Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00371/09.3BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:05/29/2014
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Luís Migueis Garcia
Descritores:ESTATUTO DOS ELEITOS LOCAIS.
APOIO EM PROCESSOS JUDICIAIS.
INTERPRETAÇÃO.
GARANTIAS CONSTITUCIONAIS.
Sumário:I) - O apoio em processos judiciais previsto no Estatuto do Eleito Local só cabe a final, com decisão transitada.
II) - A interpretação da lei ordinária assim obtida e aplicada não viola o princípio da igualdade, nem as garantias constitucionais próprias do processo criminal.*
* Sumario elaborado pelo Relator.
Recorrente:Município de Felgueiras e APMC...,
Recorrido 1:Ministério Público
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os juízes deste Tribunal Central Administrativo Norte, Secção do Contencioso Administrativo:
Município de Felgueiras e APMC..., id. nos autos, inconformados com Acórdão do TAF de Braga que considerou totalmente procedente acção administrativa especial intentada pelo Ministério Público - na qual peticionou que fossem anulados despachos do Vice-Presidente da Câmara Municipal de Felgueiras, de 05/05/2008, que autorizaram o pagamento ao contra-interessado AC... de € 24.200,00, para despesas com o proc. nº 49/00.3JABRG -, dele recorrem.
O Município de Felgueiras conclui o seu recurso do seguinte modo:
1ª A questão que ora se levanta prende-se apenas com a interpretação da alínea o) do nº1 do artigo 5º e do artigo 21º da Lei nº29/87, na parte referente ao momento em que as autarquias locais podem suportar (pagar) as despesas «provenientes de processos judiciais em que os eleitos locais sejam parte, desde que tais processos tenham tido como causa o exercício das respectivas funções (o que no caso em apreço nem sequer está em discussão) e não se prove dolo ou negligência por parte dos eleitos»;
2ª Não se tendo o legislador afadigado a pronunciar-se expressamente acerca do momento em que devem ser feitos esses pagamentos, o artigo 21º da Lei nº29/87, quando conjugado com a alínea o) do nº1 do artigo 5º da mesma lei, deve ser interpretado no sentido de permitir que os órgãos autárquicos competentes decidam, em face das circunstâncias de cada caso concreto ─ designadamente da situação económica do eleito local, das verbas envolvidas, da complexidade e da consequente duração do processo ─ se os pagamentos em causa podem ser autorizados antes de haver uma sentença transitada em julgado, desde que, dando-se o caso, fique expressamente consagrado no acto autorizativo que todas as verbas pagas terão de ser restituídas, se a final vier a ser dado como provado que houve dolo ou negligência do eleito local;
3ª Essa é a interpretação que resulta do enunciado linguístico (elemento gramatical) da alínea o) do nº1 do artigo 5º da Lei nº29/87, que confere expressamente a todos os eleitos locais o direito a «apoio nos processos judiciais que tenham como causa o exercício das respectivas funções»;
4ª Assim como é a que resulta do enunciado linguístico (elemento gramatical) do artigo 21º da mesma lei, quando considera que «Constituem encargos a suportar pelas autarquias respectivas» as despesas em causa e quando se refere aos «processos em que os eleitos sejam parte» e não aos processos em que os eleitos tenham sido parte;
5ª. A interpretação que o douto acórdão do TAF de Braga faz das normas em apreço não respeita, de facto, a expressão verbal o do citado artigo 21º, desde logo, porque, ao utilizar, na sua formulação linguística, a expressão «sejam parte», esse artigo deixa claro, como também já se viu, que os pagamentos em causa podem ter lugar antes dos respectivos processos judiciais terem terminado;
6ª Sendo o fim visado pela alínea o) do nº1 do artigo 5º e pelo artigo 21º da Lei nº 29/87 (a sua ratio legis) o de conferir garantia e segurança aos eleitos locais, permitindo-lhes defenderem-se nos processos em que se vejam envolvidos por causa do exercício das suas funções, a interpretação que a douta sentença de que agora se recorre faz dessas normas viola a sua razão de ser (a sua ratio legis), porque implica que, pelo menos em certas situações, como no presente caso, esse apoio só possa ser realmente dispensado aos eleitos locais que tenha condições económicas que lhes permitam ir suportando, durante vários anos, as despesas do processo, até que finalmente (in casu, passados mais de onze anos) haja uma sentença transitada em julgado;
7ª. Ou seja, para além do elemento gramatical (o texto ou a letra da lei), também o elemento racional ou teleológico (a ratio legis) afasta a interpretação que a douta sentença do TAF de Braga fez do artigo 21º do Estatuto dos Eleitos Locais;
8ª Por outro lado, uma interpretação como aquela em que se funda a douta sentença do TAF de Braga conduziria, em muitos casos, a um resultado inaceitável: só poderiam aproveitar da garantia e da segurança que é conferida pela alínea o) do nº1 do artigo 5º e pelo artigo 21º da Lei nº29/87 os eleitos locais que tivessem capacidade económica para poderem ir suportando, ao longo do processo, todas as muitas despesas resultantes da sua defesa;
9ª Isto é, uma tal interpretação conduziria a uma discriminação ─ em razão da sua situação económica ─ dos eleitos locais que não tenham meios de fortuna nem rendimentos que lhe permitam ir pagando, ao longo dos anos as despesas em causa, discriminação essa que é claramente violadora do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição;
10ª Tanto mais que, para além do facto de, dado o (apesar de parco) vencimento que auferem, os vereadores municipais a tempo inteiro estarem impedidos de recorrer ao instituto do apoio judiciário, tal como este instituto estava então (e está) legalmente regulado, a alínea o) do nº1 do artigo 5º e o artigo 21º do Estatuto dos Eleitos Locais visam permitir que os eleitos locais possam organizar a sua defesa nos processos em que se vêm envolvidos por causa do exercício das suas funções, desde que essa defesa não implique gastos exagerados, podendo, em caso de dúvida, a razoabilidade desses montantes ser apreciada pela Ordem dos Advogados.
11ª Em outras pronúncias, o legislador tem consagrado expressamente soluções condizentes com a interpretação que o Município de Felgueiras faz das duas referidas disposições do Estatuto dos Eleitos Locais (cfr., v.g., a alínea d) do nº1 e nº3 do artigo 4º do Regulamento das Custas Processuais e o artigo 33º da Lei nº2/2004, de 15 de Janeiro, com a redacção que lhe foi dada pela Lei do Orçamento do Estado para 2009);
12ª Os actos agora impugnados são válidos, não sofrendo do vício que lhes é imputado pela douta sentença do TAF de Braga;
13ª Ao ter interpretado da forma como interpretou a alínea o) do nº1 do artigo 5º e o artigo 21º do Estatuto dos Eleitos Locais, a douta sentença de que agora se recorre incorreu em erro de julgamento, o que a levou, salvo o devido respeito, a considerar erradamente procedente a presente acção administrativa especial e, consequentemente, a anular os actos administrativos impugnados.
O contra-interesssado APMC... recorre, dando como conclusões:
1) O presente recurso vem interposto do douto acórdão que julgou procedente a acção administrativa especial intentada pelo MP por via da qual este veio impugnar, pedindo a anulação, os despachos (?!...) do então Senhor Vice-Presidente da Câmara Municipal de Felgueiras, datados (?!...) de 05/05/2008, proferidos ao abrigo da alínea o) do nº1 do artigo 5º e do artigo 21º da Lei nº29/87, de 30 de Junho, na versão introduzida pela Lei nº53F/2006, de 29 de Dezembro, que autorizaram o pagamentos ao aqui contra-interessado do valor da despesa de 24.200,00€ que o mesmo teve de suportar com a sua defesa no Proc. nº49/00.3JABRG, em que respondeu por factos praticados no exercício das funções que desempenhou como Vereador da Câmara Municipal de Felgueiras.
2) De acordo com a causa de pedir da acção esta era justificada por entender, o MP, que o pagamento deveria ter efectuado no final do processo - caso se demonstrasse nele a ausência de dolo ou negligência - sendo para isso relevante o desfecho do mesmo para avaliar da ilegalidade ou não do acto impugnado. Subjacente à posição assumida pelo MP na acção estava o facto de, apenas em caso de absolvição do contra-interessado ali arguido, deixar de ter fundamento a pretensão de anulação do acto impugnado.
3) Acontece que, à data em que o aqui recorrente apresentou a sua contestação, já o mesmo havia sido absolvido pelas instâncias (1ª instância e relação de Guimarães pelo crime de que vinha acusado naquele dito processo do “saco azul”). Num primeiro acórdão da Relação, foi ordenada a baixa do processo para novo julgamento apenas quanto à parte referente a alteração não substancial dos factos, mas que não respeitavam a qualquer imputação criminal ao aqui recorrente.
4) Em 28/05/2012 foi proferido novo acórdão da Relação de Guimarães no âmbito do famigerado processo do “saco azul”, o qual foi amplamente noticiado e difundido pelos mais variados meios da comunicação social, em face de cujo acórdão ficou definitivamente resolvida e decidida a questão das absolvições dos arguidos, como, no caso concreto, do aqui recorrente.
5) O trânsito em julgado desse acórdão não pode ter deixado de ser do conhecimento, tanto do MP junto deste tribunal, como do próprio tribunal, o que que seria, só por si suficiente para o tomar em consideração na sentença recorrida, ao contrário do que aconteceu. De que se trata de facto público e notório, que dispensa, sequer, de prova, nos termos do artº 514º/1 do CPC. 1 [1 São do Código Processo Civil pregresso as normas indicadas como pertencendo ao CPC.]
6) O tribunal dispõe de amplo poder de oficiosidade na indagação dos meios de prova para a descoberta da verdade. E dispunha, pois, nos termos dos artºs 265º/3 e 535º do CPC, do poder/dever, de oficiosamente – se entendia, como entendeu, tratar-se de facto essencial – de oficiar ao Tribunal Judicial de Felgueiras (ao Juízo onde correu quele mencionado processo criminal) pela emissão de certidão correspondente, ou caso assim o entendesse, de notificar o próprio Réu Município ou o aqui contra-interessado, para a vir juntar ao processo em prazo que para tal lhe viesse a conceder para o efeito.
7) O princípio da verdade material e da sobreposição deste sobre o da verdade processual assim o impunha, mas assim optou, o tribunal, por não fazer, violando aqueles comandos normativos.
8) Para a procedência de tal acção, no acórdão em crise o tribunal “a quo” acolheu a posição defendida pelo MP Autor em relação ao artº 21º da referida lei (pensa-se que nas alegações finais que há-de ter apresentado, nos termos do artº 91º do CTA, porque não foi, o recorrente, delas notificado), nos termos da qual as referidas despesas relacionadas com a defesa em tal processo só poderiam ser pagas pelo Município de Felgueiras, depois de haver uma sentença transitada em julgado, com o fundamento de que é com este que “se cristaliza a matéria de facto atinente ao elemento subjectivo do tipo de ilícito, que ditará, no processo penal, a prática do crime a título doloso ou negligente.” Ainda de acordo com a posição defendida na sentença recorrida, “tal factualidade servirá para apreciar, no procedimento administrativo, o dolo ou negligência dos eleitos”.
Por isso entende que estando e causa um crime doloso, sempre haverá (no tal, subsequente, procedimento administrativo) que colher da decisão os factos necessários ao preenchimento do pressuposto legal (inexistência de dolo ou negligência na actuação do eleito) para a concessão do apoio. Por fim, considera-se no acórdão recorrido ser dispensável aquilatar do aproveitamento do acto administrativo praticado.
9) A questão que se colocava ao tribunal da 1ª instância, e que continua a ser a nuclear e primeira para a decisão deste recurso é aquela que em termos simples se pode equacionar da seguinte maneira:
a de saber,
Se, à luz do disposto na alínea o) do nº1 do artº 5º, conjugado com o disposto no artº 21º da Lei nº 29/87, podem ou não os Municípios pagar as despesas com processos judiciais em que os eleitos locais sejam parte, cujos factos neles discutidos estejam relacionados com o exercício das suas funções e por causa delas, antes mesmo de haver decisão transitada em julgado?
10) No douto acórdão, no segmento que mais releva para a compreensão do dispositivo, refere-se que apenas depois de transitada a sentença penal se cristaliza a matéria de facto atinente ao elemento subjectivo do tipo de ilícito para efeitos de determinação do momento a partir do qual pode ser aberto procedimento administrativo para aquilatar da existência ou não de dolo ou negligência e de lhe serem pagas as despesas.
11) Ao dar enfoque de que apenas com o trânsito da sentença penal se abre a possibilidade a averiguação, em sede de procedimento administrativo para aferir do dolo ou negligência do eleito, a decisão recorrida está a fazer tábua rasa da presunção de inocência do arguido, nos termos do artº 32º/2 da C Rep Portuguesa, ainda mais que - no caso de existir uma sentença transitada absolutória – a sua inocência já atestada pelo tribunal.
12) A presunção de inocência constitui, já nos termos em que vem fundamentado o conhecido Parecer da Procuradoria da República, um argumento caro ao MP, e ao que se vê, também ao tribunal da 1ª instância, já que devendo presumir-se a inocência do arguido, no caso, o eleito local, em processo-crime por ilícito criminal imputado supostamente cometido no exercício e por causa das funções de autarca sem que tenha ainda sido demonstrado o dolo ou culpa grave, não existe fundamento para que lhe não seja prestado o apoio no âmbito desse processo.
13) Questão, evidentemente, diferente, é o que acontecerá depois, se uma vez demonstrado, através de decisão definitiva, que o arguido (eleito local) cometeu o ilícito, actuando com dolo ou com culpa grave, ou seja, fora de um daqueles pressupostos de que a lei faz depender para o tal apoio, consistente no pagamento da despesa proveniente do processo, que lhe deve ser concedido.
Em tais casos um só remédio existe: o da obrigação do arguido devolver as importâncias que recebeu a título de apoio no âmbito do tal processo.
14) Diversamente do afirmado naquele segmento da douta sentença, o preceito não encerra a resposta a dar à questão do momento a partir do qual se abre as portas ao procedimento para que as despesas em causa possam ser pagas.
15) Se tivesse sido esse o ensejo do legislador outra, bem diferente teria sido a redacção dada ao artigo 21º do Estatuto dos Eleitos Locais, em termos que deixasse bem claro que o pagamento só teria lugar após o trânsito em julgado da sentença proferida no processo judicial em que o eleito local tenha sido parte – e assim não decorre da lei.
16) O artº 21º ao referir que «Constituem encargos a suportar pelas autarquias respectivas as despesas de processos judiciais em que os eleitos locais sejam parte (…)» - e não em que tenham sido parte – é cristalino no sentido de que esses pagamentos podem ter lugar durante o desenrolar do processo, nomeadamente quando se trata, como acontece no presente caso, de processos de grande complexidade que perduram durante anos.
17) Com a expressão «Constituem encargos a suportar pelas autarquias locais respectivas as despesas provenientes de processos judicias em que os eleitos locais sejam parte», o artigo 21º, em conjugação com a alínea o) do nº 1 do artº 5º da Lei nº 29/87 no qual é reconhecido aos eleitos locais o direito “a apoio nos processos judiciais que tenham como causa o exercício das respectivas funções”, torna claro que, em princípio, esses encargos são das respectivas autarquias locais e que só deixam de sê-lo, quando se provar que houve dolo ou negligência do eleito local.
18) A dimensão interpretativa da alínea o) do nº1 do artigo 5º e do artigo 21º do Estatuto dos Eleitos Locais, de acordo com o execurso da douta sentença recorrida, sequer encontra suporte no elemento racional ou teleológico da interpretação de tais normativos.
19) Tanto mais que o fim pretendido por tais incisos é o de conferir segurança aos eleitos locais, permitindo-lhes defenderem-se adequadamente nos processos em que se vejam envolvidos por causa do exercício das suas funções, independentemente da sua condição económica.
Por isso que,
20) O artigo 21º do Estatuto dos Eleitos Locais, quando interpretado nos termos em que a douta sentença em causa o interpretou, sempre seria manifestamente inconstitucional, uma vez que, em tais termos, e como já sustentado, “a norma só proporcionaria “Apoio em processos judiciais”, sobretudo quando estivessem em causa processos mais complexos e duradouros, ao eleito local mais afortunado ou com rendimentos avultados, discriminando negativamente, em razão da sua situação económica, todos os eleitos locais que não tivessem capacidade económica para ir suportando as despesas com os processos judiciais que tivessem por causa o exercício das suas funções” – em clara violação do disposto nos artºs 13º e 20º da C Rep Portuguesa, cuja inconstitucionalidade se invoca.
21) Considerar-se, como se julgou, que os pagamentos só podem ter lugar depois de haver uma sentença transitada em julgado que não dê como provada a existência de dolo ou negligência, seria defender uma dimensão interpretativa da alínea o) do nº1 do artigo 5ª e do artigo 21º do Estatuto dos Eleitos Locais, o que além de não respeitar o enunciado linguístico dessas duas disposições legais, conduziria, pelo menos em alguns casos, a resultados inaceitáveis, por violarem a razão de ser desses preceitos legais (a sua ratio legis).
22) A dimensão interpretativa da alínea o) do nº1 do artigo 5º e do artigo 21º do Estatuto dos Eleitos Locais, de acordo com o excurso do douto acórdão recorrido, sequer encontra suporte no elemento racional ou teleológico da interpretação de tais normativos.
23) Não só pelo elemento gramatical (o texto ou a letra da lei), também o elemento racional ou teleológico (a ratio legis) excluem a interpretação que resulta ter sido extraída do artigo 21º do Estatuto dos Eleitos Locais na sentença sob censura.
24) O artigo 21º do Estatuto dos Eleitos Locais, quando interpretado nos termos em que a douta sentença em causa o interpretou, sempre seria manifestamente inconstitucional, uma vez que, em tais termos, e como já sustentado, “a norma só proporcionaria “Apoio em processos judiciais”, (sobretudo quando estivessem em causa processos mais complexos e duradouros) ao eleito local mais afortunado ou com rendimentos avultados, discriminando negativamente, em razão da sua situação económica, todos os eleitos locais que não tivessem capacidade económica para ir suportando as despesas com os processos judiciais que tivessem por causa o exercício das suas funções” – por violar o disposto nos artºs 13º e 20º da C Rep Portuguesa.
25) A questão nunca seria ultrapassada com o eventual benefício do apoio judiciário, pelo facto de a este encontrar vedada a possibilidade de escolha do seu representante ou defensor à luz do quadro legal actual do apoio judiciário, determina que a lei do apoio é, nessa parte, até inconstitucional, por violar o disposto no artº 32º/3 da C. Rep. Portuguesa, mas continua ser o regime aplicável e aceite pelos nossos tribunais.
26) Acresce o facto de a Lei do Estatuto do Eleito Local ter sido pensada para dar maiores garantias ao eleito, justamente por este se encontrar mais exposto, em razão das funções que ocupa, a acções judicias que envolvam a imputação de factos que possam determinar a sua responsabilidade civil e criminal.
27) O regime (especial) previsto nos artºs 5º, nº 1 al. o) e artº 21º do Estatuto dos Eleitos Locais, interpretado nos termos em que a recorrente o vem fazendo ao longo destas alegações encontra paralelo em outros diplomas da nossa ordem jurídica na história mais recente.
28) É disto exemplo:
a) o que dispõe o artigo 4º, alínea d) do Regulamento das Custas Processuais que isenta de custas, entre outros, os membros do Governo, os eleitos locais e os directores-gerais, qualquer que seja a forma de processo, quando judicialmente demandados em virtude do exercício das suas funções, obrigando-os, no entanto, a pagar a posterior essas custas, nos termos do nº3 desse mesmo artigo, se, por decisão transitada em julgado, se concluir que actuaram dolosamente.
b) o artigo 2º do Decreto-Lei nº148/2000, de 19 de Julho vai no mesmo sentido ao da interpretação aqui defendida, ao estabelecer que o patrocínio judiciário dos membros do Governo, quando demandados em virtude do exercício das suas funções, pode ser assegurado por advogados contratados em regime de avença pelo CEJUR, especificamente para a prática desse patrocínio.
c)como ainda o artigo 33º da Lei nº2/2004, de 15 de Janeiro, com a redacção que lhe foi dada pelo artigo 29º da Lei do Orçamento do Estado para 2009, ao prever que o patrocínio judiciário dos directores-gerais, secretários-gerais, inspectores gerais, subdirectores-gerais, directores de serviço e chefes de divisão pode ser assegurado por advogados contratados especificamente para a prática desse patrocínio.
29) Por tudo isto, resulta que a douta sentença recorrida, ao interpretar a alínea o) do nº1 do artigo 5º e o artigo 21º do Estatuto dos Eleitos Locais nos termos em que o fez, incorreu em erro de julgamento, posto que estas que essas normas não impedem que as autarquias vão pagando, durante o decorrer do processo, as despesas a que se refere o último dos indicados normativos.
Sem prescindir:
30) Se, por efeito do processo criminal no âmbito do qual veio a ser julgado, aquele foi integralmente absolvido, não haverá senão que extrair dos termos decisão transitada a ilação de que não cometeu o ilícito que lhe era imputado, na qualidade e por causa do exercício das funções de eleito local.
31) E se o não praticou, porque não provado o dolo (única modalidade da culpa em que assentou a imputação criminal), então não há, depois disso, que apreciar os factos da sentença, por via de um procedimento administrativo a ser posteriormente aberto, apenas para apreciação dos factos da sentença, com vista a apurar se houve ou não de negligência.
32) É que, como se disse, não foi da negligência que o eleito se teve que defender na qualidade arguido, mas apenas do dolo.
33) Assim é que, não tendo existido qualquer imputação ao aqui recorrente, de responsabilidade de outro tipo senão a criminal e, tendo aquele sido, em definitivo (como foi), absolvido do crime que lhe era imputado, não pode agora, com base nos factos da sentença que o absolveu, ser aberto procedimento para apurar se houve negligência da sua parte, sob pena de grave violação do contraditório em face da decisão administrativa poder constituir para si uma verdadeira decisão surpresa.
34) Uma interpretação, como a que ressalta extraída no acórdão recorrido, do artº 21º da Lei 29/87 que admita, após a decisão absolutória criminal transitada em julgado, a abertura posterior de um procedimento administrativo a fim de a Administração Local poder, em função da decisão criminal transitada apurar se o eleito local (ali arguido) praticou os factos com negligência, com vista a, só depois lhe serem pagas, eventualmente, as despesas que aquele teve com o processo criminal, sempre violaria, por violação do contraditório, o disposto no artº 20º da C. Rep. Portuguesa.
Ainda e sem prescindir:
35) À luz do comportamento tomado pelo Réu Município nestes autos, actuação deste é concludente no sentido de esvaziar o aproveitamento do eventual acto inválido impugnado. Pelo que, senão pelas anteriores razões, desde logo com este fundamento deveria a acção ser julgada improcedente, pois que em momento algum o Réu Município questionou o valor das despesas que pagou ao contra-interessado e aqui recorrente, mesmo ao longo deste processo.
36) Quer isto dizer que, se o Réu Município aceita a legalidade do acto de pagamento e adequado e justo o valor que pagou, está, por conseguinte, conforme e concordante com aquilo que lhe pagou.
37) E sendo assim, não tinha senão o tribunal que valorar esta conduta do R. Município para efeitos de aproveitamento do próprio acto impugnado, um vez que a posição por este assumida ao longo de todo o processo só pode ser interpretada, à luz do artº 217º/1 do C Civil, no sentido de renunciou ao eventual direito que lhe assistisse à reapreciação do acto.
38) Aliás, nem se vê como é que o Réu, depois de ter sempre pugnado pela legalidade e acerto do acto impugnado que praticou, pudesse depois vir questionar o pagamento que efectuou!...
39) Pelo que o tribunal “a quo” não aplicou, como deveria, a regra da interpretação da declaração, prevista no artº 217º/1 do C Civil.
Contra-alegou o recorrido Ministério Público, pugnando pela manutenção do decidido.
*
O que vem em recurso verte sobre duas dimensões de análise do Estatuto dos Eleitos Locais (Lei 29/87, de 30/06, e suas alterações):
- a da interpretação feita da lei ordinária, procurando saber se aquela que foi aplicada no Acórdão recorrido é a que deve ser tida em conta;
e, caso seja de manter ---
- a da conformidade constitucional, perante as objecções feitas a propósito pelos recorrentes.
*
Os factos:
Considerou o tribunal a quo como provados os seguintes factos, que agora também se tomam em consideração:
A) Em 18/04/2008, AFFC & PR... – Sociedade de Advogados, emitiu em nome de APMC... – ora Contra-interessado - a factura/recibo 0493, no valor global de €: 24.200,00 (valor: € 20.000,00; IVA: € 4.200), com a descrição que segue: “Reforço de provisão no âmbito do proc. 49/00 que corre termos no Tribunal Judicial de Felgueiras e que tem como interveniente por virtude do cargo que exerceu de Vereador da C. Municipal de Felgueira” cf. de fls. 9 dos autos e 4 do processo administrativo, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
B) Em 22/04/2008, o ora Contra-interessado apresentou, nos Serviços da Câmara Municipal de Felgueiras, um requerimento, cujo teor, em parte, segue: “vem requerer a V. Exa., se digne dar entrada, nos correspondentes serviços, da factura/recibo n.º 0493, no valor de €24.200,00, referentes ao reforço de provisão, solicitado pelo seu Advogado, no âmbito do processo n.º 49/00.3 JABEG, que corre termos no 2.º Juízo do Tribunal de Felgueiras, no qual o ora requerente intervém, na qualidade de arguido, por força das funções que desempenhou enquanto Autarca. Assim, solicita os seus bons ofícios, no sentido da referida factura/recibo poder ser paga o mais rapidamente possível (…)” cf. de fls. 11 dos autos e 3 do processo administrativo, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
C) Em 2/05/2008, foi elaborado o parecer que segue: “De acordo com o parecer de ordem geral datado de 20/06/2007 e posteriores pareceres complementares, nada obsta ao pagamento da provisão de honorários solicitada, visto que o pedido vem formulado de acordo com as exigências daqueles pareceres. (…)” cf. de fls. 11-verso dos autos e 3 do processo administrativo, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
D) Em 5/5/2008, foi proferido o despacho, cujo teor se transcreve: “Tomei conhecimento. À Sr.ª Chefe da DF para se proceder de acordo com a apreciação supra do Conselho Consultivo (…)” cf. de fls. 11-verso dos autos e 3 do processo administrativo, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
E) Foi elaborada “Ordem de Pagamento Geral n.º 1817” para a entrega ao ora Contra-interessado do montante de € 24.200,00, a título de “honorários – prestações de serviços” cf. de fls. 13 dos autos e 3 do processo administrativo, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
F) O que veio a ser autorizado por despacho, de 5/5/2008, do Vice-Presidente da Câmara Municipal de Felgueiras. – cf. de fls. 15 dos autos e 2 do processo administrativo, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
G) Por meio do cheque n.º 9234300348, o Contra-interessado recebeu a quantia em causa – cf. de fls. 2 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
H) No âmbito do processo comum colectivo n.º 49/00.3 JABRG (3.º Juízo do Tribunal Judicial de Felgueiras), foi proferido despacho, pronunciando “o arguido APMC..., com as condutas descritas no capítulo 6.º, cometeu: - 1 (um) crime de abuso de poderes, p. e p. pelo art. 26.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 34/87, de 16/07” cf. de fls. 19 a 203 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
*
O direito
Os recursos interpostos contêm uma base argumentativa com pontos em comum pelo que o que a seguir se analisará conter-se-á no que é delimitação objectiva de um e no mais que se estende ao outro.
Vejamos, pois.
O Estatuto dos Eleitos Locais (Lei 29/87, de 30/06, e suas alterações - EEL) prevê no seu art.º 5º, nº 1, o), como direito dos eleitos locais, o apoio nos processos judiciais que tenham como causa o exercício das respectivas funções, ao adiante mais desenvolvendo a enunciação desse apoio na norma que, conjugadamente com aquela primeira, é centro de atenções no presente litígio:
Artigo 21.º
Apoio em processos judiciais
Constituem encargos a suportar pelas autarquias respectivas as despesas provenientes de processos judiciais em que os eleitos locais sejam parte, desde que tais processos tenham tido como causa o exercício das respectivas funções e não se prove dolo ou negligência por parte dos eleitos.
Não vem colocada em causa a ligação funcional [Veja-se, a propósito, o Ac. do TCAS, de 25-11-2010, proc. nº 02181/06, onde citando Marcello Caetano, se lembra que “(..) há que averiguar se o autor do facto ilícito procedeu ou não no exercício das suas funções e por causa desse exercício, quer dizer, se o facto praticado representou o legítimo exercício da competência para fins de interesse público ou, antes, um abuso de autoridade com excesso do que no caso exigia o cumprimento das funções.
Em qualquer dos casos o facto terá sido ilícito; mas no primeiro a ilicitude foi como que um acidente da actividade profissional do órgão ou agente administrativo, ao serviço da pessoa colectiva de direito público, ao passo que no segundo o autor do acto ilícito exorbitou das suas funções, servindo-se delas para prosseguir os seus próprios fins. (..)”]que justifica a aplicação deste normativo.

O dissídio incide sobre, digamos, o momento histórico da sua aplicação, divergindo as partes sobre se ao tempo, em Maio de 2008, podia ter sido prestado o apoio.
No arresto sob censura entendeu-se:

A legalidade do acto depende, pois, da verificação cumulativa dos pressupostos que seguem: (i) as despesas têm que decorrer de processos judiciais, (ii) em que se discute actos praticados pelos eleitos locais no exercício das suas funções e por causa delas e, bem assim, que (iii) não se prove por decisão final dolo ou negligência por parte dos eleitos.

Da factualidade considerada assente resulta que a despesa provém do processo n.º 49/00.3 JABEG, que corre termos no 2.º Juízo do Tribunal de Felgueiras, no qual o ora Contra-interessado intervém, na qualidade de arguido, por força das funções que desempenhou enquanto vereador da Câmara Municipal de Felgueiras, tanto mais que os factos aí em discussão consubstanciam crime de abuso de poderes, previsto e punível pelo artigo 26.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho.

Sucede que só com o trânsito em julgado da decisão a proferir no processo em causa, é que a Entidade Demandada poderia ter como verificado o pressuposto quanto à actuação não dolosa/negligente do eleito local.

Ponto é que, em 5/5/2008, ainda não era conhecida decisão final, transitada em julgado, no processo judicial processo n.º 49/00.3 JABEG, razão pela qual a então pretensão administrativa do ora Contra-interessado deveria ter sido indeferida.

Afiguram-se pertinentes e válidos os argumentos avançados pelo Ministério Público junto deste Tribunal - de resto, bem alicerçados no espírito e na letra da lei.

Com efeito, a violação de lei resulta do simples facto de o apoio jurídico ter sido concedido antes de transitar em julgado a sentença penal, porquanto só a partir desse transito é que se cristaliza a matéria de facto atinente ao elemento subjectivo do tipo de ilícito, que ditará, no processo penal, a prática do crime a título doloso ou negligente

Tal factualidade também servirá para apreciar, no procedimento administrativo, o dolo ou a negligência dos eleitos.
Por isso, ainda que o crime fosse punível, apenas, a título doloso, sempre haverá que recorrer à dita factualidade (assente no processo crime) para colher os factos necessários à apreciação do preenchimento do pressuposto legal – “não se prove dolo ou negligência por parte dos eleitos” – para a concessão do apoio em causa nos presentes autos.
Por sua vez, torna-se dispensável, na hipótese vertente, aquilatar do aproveitamento do acto administrativo à luz do princípio princípio «utile per inutile non vitiatur», pelas razões que seguem: primeiro, a violação de lei lesou os valores e interesses protegidos pelo preceito violado; segundo, o conteúdo do acto a praticar – em toda a sua dimensão – pode ser outro, na medida em que a Administração tem o dever-poder de sindicar – agora, já com a decisão final transitada em julgado – as despesas que devem ficar a cargo da autarquia. E, nesta medida, mantém-se um interesse relevante na anulação, pelo que o acto não pode permanecer na ordem jurídica.
Como se infere, com confirmação pelo que vem agora trazido a recurso, ao tempo em que foi dado despacho favorável ao pedido de pagamento feito pelo contra-interessado, ainda o dito processo nº 49/00.3JABEG não conhecia decisão transitada em julgado de onde se pusesse extrair um qualquer juízo quanto à prova, ou não, de dolo ou negligência por banda do mesmo; aí ancorou, erigindo esse juízo definitivo como pressuposto de aplicação normativa.
E é com referência a esse momento que versa o juízo de validade do acto; tempus regit actum (cfr. Acs. do STA: de 24.2.99, rec. nº 43459; de 24.10.00, Pleno, rec. nº 37621; de 6.2.02, Pleno, rec. nº 35272; de 14.3.02, rec. nº 47804; de 7.10.03, rec. nº 790/03; de 5.2.04, rec. nº 1918/02; de 22.6.04, rec. nº 1577/04; na doutrina, veja-se M. E. de Oliveira, in Direito Administrativo, I vol., 169).
Donde, a crítica feita em recurso quanto à não consideração da absolvição do contra-interessado (já) aquando da apresentação da contestação nos presentes autos não surte, nada indo, por inóquo, no ponto, contra deveres de oficiosidade ou de apuramento da verdade, muito menos quando com sustento em notoriedade [Como doutrinou o Prof. A. dos Reis, in CPC anotado, vol. III, 259/262, “facto notório é, por definição, facto conhecido. Mas não basta qualquer conhecimento; é indispensável um conhecimento de tal modo extenso, isto é elevado a tal grau de difusão, que o facto apareça, (...), revestido de carácter de certeza.”.], que se não reconhece (mas também desse apelo o contra-interessado não carecia, já que trazida tal notícia na sua contestação).
Diga-se desde já que a leitura de lei feita no arresto sob censura nada desalinha com o que parece ser de boa interpretação.
Também já este TCAN, no seu Ac. de 11-11-2011, proc. nº 01380/07.2BEVIS, teve ocasião de expressar que :
«(…) são cumulativos os três requisitos para que os autarcas tenham direito a usufruir deste apoio:
- Despesas provenientes com processos judiciais;
- Processos em que os eleitos locais sejam parte por causa do exercício das suas funções autárquicas;
- Não se prove em sentença judicial desses mesmos processos dolo ou negligência por parte dos eleitos.
Ora, só com a não demonstração de actuação dolosa ou negligente do eleito local é que se pode aprovar a concessão do apoio em causa. E, à partida, esta prova, só se pode fazer com a existência de decisão judicial transitada em julgado.».
Como se recolhe no Parecer da PGR nº 81/2007, votado em 24-07-2008 (DR, II Série, nº 196, de 9 de Outubro de 2009):

A doutrina tem entendido que o pagamento das despesas só deve ser feito no final do processo porque, por um lado, só então poderá saber-se qual a quantia efectivamente despendida e, por outro, a inexistência de dolo ou negligência só poderá ser determinada, em princípio, após o julgamento. GONÇALO RIBEIRO DA COSTA[80] opinou em anotação ao artigo 21.º da Lei n.º 29/87: «Uma vez que a inexistência de dolo ou negligência por parte dos eleitos locais só se encontrará a final dos processos judiciais, os encargos com estes deverão apenas ser objecto de reembolso».
Também a letra da lei parece apontar nesse sentido quando se refere aos processos que «tenham tido» como causa o exercício de funções (ao utilizar-se no artigo 21.º esta forma verbal no particípio passado).
Parece-nos, com efeito, que o eleito local apenas poderá exigir o pagamento das despesas após a decisão final do processo, porquanto só nessa fase estarão preenchidos os pressupostos de que depende a concessão do apoio: que o processo tenha tido efectivamente como causa o exercício de funções e que não se prove dolo ou negligência por parte dos eleitos.
(…)
Não devem, pois, as autarquias suportar os encargos antes de ser proferida a decisão final. Os pagamentos feitos noutras circunstâncias são ilegais, pelo que deve ser exigida a devolução das respectivas quantias.
Tem o nosso acolhimento.
Do processo legislativo, assente no projecto-lei 403/IV, nenhum contributo mais esclarecedor se recolhe, não tendo o previsto apoio suscitado maior atenção, quedando-se na aceitação do enunciado, tal qual como veio a conhecer luz, a par de outros enunciados direitos (vide Diário da Assembleia da República, I Série, nº 68, de 11/04/1987).
A sistematização do diploma obedece a uma técnica em que, depois de consagrar um genérico conjunto de elenco de direitos (art.º 5º), se percebe que subsequentemente procurou explicitar com maior minudência os contornos de alguns mais necessitados de preenchimento de concreta previsão.
Quando se confronta essa formulação - que se presume cuidada (artigo 9.º, n.º 3, 2.ª parte, do Código Civil) -, parece oferecer boa leitura que o direito em causa não foi consagrado para todos os processos (desde logo, em primeira condição, só para aqueles que tenham por causa o exercício de funções), e só ganha condições de exercício quando se possa dizer que não se provou o dolo ou negligência por parte do eleito, portanto, a final.
Como refere o n.º 2 do artigo 9º do Código Civil, não pode o intérprete considerar um “pensamento legislativo que não tenha na lei um mínimo de correspondência verbal”.
A letra da lei, como ponto de partida e limite da interpretação, não parece dar acolhimento aos recorrentes.
Assim, recolhendo contributo dessa literalidade, e no argumento que é usado pelos recorrentes, é, efectivamente, verdade que o enunciado de lei se refere a despesas de processos judiciais em que os eleitos locais “sejam parte”, e não em que tenham sido parte. Mas não impressiona, pois a qualidade de parte no processo, adquirida que seja, não subsiste nem deixa de existir em função do recuou ou avanço da instância processual, do estado do processo. E também daqui se não retira que fosse intenção do legislador querer referir-se a processos ainda pendentes, como que, assim, rejeitando aplicabilidade a processos findos com trânsito em julgado; fosse assim, sentido não haveria para caber o enunciado seguinte da norma, que inequivocamente pressupõe um final juízo! Bem mais impressivo é que o legislador se tenha referido às “despesas provenientes de processos judiciais”, aos custos incorridos, sob verificação de que “tais processos tenham tido como causa o exercício das respectivas funções e não se prove dolo ou negligência [E esta referência ao dolo ou negligência, sem mais, compreende-se porque assente o sistema de responsabilização penal e civil no princípio da culpa; divisa-se que no vasto campo de tutela de pretensão pretendido pelo legislador tenha também particularmente estado presente, ao tempo da feitura e publicação da lei, o, então vigente, Decreto-Lei n.º 48.051, de 21 de Novembro de 1967 (quadro legal da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas por actos de gestão pública); sendo, então, entendimento maioritário da doutrina (que, mais tarde, não veio a ter acolhimento no Trib. Const. e na jurisprudência do STA) a sua caducidade por inconstitucionalidade (em confronto com o art.º 22º da CRP) superveniente (por não estender a todas as formas de actuação ilícita com culpa a regra da solidariedade); daí resultando que, no sistema assim perspectivado, sem destrinça, fosse equacionável qualquer directa demanda do titular de órgão ou agente; pelo que se compreende, também, que a Lei 29/87, de 30/06, também a não haja feito] por parte dos eleitos”, tudo a supor percurso já passado.
Sem qualquer apoio para a leitura proposta em recurso, de que o princípio seja o de que as despesas são das respectivas autarquias e que só deixam de o ser quando se provar que houve dolo ou negligência do eleito local.
Compreende-se que o legislador tenha gizado assim o “apoio” em causa, só suportando despesas a final, e desde que não ficando provado dolo ou negligência, juízo só passível de ser alcançado nesse momento.
A ratio legis é a de evitar que o eleito local - por essa qualidade mais exposto às demandas - fique constrangido no exercício de funções, garantindo-lhe que não fica onerado com despesas de processo quando se verificar, a final e afinal, não emergir imputável culpa; se advier juízo de censura, então justificar-se-á que arque com tais despesas, por si e só por si.
A tutela de protecção não é a de garantia de acesso ao direito e aos tribunais, ou de oferecer uma dada particular garantia desse acesso.
Como referido no Ac. do Trib. Const. nº 578/95 (proc. nº 782/93), de 18/10/1985, estamos em domínio de relacionamento interno, nada confundível com “norma de isenção de preparos nem de concessão de apoio judiciário”.
Daí que, assente já qual a interpretação da lei ordinária, presente o seu sentido, imediatamente apreensível é o naufrágio das convocadas inconstitucionalidades, parametrizadas na conformação para com os artºs. 13º (Princípio da igualdade), 20º (Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva) e 32º (Garantias de processo criminal), nºs 2 e 3, da CRP.
No que toca à convocação do princípio da igualdade, feita com exemplos de outros regimes de “apoio”, cumpre observar que tratando-se de distintos casos que dentro da liberdade legiferante encontram justificação de diferenciação de soluções, não se mostra ele atingido.
Também é claro que nada a norma assim interpretada tem por escopo a garantia de defesa adequada em processos em que estejam envolvidos os eleitos locais, garantia dada com salvaguarda do que seja a sua condição económica, complexidade, duração, ou onerosidade dos processos; para isso, e com tal desiderato, já em diferente sede o bloco legal prevê o Apoio Judiciário; alguma pecha, por exemplo quanto à possibilidade de escolha de defensor, então daí advirá e não na normatividade agora apreciada relativa ao Estatuto dos Eleitos Locais, que com tais preocupações se não identifica, e cujo sentido interpretativo extraído também não serve em panaceia.
Nem interfere com o princípio da inocência e do exercício do contraditório; dum passo, a presunção de inocência é antes próprio dos processos sancionatórios, proposição de acordo com a qual não pode o legislador considerar preenchidos elementos do tipo legal incriminador, independentemente da produção efectiva da correspondente prova; não tendo o procedimento em causa, onde conheceram luz os actos impugnados, natureza ou afinidade desse tipo, nem refluindo a interpretação dada às normas do “Apoio” previsto no EEL em prejuízo desse princípio; doutro, nada o contraditório fica afectado, quando em sede própria na qual seja demandado o Eleito Local, este se pode defender dessa demanda, seja a que título de imputação subjectiva, simplesmente rejeitando o dolo, quando só aí tenha sustento, refutando a negligência quando também esta aí possa emergir, e mesmo que, particularmente em matéria penal, ela não sirva a incriminação, pois que onde ancora o juízo subjectivo é na matéria factual, relativamente à qual o contraditório sempre é exercitável.
O apelo ao aproveitamento do acto com base na circunstância de o Município actuar no presente processo em modo concordante com defesa de manutenção do acto, que vem identificada como renúncia, na verdade não o é, de qualquer modo se impondo o que resulta do princípio da legalidade em contrário da abdicação de exercício da competência.

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Termos em que, na improcedência do recurso, se mantém o decidido em primeira instância.
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Custas nesta instância: pelos recorrentes.
Porto, 29 de Maio de 2014.
Ass.: Luís Migueis Garcia
Ass.: Isabel Soeiro
Ass.: Antero Salvador