma geral do CPEREF proibindo a instauração de novas execuções fiscais, sem qualquer indicação de que se tenha pretendido suprimir aquele regime especial, não pode ser interpretada como revogatória deste, pois só pode entender-se que uma lei geral revoga uma lei especial quando for detectável uma intenção inequívoca do legislador nesse sentido, como impõe o n.º 3 do art. 7.º do Código Civil» (sublinhado nosso).

Daqui se vê que a aplicação do raciocínio da Recorrente ao caso dos autos conduz à solução oposta à propugnada no presente recurso. Que, por isso, também não pode merecer provimento por aqui.

6.3. Prossegue a Recorrente imputando à sentença recorrida uma errada aplicação do direito aos factos, uma vez que do artigo 180.º, n.º 6, do Código de Procedimento e de Processo Tributário decorre que só é viável o prosseguimento da execução fiscal se forem penhorados bens não compreendidos no processo de insolvência, o que no caso não aconteceu porque o veículo penhorado nos autos foi apreendido para a massa insolvente.

No entanto, a Recorrente não invocou, do mesmo passo, o erro no julgamento de facto nem requereu o aditamento do facto respetivo. E não o fez porque esse facto nunca tinha sido alegado. E, por conseguinte, o tribunal recorrido também não o podia ter considerado, visto que só poderia conhecer dos factos que tivessem sido alegados, excetuados aqueles que fossem do conhecimento oficioso – artigos 99.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária. E se não os poderia ter considerado, da sua ocorrência também não poderia advir nenhum erro de julgamento.

De qualquer modo, o facto de ter sido penhorado um bem já apreendido para a massa insolvente só poderia pôr em causa a legalidade dessa penhora. Ora, o que a Recorrente tinha pedido na reclamação era a sustação da execução fiscal no seu todo, e não apenas o levantamento da penhora. E o fundamento para tal pedido era a ilegalidade do prosseguimento da execução e não a ilegalidade duma penhora em particular. E a ilegalidade do prosseguimento da execução no seu todo nunca poderia advir da ilegalidade de um específico ato de penhora.

Pelo que o recurso também não pode merecer provimento por aqui.

6.4. Mas a Recorrente também invoca o erro de julgamento na interpretação do artigo 30.º, nºs 2 e 3, da Lei Geral Tributária. Porque destes dispositivos legais não decorre, no seu entendimento, que a execução fiscal tenha que prosseguir os seus trâmites legais. E não decorre tal porque não é a sustação da execução fiscal que se encontra vedada pelo princípio da indisponibilidade do crédito tributário, mas o perdão ou a redução da dívida fiscal. Sendo que a lei também não refere que, não sendo aplicável o plano de insolvência para determinado credor, o processo de execução fiscal prossegue os seus trâmites normais.

A este respeito, importa começar por referir que – ao contrário do que defende a Recorrente – o princípio da indisponibilidade do crédito tributário contende com a sustação da execução fiscal.

É o que decorre do artigo 85.º, n.º 3, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, onde é estabelecida regra de que a execução fiscal não se suspende, que a sua suspensão tem caráter excecional e só pode derivar de lei que especialmente se lhe refira. Ou seja, a suspensão da execução fiscal só é permitida nos casos em que a lei a preveja, referindo-se concretamente à execução fiscal (neste sentido, JORGE LOPES DE SOUSA, «Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado», I volume, Áreas Editora 2011, pág. 696).

Esta diferenciação de regimes de suspensão da execução comum e da execução fiscal é vista também como um afloramento do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários, como defendeu o Tribunal Constitucional no acórdão de 2006/05/23 (n.º 345/2006): A não aplicabilidade à execução fiscal de normas que consintam ou prescrevam a sustação das execuções em geral explica-se «pelo interesse público ínsito na cobrança de créditos através do processo de execução fiscal, que recomenda que não se coloque na disponibilidade das partes, independentemente de qualquer intervenção judicial, a possibilidade de suspensão do pro­cesso, que tem como corolário um prejuízo para aqueles interesses».

O que significa que a indisponibilidade do crédito tributário não impede apenas concessões quanto ao montante da dívida, mas também o diferimento do seu pagamento ou da sua cobrança.

O que significa, também, que o preceituado no artigo 88.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas não abrange na sua regulamentação a execução fiscal, visto que, embora se refira genericamente a «ações executivas» ou até a «qualquer ação executiva», nunca se refere especialmente à execução fiscal.

Por outro lado, também não é verdade que a lei não refira que, quando não seja aplicável o plano de insolvência para determinado credor, o processo de execução fiscal prossegue os seus trâmites normais. Embora não fosse necessário que a lei o prescrevesse especialmente – atenta a regra consagrada no artigo 85.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário – a verdade é que o legislador não deixou de o especificar na parte final do n.º 6 do artigo 180.º do mesmo Código, aqui aplicável: «…que seguirão os termos normais até à extinção da execução».

Resta referir que, tendo a sentença recorrida – ao confirmar a decisão reclamada – apelado para as normas legais supra referidas, nunca poderia ter violado o princípio constitucional que a Recorrente refere de passagem na conclusão “y)”. Seguramente que não o poderia ter violado apenas por se ter «atrevido» a interpretar as normas legais em que se apoia de forma diversa da Recorrente. Pois que daquele preceito constitucional (o artigo 203.º da Constituição da República Portuguesa) não decorre que os tribunais se subordinam à lei na interpretação que dela façam os impetrantes. Bem pelo contrário: a independência dos tribunais compreende a autonomia na interpretação da lei e do direito. Diferente seria se o tribunal recorrido, depois de interpretar a lei num sentido, enveredasse por sentido que essa interpretação não comporta. Mas nem a Recorrente alega tal nem em tal se concede.

Pelo que o recurso não pode merecer provimento.

7. Conclusões

7.1. O Tribunal Centra Administrativo é hierarquicamente competente para o conhecimento do recurso em que tenha sido invocado, nas conclusões respetivas, um facto que não tem suporte na decisão recorrida;

7.2. Mas se esse facto não foi alegado oportunamente e não podia ter sido oficiosamente considerado, também não pode ser provido o recurso que tenha por base a sua ocorrência.

7.3. A declaração de insolvência não determina a sustação da execução fiscal instaurada para cobrança de crédito vencido posteriormente – artigo 180.º, n.º 6, do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

7.4. O crédito decorrente de facto tributário ocorrido antes da declaração da insolvência mas que só foi determinado posteriormente constitui crédito vencido após a declaração da insolvência.

8. Decisão

Por todo o exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte em negar provimento ao presente recurso.

Custas pela Recorrente.

Porto, 15 de Maio de 2014

Ass. Nuno Bastos

Ass. Fernanda Esteves

Ass. Pedro Vergueiro