Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00678/10.7BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:11/29/2019
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Maria Fernanda Antunes Aparício Duarte Brandão
Descritores:ACÇÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL, ALÍNEA C) DO Nº 1 DO ARTIGO 30º DO REGULAMENTO DOS SISTEMAS PÚBLICOS DE DISTRIBUIÇÃO DE ÁGUA E DE DRENAGEM DE ÁGUAS RESIDUAIS DOS CONCELHOS DE G… E V…
Sumário:I-A responsabilidade pelo pagamento dos custos de construção dos ramais domiciliários é dos respectivos utilizadores e as entidades gestoras dos sistemas públicos de água e saneamento têm a faculdade de lhes exigir tais custos não obstante os mesmos integrarem, com a sua construção, a rede do serviço público respectivo.

II-A cobrança de forma individualizada, ou seja, através de tarifas específicas aplicadas por ocasião da construção dos ramais de ligação, é uma prática legal e válida face ao quadro legal existente, como é considerado pela entidade reguladora, sendo certo que, como a própria refere, existem apenas princípios gerais nesta matéria deixando-se ao critério das entidades gestoras a aprovação dos respectivos tarifários;

II.1-a alteração agora do modo de repercussão do custo da execução de ramais de ligação, no contexto actual e atentas as opções tarifárias assumidas no decorrer dos mais de cem anos de serviço público de abastecimento de água e 50 anos do serviço público de saneamento, criaria uma enorme injustiça na repartição dos custos do serviço, onerando todos aqueles que durante todo este tempo pagaram os seus ramais e veriam agora a sua fatura agravada para pagamento dos ramais dos outros;

II.2-a norma do regulamento em crise mostra-se em consonância com o ordenamento jurídico, sendo perfeitamente legítima - e legitimada - a cobrança aos respectivos destinatários do “custo do ramal ou ramais domiciliários” e do “valor da tarifa de ligação”.*
* Sumário elaborado pelo relator
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial
Decisão:Conceder provimento aos recursos.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Conceder parcial provimento aos recursos.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

RELATÓRIO
ACOP-Associação de Consumidores de Portugal instaurou acção administrativa especial contra V.-Empresa de Águas e Saneamento de G... e V..., E.I.M.S.A (posteriormente foram admitidos, como intervenientes, os Municípios de G... e V...), todos melhor identificados nos autos, pedindo, fundamentalmente, a (…) declaração de ilegalidade da alínea c) do nº 1 do artigo 30º do Regulamento dos Sistemas Públicos de Distribuição de Água e de Drenagem de Águas Residuais dos concelhos de G... e V..., publicado no D.R., 2ª série, nº 170, de 04/09/2007, por falta de adequado suporte legal e violação dos artigos 282º e segs. do Dec. Reg. 23/95, de 23/08.
Deduziu outros pedidos, todos dependentes da conclusão que se venha a extrair da ilegalidade da sobredita norma.
Por acórdão proferido pelo TAF de Braga foi julgada parcialmente procedente a acção e condenada a Ré V.:
-a abster-se de proceder à cobrança de quantias relativas à instalação/ligação aos respectivos ramais de ligação aos consumidores das Freguesias de S... e G...;
-a restituir as somas cobradas a esse título aos consumidores das Freguesias de S... e G...;
-julgados improcedentes os demais pedidos.
Deste vêm interpostos recursos:
Alegando, a Ré V. concluiu:
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DESTE TRIBUNAL

Em 10 de Abril de 2013, o Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, sobre a questão colocada, em sede de reenvio prejudicial, pelo Senhor Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, proferiu acórdão (o qual se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido), com o seguinte sumário:
No domínio de vigência da Lei das Finanças Locais de 2007 (Lei nº 2/2007, de 15 de Janeiro) e do D.L. nº 194/2009, de 20 de Agosto, cabe na competência dos tribunais tributários a apreciação de litígios emergentes da cobrança coerciva de dívidas a uma empresa municipal provenientes de abastecimento público de águas, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos, uma vez que, o termo “preços” utilizado naquela Lei equivale ao conceito de “tarifas” usado nas anteriores Leis de Finanças Locais e a que a doutrina e jurisprudência reconheciam a natureza de taxas, pelo que podem tais dividas ser coercivamente cobradas em processo de execução fiscal.

Na presente acção está em causa a cobrança e o pagamento/não pagamento, por parte dos utentes/beneficiários, do “preço”, taxa” ou “tarifa” relativo à instalação de ramais de ligação domésticos quer de abastecimento de água, quer de saneamento, pelo que a causa de pedir e os pedidos enquadram-se no domínio de uma relação jurídica fiscal.

Assim, este tribunal carece de competência em razão da matéria para o julgamento do litigio “sub judice” já que a cobrança do custo dos ramais domiciliários de água e saneamento é uma questão fiscal para a qual é competente o tribunal tributário, conforme resulta do referido acórdão do Pleno do STA e ainda dos artigos 13º do CPTA; 101º a 103º, 493º nº2, 494º, alínea a) e 495º, do CPC, e art. 49º, nº1, al. c) do ETAF.

A infracção das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal (art. 101º nº2, do C.P.C.).

A incompetência absoluta do tribunal pode ser arguida pelas partes e deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal em qualquer estado do processo, enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa (art. 102º nº 1, do C.P.C.), situação que aqui se verifica.

Conforme prescreve o art. 13º do CPTA, com o título “Conhecimento da competência e do âmbito da jurisdição”: “O âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais administrativos, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria”.

Acresce que, conforme é jurisprudência firmada, a declaração genérica ou tabelar no despacho saneador sobre a competência do tribunal (como foi feita neste processo), não faz caso julgado formal, não estando impedido o julgador administrativo, à luz do que se dispõe nos art.ºs 13º do CPTA, 102º nº 1, 510º nº 3 e 666º do CPC, de vir a suscitar e a declarar o tribunal incompetente.

Sendo a incompetência material uma incompetência absoluta do Tribunal (cfr. art. 101º do C.P.C.), tal situação constitui uma excepção dilatória (art. 494º, al. a), do C.P.C.) conduzente à absolvição da Ré da instância (art. 288º nº1 al. a) e art. 493º nº2, do C.P.C.).
II
SINDICABILIDADE DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO CONSTANTE DA SENTENÇA/ACORDÂO RECORRIDO

Foi fixada na matéria de facto um ofício do extinto IRAR- Instituto Regulador de Águas e Resíduos, com o nº 000575/2007, de 7 de Fevereiro de 2007, que a Autora juntou com a sua acção, e que versa sobre uma situação particular, a reclamação à facturação de ramais de ligação na freguesia da Marinha das Ondas (Figueira da Foz), e não foi considerado o parecer que a Ré juntou aos autos nas suas primeiras alegações de recurso (em 1/06/2011) da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos, I.P. actualmente com a designação de ERSAR, emitido em 2011-05-20, sobre o assunto “tarifas de ramal de ligação”, de carácter geral e abstracto, o qual contém o entendimento actual e perfilhado pela entidade reguladora do sector sobre a matéria em causa nesta acção.
10º
Dada a relevância e importância deste parecer devia o mesmo fazer parte da base factual fixada na douta sentença/acordão recorrido, sendo certo que é sobre a matéria de facto considerada provada que é formulado o juízo de direito.
Impõe-se, assim, o aditamento de um novo facto, que passaria a ter o nº 6, com o seguinte conteúdo:
“Pela Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos, I.P. actualmente com a designação de ERSAR, foi emitido em 2011-05-20, um parecer sobre o assunto “tarifas de ramal de ligação”, do qual designadamente consta que a responsabilidade pelo pagamento dos custos de construção dos ramais de ligação é dos respectivos utilizadores e que a entidades gestoras podem repercutir esses custos através de tarifas especificas aplicadas por ocasião da construção dos ramais de ligação – conforme documento de fls. dos autos e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.”
III- NULIDADES DA SENTENÇA
11º
Por outro lado, e, com todo o respeito, a douta sentença padece das nulidades estatuídas no art. 668º, nº1, al.s b) e c) do C.P.C. ex vi art. 1º do CPTA, porque não especifica os fundamentos de direito que justificam a decisão e porque os fundamentos da sentença estão em manifesta oposição e contradição com a decisão.
12º
Na sentença/acórdão recorrido considerou-se que o art. 30º nº1 al. c) do Regulamento dos Sistemas Públicos e Prediais (…) de G... e V... não é ilegal, ao prever que o custeamento de tal operação (construção do ramal de ligação) deve ser suportado pelo respectivo utente, no entanto tal custeamento não poderá ser feito cobrando directamente dos utentes as quantias, conforme vem sucedendo, e condenou a V. a abster-se de proceder à cobrança das quantias relativas à instalação/ligação aos respectivos ramais de ligação aos consumidores das freguesias de S... e G... e ainda condenou-a a restituir-lhes as quantias já cobradas a esse título.
13º
Esta norma regulamentar prevê a responsabilidade do utilizador pagar o respectivo ramal de ligação e a faculdade da V. lhe exigir tal pagamento e é ao abrigo desta e doutras normas, legais e regulamentares, que a V. vem cobrando dos utilizadores tais custos.
14º
Ora, se a norma do art. 30º do Regulamento não é ilegal fica-se sem saber, porque a sentença não o diz, por que razão a Ré V. não pode fazer a cobrança da forma como vem fazendo e qual a disposição legal que está a infringir ao actuar da forma como actua.
15º
Não basta dizer-se que a V. não pode cobrar directamente dos utentes as quantias correspondentes aos ramais domiciliários, é necessário que se fundamente de facto e de direito as razões porque o não pode fazer.
16º
Se a norma regulamentar ao abrigo da qual a Ré vem fazendo a cobrança de ramais domiciliários não é considerada ilegal, nem outras o foram, qual é então a norma jurídica que está a violar para não poder proceder à cobrança? A decisão recorrida não o diz.
17º
Ora, para a Ré ser condenada a abster-se de proceder à cobrança das quantias relativas à instalação/ligação aos respectivos ramais de ligação e condenada a restituir as quantias já cobradas a esse título aos consumidores das freguesias de S... e G..., é porque os Senhores Juízes considerem a sua actuação ilegal, e se é ilegal é porque está a infringir normas legais, no entanto, a decisão recorrida não diz quais, sendo totalmente omissa quanto à fundamentação de direito, ou seja, não especifica os fundamentos de direito que justificam a decisão, o que constitui nulidade nos termos do art. 668º nº1 al. b) do C.P.C. ex vi art. 1º do CPTA.
18º
Acresce que os fundamentos da sentença estão em manifesta oposição e contradição com a decisão, na medida em que toda a fundamentação da sentença conduzia logicamente a uma decisão diversa da que foi proferida.
19º
Com efeito, toda a argumentação desenvolvida ao longo da decisão aponta clara e inequivocamente no sentido de que cabe aos utilizadores pagarem os custos de construção dos ramais de ligação e que a cobrança desses custos pela entidade gestora é legítima, legal e justa, mas a decisão foi em sentido oposto e condenou a Ré V. a abster-se de cobrar tais quantias e ainda a condenou a reembolsar os consumidores das freguesias aqui representados pela Autora.
20º
A sentença/acórdão recorrida corporiza assim um vício lógico de raciocínio pois as suas premissas de facto e de direito impunham uma decisão e acabou por extrair outra oposta.
21º
Ora, entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; “quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão, isto é, quando os fundamentos invocados devessem, logicamente, conduzir a uma decisão diferente da que a sentença ou acórdão expressa, a sentença é nula” (A. dos Reis, C.P.C. Anotado, 5º- 141: A. Varela, Manuel 1ª Edição, pág. 671).
22º
Este é o entendimento unânime e pacifico de todos os autores e da nossa jurisprudência.
23º
Assim, a decisão recorrida é nula por manifesta oposição ou contradição entre os seus fundamentos e a decisão, enfermando da nulidade prevista no art. 668º nº 1 al. c) do C.P.C. ex vi art. 1º do C.P.T.A..
IV- ERRO DE JULGAMENTO
24º
A decisão recorrida enferma ainda de erro de julgamento.
25º
É hoje entendimento generalizado quer da doutrina, quer da jurisprudência, que a responsabilidade pelo pagamento dos custos de construção dos ramais domiciliários é dos respectivos utilizadores e que as entidades gestoras dos sistemas públicos de água e saneamento têm a faculdade de lhes exigir tais custos não obstante os mesmos integrarem, com a sua construção, a rede do serviço público respectivo.
26º
Neste sentido se decidiu já nos tribunais comuns, conforme sentença que foi junta aos autos pela Ré na sua contestação, tendo entretanto sido proferidas outras decisões no mesmo sentido, e recentemente também o Tribunal Central Administrativo do Norte, no seu acórdão de 22.02.2013, proc. nº 180/08.7BEBRG, disponível in www.dgsi.pt, onde é partilhado o mesmo entendimento.
27º
De facto, face ao quadro legal actual este é o entendimento certo e correcto, já não sendo válida a interpretação a contrario sensu do art. 283º do Decreto Regulamentar nº 23/95, de 23/08.
28º
A questão que se pode colocar é a de saber de que forma os custos com a construção dos ramais de ligação podem ou devem ser repercutidos nos utilizadores: se de forma individualizada, ou seja, através de tarifas especificas aplicadas por ocasião da construção dos ramais de ligação, ou antes de forma difusa como mais um encargo a recuperar através das tarifas aplicadas mensalmente aos utilizadores do serviço (tal como a construção e manutenção das redes).
29º
A existência de tarifas específicas de ramal constitui uma prática frequente dos municípios portugueses, embora a Entidade Reguladora se incline para considerar preferível a aplicação dos custos de forma difusa, ou seja diluindo-os mensalmente com a respectiva factura, aos utilizadores do serviço, melhor dizendo, diluindo o preço do ramal ou no preço da água ou criando uma tarifa especifica a ser paga mensalmente pelos utilizadores.
30º
No entanto, a cobrança de forma individualizada, ou seja, através de tarifas específicas aplicadas por ocasião da construção dos ramais de ligação, é uma prática legal e válida face ao quadro legal existente, como é considerado pela entidade reguladora e consta do seu parecer junto aos autos, sendo certo que, como a própria refere, existem apenas princípios gerais nesta matéria deixando-se ao critério das entidades gestoras a aprovação dos respectivos tarifários.
31º
Este é o procedimento praticado pela Ré V., que se limitou a seguir a prática que vinha sendo aplicada pelos antigos SMAS - Serviços Municipalizados de Água e Saneamento da Câmara Municipal de G....
32º
A opção pela forma individualizada permite a cobrança do custo do ramal no momento da sua entrada em serviço e de uma só vez, sendo dada a possibilidade ao utente de fazer um acordo de pagamento em prestações mensais sem juros e comprovada que seja, pelos serviços de acção social da Câmara Municipal, a incapacidade do utente fazer face aos custos associados à ligação aos sistemas públicos de abastecimento de água e drenagem de águas residuais, o mesmo poderá beneficiar de um subsídio previsto no Regulamento de Apoio a Estratos Sociais Desfavorecidos, ao passo que se a opção fosse o modo difuso, a totalidade dos utentes pagaria todos os meses e durante a vigência do contrato, junto com a sua conta de água, um montante para compensar este custo.
33º
Ora, a alteração agora do modo de repercussão do custo da execução de ramais de ligação, no contexto actual e atentas as opções tarifárias assumidas no decorrer dos mais de cem anos de serviço público de abastecimento de água e 50 anos do serviço público de saneamento, criaria uma enorme injustiça na repartição dos custos do serviço, onerando todos aqueles que durante todo este tempo pagaram os seus ramais e veriam agora a sua factura agravada para pagamento dos ramais dos outros.
34º
O colectivo de Juízes partilha do entendimento da Ré, uma vez que na decisão recorrida referem a fls 7/14, o seguinte: “A questão é a de saber como é que esses custos se devem repercutir nos beneficiários/utilizadores. Ora, efectivamente, revendo a nossa posição anterior sobre a matéria, a solução passará, não pela cobrança nos termos aqui discutidos nos autos, mas antes pela repercussão das quantias de forma individualizada, através de uma tarifa específica por ocasião da construção do ramal pois que a forma difusa de repercutir esse preço/custo da construção do ramal de ligação geraria situações de desigualdade e de desproporcionalidade em relação a alguns ou de utilizadores pois que o custo de instalação de ramal de ligação é relativa, dependendo essencialmente da extensão do mesmo”.
35º
Contudo, ao finalizarem a fundamentação da sentença já referem que tal custeamento não poderá ser feito cobrando directamente dos utentes as quantias, conforme vem sucedendo, o que, com todo o respeito, é uma contradição. Impõe-se assim que se pergunte: Como deve então ser feita esta cobrança?
36º
Parece querer dizer-se que só o poderá ser sob a forma de taxa ou de tarifa, apesar de não termos a certeza se é isto que se quer dizer, mas não interessa se o pedido de pagamento do custo do ramal é feito aos utentes em forma de taxa, tarifa ou preço, pois que não é o nome dado à forma de cobrança que altera a sua essência.
37º
Aliás, conforme decorre do art. 24º al. g) dos Estatutos da V., anexos à escritura pública da sua transformação em sociedade comercial anónima (doc. nº2 da contestação), pelos municípios de G... e V... foram delegados poderes ao conselho de administração da V. para “cobrar tarifas e preços pelos serviços e bens prestados no exercício da sua actividade e pela realização, manutenção, reforço e utilização de infra-estruturas, incluindo os ramais de ligação da rede pública aos prédios particulares”.
38º
A Ré V. tem vindo a cobrar o preço do ramal, e no caso do saneamento, acrescido da tarifa de ligação. Não se vislumbra assim por que razão não o possa continuar a fazer.
39º
Acresce que a decisão de mandar devolver o dinheiro (milhares de euros) aos utentes das freguesias aqui representados pela Autora, que pagaram e bem o preço dos seus ramais ou que se encontram a pagá-los em prestações mensais, tal como o fazem tantos outros utentes de outras freguesias, não se afigura minimamente justa, nem razoável, depois de na mesma sentença se ter considerado que efectivamente cabe ao utente pagar o seu ramal domiciliário, nem sequer se avaliou o impacto e as consequências de tal decisão, que afecta de forma drástica e violenta o equilíbrio económico-financeiro da empresa e o interesse público subjacente à prossecução destes serviços essenciais.
40º
Assim, a Sentença/Acórdão recorrido, ao decidir da forma como decidiu, enferma de manifesto e ostensivo erro de julgamento.
Termos em que, com o suprimento, deve o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, ser declarado o tribunal administrativo materialmente incompetente para julgar a presente causa, caso assim não se entenda, deve a decisão recorrida ser revogada, julgando-se a acção improcedente, com todas as legais consequências.

O Município de V... também alegou, concluindo:
1.ª: No entender do Recorrente, a decisão recorrida padece de vícios manifestos que atingem a sua validade e, por outro lado, a mesma deverá ser revogada quanto ao sentido preconizado a respeito do fundo da questão ou objeto da causa, afigurando-se a norma em crise perfeitamente legal, admissível e generalizadamente aceite e reconhecida.
2.ª: O acórdão recorrido padece, desde logo, de uma contradição insanável ao nível da sua própria fundamentação, porquanto resulta demonstrado que, se a lei remete para os respetivos regulamentos municipais ou intermunicipais a determinação exclusiva das regras respeitantes à liquidação e cobrança das taxas locais, e se a decisão recorrida considera que não é ilegal o Regulamento dos Sistemas Públicos e Prediais em causa, o qual justamente estabelece a cobrança do tributo associado à instalação do ramal ou ramais domiciliários do prédio e ao valor da tarifa de ligação, a qual é liquidada directamente aos respetivos utentes, então existe contradição entre os fundamentos da decisão (maxime a conformidade legal do regulamento) e o resultado a que a mesma chega (impossibilidade de cobrança direta do tributo aos respetivos utentes).
3.ª: A oposição dos fundamentos com a própria decisão é ainda mais evidente quando se constata que, não obstante o julgamento de conformidade legal do regulamento aqui em causa, o coletivo de juízes “a quo” decidiu condenar a Ré V. não apenas a abster-se de continuar a cobrar as quantias em questão – quando tal cobrança foi julgada legal de acordo com a anterior fundamentação expendida – mas também – pasme-se! – a restituir as quantias cobradas a esse título aos respetivos destinatários, como se tal cobrança fosse, afinal, ilegal.
4.ª: Mais: o sentido da decisão recorrida – assim como da própria petição inicial – parece inspirar-se e repousar num parecer junto pela Autora subscrito pelo Instituto Regulador de Águas e Resíduos (IRAR), quando, em Maio de 2011, a agora designada Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR), que veio substituir aquele Instituto, proferiu parecer contrário àquele desconsiderado pelo tribunal “a quo”, concluindo que “não se vê como ilegítimas as várias tarifas que visem repercutir custos, de forma individualizada, com a prestação destes serviços (seja a instalação de ramais, a verificação extraordinária de contadores, ou outros”.
5.ª: Nesta conformidade, a decisão recorrida padece de manifesta contradição ou oposição dos seus fundamentos com o seu resultado, pelo facto de considerar não ser ilegal o Regulamento em causa, condenando, mais à frente, a Ré V. a abster-se de o executar e a devolver as quantias anteriormente cobradas ao abrigo do mesmo como se essa cobrança decorrente da execução do regulamento fosse ilegal e merecesse por conseguinte a reposição do status quo ante.
6.ª: Assim, Senhores Juízes Desembargadores afigura-se nula a sentença proferida pelo tribunal “a quo” por manifesta oposição ou contradição entre os seus fundamentos e a decisão, sendo por conseguinte aplicável o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil.
7.ª: O Recorrente considera igualmente que in casu se impunha a pronúncia do Senhor Juiz “a quo” a propósito do parecer da ERSAR de 2011, sendo este posterior ao parecer do IRAR de 2007 que a sentença expressamente contemplou e cujo sentido aquele veio agora contrariar, implicando assim a revogação deste último.
8.ª: Do mesmo modo, verifica-se falta de fundamentação a respeito da afirmação com a qual, afinal, se bastou o coletivo de magistrados “a quo” para proferir a decisão condenatória da Ré V., dizendo apenas que “tal custeamento [dos ramais de ligação e da tarifa de ligação à rede] não poderá ser feito cobrando directamente dos utentes as quantias, conforme vem sucedendo”.
9.ª: Nada mais é dito, quer na parte anterior quer na parte subsequente da decisão, em abono da afirmação citada, nenhum fundamento de natureza jurídica ou de facto sendo apontado concretamente no sentido da mesma afirmação.
10.ª: Deste modo, afigura-se igualmente nula a sentença proferida pelo tribunal “a quo”, porquanto, a) além de se não pronunciar sobre o parecer da ERSAR oposto e revogatório do anterior parecer do IRAR no qual a decisão se baseou, b) a mesma não contém qualquer fundamentação relativamente à decisão de proibição de cobrança direta dos tributos em questão, sendo assim aplicável o disposto nas alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 668.º do CPC.
11.ª: Por outro lado, a decisão recorrida “arrogou-se” o poder não só de relevar as formas de cobrança das taxas em questão como, inclusivamente, de eleger uma delas como a única permitida, proibindo em concreto a cobrança “direta” de tais tributos aos respetivos destinatários, tendo assim excedido os seus poderes de pronúncia, porquanto lhe não competia intervir numa matéria da competência exclusiva e discricionária da Administração, neste caso, da empresa intermunicipal encarregue do exercício dos poderes de cobrança dos tributos em questão.
12.ª: Destarte, verifica-se que a decisão “a quo” padece do vício de excesso de pronúncia, ferindo-a com a sanção da nulidade consubstanciada na alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º do CPC, não apenas porque se ocupou de questões que não foram levantadas pelas partes, não integraram o pedido formulado pela Autora na petição inicial e não eram do conhecimento oficioso, como também porque ao fazê-lo “invadiu” a esfera de competências administrativas discricionárias e conheceu, por isso, de questões de que não podia tomar conhecimento: cfr., por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Novembro de 2005, no processo n.º 05S2137, Relator: Sousa Peixoto.
13.ª: Sem prescindir do exposto e atendendo ao regime constante do n.º 1 do artigo 149.º do CPTA, o Recorrente propôs-se explanar e sustentar o entendimento de que o recurso interposto merece integral provimento e, em consequência, a presente ação deve ser julgada totalmente improcedente, isto porque se verifica a inteira conformidade da norma do regulamento em crise com o ordenamento jurídico, sendo perfeitamente legítima – e legitimada – a cobrança aos respetivos destinatários do “custo do ramal ou ramais domiciliários” e do “valor da tarifa de ligação” conforme o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 30.º do Regulamento dos Sistemas Públicos e Prediais em apreço.
14.ª: Assim é que, ao nível jurídico-constitucional, o artigo 241.º da Constituição Portuguesa institui o poder regulamentar próprio das autarquias locais, sendo que, tendo em conta a situação em apreço, as leis habilitantes não apenas permitem a cobrança dos tributos em questão mas igualmente remetem para o respetivo regulamento local a determinação do regime de cobrança dos mesmos, sendo este imputável ao exercício do poder discricionário das autarquias locais.
15.ª: As várias leis habilitantes do Regulamento em causa – Lei das Finanças Locais, Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais, Regime Jurídico dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos e Regulamento Geral dos Sistemas Públicos e Prediais de Distribuição de Água e de Drenagem de Águas Residuais – permitem retirar um conjunto de conclusões favoráveis à posição sufragada pelo Recorrente:
a) Por um lado, afigura-se assente que a instalação dos sistemas prediais de abastecimento de água e drenagem de águas residuais é da responsabilidade e custeio exclusivo do respetivo proprietário;
b) Por outro lado, é igualmente certo que a ligação dos sistemas prediais à rede pública de distribuição e de drenagem é realizada através dos respetivos ramais de ligação, os quais integram ou são componentes desta última, razão pela qual apenas a entidade gestora detém competências para o seu manuseamento, instalação, modificação, substituição, renovação, conservação ou suspensão;
c) Dado que os ramais de ligação integram a infraestrutura pública de distribuição de água e drenagem de águas residuais, permitindo a ligação dos sistemas prediais à rede, o custeio da sua instalação e da sua modificação, ambas promovidas a pedido do particular pela entidade gestora, corre por conta daquele, correspondendo afinal à contrapartida atribuída à entidade gestora pela disponibilidade do sistema público e pela ligação à rede dos sistemas prediais;
d) Por fim, assinala-se que o montante exigível aos particulares pela instalação do ramal de ligação e pelo estabelecimento da respetiva ligação deve corresponder economicamente ao custo da respetiva infraestrutura pública, ou pelo menos não deve ser inferior a este último.
16.ª: Existem igualmente manifestações transversais na doutrina e junto dos próprios intervenientes do sector que, também elas são cabalmente abonatórias da posição sustentada pelos Réus, como sejam, desde logo, a posição pública oficial da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos, a posição sustentada em parecer pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro, sendo igualmente a orientação generalizadamente preconizada pela maioria dos municípios portugueses.
17.ª: Mais decisivamente, e embora não prescindindo dos fundamentos de natureza constitucional, legal e doutrinal, deve sublinhar-se que o entendimento subscrito pelo Recorrente ao longo do articulado corresponde àquela que tem sido a orientação da nossa jurisprudência.
18.ª: Desde logo, foi desta opinião o Senhor Juiz do Tribunal Judicial de G..., o qual, no processo n.º 5228/05.4TBGMR, que correu termos pelo 5.º Juízo Cível, concluiu ser devida pelos munícipes ou utentes o custo da execução dos ramais de ligação e julgou legítima tal cobrança por parte da V..
19.ª: Mais recentemente, a matéria foi revisitada e aprofundada no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 22 de Fevereiro de 2013, no processo n.º 00180/08.7BEBRG (Relatora: Maria Fernanda Antunes Aparício Duarte Brandão), no qual se pode ler: “Consagra-se, desta forma, que os proprietários, usufrutuários, ou aqueles que estão na legal administração dos prédios, têm de proceder ao pagamento dos preços decorrentes da instalação dos respetivos ramais de saneamento”, pelo que “tem a Recorrente [no caso a concessionária Águas de Barcelos, S.A.] legitimidade para proceder à cobrança de todos os encargos decorrentes da instalação dos ramais de saneamento, em observância do disposto no Contrato de Concessão, nomeadamente Cláusula 34.ª, bem como das disposições Regulamentares e respetivos tarifários ou preçários (...)
20.ª: Em conclusão, atesta-se que recebe entre nós expressa habilitação constitucional e legal, posição concordante na doutrina e junto das entidades públicas competentes neste domínio, incluindo a própria entidade reguladora, tendo sido igualmente acolhida recentemente pela nossa jurisprudência, a cobrança aos utentes dos ramais de ligação dos sistemas prediais à rede pública de distribuição de água e drenagem de águas residuais, pelo que, nesta conformidade, deverá a presente ação ser julgada, conforme se espera, integralmente improcedente, procedendo in totum por seu turno o recurso aqui interposto.
Nestes termos e nos demais de direito que suprirão, deverá julgar-se integralmente procedente o recurso interposto e, consequentemente, ser revogada a decisão do tribunal “a quo” e substituída por outra que julgue improcedente a presente ação, com as demais consequências legais.

O MP emitiu parecer no sentido do provimento parcial de ambos os recursos.

Cumpre apreciar e decidir.

FUNDAMENTOS
DE FACTO

Na decisão foi fixada a seguinte factualidade:
1. A Autora é uma associação de consumidores de âmbito nacional e interesse genérico, tendo como escopo a promoção dos interesses e a protecção dos seus direitos;
2. A Ré é a empresa responsável exploração e gestão dos serviços públicos municipais de abastecimento de água e de saneamento, actuando no âmbito geográfico dos Municípios de G... e V...;
3. A Ré dirigiu a consumidores/utentes as comunicações constantes dos docs. 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8, juntos aos autos e que aqui se dão por integralmente reproduzidos, nos termos que se transcrevem infra:
“(...)
Deve, ainda, em consonância com o disposto nos artigos 30.º, alínea c) e 37.º do Regulamento dos sistemas públicos e prediais de distribuição de água e de drenagem de águas residuais, nos concelhos de G... e V..., proceder, no prazo de 15 dias, a contar da data do aviso de recepção, à liquidação da importância supra aludida e aí devidamente justificada, bem como, à apresentação da caderneta predial ou documento equivalente, referente ao prédio em questão, para efeitos de determinação e cobrança da respectiva tarifa de ligação de saneamento.”
“(…)
Na sequência da conclusão das infra-estruturas de saneamento que irão servir o prédio, em tópico identificado, de que V. Exª é proprietário, somos a informar que deve, no prazo de 30 dias, instalar os respectivos sistemas prediais, nos termos da legislação em vigor.
(…)”
Cumpre, ainda, informar que o serviço público de recolha de águas residuais está sujeito a contrato, nos termos do art.º 18º do Decreto-Lei 207/94, que vigora a partir do momento em que entra em funcionamento o ramal de ligação de saneamento, pelo que deverá V. Exª formalizar o referido contrato, sob pena de incorrer em contra-ordenação pela utilização indevida do sistema, contra-ordenação essa prevista e punida por Lei.
(...)”
4. A Ré tem insistido na exigência das quantias em questão, quer com ameaça de cobrança coerciva quer com recurso ao pagamento de forma faseada;
5. Por decisão datada de 18.10.2005, o Tribunal da Comarca de G..., 5º Juízo Cível, proferiu decisão nos autos nº 5228/05.4TBGMR, junta pela Ré, com a contestação, como doc. nº 5 (que aqui se dá por integralmente reproduzido) e onde foi o utente M. C. F. F. condenado no pagamento à Ré de quantia referente à ligação ao ramal de acesso.
6. Pelo IRAR – Instituto Regulador de Águas e Resíduos foi elaborado ofício, com o n.º IRAR/O-000575/2007, de 7 de Fevereiro, do qual consta o seguinte entendimento: “A anterior Lei das Finanças Locais (Lei 42/98, de 6 de Agosto, ora revogada pela Lei nº 2/2007, de 15 de Janeiro) permitiu expressamente que os custos com os ramais de ligação que servem os utilizadores do serviço de distribuição de água e de saneamento de águas residuais fossem individualizadamente repercutidos nos respectivos beneficiários. O nº 2 do artigo 20º cominava que «os municípios podem ainda cobrar tarifas por instalação, substituição ou renovação dos ramais domiciliários de ligação aos sistemas públicos de distribuição de água e de drenagem de águas residuais». O anterior diploma legal, a Lei nº 1/87, de 6 de Janeiro, determinava, no âmbito da norma relativa às tarifas para os serviços de abastecimento de água, recolha, depósito e tratamento de lixos, bem como ligação, conservação e tratamento de esgotos, que as tarifas a fixar pelos municípios não deveriam ser inferiores aos respectivos encargos previsionais de exploração e de administração, acrescidos do montante necessário à reintegração dos equipamentos – vide artigo 12.0 Tal não colidiria, segundo se nos afigura, com a possibilidade de os municípios criarem tarifas que repercutissem individualizadamente, e não de forma solidários custos com os ramais de ligação.
Porém, o Decreto-Regulamentar nº 23/95, de 23 de Agosto, parece ter espelhado, entretanto, uma orientação diferente. Este diploma caracteriza os ramais como parte integrante da rede pública de drenagem (artigos 282.° e seguintes), competindo, pois, à entidade gestora a respectiva instalação, conservação, substituição e renovação – este continua a ser o regime vigente. Porém, o pagamento dos ramais só estava previsto para o caso de o proprietário ou usufrutuário requerer para o ramal de ligação do sistema predial modificações, devidamente justificadas, às especificações estabelecidas pela entidade gestora. Tal redacção parece legitimar, em face da excepcionalidade da norma, a aplicação de um argumento a contrario sensu, mediante o qual a regra geral consistiria na não repercussão tarifária, de forma individualizada, dos custos com os ramais de ligação.“
DE DIREITO
Está posta em causa a decisão que ostenta este discurso fundamentador:
A questão que ora nos ocupa, impõe, essencial e primeiramente, escrutinar a legalidade da alínea c) do nº 1 do art.º 30º do Regulamento dos Sistemas Públicos e Prediais de Distribuição de Água e de Drenagem de Águas Residuais dos concelhos de G... e V... (publicado em Diário da República, 2ª Série, n.º 170, de 4 de Setembro de 2007).
Vejamos, pois.
No essencial, diz o Regulamento em questão o seguinte:
Artigo 10.º - Obrigatoriedade de ligação dos sistemas:
“1. Dentro da área abrangida, ou que venha a sê-lo, pelas redes de distribuição de água e ou drenagem de água residuais, é obrigatória a ligação a estas de todos os prédios urbanos, nos termos da lei e do presente Regulamento, designadamente nas condições previstas no artigo 30.º.
2. A instalação dos sistemas prediais é da responsabilidade dos proprietários ou usufrutuários das edificações.
3. Para prédios situados fora das áreas abrangidas pelas redes públicas, a V. fixará as condições em que poderá ser estabelecida a ligação, tendo em consideração os aspectos técnicos e financeiros.”
(…)
Artigo 28.º - Deveres da V.:
“1. A V., enquanto responsável pela concepção, gestão e manutenção das redes públicas, deve cumprir as prescrições legais gerais a esta respeitantes, de onde se ressaltam os seguintes deveres:
(...)
h) Promover a instalação, substituição ou renovação dos ramais de ligação aos sistemas;
(...)”

Artigo 30.º - Obrigatoriedade de ligação à rede geral:
“1. Dentro da área abrangida, ou que venha a sê-lo, pelas redes de distribuição de água e ou de drenagem de águas residuais os proprietários, usufrutuários ou superficiários são obrigados a promover a ligação dos respectivos prédios:
a) Instalando, de sua conta, sistemas prediais com os acessórios e equipamentos necessários à utilização da água e drenagem das águas residuais;
b) Solicitando a ligação desses sistemas, às redes públicas, depois de aprovada nos termos do presente Regulamento e demais legislação aplicável;
c) Pagando o custo do ramal ou ramais domiciliários do prédio, que a V. executar, e o valor da tarifa de ligação, no caso da ligação às redes de drenagem de águas residuais.
(...)
4. As intimações aos titulares referidos no n.º 1 para cumprimento das disposições dos números anteriores serão feitas pela V. nos termos legais, devendo os destinatários cumprir as obrigações constantes das alíneas a), b) e c) do n.º 1, num prazo nunca superior a 30 dias.
5. Terminado o prazo fixado na intimação e em caso de incumprimento, será aplicada a partir da data limite definida na intimação a tarifa de ligação de saneamento.
(...)”

(negrito, itálico e sublinhado é e será sempre de nossa autoria)

Artigo 37.º - Responsabilidade e condições de instalação:
“1. Compete exclusivamente à V. estabelecer as canalizações exteriores, que ficam a constituir propriedade sua.
2. Pelo estabelecimento dos ramais de ligação será cobrada, aos interessados, a importância do respectivo valor definido no anexo IV, acrescido dos respectivos valores de ligação.
3. Nas ruas ou zonas onde venham a estabelecer-se as redes de distribuição de água e ou redes de drenagem de águas residuais, a V. instalará simultaneamente os ramais de ligação aos prédios existentes, cobrando dos respectivos proprietários, usufrutuários ou superficiários as importâncias devidas nos termos definidos neste Regulamento, sendo o valor do ramal de ligação correspondente ao ramal tipo até 6 metros e as associações respectivas.
4. Quando condições económicas de exploração o permitam e os interessados assim o requeiram, poderá ser aceite o pagamento das despesas inerentes em prestações mensais, nos termos que forem definidos pela V..”

A Autora alega desconformidade do disposto neste Regulamento, em especial na alínea c) do nº 1 do art.º 30º com o que vem prescrito em diplomas de protecção ao consumidor e, em especial no disposto no Decreto-Lei n.º 207/94, de 6 de Agosto e no Decreto Regulamentar n.º 23/95, de 23 de Agosto.

Em especial, vejamos o que nos diz o Decreto Regulamentar n.º 23/95, de 23 de Agosto, que aprovou o Regulamento Geral dos Sistemas Públicos e Prediais de Distribuição de Água e de Drenagem de Águas Residuais:
Artigo 32.º - Ligação à rede pública
“1 – Os ramais de ligação asseguram o abastecimento predial de água, desde a rede pública até ao limite da propriedade a servir, em boas condições de caudal e pressão.
(…)”
Artigo 282.º - Responsabilidade de instalação:
“Os ramais de ligação devem considerar-se tecnicamente como partes integrantes das redes públicas de distribuição e de drenagem, competindo à entidade gestora promover a sua instalação.”.

Artigo 283.º - Condições de instalação:
“Se o proprietário ou usufrutuário requerer para o ramal de ligação do sistema predial à rede pública, modificações, devidamente justificadas, às especificações estabelecidas pela entidade gestora, nomeadamente do traçado ou do diâmetro, compatíveis com as condições de exploração e manutenção do sistema público, esta entidade pode dar-lhe satisfação desde que aquele tome a seu cargo o acréscimo nas respectivas despesas, se o houver.”.

De tudo o que acima vem transcrito, teremos de concluir no sentido de que, de facto, a Ré está obrigada a proceder à instalação (a “promover a instalação”, como diz o preceito contido no art.º 282º do DR nº 23/95) dos ditos ramais de ligação à rede pública, uma vez que, do ponto de vista técnico, os mesmos fazem dela parte.
Mas está obrigada a custear tais ramais de ligação?
A questão é a de saber como é que esses custos se devem repercutir nos beneficiários/utilizadores. Ora, efectivamente, revendo a nossa posição anterior sobre a matéria, a solução passará, não pela cobrança nos termos aqui discutidos nos autos, mas antes pela repercussão das quantias de forma individualizada, através de uma tarifa específica por ocasião da construção do ramal pois que a forma difusa de repercutir esse preço/custo da construção do ramal de ligação geraria situações de desigualdade e de desproporcionalidade em relação a alguns utilizadores pois que o custo de instalação de ramal de ligação é relativo, dependendo essencialmente da extensão do mesmo.
Note-se que, nos termos do art.º 82° da Lei nº58/2005, de 29/12 (vulgo Lei da Água), em obediência ao princípio do utilizador-pagador, o regime de tarifas a praticar pelos serviços públicos de águas deve assegurar a recuperação dos custos tidos pela entidade gestora com a construção, manutenção, reparação, renovação, substituição e operação das infra-estruturas e equipamentos necessários à prestação dos serviços.
Considerada a densificação constitucional do conceito de autonomia local (art.º 237° da CRP), muito particularmente no domínio financeiro (art.º 240°), e tido em conta o poder regulamentar próprio que é constitucionalmente reconhecido às autarquias locais (art.º 240°), impõe-se a conclusão de que a CRP não proíbe que as autarquias criem, elas mesmas, sob a forma de regulamento local, as taxas devidas pela utilização dos seus serviços, taxas que, segundo o nº 3, in fine, do art.º 240°, fazem parte até do grupo de receitas obrigatórias dessas pessoas colectivas públicas territoriais.
O art.º 16° da Lei nº 2/2007, de 15/01 (Lei das Finanças Locais) estabelece o direito de os municípios, no exercício das actividades de abastecimento público de água e saneamento de águas residuais, podem cobrar preços e outros instrumentos de remuneração, nos termos do tarifário aprovado, quer pelos serviços prestados, quer pelos bens fornecidos, os quais não devem ser inferiores aos custos directa ou indirectamente suportados com a prestação desses serviços e com o fornecimento desses bens, o ramal de ligação consiste na ligação física das redes prediais à rede pública que no caso do abastecimento de água corresponde à tubagem compreendida entre o limite da propriedade e o sistema público de distribuição e no caso do saneamento de águas residuais ao troço de canalização desde o colector de águas residuais implantado no arruamento até à câmara de ramal de ligação (art.º 146º do Decreto Regulamentar nº 23/95, de 23/8).
Ora:
A prestação de serviços públicos pode efectuar-se em contrapartida de preços ou taxas. Num ou noutro caso as normas regulamentares que fixam a referida contraprestação e regem a sua aplicação denominam-se tarifas expressão que muitas vezes se utiliza para designar os próprios preços ou taxas que são objecto do aludido regulamento (Alberto Xavier, Manual de Direito Fiscal, p.59).
A tarifa, no campo das finanças locais, não se delineia como uma figura tributária em absoluto nova, ou seja, como uma espécie de tertium genus entre a taxa e o imposto. Ela, de facto, e sob todos os aspectos, apresenta-se como uma simples taxa, embora taxa sui generis, cuja especial configuração lhe advém apenas da particular natureza dos serviços a que se encontra ligada.
Nas taxas (ou preço), o fundamento do tributo é a prestação da actividade pública, a utilização do domínio e a remoção do limite jurídico, e, por isso, estas realidades e a taxa que lhes corresponde encontram-se entre si ligadas por um nexo sinalagmático, em termos de uma se apresentar como contraprestação da outra.
O preço/custo da construção do ramal de ligação, devendo ser suportado pelo utilizador do serviço público, deve ser repercutido de forma individualizada através de uma tarifa específica por ocasião da construção do ramal ou de forma difusa através de tarifas periódicas aplicadas aos utilizadores do serviço.
No entender da A., numa interpretação a contrario sensu dos art.ºs 282° e 283º do Decreto Regulamentar nº 23/95, os custos dos ramais devem ser suportados pela entidade gestora por ser a proprietária da rede pública de distribuição e de drenagem de águas residuais e a única responsável pela conservação e substituição dos ramais de ligação e, por isso, a cobrança do preço pela execução do ramal de ligação aos aludidos consumidores/utentes é ilegal.
Neste ponto concreto, no entanto, tendo em conta o modo como a A. configura a causa de pedir e os pedidos, está em causa a interpretação e aplicação de disposições que se situam no campo da actividade tributária tem por objecto um acto tributário com o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido em matéria fiscal.
A questão da legalidade da cobrança de um preço pela instalação de um ramal de ligação passa pela aferição da legalidade e bondade de interpretação e aplicação de normas de direito fiscal com atinência ao exercício da função tributária da Administração, já que o que materialmente está em causa prende-se com o assegurar, através da cobrança daquele preço/tarifa, do pagamento dos encargos tidos pela V. com a construção, manutenção, reparação, renovação, substituição e operação das infra-estruturas e equipamentos necessários à prestação dos serviços de fornecimento de água e drenagem e tratamento de águas residuais.
Nesse ponto, portanto, o objecto do litígio reconduz-se pois a apurar se são legalmente devidos e exigíveis dos munícipes das freguesias referenciadas as quantias facturadas enquanto valores respeitantes a parcela reportada à recuperação do valor pago pela V. com aqueles encargos legais. O que está efectivamente em causa e é pedido prende-se unicamente com o não pagamento dum preço/custo relativo à instalação de ramais de ligação, pelo que a causa de pedir e o pedido se enquadram no domínio de uma relação jurídica fiscal visto estar em discussão a legalidade da interpretação e aplicação de disposições que se situam no campo da actividade tributária (a questão da legalidade da ulterior repercussão dos custos sobre a forma de tarifa ou taxa já transcende, não só o objecto dos presentes autos como a competência deste Tribunal Administrativo de Círculo).
Regressando ao que é (e pode ser) objecto dos nossos autos:
Conclui-se que o regime instituído pelo D.L. nº 194/2009 revela esses outros encargos com o ramal de ligação, com evidente expressão económica, que não se reconduzem ao mero custo do fornecimento da água. Estabelece, designadamente, que cabe à entidade gestora dos sistemas públicos, nomeadamente aos municípios, providenciar pela elaboração dos estudos e projectos dos sistemas públicos; promover o estabelecimento e manter em bom estado de funcionamento e conservação os sistemas públicos de distribuição de água e de drenagem e desembaraço final de águas residuais e de lamas; submeter os componentes dos sistemas de distribuição de água e de drenagem de águas residuais, antes de entrarem em serviço, a ensaios que assegurem a perfeição do trabalho executado; garantir que a água distribuída para consumo doméstico, em qualquer momento, possua as características que a definam como água potável e, ainda, promover a instalação, substituição ou renovação dos ramais de ligação. Tais encargos, sendo necessários para a prestação dos serviços em causa, para a garantia da sua continuidade e qualidade, são diversos do mero valor, v.g., da água fornecida, e devem ser suportados pelo utilizador/beneficiário desses serviços.
Também em consequência do que dispõe o art.º 2°, nºs 2 e 4, do D.L. n° 379/93, de 5/11, o interesse público sobrepõe-se, naturalmente, ao interesse de cada particular e que, em consequência, seja obrigatória para qualquer pessoa singular ou colectiva, a ligação ao sistema público de distribuição de água para consumo. E são ponderosas razões de interesse público e de sustentabilidade da exploração dos sistemas de distribuição de água que justificam a opção de fazer repercutir sobre o consumidor os custos que, à partida, deveriam ser suportados pela entidade gestora desses serviços. A opção legislativa, numa óptica de justa repartição dos encargos foi, como se referiu, a de a entidade gestora, para além de todos os custos associados à instalação geral de todo o sistema público de distribuição de água e drenagem de águas residuais, apenas suportar os custos da substituição e da renovação dos ramais de ligação, suportando o beneficiário do serviço os custos da execução do ramal, bem como da instalação e conservação dos (seus) sistemas prediais.
Assim sendo, ao contrário do que sustenta a Autora (e, mais uma vez, revendo a nossa anterior posição), afigura-se-nos que o preceito contido na alínea c) do nº 1 do art.º 30º do Regulamento dos Sistemas Públicos e Prediais (…) de G... e V... não é ilegal, ao prever que o custeamento de tal operação deve ser suportado pelo respectivo utente. No entanto, tal custeamento não poderá ser feito cobrando directamente dos utentes as quantias, conforme vem sucedendo.
Assim sendo, cumpre declarar improcedente o pedido formulado pela Autora, no sentido de ser declarado ilegal o preceito constante da alínea c) do nº 1 do art.º 30º do Regulamento dos Sistemas Públicos e Prediais (…) de G... e V..., mas declarar procedentes os pedidos formulados no sentido da abstenção de cobrança “directa” (a questão da ulterior repercussão dos custos sobre a forma de tarifa ou taxa já transcende, não só o objecto dos presentes autos como a competência deste Tribunal Administrativo de Círculo) das quantias cobradas pela ligação aos ramais de ligação e devolução das quantias até agora indevidamente cobradas, acrescidas dos respectivos juros de mora (em relação à requerida sanção pecuniária compulsória entende-se a mesma como desnecessária, por ora, uma vez que nada aponta para o incumprimento da Ré com o determinado).
No demais, terão de se considerar improcedentes os demais pedidos, mormente o de condenação em indemnização por danos não patrimoniais.
Desde logo, nesta parte, note-se, não foram alegados, sequer, pela Autora, factos susceptíveis de preencher os requisitos para accionar a Ré com base no mecanismo da responsabilidade civil (cfr. requisitos constantes do art.º 483º do Código Civil), nomeadamente, ao nível dos danos concretos e no respectivo nexo causal entre os mesmos e o facto ilícito.
Nos termos acima, julgar-se-á, infra, parcialmente procedente a presente acção.
X
Discordam deste acórdão a Ré V. e o Interveniente Município de V....
É univocamente entendido pela doutrina e pela jurisprudência e tem assento na lei adjectiva que o objecto do recurso jurisdicional se encontra delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente, da respectiva motivação, não podendo o tribunal ad quem conhecer de matéria que nelas não for tratada, com ressalva óbvia dos casos que impõem o seu conhecimento oficioso.
Assim, analisadas as conclusões da Recorrente V., constata-se que veio suscitar as seguintes questões:
-incompetência absoluta dos Tribunais Administrativos;
-erro de julgamento da matéria de facto;
-nulidades do acórdão, nos termos do artigo 668º/b) e c) do CPC 1961;
-erro de julgamento de direito.
Já para o Recorrente/Município o aresto enferma:
-das nulidades previstas no artigo 668º/b), c) e d), do anterior CPC;
-de erro de julgamento de direito.
Vejamos, pois, se lhes assiste razão:
Da competência material dos Tribunais Administrativos -
Para dirimir a questão em análise importa, em 1º plano, saber se a matéria colocada como objecto da causa, maxime o(s) pedido(s) e a causa de pedir configuram alguma das situações em que a lei atribui a competência especificamente aos tribunais administrativos.
Vejamos, portanto, se a matéria se enquadra na previsão do art.º 1º do ETAF, isto é, se deve qualificar-se como litígio emergente de relação jurídica administrativa.
Para ajudar a delimitar o conceito de relação jurídica administrativa o artigo 4º do mesmo diploma efectua uma enumeração exemplificativa, através da qual podemos encontrar critérios ou efectuar uma delimitação de fronteiras, usando as técnicas de interpretação da lei.
A relação jurídica administrativa tem sido definida como aquela que se desenvolve entre um ente público e pessoas privadas sob a égide de normas de direito público, isto é, que regulam a relação de modo diferente de correspondentes relações privadas, por incluírem um poder da parte pública ou uma sujeição especial, determinadas pela necessidade de conferir especial eficácia à tutela do interesse público.
Fazendo apelo ao preceituado no art.º 13° do CPTA, é seguro que a competência do tribunal é de ordem pública e deve preceder o conhecimento de qualquer outra matéria.
Acresce que a incompetência absoluta se configura como uma excepção dilatória que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e que conduz à absolvição da instância, sendo, de resto, do seu conhecimento oficioso, conforme resulta das disposições conjugadas dos art.ºs 576°/1 e 2, 577°/al. a), 578º/1ª parte e 278°/1, al. a), do novo CPC, (art.ºs 62º/2, 101º, 102º, 105º/1, 288º/1, al. a), 493º/1 e 2 e 494º/al. a), todos do antigo CPC ex vi art.º 1º do CPTA).
A competência do tribunal constitui um pressuposto processual, sendo um dos elementos de cuja verificação depende o dever do juiz proferir decisão sobre o pedido formulado, concedendo ou indeferindo a pretensão deduzida. Como qualquer outro pressuposto processual, é aferida em relação ao objecto da lide, tal como é configurado pelo autor.
Desta forma, o problema da (in)competência de determinado tribunal tem de ser resolvido em função do modo como se encontra articulado e fundamentado o pedido do autor, não sendo incumbência do réu definir o âmbito do mesmo. Dito de outra maneira, a competência do tribunal não depende da legitimidade das partes, nem da procedência da acção, constituindo uma questão que será decidida de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor, não importando averiguar quais deviam ser as partes ou os termos dessa pretensão. É, portanto, o pedido do demandante que determina a competência do tribunal - cfr. Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. I, pág. 111, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 91, Antunes Varela/Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 104, e Miguel Teixeira de Sousa, A Competência e a Incompetência dos Tribunais Comuns, 3ª ed., pág. 139.
Na verdade, na base da competência em razão da matéria, está o princípio da especialização, com o reconhecimento da vantagem de reservar para certos órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito, pela vastidão e pela especificidade das normas que os integram -Antunes Varela /Miguel Bezerra/ Sampaio e Nora, ob. cit./197.
Com efeito, o art.º 212°/3 da CRP define o âmbito da jurisdição administrativa por referência ao conceito de relação jurídica administrativa, já que prescreve competir aos tribunais administrativos o julgamento de acções e recursos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais.
Acresce que, em sintonia com o referido normativo, estatui o art.º 1º/1 do ETAF, que os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar justiça nos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais.
Na arquitectura deste quadro legal, compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham, nomeadamente por objecto, além do mais, a tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal - art.º 4°/1/a), do ETAF.
Em termos gerais, compete aos tribunais administrativos o julgamento de acções e recursos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais. O que nos permite extrair a ilação de que à jurisdição administrativa incumbirá, em regra, o julgamento de quaisquer acções que tenham por objecto litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, ou seja, todos os litígios originados no âmbito da administração pública globalmente considerada, com excepção dos que o legislador ordinário expressamente atribuiu a outra jurisdição.
Neste sentido, as relações jurídicas administrativas pressupõem o relacionamento de dois ou mais sujeitos, num feixe de posições activas e passivas, regulado por normas jurídicas administrativas e sob a égide da realização do interesse público.
O critério material da distinção assenta, agora, em conceitos como relação jurídica administrativa e função administrativa - conjunto de relações onde a Administração é, típica ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público - cfr. Vieira de Andrade em Justiça Administrativa, 9ª ed., pág. 103. Já Fernandes Cadilha, em Dicionário de Contencioso Administrativo, 117/118, afirma: por relação jurídico administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração), que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas.
A competência do tribunal afere-se pelo pedido formulado pelo Autor e pelos fundamentos que invoca, pelo que a análise da petição dos Autores é determinante, sublinha o Acórdão do STA de 27/01/2010, no proc. 017/09.
Assim sendo, há que atentar na configuração que o Autor faz da acção, a saber, o pedido formulado e a concreta causa de pedir em que se baseia.
Voltando ao caso concreto, advoga a Recorrente V. que não compete aos Tribunais Administrativos, mas sim, aos Tribunais Tributários, o conhecimento e decisão do mérito da presente acção.
Ora, independentemente do juízo a fazer neste ponto, certo é que não é possível, nesta fase recursiva, enfrentar esta matéria.
É que é necessário trazer à discussão o preceituado no artigo 87º do CPTA.
Na verdade, nos termos das disposições conjugadas do artigo 87º/1/a) e 2 do CPTA (versão anterior à actualmente em vigor, resultante da Lei 63/2011, de 14/12), as questões prévias que tenham sido abordadas no despacho saneador não podem ser reapreciadas pela mesma instância no processo.
Logo, considerando que no despacho saneador o Tribunal afirmou, além do mais, a sua competência em razão da matéria, estava-lhe vedada a apreciação desta temática, por se ter formado caso julgado formal relativamente à mesma.
De acordo com o art.º 87º/1/a), do CPTA aplicável, “findos os articulados, o processo é concluso ao juiz (…), que profere despacho saneador quando deva (…) conhecer obrigatoriamente (…) de todas as questões que obstem ao conhecimento do objecto do processo”.
Segundo o art.º 96º/a), do CPC, aplicável ex vi do art.º 1º do CPTA, a incompetência do tribunal em razão da matéria é incompetência absoluta.
Já para o art.º 97º/1, do CPC, a incompetência absoluta é de conhecimento oficioso, salvo os casos de violação de pacto privativo de jurisdição ou de preterição do tribunal arbitral voluntário. De acordo com o art.º 99º/1, do CPC, a incompetência absoluta implica a absolvição do Réu da instância, sendo que o art.º 87º/2, do CPTA estatui: “as questões prévias referidas na alínea a) do número anterior que não tenham sido apreciadas no despacho saneador não podem ser suscitadas nem decididas em momento posterior do processo e as que sejam decididas no saneador não podem vir a ser reapreciadas”. Ou seja, haja ou não conhecimento no despacho saneador da competência ou incompetência material do tribunal, tabelar ou quanto a questão concreta, essa competência ou incompetência fica definitivamente resolvida, não podendo mais ser apreciada.
Este sistema é absolutamente fechado e não consente margem para interpretações.
Segundo o artigo 9º/2 do CC, relativo à interpretação da lei, não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso; assim, mesmo quando o intérprete se socorre de elementos externos, o sentido só poderá valer se for possível estabelecer alguma relação entre ele e o texto que se pretende interpretar - ensina o Professor João Baptista Machado, em “Introdução ao Direito Legitimador”, 1983, pág.189.
No caso posto, a letra da lei é clara.
Deste modo, não se vê necessidade de recorrer ao seu espírito.
De qualquer modo, mesmo reconstituindo-se o pensamento legislativo, não podemos deixar de concluir pela lógica legislativa supra assinalada.
Também José Lebre de Freitas, em BMJ 333º-18, refere: “A “mens legislatoris” só deverá ser tida em conta como elemento determinante da interpretação da lei quando tenha o mínimo de correspondência no seu texto e no seu espírito”.
Como escrevem Aroso de Almeida e Fernandes Cadilha no “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 2005, Almedina, anotação 3 ao art.º 87º, págs. 440/441:
“Ao impor ao juiz o dever de conhecer obrigatoriamente das questões que obstem ao conhecimento do objecto do processo, o legislador pretende reafirmar, por um lado, que essas questões, correspondendo a excepções dilatórias, são de conhecimento oficioso, devendo ser apreciadas independentemente de terem sido suscitadas pelas partes nos articulados (…) e, por outro, que tais questões terão de ser necessariamente analisadas e decididas no despacho saneador, por força da proibição que decorre do nº 2 deste artigo 87º”.
E na anotação 7 ao art.º 87º, pág. 443, acrescentam:
“O nº 2 pretende concentrar na fase do despacho saneador a apreciação de quaisquer questões que obstem ao conhecimento do processo. E nesse sentido, não só proíbe que sejam suscitadas e decididas em momento posterior do processo quaisquer outras questões ou excepções dilatórias que não tenham sido apreciadas no despacho saneador, como impede que as questões já decididas nesse despacho venham a ser reapreciadas com base em novos elementos”, esclarecendo a seguir: “A segunda parte do nº 2 consagra a solução constante do artigo 510º, nº 3, do CPC, que confere ao despacho saneador a força de caso julgado formal quanto às questões concretamente apreciadas; mas o disposto na primeira parte não tem paralelo na lei processual civil”.
Já na pág. 444 ensinam:
“Esta solução processual insere-se num princípio de promoção do acesso à justiça, visando evitar que o tribunal relegue para final a apreciação de questões prévias para só então pôr termo ao processo com uma decisão de mera forma (…). E avançam: “Com efeito, o artigo 87º, nº 2, configura uma situação de caso julgado tácito, que deriva de as partes não terem suscitado nos articulados a excepção dilatória que poderia pôr termo ao processo e de o juiz não ter apreciado oficiosamente essa excepção dilatória, como lhe competia, na fase do saneador.”
“Assim, no âmbito da lei processual civil, (…), não fica afastada a possibilidade, conforme expressamente prevê o artigo 660º, nº 1, do CPC, de se conhecer na sentença, com precedência sobre a matéria de fundo, das “questões processuais que possam determinar a absolvição da instância”. No entanto, o legislador do CPTA, ao estabelecer uma clara proibição de apreciação de questões prévias em momento ulterior à fase do saneador, não tem em consideração as finalidades prosseguidas com a exigência legal dos pressupostos processuais e desinteressa-se das consequências que poderão resultar para as partes do prosseguimento do processo, quando sobrevenha questão que devesse obstar ao conhecimento do mérito, excluindo, nesta sede, o funcionamento do regime do artigo 660º, nº 1, do CPC.” “A norma do nº 2, na interpretação que acaba de ser exposta, não deve impedir, em todo o caso, o conhecimento, em momento posterior ao saneador, de questões processuais que apenas se suscitem após essa fase processual (…). O citado dispositivo deve, pois, ser entendido como reportando-se a questões prévias, ou seja, a excepções dilatórias ou nulidades processuais que tenham sido arguidas pelas partes nos articulados ou se tornem patentes ao juiz por força dos termos em que a acção é proposta, no momento em que o processo lhe é concluso para proferir o despacho saneador. O nº 2 terá, assim, que ser articulado com a alínea a) do nº 1, referindo-se às “questões que obstem ao conhecimento do objecto do processo” que sejam detetáveis no momento em que o juiz se prepare para exercer a competência prevista nesse preceito, com exclusão, portanto, de quaisquer novas questões que se levantem posteriormente.
Estes autores não têm dúvidas em afirmar que, exactamente, a incompetência material do tribunal é uma das questões que obrigatoriamente tem de ser conhecida no saneador sob pena de não o poder ser mais tarde.
Como resulta inequivocamente do que escrevem, na obra citada, anotação 1 ao art.º 89º, pág. 455: “O nº 1 enumera, apenas exemplificativamente, as questões que podem obstar ao conhecimento do objecto do processo, e que, nos termos do artigo 87º, nº 1, alínea a), o juiz deve apreciar no despacho saneador, independentemente de terem sido ou não suscitadas pelas partes”.
E, depois, na anotação 2, referem: “Para além das excepções dilatórias expressamente mencionadas no nº 1, devem considerar-se outras, como seja (…) a incompetência do tribunal (…).”
Sobre esta temática também se debruçaram Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, no seu “Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Vol. I, Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotados”, Almedina, 2004, anotação XI ao artigo 87º, págs. 514/515, adiantando:
“Ao contrário do que sucedia no direito anterior - em que isso apenas se verificava no caso de o tribunal se pronunciar pela existência de excepções dilatórias (decretando a absolvição da instância) - agora, também, quando decide no sentido da inexistência de questões que obstem ao conhecimento do objecto do processo, o despacho saneador faz caso julgado formal, reconhecendo-se, assim, à chamada “certificação tabelar positiva” - ou seja, à proposição conclusiva de que “o tribunal é competente, a acção tempestiva, as partes legítimas, o meio processual idóneo”, com que os tribunais costumam resumir o seu juízo a propósito da verificação dos pressupostos processuais - o carácter de irrevogabilidade. Sem prejuízo, claro, do recurso de agravo a que houver lugar, se o valor ou a natureza do processo o consentirem.
Sucede isso, de facto, diz claramente este artigo 87º/2, em relação:
-às questões prévias que não tenham sido apreciadas no despacho saneador, porque já não podem ser suscitadas (ou decididas) mais tarde;
-às questões prévias aí julgadas improcedentes, porque já não podem ser reapreciadas pelo juiz ou pelo colectivo, só em recurso.
E, depois:
“(…) hoje, o despacho saneador, além de outros, tem também o inegável mérito de centrar num “único momento processual o saneamento das questões de índole adjectiva ou processual”- citando Carlos Cadilha, Reflexões …”Justamente por isso o art.º 88º/1 faz referência ao dever do juiz suscitar e resolver (no despacho saneador) todas as questões que possam obstar ao conhecimento do objecto do processo, sob pena de sua preclusão, formando-se caso julgado formal sobre a sua inexistência, se o tribunal não as apreciar ou não as considerar procedentes (…).
Munidos destes ensinamentos doutrinais não podemos senão concluir que a segunda parte do nº 2 do art.º 87º do CPTA não consagra a solução do então artigo 510º/3, do CPC.
Cremos, antes, que dela propositadamente se afasta ao substituir a expressão “concretamente apreciadas” pela expressão “decididas”.
Pretende-se, com isso - como decorre das regras de interpretação do art.º 9º do CC - dizer que, em processo administrativo, tanto valendo que a decisão seja concreta, como tabelar, não pode jamais ser reapreciada.
É o que é coerente com a proibição de decisão posterior, mesmo que nenhuma se tenha proferido e é o que explica a diferença de texto que, evidentemente, não é por acaso.
Como é sabido, na interpretação de uma norma jurídica, isto é, na tarefa de fixar o sentido e o alcance com que ela deve valer, intervêm, para além do elemento gramatical (o texto, a letra da lei), elementos lógicos, que a doutrina subdivide em elementos de ordem histórica, racional ou teleológica e sistemática.
O elemento teleológico consiste na razão de ser da lei (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao elaborar a norma, “o conhecimento deste fim sobretudo quando acompanhado do conhecimento das circunstâncias (políticas, sociais, económicas, morais, etc.) em que a norma foi elaborada ou da conjuntura político-económico-social que motivou a “decisão” legislativa (occasio legis) constitui um subsídio da maior importância para determinar o sentido da norma. Basta lembrar que o esclarecimento da ratio legis nos revela a “valoração” ou ponderação dos diversos interesses que a norma regula e, portanto, o peso relativo desses interesses, a opção entre eles traduzida pela solução que a norma exprime. Sem esquecer ainda que, pela descoberta daquela “racionalidade” que (por vezes inconscientemente) inspirou o legislador na fixação de certo regime jurídico particular, o intérprete se apodera de um ponto de referência que ao mesmo tempo o habilita a definir o exacto alcance da norma e a discriminar outras situações típicas com o mesmo ou com diferente recorte” - ensina Baptista Machado, ob. cit., págs. 182/183. A ratio legis revela, portanto, a valoração ou ponderação dos diversos interesses que a norma jurídica disciplina.
Retomando o caso posto, não é esta a sede nem o momento próprio para suscitar esta questão da incompetência absoluta dos Tribunais Administrativos, já que o mesmo se mostra vedado ope legis.
Em suma:
-considere-se ou não que a decisão tabelar sobre a competência do tribunal, faz caso julgado formal, a solução, expressa e inequívoca do artigo 87º/2, do CPTA, é a mesma;
-com efeito, se se considerar que faz, cai-se na previsão da segunda parte desse normativo legal;
-se se entender que não faz tudo se passa como se não tivesse sido proferida e, então, cai-se na previsão da primeira parte desse preceito, isto é, na situação de caso julgado tácito;
-é certo que a questão é de conhecimento oficioso, mas isso, como se vê do que se deixou dito, em nada colide com a previsão do artigo 87º/2;
-acresce que a questão, ao contrário do que acontece em processo civil, não pode ser conhecida a todo o tempo, apenas o podendo ser no despacho saneador, isso mesmo decorrendo, inelutavelmente, desta norma especial - artigo 87º/2 do CPTA;
-ademais, se é certo que a incompetência material envolve o interesse público, também o envolvem todas as questões que obstem ao conhecimento do mérito que possam ser conhecidas oficiosamente - e, exactamente por isso, é que o podem ser, sendo certo que aquela - como, aliás, qualquer outra - não foi excepcionada da previsão daquele art.º 87º/2;
-não menos importante, o princípio pro actione, consagrado em matéria de processo administrativo no artigo 7º do CPTA, que impede uma interpretação das normas processuais favorável a uma decisão de forma em detrimento de uma decisão de mérito, também desaconselha que neste momento o tribunal enverede pelo caminho da incompetência material dos tribunais administrativos;
-é que não pode olvidar-se que foi proferido Despacho Saneador considerando o Tribunal competente, e que as Partes almejam, há muito, uma decisão sobre o fundo da causa - o acórdão recorrido foi elaborado em 3 de julho de 2013 - neste sentido decidimos em 31/10/2019 no âmbito do processo 807/11.3BEPNF.
Das nulidades -
Como já assinalámos supra, os Recorrentes invocam a falta de fundamentação do acórdão, a contradição entre os fundamentos e a respectiva decisão e, ainda, o excesso de pronúncia.
Vejamos:
Segundo o artigo 615º do NCPC (art.º 668º do CPC de 1961), sob a epígrafe “Causas de nulidade da sentença”,
1 - É nula a sentença quando:
a)Não contenha a assinatura do juiz;
b)Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c)Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d)O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e)O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
2 -…. .
3 -….. .
4-As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades.
Nos termos das alíneas b)Dos incontáveis arestos dos tribunais superiores que reiteram a mesma doutrina jurisprudencial nesta matéria, retemos o Acórdão do Pleno da Secção do CA do Supremo Tribunal Administrativo, de 15-11-2012, proc. 0450/09, que sumariou: “(…) II - A estrutura da sentença está concebida no artº 659º do CPC, devendo a mesma começar por identificar as partes, o objecto do litígio (fixando as questões que que ao tribunal cumpre solucionar), os fundamentos (de facto e de direito) e concluindo com a decisão. Delineada a estrutura deste acto jurisdicional (por excelência), o desvio ao figurino gizado pelo legislador ocasiona uma patologia na formação e estruturação da decisão susceptível de a inquinar de nulidade (artº 668º nº1 do CPC).

III-Um dos elementos estruturantes da sentença é a fundamentação. Esta tem duas funções: uma função endoprocessual e uma função extraprocessual. A função endoprocessual é aquela que desenvolve a motivação da sentença, entendido como requisito técnico da pronúncia jurisdicional, no interior do processo; a função extraprocessual da motivação está ligada com a natureza garantista da absoluta generalidade e na consequente impossibilidade de a entender como derrogável ad libitum pelo legislador ordinário (e muito menos como derrogável ad libitum pelo juiz ou pelas partes.

IV-A nulidade da sentença por falta de fundamentação só ocorre quando haja ausência absoluta de motivação, ou seja, total omissão dos fundamentos de facto ou de direito em que a decisão assenta. (…)”.

e c) só ocorre nulidade quando falte a fundamentação (de facto/de direito devidamente especificada) ou quando a fundamentação da decisão aponta num sentido e a decisão em si siga caminho oposto, isto é, as situações em que os fundamentos indicados pelo juiz deveriam conduzir logicamente a um resultado oposto ao que se contém na sentença ou agora, também quando a decisão seja ininteligível por alguma ambiguidade.
Esta nulidade (al. c)) pressupõe um vício real no raciocínio expresso na decisão, consubstanciado na circunstância de a fundamentação explicitada na mesma apontar num determinado sentido, e, por seu turno, a decisão que foi proferida seguir caminho oposto, ou, pelo menos, diferente, ou ainda não ser perceptível face à fundamentação invocada. Isto é, a fundamentação adoptada conduz logicamente a determinada conclusão e, a final, o juiz extrai outra, oposta ou divergente (de sentido contrário).
Não se confunde com o erro de julgamento, seja quanto à apreciação dos factos feita pelas instâncias, seja quanto às consequências jurídicas deles extraídas, por inadequada ter sido a sua subsunção à regra ou regras de direito pertinentes à situação concreta a julgar.
Trata-se, pois, de uma irregularidade lógico-formal e não lógico-jurídica.
Já a “omissão de pronúncia” está relacionada com o dever que o nº 1 do artigo 95º do CPTA impõe ao juiz de decidir todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, não podendo ocupar-se senão das questões suscitadas, salvo quando a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Nestes termos, a nulidade da decisão por “omissão de pronúncia” verificar-se-á quando exista uma omissão dos deveres de cognição do tribunal, o que sucederá quando o juiz não tenha resolvido todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação e cuja decisão não esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, a “omissão de pronúncia” existe quando o tribunal deixa, em absoluto, de apreciar e decidir as questões que lhe são colocadas, e não quando deixa de apreciar argumentos, considerações, raciocínios, ou razões invocados pela parte em sustentação do seu ponto de vista quanto à apreciação e decisão dessas questões.
Já a nulidade por excesso de pronúncia ocorre quando o juiz conhece de excepções na exclusiva disponibilidade das partes, ou quando seja violado o princípio dispositivo na vertente relativa à conformação objectiva da instância, nomeadamente quando a sentença condena ou absolve em quantidade superior ao pedido ou em objecto diverso do pedido.
Retomando o caso dos autos temos para nós que não assiste razão aos Recorrentes nesta arguição.
No que tange à causa de nulidade prevista na citada alínea b), ela apenas se verifica quando haja uma completa ausência de fundamentação, e não quando esta seja meramente incompleta ou deficiente, uma vez que só no primeiro caso o destinatário da sentença recorrida ficará na ignorância das razões, de facto e/ou de direito, pelas quais foi tomada tal decisão, e o tribunal de recurso ficará impedido de sindicar a lógica que vivifica o silogismo judiciário que a ela presidiu, condicionalismo esse que aqui não se mostra presente.
Por sua vez, no que respeita à mencionada alínea c), cuja causa de nulidade alegadamente se mostra verificada no caso concreto, existe abundante e uniforme jurisprudência que consagra uma interpretação declarativa restritiva.
Ora, in casu, a transcrição que fizemos do acórdão recorrido atesta que os fundamentos de facto e de direito são logicamente harmónicos com a conclusão/decisão.
Naturalmente que uma coisa é a contradição lógica entre os fundamentos e a decisão da sentença ou do acórdão, e outra, bem diversa, é o erro de interpretação dos factos ou do direito ou a aplicação deste, que não raro se confunde com aquela contradição - sentenciou-se no Acórdão do STJ de 30/09/2004, proc. 04B2894.
E o que responder ao Recorrente Município de V... quando (também) assaca ao aresto a nulidade prevista no 2º segmento da alínea d) do já mencionado preceito, porquanto se ocupou de questões que não constituiriam objecto do processo, ou seja, thema decidendum colocado à apreciação do Tribunal e, ademais, não eram do seu conhecimento oficioso e, ainda, porque teria invadido a esfera de competências administrativas discricionárias, o que configuraria um claro excesso de pronúncia?
Apenas que não perfilhamos esta óptica.
Como já acima referimos, corolário do princípio da disponibilidade objectiva, a decisão é nula quando o tribunal conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, isto é, verifica-se este excesso sempre que o tribunal utiliza, como fundamento da decisão, matéria não alegada ou condena ou absolve num pedido não formulado, bem como quando conhece de matéria alegada ou pedido formulado em condições em que está impedido de o fazer.
Na situação presente, da leitura da fundamentação da decisão judicial em crise, extrai-se que os Senhores Juízes não excederam a pronúncia.
Assim, não incorreram no vício de nulidade.
Fundamentaram, sucinta mas suficientemente, quer de facto, mediante a selecção dos factos que reputaram relevantes para a solução a dar ao litígio, quer de direito, por recurso aos normativos legais aplicáveis.
Acresce que os Recorrentes não lograram densificar e, de resto, não se vislumbra, a ocorrência de qualquer contradição entre a fundamentação do acórdão e a decisão propriamente dita, sendo certo que é esta antinomia que releva, em ordem à verificação da apontada nulidade.
Ademais, inexistiu qualquer excesso de pronúncia por banda do Tribunal porquanto, não lhe estava vedado, antes lhe era exigido, emitir pronúncia sobre a questão da cobrança das taxas ou tarifas em causa, conforme resulta inequivocamente do disposto no artigo 95º/1, do CPTA.
A ser assim, o que os Recorrentes verdadeiramente atribuem ao acórdão recorrido é a constatação de erro de julgamento.
Desta feita, desatendem-se as faladas nulidades.
Da matéria de facto -
No que concerne à impugnação da matéria de facto, insurgiu-se a Recorrente V. contra a valoração, em termos probatórios, do ofício do extinto IRAR-Instituto Regulador de Águas e Resíduos, com o nº IRAR/O-000575/2007, de 7 de fevereiro, e, por outro lado, contra a desconsideração do parecer, de carácter geral e abstracto, emitido pela Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos, I.P., actualmente designada como ERSAR.
Defende, assim, o aditamento de um novo facto com o conteúdo enunciado na Conclusão 10ª das alegações.
Neste campo secundamos a posição assumida pela aqui Recorrente, nas suas alegações.
Com efeito, não se vislumbram razões válidas e ponderosas para valorar o citado ofício e, ao invés, preterir o aludido parecer, sendo certo que o Tribunal a quo poderia e deveria carrear ambos os documentos para a fundamentação fáctica do aresto, de modo a sopesar as duas posições em confronto e daí partir para a solução jurídica do caso sub judice.
De resto, o aditamento da factualidade invocada poderia ditar uma solução diversa da que foi proferida pelo Tribunal.
Termos em que ao abrigo do disposto no artigo 662º do NCPC (art.º 712º CPC 1961) se adita ao probatório, sob o nº 7, o seguinte:
Pela Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos, I.P. actualmente com a designação de ERSAR, foi emitido em 2011-05-20, um parecer sobre o assunto “tarifas de ramal de ligação”, do qual designadamente consta que a responsabilidade pelo pagamento dos custos de construção dos ramais de ligação é dos respectivos utilizadores e que a entidades gestoras podem repercutir esses custos através de tarifas específicas aplicadas por ocasião da construção dos ramais de ligação.
Na verdade, na reapreciação da prova pelo Tribunal de recurso deve este, além do controlo formal da motivação da decisão da 1ª instância, ponderar e valorar, de acordo com o princípio da livre convicção do julgador, toda a prova produzida no processo de modo a formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objecto de impugnação.
Acolhe-se, pois, este segmento do recurso.
Do erro de julgamento de Direito -
Avança-se, já, que decisão recorrida enferma de erro de julgamento.
É nosso entendimento que a responsabilidade pelo pagamento dos custos de construção dos ramais domiciliários é dos respectivos utilizadores e que as entidades gestoras dos sistemas públicos de água e saneamento têm a faculdade de lhes exigir tais custos não obstante os mesmos integrarem, com a sua construção, a rede do serviço público respectivo.
Neste sentido decidimos no acórdão de 22/02/2013, no âmbito do processo 180/08.7BEBRG, onde sumariámos:
I-Estando a Ré obrigada a ligar o seu prédio ao sistema público de drenagem de águas residuais, tendo sido realizada a instalação dos ramais de ligação e definindo o legislador que a responsabilidade pelo pagamento dos custos de construção dos ramais de saneamento é dos respectivos utilizadores, não pode manter-se na ordem jurídica a sentença que absolveu dos pedidos oportunamente formulados a Ré/Recorrida.
II-A legislação contida nos autos atesta que é dever da Recorrida ligar-se às redes públicas, ficando, nesta medida (e tendo em conta ponderosas razões de interesse público), restringida a sua liberdade de contratar; ou seja, no caso posto, o interesse público sobrepõe-se aos interesses particulares.
III-De acordo com o disposto na Lei das Finanças Locais, aprovada pela Lei n.º 42/98, de 6 de Agosto, revogada pela Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro, os Municípios têm a faculdade de exigir aos seus utentes os custos de construção dos ramais domiciliários, não obstante os mesmos serem pertença do domínio público;

IV-razões de interesse público e de sustentabilidade da exploração dos sistemas (dados os vultuosos investimentos e custos de manutenção) justificam essas opções legislativas de repercutir sobre o consumidor os respectivos custos;
V-a faculdade dos Municípios cobrarem taxas ou tarifas ou preços, pode ser transferida para a Entidade Gestora dos respectivos serviços, independentemente do tipo e natureza de construção jurídica que possam revestir;
VI-no caso concreto estamos perante a figura jurídica de uma Concessão;
VII-estabelece o art.º 13.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 379/93, de 5 de Novembro, que a Concessionária, precedendo aprovação pelo Concedente, “tem direito a fixar, liquidar e cobrar uma taxa aos utentes, bem como a estabelecer o regime de utilização e está autorizada a recorrer ao regime legal de expropriação…”;
VIII-o Município, ao transferir para a Concessionária a titularidade do direito à gestão e exploração dos Sistemas Públicos, concomitantemente transferiu os correlativos direitos de arrecadar as receitas provenientes dessa actividade.
Como bem se advoga em sede de alegações, a questão que se pode colocar é a de saber de que forma os custos com a construção dos ramais de ligação podem ou devem ser repercutidos nos utilizadores: se de forma individualizada, isto é, através de tarifas específicas aplicadas por ocasião da construção dos ramais de ligação, ou antes de forma difusa como mais um encargo a recuperar através das tarifas aplicadas mensalmente aos utilizadores do serviço (tal como a construção e manutenção das redes).
A existência de tarifas específicas de ramal constitui uma prática frequente dos municípios portugueses, embora a Entidade Reguladora se incline para considerar preferível a aplicação dos custos de forma difusa, ou seja diluindo-os mensalmente com a respectiva factura, aos utilizadores do serviço, melhor dizendo, diluindo o preço do ramal ou no preço da água ou criando uma tarifa especifica a ser paga mensalmente pelos utilizadores.
No entanto, a cobrança de forma individualizada, isto é, através de tarifas específicas aplicadas por ocasião da construção dos ramais de ligação, é uma prática legal e válida face ao quadro legal existente, como é considerado pela entidade reguladora e consta do seu parecer junto aos autos, sendo certo que, como a própria refere, existem apenas princípios gerais nesta matéria deixando-se ao critério das entidades gestoras a aprovação dos respectivos tarifários.
Este é o procedimento praticado pela Ré V. que se limitou a seguir a prática que vinha sendo aplicada pelos antigos SMAS-Serviços Municipalizados de Água e Saneamento da Câmara Municipal de G....
A opção pela forma individualizada permite a cobrança do custo do ramal no momento da sua entrada em serviço e de uma só vez, sendo dada a possibilidade ao utente de fazer um acordo de pagamento em prestações mensais sem juros e comprovada que seja, pelos serviços de acção social da Câmara Municipal, a incapacidade do utente fazer face aos custos associados à ligação aos sistemas públicos de abastecimento de água e drenagem de águas residuais, o mesmo poderá beneficiar de um subsídio previsto no Regulamento de Apoio a Estratos Sociais Desfavorecidos, ao passo que se a opção fosse o modo difuso, a totalidade dos utentes pagaria todos os meses e durante a vigência do contrato, junto com a sua conta de água, um montante para compensar este custo.
A alteração agora do modo de repercussão do custo da execução de ramais de ligação, no contexto actual e atentas as opções tarifárias assumidas no decorrer dos mais de cem anos de serviço público de abastecimento de água e 50 anos do serviço público de saneamento, criaria uma enorme injustiça na repartição dos custos do serviço, onerando todos aqueles que durante todo este tempo pagaram os seus ramais e veriam agora a sua factura agravada para pagamento dos ramais dos outros - lê-se na peça processual da Recorrente e aqui corrobora-se.
Aliás, conforme decorre do art.º 24º/g) dos Estatutos da V., anexos à escritura pública da sua transformação em sociedade comercial anónima (doc. nº 2 da contestação), pelos municípios de G... e V... foram delegados poderes ao conselho de administração da V. para “cobrar tarifas e preços pelos serviços e bens prestados no exercício da sua actividade e pela realização, manutenção, reforço e utilização de infra-estruturas, incluindo os ramais de ligação da rede pública aos prédios particulares”.
A Ré V. tem vindo a cobrar o preço do ramal, e no caso do saneamento, acrescido da tarifa de ligação. Não se vislumbra assim por que razão não o possa continuar a fazer.
Acresce que a decisão de mandar devolver o dinheiro (milhares de euros) aos utentes das freguesias aqui representados pela Autora/Recorrida, que pagaram, e bem, o preço dos seus ramais ou que se encontram a pagá-los em prestações mensais, tal como o fazem tantos outros utentes de outras freguesias, não se afigura minimamente justa, nem razoável, depois de no acórdão se ter considerado que efectivamente cabe ao utente pagar o seu ramal domiciliário; não se avaliou o impacto e as consequências de tal decisão, que afecta de forma drástica e violenta o equilíbrio económico-financeiro da empresa e o interesse público subjacente à prossecução destes serviços essenciais.
Como concluído, a decisão sob recurso não fez a melhor leitura dos diplomas e preceitos visados.
Em suma:
-a norma do regulamento em crise mostra-se em consonância com o ordenamento jurídico, sendo perfeitamente legítima - e legitimada - a cobrança aos respectivos destinatários do “custo do ramal ou ramais domiciliários” e do “valor da tarifa de ligação” conforme o disposto na alínea c) do nº 1 do artigo 30º do Regulamento dos Sistemas Públicos e Prediais em apreço;
-assim é que, ao nível jurídico-constitucional, o artigo 241º da Constituição Portuguesa institui o poder regulamentar próprio das autarquias locais;
-as várias leis habilitantes do Regulamento em causa - Lei das Finanças Locais, Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais, Regime Jurídico dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos e Regulamento Geral dos Sistemas Públicos e Prediais de Distribuição de Água e de Drenagem de Águas Residuais - permitem retirar um conjunto de conclusões favoráveis à posição sufragada pelos Recorrentes:
a)Por um lado, afigura-se assente que a instalação dos sistemas prediais de abastecimento de água e drenagem de águas residuais é da responsabilidade e custeio exclusivo do respectivo proprietário;
b)Por outro, é igualmente certo que a ligação dos sistemas prediais à rede pública de distribuição e de drenagem é realizada através dos respectivos ramais de ligação, os quais integram ou são componentes desta última, razão pela qual apenas a entidade gestora detém competências para o seu manuseamento, instalação, modificação, substituição, renovação, conservação ou suspensão;
c)Dado que os ramais de ligação integram a infraestrutura pública de distribuição de água e drenagem de águas residuais, permitindo a ligação dos sistemas prediais à rede, o custeio da sua instalação e da sua modificação, ambas promovidas a pedido do particular pela entidade gestora, corre por conta daquele, correspondendo afinal à contrapartida atribuída à entidade gestora pela disponibilidade do sistema público e pela ligação à rede dos sistemas prediais;
d)Por fim, assinala-se que o montante exigível aos particulares pela instalação do ramal de ligação e pelo estabelecimento da respectiva ligação deve corresponder economicamente ao custo da respectiva infraestrutura pública, ou pelo menos, não deve ser inferior a este último;
-o entendimento veiculado pelo Tribunal recorrido não espelha da melhor forma a interpretação das disposições legais convocadas para a solução da lide, razão pela qual têm de ser atendidas as conclusões das peças processuais dos Recorrentes.
DECISÃO
Termos em que se
concede provimento aos recursos, revogando-se o acórdão e julgando-se improcedente a acção.
Custas pela Autora/Recorrida.
Notifique e DN.


Porto, 29/11/2019



Fernanda Brandão
Frederico Branco
Nuno Coutinho