Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00201/19.8BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:02/05/2021
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:FUNDO DE GARANTIA SALARIAL; CESSAÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO; PRESCRIÇÃO; ARTIGO 2º DO DECRETO-LEI Nº 59/2015, DE 21.04;
ARTIGO 319º Nº 3 DA LEI Nº 35/2004, DE 29.07.
Sumário:1. É inconstitucional a norma contida no artigo 2.º, n.º 8, do Novo Regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21.04, na interpretação segundo a qual o prazo de um ano para requerer o pagamento dos créditos laborais, certificados com a declaração de insolvência, cominado naquele preceito legal é de caducidade e insuscetível de qualquer interrupção ou suspensão - acórdão do Tribunal Constitucional n.º 328/2018, de 27.06.2018, no processo 555/2017 (retificado pelo Acórdão nº 447/2018).

2. Já a anterior legislação regulamentadora do Fundo de Garantia Salarial estabelecia requisitos temporais para a apresentação do requerimento junto do Fundo de Garantia Salarial, dispondo o artigo 319º nº 3 da Lei nº 35/2004, de 29.07, que o Fundo de Garantia Salarial só assegurava o pagamento dos créditos que lhe fossem reclamados até 3 meses da respectiva prescrição.*
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:J.
Recorrido 1:Fundo de Garantia Salarial
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

J. veio interpor o presente RECURSO JURISDICIONAL do saneador-sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, de 04.03.2020, pelo qual foi julgada totalmente improcedente a acção que intentou contra o Fundo de Garantia Salarial para reconhecimento do direito a receber deste Fundo os “créditos reconhecidos em sentença no processo supra referido do Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia – Juiz 2, proc. n.º 3229/17.9T8AVR” e “juros compensatórios legais desde a data da sentença em que foi reconhecido o crédito”.

Invocou para tanto que a decisão recorrida incorreu em erro de direito dado que, ao contrário do decidido, os seus créditos não tinham prescrito e por isso o requerimento foi tempestivo.

O Recorrido contra-alegou defendendo a manutenção do decidido.

O Ministério Público neste Tribunal não emitiu parecer.
*
Cumpre decidir já que nada a tal obsta.
*

I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:

a. O requerimento do A. foi apresentado ao Fundo de Garantia Social em 21/06/2018, altura em que se encontrava em vigor o novo diploma legal regulador do Fundo de Garantia Salarial, DL 59/2015, de 21 de Abril, que entrou em vigor no dia 04/05/2015.

b. Assim, o referido requerimento do A. foi apreciado à luz deste diploma legal.

c. Este diploma prevê um prazo de 1 ano a contar da cessação do contrato de trabalho para que seja apresentado junto dos serviços da Segurança Social o requerimento para pagamento de créditos emergentes pela cessação do contrato de trabalho.

d. O Recorrente é funcionário da empresa devidamente identificada à data da sentença de declaração de insolvência.

e. Porquanto, pela sentença de 02/02/2009, decretada no processo nº 571/07.0TTVFR, que correu termos no Tribunal do Trabalho de Santa Maria da Feira, releva que ”Declara ilícito o despedimento do A.”, o aqui Recorrente.

f. Por força desta sentença e de acordo com o plasmado no artº 389ºdo Código do Trabalho, o trabalhador por força desta sentença é obrigatoriamente integrado na empresa mantendo direitos e deveres intactos.

g. Do mesmo modo, de acordo com o plasmado no artº 347º nº 1, do mesmo diploma, a declaração judicial de insolvência do empregador não faz cessar o contrato de trabalho, devendo o administrador de insolvência continuar a satisfazer as obrigações para com os trabalhadores.

h. Neste contexto e em face da situação emergente o Recorrente reclamou o crédito laboral que detinha sobre a já identificada empresa, tendo a Administradora Judicial Provisória nomeada no referido processo, ter reconhecido o crédito deste no valor global de 60.887,92€.

i. Em face do expendido, entende, o Recorrente ter apresentado o requerimento ao Fundo de Garantia Salarial, tempestivamente para todos os efeitos, devendo ser credor do valor global reclamado com o respectivo acrescido.

j. Por outro lado, se se assim não entender, o Requerente invoca a não prescrição do requerido nos mesmos termos, valores e acrescido, como supra refere.

k. É nosso entendimento que a douta sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto não andou bem ao ordenar o indeferimento visado nos autos e ao não condenar o Fundo de Garantia Salarial a proceder ao pagamento do crédito salarial.

Termos em que, e com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, substituindo-a por outra que revogue a decisão de indeferimento proferida pelo Presidente de Gestão do Fundo de Garantia Salarial.
*

II –Matéria de facto.

A decisão recorrida deu como provados os seguintes factos, sem reparos nesta parte:

1) O Autor foi admitido ao serviço da empresa “C., Lda” em 05.05.1995 para trabalhar sob as suas ordens, orientação e autoridade – cfr. folhas 15 do processo administrativo.

2) O Autor trabalhou para a empresa identificada no ponto antecedente deste probatório assente até 20.07.2006, data em que foi despedido – cfr. folhas 11 e 14 do processo administrativo.

3) Em 03.07.2007, o Autor intentou, contra a sociedade identificada em 1) deste probatório assente, “acção de processo comum”, junto do Tribunal do Trabalho de Santa Maria da Feira, Secção Única, que correu termos sob o n.º 571/07.0TTVFR e no âmbito da qual, por sentença datada de 02.02.2009, transitada em julgado, se decidiu:

“(…).
Pelo exposto, decido julgar a presente acção procedente, por provada, atento o peticionado pelo A., improcedendo no que concerne ao pedido de compensação efectuado pela R. e, em consequência:

- Declaro ilícito o despedimento do A.

- Condeno a R. a pagar ao A. a quantia de € 612,50 (seiscentos e doze euros e cinquenta euros) a título de retribuição vencida nos trinta dias anteriores à propositura da presente acção (03/06/07), bem como a pagar ao A. todas as prestações retributivas que se vencerem desde aquela data, até à data do trânsito em julgado desta sentença;

- Condeno a R. a pagar ao A. a quantia de € 612,50 (seiscentos e doze euros e cinquenta cêntimos) por cada ano completo ou fracção de antiguidade, atendendo-se ainda a todo o tempo completo ou fracção de antiguidade, atendendo-se ainda a todo o tempo decorrido desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado desta decisão, computando-se as já vencidas em € 9.187,50 (nove mil cento e oitenta e sete euros e cinquenta cêntimos) a título de indemnização:

- Condeno a R. a pagar ao A. a quantia de € 612,50 (seiscentos e doze euros e cinquenta cêntimos) a título de retribuição de férias vencidas em 1/1/05 e não gozadas) (…)”

– cfr. folhas 8 a 34 e 10 do processo administrativo.

4) Em 10.04.2017, foi requerida a declaração de insolvência da empresa “C., Lda.”, o que deu origem processo n.º 3229/17.9T8AVR, que correu termos no Tribunal da Comarca do Porto – Vila Nova de Gaia – cfr. documento n.º 2, junto com a petição inicial, a folhas 8 a 11 do suporte físico do processo; e folhas 82 do processo administrativo.

5) Por sentença de 19.12.2017, proferida no âmbito do processo referido no pronto anterior, foi a empresa “C., Lda.” declarada insolvente – cfr. documento n.º 2, junto com a petição inicial, a fls. 8 a 11 do suporte físico do processo; e folhas 82 do processo administrativo.

6) O Autor reclamou o crédito laboral que detinha sobre a empresa “C., Lda.” à Administradora Judicial Provisória nomeada no referido processo de insolvência, no valor global de EUR 60.887,92 – cfr. folhas 50 a 57 do processo administrativo.

7) O crédito laboral reclamado pelo Autor foi reconhecido pela Administradora Judicial Provisória nomeada nos termos em que foi reclamado, no valor global de 60.887,92 euros – cfr. folhas 58 e 66 do processo administrativo.

8) Em 21.06.2018, o Autor apresentou, junto do Fundo de Garantia Salarial, requerimento para pagamento de créditos emergentes do contrato de trabalho, no valor global de 60.887,92 euros – cfr. folhas 78 do processo administrativo, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

9) Por ofício datado de 23.08.2018, foi o Autor notificado de que por despacho de 01.08.2018, do Presidente do Conselho de Gestão do Fundo de Garantia Salarial, o seu requerimento para pagamento de créditos emergentes do contrato de trabalho tinha sido indeferido com o seguinte fundamento:

“(…).
- O requerimento não foi apresentado no prazo de 1 ano a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho, nos termos do n.º 8 do art.º 2.º do Dec.- Lei n.º 59/2015, de 21 de abril (…)” – cfr. documento n.º 1, junto com a petição inicial, a fls. 8 verso do suporte físico do processo.
*
III - Enquadramento jurídico.

1. Os créditos reclamados; a inconstitucionalidade da norma constante do nº. 8 do artigo 2.º, do Novo Regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21.04.

Sobre a inconstitucionalidade desta norma pronunciou-se o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 328/2018, de 27.06.2018 (rectificado pelo Acórdão nº 447/2018), no processo 555/2017:

“(…)

3. Face ao exposto, na improcedência do recurso, decide-se:

A) julgar inconstitucional a norma contida no artigo 2.º, n.º 8, do Novo Regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de abril, na interpretação segundo a qual o prazo de um ano para requerer o pagamento dos créditos laborais, certificados com a declaração de insolvência, cominado naquele preceito legal é de caducidade e insuscetível de qualquer interrupção ou suspensão;
(…)”

Discorrendo, para chegar a esta decisão, o seguinte:

“(…)

2.4.1. A proteção da retribuição inclui, nos termos do artigo 59.º, n.º 3, da Constituição, a previsão de “garantias especiais”, cuja modelação cabe ao legislador, que, para o efeito, goza de “ampla liberdade” (cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, 2.ª ed., Coimbra, 2010, p. 1166). Não obstante, a instituição do mecanismo do Fundo de Garantia Salarial (para além de – como vimos – consistir numa obrigação para o Estado Português decorrente do Direito da União) não pode deixar de ser vista como concretização de uma das garantias a que se refere aquele n.º 3 (nesse sentido, v. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra, 2014, p. 777).

Não é inócua a apontada ligação entre o mecanismo do FGS e a norma do n.º 3 do artigo 59.º da CRP. Tratando-se de uma das garantias ali previstas, ao escolher (apesar de, nessa escolha, se encontrar vinculado pelo Direito da União) instituir o FGS como uma das garantias especiais da retribuição, o legislador está vinculado à construção de um regime que lhe assegure um mínimo de efetividade, sem a qual resultaria esvaziada de sentido a norma constitucional, com respeito pela igualdade (artigos 13.º e 59.º, n.º 1, da CRP). Por outro lado, tratando-se de atribuir, no apontado contexto, um direito a uma prestação pecuniária, e de limitar no tempo a efetividade desse direito pelo não exercício, tal atribuição deve operar, na compaginação destas duas vertentes, segundo regras claras, certas e objetivas – exigência decorrente do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição).

2.5. Tendo presentes as linhas essenciais do NRFGS – em particular a norma objeto do presente recurso (cfr. itens 2.1. e 2.2., supra) – verificam-se aporias que o afastam do padrão de efetividade e certeza acabado de traçar.

De acordo com o sentido das normas relevante para a presente decisão (cfr. item 2.2., supra), a declaração de insolvência faz nascer o direito ao acionamento do FGS. Sucede que a declaração judicial constitui um momento num processo judicial contraditório, de cujos termos o trabalhador tem (ou pode ter) unicamente o domínio do impulso processual inicial, sendo que, subsequentemente, o desenvolvimento do processo como que lhe “sai das mãos”, sendo muito limitada a respetiva capacidade de determinar no elemento tempo os ulteriores passos processuais até à efetiva declaração do devedor em estado de insolvência. De facto, basta pensar que, não sendo um dos casos excecionais de dispensa da audiência do devedor (artigo 12.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, doravante CIRE), há lugar à citação deste, que poderá ser mais ou menos demorada, podendo ser apresentada oposição e realizada audiência de julgamento, gerando-se uma dilação assinalável entre o pedido de declaração da insolvência e essa mesma declaração – circunstâncias das quais o caso dos autos constitui, aliás, exemplo vivo, tendo a declaração de insolvência ocorrido cerca de seis meses e meio após ter sido requerida pelo primeiro Recorrente. Ou seja, pegando precisamente no exemplo que os autos ilustram, observamos que se consumiu mais de metade do prazo de acionamento do FGS em vicissitudes processuais que o trabalhador credor da insolvente não esteve em condições de dominar, sendo certo que a declaração de insolvência foi pedida decorridos que foram menos de seis meses do prazo de um ano previsto no artigo 2.º, n.º 8, do NRFGS.

Não estamos – deve sublinhar-se – perante a questão, sucessivamente apreciada pela jurisprudência europeia, de saber se o legislador pode fixar prazos mais ou menos alargados para o exercício do direito ao acionamento do FGS, sob pena de caducidade ou prescrição: ninguém aqui discute a existência de prazos nem o prazo em concreto estabelecido na norma referenciada na decisão.

O que está em causa é saber se, na contagem desse prazo, é possível incluir um período temporal (que, como vimos, pode ser assinalável) especificamente determinado e tendente à criação de um pressuposto essencial do direito ao acionamento do FGS (o período entre o pedido de declaração da insolvência e a sua efetiva declaração pelo tribunal competente), cujos termos escapam por completo ao controlo do trabalhador-credor, de tal forma que o mero decurso do tempo nessa fase processual provoque a extinção do direito. Assim se cria uma evidente antinomia: o trabalhador-credor de um empregador insolvente que queira ver tutelado o direito à prestação pelo FGS vê-se obrigado a pedir a declaração de insolvência e, a partir desse momento, as vicissitudes próprias do processo que fez nascer com essa finalidade, comprometem o exercício desse mesmo direito, sem que um comportamento alternativo lhe seja exigível – rectius, possa por ele ser adotado – no sentido de evitar essa preclusão.

Ao fazer nascer, ainda que potencialmente, na própria condição de realização de um direito a causa da sua extinção, à qual o respetivo titular se vê impossibilitado de obstar, o legislador deixa de conferir à retribuição – e ao “remédio” (talvez mais até ao paliativo) para a sua perda – a tutela que lhe era devida nos termos do artigo 59.º, n.º 3, da Constituição. Sendo certo que o sistema do FGS “pressupõe um nexo entre a insolvência e os créditos salariais em dívida” (acórdão do TJUE de 28 de novembro de 2013, cfr. supra 2.3.2.3.), seria o próprio processo judicial com aptidão para estabelecer o referido nexo que constituiria causa da preclusão do direito.

Geram-se, por outro lado, diferenciações arbitrárias na concessão (na realização) daquele direito a distintos titulares, subordinado que fica este à duração maior ou menor da fase inicial dos processos de insolvência, em função de ter sido deduzida oposição, da duração das audiências de julgamento, das diferentes capacidades de resposta dos tribunais, etc. Tudo fatores alheios à vontade do trabalhador-credor e que, por isso mesmo, não suportam a afirmação de existência de algo semelhante a um “domínio do facto” por este, cujo efeito de condicionamento do respetivo direito não encontra justificação na tutela de qualquer outro valor que possamos considerar relevante no confronto com a necessidade de tutela da retribuição que se verifica no contexto apontado.

A este respeito, não releva, propriamente, de forma direta, a qualificação do prazo como de caducidade ou de prescrição – questão que, na ausência de uma opção legal expressa, se prefigura como de âmbito fundamentalmente doutrinário que, em todo o caso, nos aparece aqui ligada a uma opção interpretativa do direito infraconstitucional –, relevando antes a circunstância de, no contexto descrito, a contagem de tal prazo ocorrer sem qualquer suspensão ou interrupção, gerando um sinal – rectius, potenciando um efeito – de valor contrário ao próprio direito.

Note-se, todavia – sublinhando o sentido atuante que a qualificação jurídica do prazo aqui acabou por assumir –, que o Fundo, na fundamentação da respetiva posição de indeferimento da pretensão dos ora Recorridos (cfr. item 1.2.1. supra) – e sublinha-se, pois, que foi nesse quadro que a decisão recorrida, como não podia deixar de ser, se forjou –, qualificou expressamente o prazo em causa no artigo 2.º, n.º 8, do NRFGS como de caducidade, referindo-lhe expressamente a circunstância, que é própria do regime da caducidade nos termos do artigo 328.º do CC, de só comportar suspensão ou interrupção mediante previsão legal, no caso inexistente. E, de facto, é neste contexto que se afirma que, “[e]m matéria de contagem do prazo de caducidade, aplicam-se, em princípio, tal como na prescrição, as regras gerais, com uma importante diferença. Na caducidade vale muito mais plenamente o princípio segundo o qual o tempo se conta ininterruptamente”, já que, “[…] como resulta do artigo 328.º do CC, ‘o prazo de caducidade não se suspende nem se interrompe, senão nos casos em que a lei o determine’. Assim, se a lei, em cada caso concreto, não admitir, expressamente, a suspensão e a interrupção do prazo de caducidade (ou algum destes institutos), o prazo corre sempre sem intermitências de qualquer ordem” (Luís A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, 4.ª ed., Lisboa, 2007, p. 703). Ora, tendo sido a invocação, por parte do FGS, desta característica do regime da caducidade que conduziu à construção do indeferimento (por inexistir previsão legal a permitir a suspensão ou a interrupção do decurso do prazo), não poderia a decisão recorrida, ao sindicar esse indeferimento, deixar de pressupor essa interpretação e construir em função dela a questão de inconstitucionalidade que constituiu a respetiva ratio decidendi.

Porém, não é irrelevante a pouca clareza do regime legal, espelhada na norma em causa, considerada em si mesma ou sistematicamente inserida no diploma que a contém. O elemento de incerteza deste regime (evidenciado à saciedade, nestes autos, pelas posições assumidas na decisão recorrida, nas alegações e contra-alegações de recurso e no item 2.2., supra) compromete seriamente a efetividade da tutela que corresponde ao mecanismo do FGS, apresentando-se o complexo normativo do NRFGS, ao gerar estas interpretações díspares, com uma consistência pouco definida – para não dizer insuportavelmente ambígua –, cuja interpretação muito dificilmente assumirá um sentido minimamente claro, gerador de segurança nos destinatários beneficiários do seu âmbito de proteção. Isto ao ponto destes não disporem, consistentemente, da possibilidade de, agindo com normal diligência, anteverem com suficiente segurança o comportamento que devem adotar para formular atempadamente a sua pretensão junto do FGS, assim se comprometendo as exigências mínimas de certeza decorrentes do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição).

2.5.1. Aliás, em hipóteses como a dos presentes autos, pode mesmo dizer-se, tomando de empréstimo as palavras do acórdão do TJUE de 16 de julho de 2009, no caso Visciano (referido supra no item 2.3.2.1.), que a configuração do prazo pode tornar “[…] impossível na prática ou excessivamente difícil” o exercício do direito do trabalhador credor, além de que – como justamente se assinalou naquela decisão – “[…] uma situação caracterizada por uma considerável incerteza jurídica pode constituir uma violação do princípio da efetividade, uma vez que a reparação dos danos causados a particulares por violações do direito comunitário imputáveis a um Estado‑Membro pode, na prática, ser extremamente dificultada se estes não puderem determinar o prazo de prescrição aplicável, com um razoável grau de certeza”.

2.6. As razões que antecedem são, pois, aptas a fundar um juízo de censura constitucional à norma sub judicio, confirmando a esse respeito a decisão recorrida. Complementarmente, justificam- -se duas observações adicionais, referidas à incidência na situação do Direito da União e à referenciação da intervenção do Tribunal Constitucional exclusivamente à questão de inconstitucionalidade.

2.6.1. Assim, como primeira nota, respeitante às incidências do caso relativas ao Direito da União, cumpre-nos salientar, quanto ao âmbito da intervenção deste Tribunal no quadro referencial do artigo 8.º, n.º 4 da CRP (aqui relevante no trecho que estabelece que “[…] as normas emanadas das […] instituições [da União Europeia], no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos no Direito da União […]”), a ausência de justificação para que equacionemos (neste recurso) um reenvio prejudicial de interpretação ao TJUE, nos termos do artigo 267.º do Tratado sobre o funcionamento da União Europeia (TFUE).

Vale esta opção – como adiante explicitaremos – em função da constatação de não se prefigurar aqui, na sequência da jurisprudência do TJUE referida ao longo deste Acórdão, uma dúvida quanto à interpretação do Direito da União que apresenta relevância no caso concreto, designadamente quanto ao sentido prescritivo dos artigos 3.º sucessivamente incluídos nas Diretivas 80/987/CEE e 2008/94/CE, referidas no item 2.3.1 supra. Estas, consubstanciando “atos jurídicos da União” vinculativos do Estado português “[…] quanto ao resultado a alcançar […]”, na aceção do terceiro parágrafo do artigo 288.º do TFUE (“[a] directiva vincula o Estado-Membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios”), mostram-se já devidamente esclarecidas pela jurisprudência do TJUE, no seu sentido operante relativamente à norma de Direito interno aqui sujeita à apreciação do Tribunal Constitucional (o artigo 2.º, n.º 8 do NRFGS na interpretação em causa na decisão recorrida).

Aliás, conforme indicámos no item 2.5.1. supra, o ora decidido encontra-se, assumidamente, em linha com o sentido evidente dessa jurisprudência relevante na matéria aqui em causa – referimo-nos às decisões, todas proferidas em processos de reenvio, do TJUE referenciadas no item 2.3.3. supra e respetivas subdivisões (2.3.3.1 a 2.3.3.4.) –, concretamente com o ponto 46. acima transcrito, no item 2.3.3.1., constante do acórdão Visciano c. INPS, de 16 de julho de 2009 (processo C-69/08).

Com efeito, estando em causa uma obrigação de reenvio, nos termos do terceiro parágrafo do artigo 267.º do TFUE, “[…] para os órgãos jurisdicionais que julguem sem hipótese de recurso judicial previsto no direito interno” [Inês Quadros, “Acórdão do Tribunal de Justiça de 6 de Outubro de 1982 – Processo 283/81 Srl Cilfit et Lanificio di Gavardo SpA c. Ministero della sanità”, in Princípios Fundamentais de Direito da União Europeia. Uma Abordagem Jurisprudencial, Sofia Oliveira Pais (coord.), 3.ª ed., Coimbra, 2014, p. 223], verifica-se neste caso uma das circunstâncias nas quais, segundo o TJUE no acórdão Cilfit, está o tribunal nacional dispensado desse reenvio.

Referimo-nos em concreto, seguindo o ponto 14. desse acórdão de 1982 (que é invariavelmente assumido como precedente de forte valor persuasivo), às situações em que exista “[…] uma orientação jurisprudencial do Tribunal que esclareça o ponto de direito em causa, qualquer que seja a natureza do procedimento que deu lugar a esta jurisprudência, mesmo na ausência de uma estrita identidade das questões em litígio”. Nestes casos, o esclarecimento anterior pelo TJUE de uma situação equivalente, em termos aptos a suportar, consistentemente, um juízo de identidade de razão, confere à norma interpretada a natureza de “ato clarificado” (Inês Quadros, “Acórdão do Tribunal de Justiça de 6 de outubro de 1982…”, cit. p. 229).

2.6.2. A isto acresce – como segunda nota complementar acima indicada no item 2.6. – a seguinte observação. Cabe ao Tribunal Constitucional a última palavra sobre a inconstitucionalidade da norma em questão, não lhe cabe, porém, determinar qual a melhor interpretação do direito infraconstitucional na sequência do afastamento dessa norma (dessa construção normativa). Assim, na falta de uma opção legislativa expressa, caberá aos tribunais comuns a solução das questões que o presente julgamento deixa em aberto (designadamente, se deve tratar-se de interrupção ou suspensão do prazo, se o efeito interruptivo ou suspensivo em relação a todos os credores pode depender do pedido de declaração de insolvência de um só credor ou de um credor de certa categoria ou até quando se deve verificar a suspensão ou interrupção).

Cinge-se, pois, a presente decisão, à questão de inconstitucionalidade, nos termos em que esta emergiu da decisão de recusa do Tribunal a quo.

2.7. Pelas razões que antecedem, improcede o recurso, devendo confirmar-se a decisão recorrida.

É o que nos resta afirmar, conferindo-lhe expressão decisória.
(…)”

Decisão com a qual se concorda, vistos os seus fundamentos.

Dispõe o artigo 282º da Constituição da República Portuguesa sob a epígrafe “Efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade”.

“1. A declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado”.

Não vemos razão para não aplicar esta norma, dirigida à hipótese de “declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral” ao caso, como o presente, em que temos uma declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade ainda sem força obrigatória geral.

Na verdade, é a solução que mais segurança e certeza traz para a solução de casos similares, dada a sedimentação que o antigo regime jurídico já tinha alcançado.

E porque, por outro lado, tendo em conta a multiplicidade de situações idênticas que correm nos tribunais administrativos, mantendo-se a declaração de inconstitucionalidade, com o recurso obrigatório pelo Ministério Público para o Tribunal Constitucional, é previsível que venha a surgir essa declaração com força obrigatória geral, pelo que, com esta posição, já estará preparado o caminho pela jurisprudência dos tribunais administrativos para tal declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, reforçando a certeza e segurança jurídicas.

A configuração do prazo para reclamar créditos ao Fundo de Garantia Salarial constante da norma em apreço, como prazo de caducidade insusceptível, como tal, de suspensão ou interrupção, pode tornar impossível na prática ou excessivamente difícil o exercício do direito do trabalhador credor, além de que, face à divergência de interpretações doutrinárias e jurisprudenciais, conduz a uma situação caracterizada por uma considerável incerteza jurídica o que pode constituir uma violação do princípio da efetividade.

Apenas não vemos razão para nos embrenharmos nas questões que aqui se deixam em aberto, designadamente, se deve tratar-se de interrupção ou suspensão do prazo, se o efeito interruptivo ou suspensivo em relação a todos os credores pode depender do pedido de declaração de insolvência de um só credor ou de um credor de certa categoria ou até quando se deve verificar a suspensão ou interrupção.

Questões cuja resolução poderá manter ou até acentuar a insegurança e incerteza na interpretação e aplicação da norma.

E porque, por outro lado, tendo em conta a multiplicidade de situações idênticas que correm nos tribunais administrativos, mantendo-se a declaração de inconstitucionalidade, com o recurso obrigatório pelo Ministério Público para o Tribunal Constitucional, é previsível que venha a surgir essa declaração com força obrigatória geral, pelo que, com esta posição, já estará preparado o caminho pela jurisprudência dos tribunais administrativos para tal declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, reforçando a certeza e segurança jurídicas.

Dispunha o artigo 319º, nº 3, da Lei nº 35/2004, de 29.07, norma anteriormente em vigor, que o Fundo de Garantia Salarial só assegurava o pagamento dos créditos que lhe fossem reclamados até 3 meses da respectiva prescrição.

No caso concreto os créditos em parte resultam da cessação do contrato por despedimento ocorrido em 20.07.2006, apenas 612,50 euros (facto provado sob o s n.ºs 2 e 3) e o total reclamado de 60.887,92 euros foi reconhecido apenas pela Administradora Judicial Provisoria processo n.º 3229/17.9T8AVR, que correu termos no Tribunal da Comarca do Porto – Vila Nova de Gaia (factos provados sob os n.s º 4 a 7).

Pelo que ao montante apenas em relação ao montante de 612,5 euros se aplica o prazo geral de vinte anos, previsto no artigo 309º, do Código Civil, por aplicação do disposto no artigo 311º nº 1 do mesmo Código.

Assim sendo, quando o Autor reclamou junto do Fundo de Garantia Salarial o pagamento dos seus créditos salariais, no dia 21.06.2018, estava longe de caducar o seu direito em relação a este crédito porque também estavam longe de prescrever este crédito.

Pelo que nesta parte é procedente a acção e, logo, merece provimento o recurso.

Quanto ao restante reclamado e que decorre da cessação do contrato de trabalho, ocorrida em 20.07.2006, prescreveu um ano depois desta data, face ao disposto no n.º 1 do artigo 337.º do Código do Trabalho.

Pelo que neste montante foi devidamente recusado o pagamento pelo Fundo de Garantia Salarial, improcedendo nesta parte o recurso e a acção.

2. Juros de mora.

O Fundo não substitui a entidade patronal insolvente no pagamento de todas as suas dívidas nem garante o pagamento de todas as dívidas da entidade patronal insolvente, pois isso seria inexequível, economicamente incomportável para o Fundo.

O Fundo apenas garante aquele montante, duplamente limitado, que o legislador entendeu ser adequado e justo para, por um lado, proteger o trabalhador numa situação de perda de rendimentos que não lhe é imputável, com complemento do sistema de segurança social e, por outro, garantir a sustentabilidade do próprio Fundo.

O que, apresentando justificação objectiva, não viola qualquer princípio constitucional, em concreto o princípio da igualdade, na sua vertente laboral – artigos 13º e 63º da Constituição da República Portuguesa.


Neste sentido se pronunciou o acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte, de 07.10.2016, no processo 00365/11.9 PNF, com o mesmo Relator.

Pelo que os juros de mora sobre a quantia acima referida que o Demandado deve pagar, apenas se podem contar desde a interpelação do Fundo de Garantia Salarial para pagar, ou seja, desde 21.06.2018 (facto provado sob o n.º 8) – artigo 805º, n.º 1, do Código Civil.
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IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em CONCEDER PARCIAL PROVIMENTO ao presente recurso jurisdicional pelo que:

1. Revogam parcialmente a decisão recorrida.

2. Julgam a acção parcialmente procedente, e:

2.1. Condenam o Réu a pagar ao Autor a importância de 612,50 € (seiscentos e doze euros e cinquenta cêntimos), acrescida de juros de mora 21.06.2018.

2.2. Absolvem o Réu do mais que é pedido.
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Custas na proporção do decaimento em ambas as instâncias, sem prejuízo do apoio judiciário que foi concedido ao Autor.
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Porto, 05.02.2021


Rogério Martins
Frederico Branco
Luís Garcia, com a declaração de voto que segue:

Declaração de voto:

Não dissentindo do fundamento de inconstitucionalidade presente no citado Ac. do Tribunal Constitucional, tenho que a sua transposição para o caso não passa por aplicar a norma do art.º 282º, nº 1, da CRP; antes, sem essa intermediação, cabe mesma solução de direito final por desaplicação, e sem repristinação.

Luís Garcia