Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00022/09.6BEPNF
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:01/17/2020
Tribunal:TAF de Penafiel
Relator:Helena Ribeiro
Descritores:AMPLIAÇÃO DO PEDIDO; CONDENAÇÃO ULTRA PETITUM; FUNCIONAMENTO ANORMAL DO SERVIÇO; NEXO DE CAUSALIDADE.
Sumário:1-Reaberta a audiência final inicia-se nova fase de instrução da causa, pelo que é temporalmente admissível a apresentação de requerimento de ampliação do pedido, podendo os réus não só pronunciar-se quanto a essa ampliação, como requerer meios de prova tendentes a demonstrar a inexistência de fundamentos fáticos ou jurídicos que suportem essa ampliação, estando assegurado o seu direito ao contraditório, quer na sua dimensão negativa, de indefesa- art.º 3.º, n.º1 do CPC- quer na sua dimensão positiva, de influência- art.º 3.º, n.º3 do CPC.
2-É legalmente admissível a ampliação do pedido para montante superior, operada pelos autores na sequência do pedido oficiosamente determinado pelo tribunal para que o INMLCF concretizasse o “quantum doloris” adveniente para a autora menor em consequência das lesões e sequelas decorrentes dos comportamentos imputados aos réus, em sede de petição inicial, considerando que essa ampliação do pedido é mero desenvolvimento da causa de pedir que já se encontrava alegada na petição inicial, estando esse pedido ampliado já contido, virtualmente, no pedido inicial.
3- Por força dos princípios do dispositivo e do contraditório o juiz não pode condenar em prestação quantitativamente superior ao pedido, sequer em prestação qualitativamente diversa à pedida. Contudo, a condenação quantitativamente superior à pedida carece de ser aferida por referência ao pedido global formulado pelos autores, não estando o juiz limitado ao valor de cada uma das parcelas em que se decompõe o pedido.
4-A responsabilidade civil extracontratual por ato legislativo decorre da verificação de danos resultantes da prática de um ilícito legislativo, pelo que, atendendo ao conceito formal de lei acolhido pela Constituição, no artigo 112.º, n.º1, apenas compreenderá os danos decorrentes (i) da Lei, aprovada pela Assembleia da República, ao abrigo dos artigos 161.º, al. c), 164.º e 165.º da CRP; do (ii) Decreto-Lei, aprovado pelo Governo em reunião de Conselho de Ministros, ao abrigo do artigo 198.º da Constituição; e (iii) do Decreto legislativo regional, aprovado pela Assembleia legislativa da Região Autónoma respetiva, ao abrigo dos artigos 112.º, n.º4, 227.º, 228.º e 232.º, n.º1, da CRP.
5- A responsabilidade decorrente de ato ou omissão regulamentar não se encontra abrangida pela responsabilidade por ato legislativo, por não estarem em causa atos legislativos mas normas administrativas emanadas ao abrigo de disposições de direito administrativo e no exercício da função administrativa.
6- Na responsabilidade por facto ilícito, o nexo causal afere-se com recurso à denominada formulação negativa da causalidade, pelo que o facto que atuou como condição do dano só deixará de ser considerado causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo em todo indiferente para a verificação do dano.
7- Há funcionamento anormal do serviço quando a não realização do teste do pezinho a um recém-nascido se ficou a dever à fragilidade do procedimento delineado pela Administração Pública para o envio das colheitas biológicas efetuadas nos vários centros autorizados a proceder a essa recolha, como sucede quando nesse procedimento se prevê como modo de envio a remessa através de correio azul, não registado, que não acautela dentro de parâmetros minimamente aceitáveis, qualquer possibilidade de extravio.
8- A não definição e consequente implementação de um procedimento rigoroso e seguro que assegurasse, dentro das possibilidades humanas e dos meios existentes, a receção do material biológico pelo serviço de destino, sequer suscetível de detetar eventuais falhas nessa chegada é uma conduta omissiva reveladora do mau funcionamento dos serviços públicos e de má administração.
9- O facto que atuou como condição dos danos sofridos pela menor e pelos seus pais, foi a conduta das Rés traduzida no deficiente procedimento que implementaram, no qual deviam ter previsto a possibilidade de por força da intervenção de terceiros, como é o caso dos CTT, as colheitas para a realização do “teste do pezinho” poderiam não chegar ao seu destino.
10- Prescreve o artigo 497.º, n.º1 do Código Civil, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, que se forem várias as pessoas responsáveis pelos danos é solidária a sua responsabilidade.*
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:Ministério da Saúde e outros.
Recorrido 1:M.P.T.C. e C.M.F.T.C
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento a ambos os recursos.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

I-RELATÓRIO

O.M.P.T.C. e C.M.F.C., em representação da sua filha menor, M.L.T.C., instauraram contra Ministério da Saúde, Administração Regional de Saúde do Norte, Centro Hospitalar do (...), EPE, Centro de Saúde de (...) e Termas de (...) e Instituto de Genética Médica, ação administrativa comum pedindo a condenação dos Réus no pagamento da quantia de € 90.000,00, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros de mora, com fundamento em responsabilidade civil por factos ilícitos.
Como fundamento da sua pretensão, alegaram, em suma, que a menor M., nasceu no dia 21/12/2005 no Hospital (...), Centro Hospitalar do (...), EPE e que tendo realizado o “teste do pezinho” na área de extensão de saúde de (...) mas não tendo recebido qualquer comunicação nos 30 dias seguintes, entenderam que nenhum problema genético havia com a menor M.. Acontece que no dia 28/03/2006, a M. foi internada no Hospital de (...) do Porto, tendo-lhe sido diagnosticado hipotiroidismo congénito, que deveria ter sido detetado pelo IGM pela análise do teste do pezinho e, se assim tivesse ocorrido, o tratamento teria sido eficaz e não deixaria mazelas na menina.
Defendem que os Réus violaram os deveres a que estavam obrigados por lei, por omissão, pelo facto da não entrega ou não envio do teste do pezinho, situação que causou danos á M. e reflexamente aos seus pais.
Afirmam que se o teste tivesse seguido o seu percurso normal, ou seja, tivesse sido enviado e rececionado pelo IGM, teria sido detetada a existência da doença congénita e o tratamento teria sido feito atempadamente sem sofrimento para a M. e para os seus pais, sofrimento que deve ser compensado com a atribuição de uma indemnização à menor no valor de € 30.000,00 e aos pais no valor de € 10.000,00.
Sustentam que se a doença tivesse sido detetada logo após o nascimento praticamente não existiriam mazelas futuras e com a omissão, a M. ficará com mazelas físicas e psicológicas irreversíveis, pelo que deverá ser indemnizada em quantia não inferior a € 50.000,00.
Concluem que os Réus são responsáveis solidariamente pela omissão verificada quanto ao envio e receção do teste do pezinho, nos termos do art.º 7.º, n.º 1 e 3 da Lei n.º 67/2007 de 31/12, pois o 1.º, 2.º e 3.º Réus são as entidades que emanam as ordens e diretivas para o 4.º Réu e este tinha a obrigação funcional de enviar a recolha de sangue para o 5.º Réu. Por sua vez, este, se recebeu a recolha de sangue da M., deveria comunicar aos pais da menor os resultados do teste em 48 horas.
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O Réu, Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, IP (doravante INSA), que sucedeu nas atribuições do Instituto de Genética Médica Doutor Jacinto de Magalhães, contestou a ação defendendo que não tem de ser responsabilizado pela perda de correspondência pelos CTT, pois se não existe registo da entrada do “teste do pezinho” da menor M. no INSA é porque o ofício, caso tenha sido enviado pelo Réu Centro de Saúde, nunca chegou ao seu destino.
Afirma que não lhe pode ser assacada qualquer responsabilidade, ainda que por funcionamento anormal do serviço, nos termos do n.º 3 do art.º 7.º da Lei n.º 67/2007, e que o Centro de Saúde se contenta com o envio de uma carta simples, depositada em qualquer marco de correio, não tendo procedimentos internos para cuidar de saber se os testes são efetivamente recebidos pelo INSA.
Conclui que a haver diligência inferior àquela que era exigida para efeitos de funcionamento anormal do serviço, somente pode ser imputada ao Réu Centro de Saúde e por omissão do dever geral de cuidado, tendo sido por esse facto que o INSA não pôde realizar o diagnóstico precoce.
Estranha que os pais da M. nunca tivessem realizado diligências para saber os resultados do teste do pezinho, porquanto aquando da realização do mesmo, foi-lhes entregue uma ficha contendo um código de barras que permite a qualquer pai ter acesso, via internet, aos resultados do teste, ocorrendo uma concorrência de culpas entre o lesante e o lesado.
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O Réu “Centro Hospitalar do (...), EPE” contestou defendendo-se por exceção invocando a sua ilegitimidade passiva, por o Centro de Saúde de (...) e Termas de (...) estar integrado na estrutura da Administração Regional de Saúde do Norte, IP, nem lhe imputarem qualquer facto.
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O Réu “Administração Regional de Saúde do Norte, IP” contestou alegando que os pais da menor consultaram via internet o site do “diagnóstico precoce” tendo constatado que o mesmo aí não se encontrava e que o Centro de Saúde enviou o exame em causa para o INSA, concluindo que a ação assistencial do Centro de Saúde não foi ilícita, culposa, nem se verifica nexo de causalidade entre a ação assistencial realizada e os danos.
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O Réu “Ministério da Saúde” contestou defendendo-se por exceção invocando a sua ilegitimidade passiva, não havendo referência quanto a ele aos factos e aos danos geradores de responsabilidade.
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Foi apresentada réplica.
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Foi proferido despacho saneador que julgou procedentes as exceções dilatórias da ilegitimidade passiva dos Réus “Centro Hospitalar do (...), EPE” e “Ministério da Saúde”, fixando-se a matéria assente e base instrutória.
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Realizou-se instrução e audiência de discussão e julgamento.
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Os Autores requereram a ampliação do pedido para um montante global de € 955.639,92, porquanto à data da entrada da ação em Tribunal não era possível apurar com exatidão os danos causados na menor, mas com a prova adicional decorrente do relatório pericial resulta que o pedido inicial é demasiado baixo para ressarcir os autores de todos os prejuízos sofridos, computando a indemnização total em € 955.639,92, nos seguintes termos:
a) € 40.000,00 respeitante ao quantum doloris da menor M.;
b) € 905.639,92 a título de défice funcional permanente da integridade físico psíquica da M., tendo em conta o valor atribuído, o seu hipotético vencimento que aqui se calcula como consentâneo com um legítimo juízo de prognose positivo quanto à afirmação profissional da M., que provavelmente seria auferido ao longo da sua vida ativa, no mínimo o salário mínimo nacional de € 530,00 e aplicando o juro financeiro de 5%, sendo índice médio da vida humana de 70 anos;
c) € 10.000,00 pelo sofrimento e ansiedade causados aos Autores pela omissão
dos Réus.
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A ampliação do pedido foi deferida.
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O valor do processo é o indicado pelos Autores (€ 90.000,00 ), sem que ao mesmo tenha sido deduzida oposição pelo Réu correspondendo à quantia cujo pagamento se pretende obter: cfr. art.º 305.º, n.º 4 do NCPC ex vi art.º 1.º e 32.º, n.º 1 do
CPTA.
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Em 02/02/2017 foi proferida decisão do seguinte teor: “Nestes termos, e pelas razões expostas, julga-se a presente ação procedente e, em consequência, condena-se os Réus Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, IP e a Administração Regional de Saúde do Norte, IP a pagar, solidariamente, à menor M.L.T.C., aqui representada pelos seus pais O.M.P.T.C. e C.M.F.T.C. C., a quantia de € 80.000,00, e aos pais da menor a quantia de € 10.000,00, acrescidas de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral pagamento.
Relega-se para execução de sentença a determinação da indemnização por danos patrimoniais, dano biológico e danos não patrimoniais futuros, nos termos expostos.
Custas a cargo dos Réus, nos termos do art.º 527.º, n.º 1 e 2 do NCPC e Regulamento das Custas Processuais.»
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Inconformado com tal decisão, o Réu Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, I.P. (INSA) interpôs recurso de apelação, que motivou e concluiu nos seguintes termos:

“1.º A menor M.L.T.C. nasceu no dia 21/12/2005 no Hospital (...), Centro Hospitalar do (...), EPE em (...),
2.ºEm 28 de dezembro de 2005 foi feito o “teste do pezinho” à menor, no Centro de Saúde de (...) e termas de (...) – Unidade de (...), Extensão de Saúde de (...), pela Enfermeira M.F.Q.M.;
3.º Conforme se afere do documento “portes de correio”, preenchido Sr.ª N.A.M.S.S., em 28/12/2005 saiu apenas uma missiva do Centro de Saúde para o IMG, através de correio simples normal, (cfr. fls 287 e ss dos autos);
4.º Resulta provado que não existe qualquer registo de entrada do “teste do pezinho” da menor no IGM,
5.ºQuando o teste é rececionado pelo IGM, é detetada a existência de doença congénita;
6.º A maioria dos Centros de Saúde dão conhecimento, via fax, ao IGM do envio dos testes pelo correio e solicitam confirmação da competente receção,
7.º Prática que não era levada a cabo pelo Centro de Saúde de (...) e termas de (...) – Unidade de (...), Extensão de Saúde de (...).
8.º O próprio Tribunal a quo, na motivação da Sentença ora recorrida afirma desconhecer se o teste chegou ao IGM e não foi registada a sua entrada ou se não chegou sequer ao IGM4 - cfr. ponto 30);
9.ºResulta claro da sentença ora recorrida o seguinte: “desconhece-se o destino do teste, apenas se sabendo que o teste foi depositado na estação de correios de Vila Meã, e que o mesmo não chegou ao seu destino (…)”,
10.º E bem assim “(…) bastando que o teste do “pezinho” fosse recepcionado pelo IGM, não existiriam mazelas presentes e futuras desde que os pais cumprissem o tratamento(…)”5
11.ºPara que haja atribuição de responsabilidade administrativa por facto ilícito é necessária a verificação cumulativa, no caso concreto, da i) ilicitude, ii) da culpa, iii) do dano e iv) do nexo de causalidade entre o facto e o dano.
12.ºComeçando pelo iii) dano, parece que o Tribunal a quo entendeu estarmos perante uma situação de danos causados pelo funcionamento anormal do serviço,
13.ºOu seja, situações em que os danos não resultam do comportamento concreto de determinado agente, ou em que não haja a possibilidade de prova de autoria pessoal da ação ou omissão ilícita, mas em que é possível confirmar que os danos foram causados ou são atribuíveis ao mau funcionamento do serviço.
14.º Não é o caso.
15.º Conforme resulta da sentença, situações existiram, de acordo com o depoimento da Dr. M.P., Diretora do IGM, em que houve alguns casos de atraso no processamento dos testes, em virtude de estes terem sido registados e “terem ficado 2/3 dias na gaveta”.
16.º E, aqui sim, se essa omissão tivesse resultado em diagnósticos tardios poderia falar-se em danos causados pelo funcionamento anormal do serviço.
17.º Não foi o que sucedeu no âmbito dos presentes autos.
18.ºNo caso sub judice, o teste nem sequer chegou a dar entrada no IGM.
19.ºPelo que este, não tendo o IGM sido alertado fia fax do envio do teste, pelo Centro de Saúde de (...) e Termas de (...) – Unidade de (...), Extensão de Saúde de (...), que procedeu ao teste, como era prática de tantos outros Centros e Unidades de Saúde, não podia sequer saber da existência do mesmo.
20.ºCai assim, um dos pressupostos necessários para a imputação ao ora recorrente de qualquer tipo de responsabilidade civil extracontratual.
21.ºPor outro lado, no que concerne à i) ilicitude, mais concretamente na vertente subjetiva (Funcionamento anormal do serviço), tendo em conta que o que aqui se discute são as situações em que os danos não possam ser imputados, na prática, ao comportamento concreto de um titular de órgão ou agente determinado, ou não seja possível provar a autoria pessoal da ação ou omissão,
22.ºSempre se dirá que apenas se verificará a ilicitude quando os danos sejam imputáveis a uma atuação do serviço globalmente considerado (ainda que não seja possível identificar o autor material da ação ou omissão),
23.ºOra, no caso concreto, mais uma vez, tendo em conta que o teste não chegou sequer a entrar nos serviços do IGM,
24.º Não se pode considerar a atuação global daquela Unidade, porquanto não havia sequer matéria (o teste) sobre a qual pudesse haver qualquer tipo de falha de procedimento (entre a receção do edifício e o laboratório ou entre o laboratório e os serviços administrativos cuja função seria contactar os pais do resultado do mesmo, por exemplo).
25.ºCai pois, também o requisito da ilicitude.
26.ºEm relação à ii) culpa, aquela apenas existe havendo uma atuação (ou omissão) ilícita por parte do agente, o que já se verificou não existir.
27.ºPor outro lado, ainda que a culpa seja apreciada pela diligência que é exigível, em abstrato, a um titular de órgão, funcionário ou agente, e não segundo a diligência habitual do autor do dano,
28.º O facto suscetível de gerar o dever de indemnizar tem que ter sido praticado no exercício de funções ou por causa desse exercício,
29.º pelo que a conduta do agente se avalia atendendo à especial qualidade da pessoa que praticou (ou omitiu) o ato.
30.ºNeste caso, o IGM tinha a responsabilidade e alçada sobre os testes que lhe fossem enviados por todas as Unidades de Saúde onde eram efetuados,
31.ºMas essa responsabilidade apenas se podia iniciar, com a existência desses mesmos testes.
32.º O mesmo será dizer que, mesmo verificados os especiais dos deveres de vigilância (que fazem com que ocorra a inversão do ónus da prova), plasmados nos vários esclarecimentos, folhetos informativos e guias de procedimento enviados pelo IGM ao longo do tempo às várias Unidade de Saúde sobre as colheitas, e envio das mesmas para o IGM,
33.ºNo caso concreto, a responsabilidade sobre aquele teste, o teste da filha menor dos recorridos, só nasceria se o mesmo tivesse chegado aos serviços do IGM para processamento,
34.º O que já se viu, que não ocorreu.
35.ºNão há pois aqui qualquer culpa do recorrente que possa gerar responsabilidade civil do mesmo.
36.ºPor último, em relação ao iv) do nexo de causalidade entre o facto e o dano, se por um lado a teoria da causalidade adequada, pressupõe que a ação (omissão neste caso) tenha sido condictio sine qua non do resultado,
37.º O que é discutível no presente caso, face ao historial dos diferentes diagnósticos que recaíram sobre a menor M. L. desde os seus três meses, até ao último diagnóstico, muito em virtude dos diversos sintomas manifestados e não necessariamente subsumíveis ao hipertiroidismo congénito, e que apenas se admite por mero raciocínio argumentativo,
38.ºSempre se dirá que, para se imputar o resultado a uma determinada ação (neste caso, omissão) é necessário estabelecer uma relação de causalidade entre a omissão e esse resultado,
39.º a relação de causalidade entre a omissão e o resultado e a imputação objetiva do resultado ao autor da omissão que o causou seriam o pressuposto mínimo para afirmar a responsabilidade.
40.ºSucede, porém, que o autor, aqui recorrente, não chegou sequer a praticar a omissão, em virtude da inexistência do objeto sobre o qual teria o dever de agir.
41.ºNa realidade, poderemos inclusivé invocar, se quisermos, a verificação da interrupção do nexo de causalidade porquanto, por motivos aos quais o IGM foi alheio,
42.º A carta que continha o teste, e que terá sido enviada pelo Centro de Saúde para o IGM, não lá chegou.
43.ºOu seja, a carta extraviou-se, e esse facto resulta sim da acção (neste caso omissão), dos Correios, cuja obrigação perante o serviço contratado,
44.ºEra a de entregar aquela carta no seu destinatário.
45.º Não se verificando, a responsabilidade pela produção do resultado dano, não pode ser assacada ao recorrente,
46.ºMas sim a um agente externo, neste caso, os CTT.
47.º Não está assim verificado o nexo de causalidade entre o facto (omissão de análise de teste por falta de objeto – teste – por razões exclusivamente imputáveis a terceiros) e o dano.
48.ºPor tudo quanto se expôs, mal andou o Tribunal a quo em imputar qualquer tipo de responsabilidade ao ora recorrente.

Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Ex.as mui Doutamente suprirão, deve proceder o presente recurso, revogando-se a decisão condenatória, substituindo-se aquela por outra que absolva o ora recorrente dos pedidos formulados pelos ora recorridos. “
*
Igualmente inconformada com tal decisão, a Administração Regional de Saúde do Norte, I.P. interpôs recurso de apelação, que motivou e concluiu nos seguintes termos:

“1ª
O fundamento de vício, fragilidade ou falibilidade de procedimento / regulamento, não é subsumível ou equivalente ao conceito legal de «anormal funcionamento do serviço» a que indirectamente se referem as invocadas normas dos arts 2°/ 1 6° do DL n° 48051 de 21-11-1967;


Da lição da Prof.ª Carla Amado Gomes, tal como da anotação do Juiz Conselheiro C. Fernandes Cadilha pode retirar-se que o regime previsto nas normas dos n°s 3 e 4 do artigo 7° da Lei n° 67/2007, não sendo aplicável à situação dos autos, não contempla nem abarca a fragilidade de um regulamento/procedimento, mas apenas situações de «funcionamento anormal dos serviços» em concreto, no sentido material de interacção dos mesmos;


A Lei n° 67/2007 de 31-12, que consagra e inova nesta matéria, distingue clara e expressamente a responsabilidade por actos ilícitos da Administração, onde se contam aqueles do artigo 7° mas autonomizando-os dos decorrentes do exercício da função político-legislativa, aí se destacando aquela função (art 15° n°s 3 a 5) daquelas normas, incluindo a regulamentar, que densifiquem os direitos constitucionais, como nesta sede é o direito à saúde;


O direito aplicável e a jurisprudência produzida não consentem o entendimento seguido pela sentença recorrida segundo o qual a figura do «funcionamento anormal do serviço» se aplica à fragilidade, à falibilidade do procedimento regulamentar seguido!


Não pode reputar-se como «funcionamento anormal do serviço» a situação em que a Administração cumpre o regulamentado, estabelecido em procedimento próprio e, ainda assim, vem a ocorrer um dano, pelo risco intrínseco ao próprio procedimento, pela particular configuração que a regulamentação assume;


O procedimento estabeleceu regras para os Centros de Saúde e Hospitais, conexas com as regras para o IGM e pressupôs a mediação dos CTT, Correios de Portugal, com a expressa explicação de que foi pensado e abandonada a hipótese de envio por correio registado, com a intervenção material e autónoma dos CTT;


Constitui facto notório, desconsiderado pela sentença recorrida, da qual se extrai por aí estar implícita, a intervenção contratual e material de uma entidade exterior à Administração Pública, os Correios de Portugal, CTT, que faz a ligação entre a intervenção assistencial da Administração da saúde na colheita do «teste do pezinho» e o Instituto onde os testes são analisados, intervenção essa com o efeito de interromper o nexo causal de eventual ilícito praticado pela Administração da Saúde;


O fundamento do «funcionamento anormal do serviço» não dispensa a constatação da ilicitude, traduzida na «anormalidade» do funcionamento e em violação das regras de execução, em face do padrão do serviço, nem exclui a verificação do comportamento indevido, censurável, porque a culpa é sempre um ‘momento’ distinto e autónomo do pressuposto ‘ilicitude’;


Nem pode aplicar-se quando os factos em concreto tem agentes e autoria estabelecidos mas a fragilidade do procedimento é diluída entre legisladores, detentores do poder clínico, poder administrativo, que se sucederam ao longo dos anos, titulares do poder regulamentar e de estabelecimento de regras gerais e abstractas a cumprir pelos serviços;

10ª
O ónus da prova dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual da Administração antes de reforma de 2007 impendia plenamente sobre os lesados;

11ª
A ampliação do pedido só pode ter lugar até ao encerramento da audiência de discussão e julgamento em 1a instância e uma vez precludido não pode ressurgir com a «reabertura» da audiência para efeito de contraditório de um documento adicional, menos ainda sem audiência presencial; a ampliação só existe quanto a factos que sejam desenvolvimento de outros não contidos na formulação da petição inicial;

12ª
Não pode haver condenação além do pedido em processos cíveis ou análogos;

13ª
Não há condenação solidária sem base legal e ou contratual que a fundamente, o que não ocorre no caso dos autos; o Centro de Saúde cumpriu o essencial das suas obrigações ao proceder à realização do teste e de o ter enviado pelo correio, e a circunstância, admitida pelo Tribunal de esse envio nunca ter chegado ao Instituto réu, como pode, com essa factualidade de permeio — com uma verdadeira e própria interrupção do nexo causal, afasta qualquer responsabilidade do Instituto réu;

14ª
Não pode afastar-se a culpa dos lesados sempre que a sua acção complementar e a sua iniciativa se mostrem aptas a minimizar ou a evitar os danos;

15ª
Ao decidir como o fez, como se deixou explicitado, violou a a douta sentença recorrida as normas dos artigos 2°/ 1 6° do DL n° 48051 de 21-11-1967, e ainda as que consagram sobre os lesados o ónus da prova dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual da Administração e, ainda, os princípios da separação entre a ilicitude a e culpa em sede de responsabilidade da Administração.

Termos em que, e nos melhores da douta ponderação de V. Exas, na atendibilidade das enunciadas conclusões, e no seu objecto, deve proferir-se acórdão que revogue a decisão recorrida, com as legais consequências.
Assim se fazendo JUSTIÇA!”


12.A Magistrada do Ministério Público junto deste TCA Norte notificada nos termos e para efeitos do disposto no artigo 146.º do CPTA,….

15.A autora/Recorrida não contra-alegou.

17. Prescindindo-se dos vistos legais mas com envio prévio do projeto de acórdão aos juízes desembargadores adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
*

II.DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO.

Conforme jurisprudência firmada, o objeto de recurso é delimitado em função do teor das conclusões das Recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, nº 4 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do Código de Processo e de Procedimento Administrativo (CPTA) – e, por força do regime do artigo 149.º do CPTA, o tribunal ad quem no âmbito dos recursos de apelação não se queda por cassar a sentença recorrida, conquanto ainda que declare nula a sentença decide “sempre o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito”.
Nos presentes autos as questões que a este tribunal cumpre ajuizar, cifram-se em saber:
a) quanto ao recurso interposto pela Administração Regional de Saúde do Norte, I.P.:
- se o despacho que admitiu a ampliação do pedido formulado pelos Autores, ora Apelados, é legalmente inadmissível por ter sido apresentado já depois de encerrada a audiência de julgamento;
- se a decisão recorrida condenou para além do pedido, violando o artigo 609.º do CPC, o que suscita a questão de saber se a mesma enferma da nulidade prevista na alínea e) do art.º 615.º do CPC.
- se a decisão recorrida enferma de erro de julgamento de direito ao aplicar a figura do funcionamento anormal do serviço á falibilidade do procedimento regulamentar seguido, não dispensando aquela figura a prova da ilicitude nem da culpa;
- se a decisão recorrida enferma de erro de julgamento quanto ao pressuposto da culpa;
-se a decisão recorrida enferma de erro de julgamento ao condenar solidariamente os Réus quando não pode haver condenação solidária sem base legal ou contratual que a fundamente;
-se a decisão recorrida enferma de erro de julgamento por ter considerado não haver culpa do lesado (art.º 570.º do C.Civil).
b)quanto ao recurso interposto pelo INS Dr. Ricardo Jorge, I.P. ( INSA) se a decisão recorrida enferma de erro de julgamento de direito por ter considerado verificados os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito relativamente ao réu, uma vez que, diferentemente do que foi entendido pela decisão recorrida:
- não se está perante uma situação em que existam danos causados pelo funcionamento anormal do serviço, considerando que o teste do pezinho nem sequer deu entrada nos serviços do réu;
- não se verifica a ilicitude na atuação do réu uma vez que não pode considerar-se qual a atuação global do serviço daquela Unidade porque não havia sequer matéria para realizar o teste do pezinho;
- não se verifica o pressuposto da culpa, uma vez que a responsabilidade do IGM apenas se poderia iniciar com a existência dos testes;
- não se verifica o pressuposto do nexo de causalidade, uma vez que o IGM não chegou sequer a omitir um comportamento em virtude da inexistência do objeto sobre o qual teria o dever de agir, tendo havido uma interrupção do nexo causal, só podendo tal responsabilidade ser assacada ao agente externo CTT.
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III. FUNDAMENTAÇÃO
III.A DE FACTO

São os seguintes os factos dados como assentes pela sentença recorrida:
“1) O.M.P.T.C. e C.M.F.T.C.
C. são pais da menor M.L.T.C.-cf. matéria assente
no despacho saneador.
2) A menor, M., nasceu no dia 21/12/2005, no Hospital (...), Centro
Hospitalar do (...), EPE – cf. matéria assente no despacho saneador.
3) A recolha do teste do pezinho foi efetuada por uma das enfermeiras que prestava serviço no local, ou M. F.Q.M. ou M. A. M. M. - cf. matéria assente no despacho saneador.
4) Á data da recolha, a responsável administrativa da extensão de Saúde de (...), era a Assistente Administrativa Especialista N.A.M.S.S. - cf. matéria assente no despacho saneador.
5) Os pais da menor, após a recolha efetuada, aguardaram eventual comunicação
do IGM - cf. matéria assente no despacho saneador.
6) Sendo certo que tal comunicação só ocorreria se fosse detetada qualquer anomalia - cf. matéria assente no despacho saneador.
7) Os pais da menor não receberam qualquer comunicação nos 30 dias seguintes -cf. matéria assente no despacho saneador.
8) Após o nascimento da menor, na área da extensão de saúde de (...), procedeu-se à recolha e impregnação do cartão do teste com sangue da M., a enviar para o IGM (Instituto de Genética Médica – resposta ao quesito 1.º da base instrutória.
9) No dia 28 de Março de 2006, a M. foi internada no “Hospital de (...)” do Porto, em face de diversos incidentes patológicos que ocorreram – resposta ao quesito 2.º da base instrutória.
10) Até à data de internamento, a M. tinha sofrido “displasia do desenvolvimento da anca” que não está relacionada com o hipotiroidismo – resposta ao quesito 3.º da base instrutória.
11) Provado que a menor foi vigiada em consulta de ortopedia no Hospital (...) devido a um “click” da anca direita tendo usado um aparelho de tala de Kozia – resposta ao quesito 4.º da base instrutória.
12) Provado apenas que lhe foi detectado sopro protomesossistolico vibratório grau
IWI max no BEE baixo sem relação com o hipotiroidismo – resposta ao quesito 5.º da base instrutória.
13) Provado apenas que a causa do internamento deveu-se ao envio da menor para o serviço de urgência do “Hospital de (...)”, por apresentar um quadro de dismorfia associada a dificuldade em mamar, regurgitação fácil e má evolução ponderal (sem aumento de peso ) – resposta ao quesito 6.º da base instrutória.
14) A menor foi observada e foi-lhe aplicada a terapêutica de colocação de sonda naso-gástrica para alimentação; Protovit; Vigantol e ferro; Letter; Clorocil; Amoxicilina e ácido clavulâmico - resposta ao quesito 7.º da base instrutória.
15) Provado que após o internamento foi-lhe diagnosticado “hipotiroidismo” congénito - resposta ao quesito 8.º da base instrutória.
16) Foi-lhe iniciado tratamento com levotiroxina - resposta ao quesito 9.º da base instrutória.
17) Em face desse tratamento, assistiu-se a uma evolução favorável, com uma melhoria da interacção com o meio circundante - resposta ao quesito 10.º da base instrutória.
18) Provado que durante o internamento e após o início do tratamento foi retirada à menor a sonda naso-gástrica, tolerando a alimentação por via oral - resposta ao quesito 11.º da base instrutória.
19) Provado apenas que durante o período de internamento a menor teve aumento ponderal - resposta ao quesito 12.º da base instrutória.
20) Provado apenas que durante o internamento a menor necessitou de oxigenoterapia - resposta ao quesito 13.º da base instrutória.
21) Provado apenas que a menor teve necessidade de oxigenoterapia - resposta ao quesito 14.º da base instrutória.
22) Provado que no dia 13 do internamento foi diagnosticada à menor M., uma
ITU, por Eschericia Coli sensível à amoxilina e ácido clavulâmico, não existindo relação com o hipotiroidismo - resposta ao quesito 15.º da base instrutória.
23) Provado apenas que a menor efectuou exames à parte endocrinológica e infecciosa, exames para saber se tinha uma tiróide fora do local ou se não tinha tiróide, ressonância e ecografia, necessários para o diagnóstico- resposta ao quesito 16.º da base instrutória.
24) Foi efectuada consulta de Otorrinolaringologia e consulta de oftalmologia - resposta ao quesito 17.º da base instrutória.
25) Foi diagnosticado à M. “hipotiroidismo congénito” - resposta ao quesito 18.º da base instrutória.
26) Provado que foi dado alta quando a menor recuperou a capacidade alimentar - resposta ao quesito 19.º da base instrutória.
27) Provado que a doença diagnosticada à menor, o “hipotiroidismo congénito”, é detectada pelo IGM (Instituto de Genética Médica) através da análise do teste do “pezinho” quando este é recepcionado pelo IGM- resposta ao quesito 20º da base instrutória.
28) Provado apenas que a doença diagnosticada é detectada pelo IGM quando os testes são por este recepcionados - resposta ao quesito 21º da base instrutória.
29) Provado apenas que se tivesse sido detectada a doença logo após o nascimento, o tratamento teria sido eficaz e não deixaria mazelas na menina- resposta ao quesito 22º da base instrutória.
30) Provado apenas que no IGM não foi registada qualquer entrada do teste do “pezinho” referente a M.L.T.C. – resposta ao quesito 23.º da base instrutória.
31) Provado apenas que os pais da menor apresentaram a reclamação junta aos autos a fls. 310 do processo físico que a seguir se transcreve:
“ Texto integral no original; imagem”
-Resposta ao quesito 26.º da base instrutória.
32) Provado que em resposta à reclamação apresentada pela Autor a que se alude no ponto anterior, a Sr. Directora do Centro de Saúde de (...) e Termas de S.
Vicente respondeu o seguinte:
“Texto integral no original; imagem”
-Resposta ao quesito 27.º da base instrutória.
33) Dá-se aqui por integralmente reproduzido o documento mencionado no ponto
antecedente – resposta ao quesito 28.º da base instrutória.
34) Dá-se aqui por integralmente reproduzido o documento mencionado no ponto
antecedente – resposta ao quesito 29.º da base instrutória.
35) Dá-se aqui por integralmente reproduzido o documento mencionado no ponto
antecedente – resposta ao quesito 30.º da base instrutória.
36) Dá-se aqui por integralmente reproduzido o documento mencionado no ponto
antecedente – resposta ao quesito 31.º da base instrutória.
37) Dá-se aqui por integralmente reproduzido o documento mencionado no ponto antecedente – resposta ao quesito 32.º da base instrutória.
38) Provado que a ARS-N dirigiu ao Autor o seguinte ofício:
“Texto integral no original; imagem”
-resposta ao quesito 33.º da base instrutória.
39) Nessa carta, em anexo, é junta informação dos serviços jurídicos da ARS-N, dizendo que “Informou-nos a DSS que, apesar de, por várias vezes, interpelar o IGM no sentido do envio dos testes por correio registado – o que garantia maior segurança ao circuito – a resposta dada pelos responsáveis (Dr. Vaz Osório e Dr.ª. Maximina Pinto) é a de que tal solução burocratizaria o rastreio e seria incomportável para aquela instituição” - Resposta ao quesito 34.º da base instrutória.
40) Provado que quando o teste do “pezinho” realiza o seu percurso normal, ou seja, é enviado e recepcionado pelo IGM, é detectada a existência da doença congénita - Resposta ao quesito 35.º da base instrutória.
41) No período de internamento, de 28 de Março a 17 de Abril de 2006, a M. teve sofrimento (quantum doloris de grau cinco numa escala de sete graus de gravidade crescente, tendo em conta os tratamentos efectuados, o tipo de doença de que é portadora e o tipo de terapia que tem de efectuar, valoração do sofrimento físico e psíquico vivenciado durante o período de danos temporário, isto é, entre a data do evento e a cura ou consolidação das lesões) - Resposta ao quesito 36.º da base instrutória.
42) Provado que a M. teve displasia do desenvolvimento da anca, teve que usar uma tala de Kozia, sendo patologia que não tem relação com o hipotiroidismo primário congénito – Resposta ao quesito 37.º da base instrutória.
43) Provado que a menor foi vigiada em consulta de ortopedia no Hospital (...) devido a um “click” da anca direita tendo usado um aparelho de tala de Kozia – resposta ao quesito 38.º da base instrutória.
44) Provado apenas que lhe foi detectado sopro protomesossistolico vibratório grau IWI max no BEE baixo sem relação com o hipotiroidismo – resposta ao quesito 39.º da base instrutória.
45) Com o sofrimento da sua filha, os pais da menor sofreram igualmente e estiveram com ansiedade -resposta ao quesito 40.º da base instrutória.
46) Provado que se a doença de que a M. padecia fosse detectada logo após o seu nascimento, para tal bastando que o teste do “pezinho” fosse enviado e recepcionado pelo IGM, não existiriam mazelas presentes e futuras desde que os pais cumprissem o tratamento - resposta ao quesito 41.º da base instrutória.
47) Provado que a M. Luísa apresenta dificuldades mantidas em termos de motricidade grosseira, com linguagem expressiva pobre, atraso de desenvolvimento psicomotor que requerem terapias ocupacionais, de fala e fisioterapia para melhorar as suas capacidades; seguida por hipotiroidismo congénito, diagnóstico estabelecido tardiamente, com lesões sequelares, nomeadamente relativas a atraso de desenvolvimento psicomotor – défice funcional permanente da integridade físico e/ou psíquica da pessoa de 78 pontos, nos seguintes termos:
“Texto integral no original; imagem”
- resposta ao quesito 42.º da base instrutória.
48) O diagnóstico tardio da doença da M. o “hipotiroidismo congénito”, conduz às dificuldades referidas no ponto anterior, sendo de perspectivar uma revisão futura do caso, quando a menor atingir a idade adulta (a partir dos 18 anos de idade), pois com a terapêutica continuada (terapêutica essa que se mantém durante toda a vida) e sendo cumprida está descrita, na literatura internacional, uma melhoria clínica e sintomatológica da pessoa adulta, podendo o valor do défice funcional permanente ser alterado - resposta ao quesito 43.º da base instrutória.
49) A menor tem os atrasos referidos no ponto 47), não tendo deficiências de visão e auditivas relacionadas com o hipotiroidismo – resposta ao quesito 44.º da base instrutória.
50) Provado que se a menor não tiver apoios ao nível ocupacional, fala e fisioterapêutico a situação agravar-se-á e tendo-os a evolução é favorável, mas lenta - resposta ao quesito 45.º da base instrutória.
51) Se o IGM tivesse recebido a recolha de sangue da M. deveria comunicar telefonicamente aos pais da menor os resultados do teste em 48 horas - resposta ao quesito 46.º da base instrutória.
52) Provado que a 27 de Dezembro de 2005 (e não a 28 de Dezembro de 2005) os AA. apresentaram-se no Centro de Saúde para a realização à menor do exame do diagnóstico precoce, o denominado “teste do pezinho” - resposta ao quesito 47.º da base instrutória.
53) Provado apenas que à mãe da menor foi entregue pelo Centro de Saúde, aquando da realização do exame, o talão da própria recolha do sangue do bebé, onde consta a menção «NOTA CONSERVE ESTE TALÃO Para saber o resultado do teste do seu filho, consulte na Internet www.diagnosticoprecoce.org. e digite este número» - resposta ao quesito 49.º da base instrutória.
54) Provado que os AA. foram esclarecidos pelo Centro de Saúde de que poderiam conhecer esse resultado entre a 2.ª e 3.ª semanas no site de “diagnosticoprecoce”, mas para não se preocuparem porque se houvesse algum problema seriam sempre contactados pelo IGM - resposta ao quesito 50.º da base instrutória.
55) O diagnóstico precoce, denominado “teste do pezinho”, destina-se a combater doenças congénitas, entre as quais, a «fenilcetonúria» e o «hipotiroidismo», as quais provocam, se não diagnosticadas a tempo, consequências graves - resposta ao quesito 51.º da base instrutória.
56) Na primeira daquelas doenças, a «fenilcetonúria», a criança não consegue utilizar uma substância que ingere com as proteínas (leite e carne) e que, em excesso, é tóxica para o cérebro - resposta ao quesito 52.º da base instrutória.
57) Na segunda daquelas doenças, o «hipotiroidismo», há uma glândula, a tiróide, que funciona mal, não produzindo quantidades suficientes de uma substância que é fundamental para o bom desenvolvimento físico e mental, ou seja, o crescimento
traduzido na má evolução ponderal, constituída pelos parâmetros do peso e do perímetro cefálico - resposta ao quesito 53.º da base instrutória.
58) Provado que os AA. consultaram via Internet o site referido no quesito 53.º para saberem do resultado do exame e, nesta data, quando era introduzido o código de barras constante do talão, surgia no site a seguinte informação “não foram encontrados resultados para esse código de barras. É possível que o teste ainda não tenha sido processado. Nota: O resultado é colocado on line normalmente a partir da 4.ª semana a seguir à colheita e retirado ao fim de três meses” – resposta ao quesito 54.º da base instrutória.
59) Quanto mais cedo for realizado o diagnóstico e mais rápido for o início da terapêutica instituída, melhores serão os resultados - resposta ao quesito 57.º da base instrutória.
60) Provado que o Centro de Saúde enviou os resultados da colheita para o laboratório por correio simples normal expedindo-os para o Instituto de Genética Médica e que a “Comissão Nacional para o Diagnóstico Precoce” e a ARSNorte estabeleceram que o envio se fizesse através de correio simples azul - resposta ao quesito 58.º da base instrutória.
61) A reclamação do A. marido deu origem a um procedimento de avaliação dos factos ocorridos - resposta ao quesito 59.º da base instrutória.
62) Provado apenas que a displasia do desenvolvimento da anca, o sopro sistólico grau II/VI e os pulsos femorais débeis detectados na menor não estão relacionados com o hipotiroidismo diagnosticado à M. - resposta ao quesito 60.º da base instrutória.
63) Provado que em resposta à reclamação apresentada pelo Autor, a Sr. Directora do Centro de Saúde de (...) e Termas de (...) respondeu o seguinte:
“Texto integral no original; imagem”
-Resposta ao quesito 61.º da base instrutória.
64) Provado que o Conselho de Administração da ARS-Norte emitiu o seguinte ofício dirigido ao Autor do qual se extrai o seguinte da informação anexa
“Texto integral no original; imagem”
-Resposta ao quesito 63.º da base instrutória.
65) Provado que tal diligência (conhecimento, via fax, ao IGM do envio do teste e solicitação da confirmação da recepção) não foi seguida pelo Centro de Saúde de (...) e Termas de (...) – Unidade de (...), Extensão de Saúde de S. Martinho de (...), não sendo um procedimento que estivesse estabelecido pela ARSNorte e pelo IGM -resposta ao quesito 64.º da base instrutória.
66) Provado que o Centro de Saúde enviou os resultados da colheita para o laboratório por correio simples normal expedindo-os para o Instituto de Genética Médica e que a “Comissão Nacional para o Diagnóstico Precoce” e a ARSNorte estabeleceram que o envio se fizesse através de correio simples azul - resposta ao quesito 65.º da base instrutória.
67) Provado apenas que aquando da realização do “teste do pezinho” à menor foi entregue aos pais uma ficha contendo um código de barras, código este que permite a qualquer pai ter acesso, via Internet, aos resultados negativos do teste - resposta ao quesito 66.º da base instrutória.
68) Provado que além do acesso via Internet, os AA. também podiam conhecer o resultado do teste por intermédio de contacto telefónico com o Centro de Genética Doutor Jacinto Magalhães, mas esta informação não foi prestada aquando do teste do pezinho- resposta ao quesito 67.º da base instrutória.
69) Provado apenas que na primeira consulta naquele Centro, foi constatada na menor baixa estatura, dismorfia facial e sopro sistólico e perante a baixa estatura, suspeita de cardiopatia e dismorfia facial foi iniciada a investigação através de um estudo molecular -resposta ao quesito 70.º da base instrutória.
70) Provado apenas que perante a baixa estatura, suspeita de cardiopatia e dismorfia facial foi iniciada a investigação através de um estudo molecular - resposta ao quesito 71.º da base instrutória.
71) Provado que a 22 de Junho de 2006, data da segunda consulta da menor no Centro de Genética Doutor Jacinto Magalhães, os AA. informaram o Dr. M.R. que havia sido diagnosticado à M. hipotiroidismo congénito no Hospital de (...) e que já havia iniciado tratamento - resposta ao quesito 72.º da base instrutória.
72) Provado que naquela segunda consulta a mãe da menor comunicou ao Dr. M.R. que presta serviço na Unidade de Genética Médica do 2.º Réu que havia sido diagnosticado à M. hipotiroidismo congénito no Hospital de (...) e que já havia iniciado tratamento - resposta ao quesito 73.º da base instrutória.
73) O diagnóstico precoce foi realizado no Hospital de (...), tendo sido diagnosticado “hipotiroidismo” - resposta ao quesito 74.º da base instrutória.
74) Desde o internamento da menor no “Hospital de (...)” que esta se encontra medicada - resposta ao quesito 75.º da base instrutória.
75) A menor teve em 22 de Fevereiro de 2007 (3.ª consulta) consulta de seguimento para vigilância da sua evolução – resposta ao quesito 76.º da base instrutória.
76) Provado apenas que a 16 de Outubro de 2007, aos 21 meses de vida, na 4.ª e última consulta, a menor apresentava parâmetros de crescimento normais adequados à idade e um QI considerado normal, desconhecendo-se o seu desenvolvimento psicomotor - resposta ao quesito 77.º da base instrutória.
77) Provado apenas que à menor foi-lhe diagnosticado “hipotiroidismo congénito” durante o internamento- resposta ao quesito 78.º da base instrutória.
78) Provado que o quadro clínico do «hipotiroidismo congénito» não tratado inclui atraso do crescimento e atraso na maturação óssea-resposta ao quesito 79.º da base instrutória.
79) Provado apenas que lhe foi detectado sopro protomesossistolico vibratório grau IWI max no BEE baixo sem relação com o hipotiroidismo -resposta ao quesito 80.º da base instrutória.
80) Provado apenas que o tratamento do «hipotiroidismo congénito» consiste na administração de L-tiroxina, iniciado o mais precocemente possível - resposta ao quesito 81.º da base instrutória.
81) Provado que é de 12 (doze) dias de vida a média de início da substituição hormonal - resposta ao quesito 82.º da base instrutória.
Aditam-se os seguintes factos, os quais resultaram da instrução:
82) Por ofício datado de 13/07/2007, a Administração Regional de Saúde do Norte comunicou ao Centro de Saúde de (...) e Termas de (...) para divulgação o seguinte:
“Texto integral no original; imagem”
-Cf. fls. 302 a 304 do processo físico, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
83) Por ofício datado de 28/07/2005, a Administração Regional de Saúde do Norte – Sub-região de Saúde do Porto comunicou ao Centro de Saúde de (...) e Termas de (...) o seguinte:
“Texto integral no original; imagem”
- Cf. fls. 305 a 307 do processo físico, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
84) Por despacho do Sr. Ministro dos Assuntos Sociais de 13/04/1981 foi criada junto do Instituto de Genética Médica a Comissão Nacional para o Diagnóstico Precoce a quem compete:
(i) Elaborar o plano de cobertura de todo o território nacional do diagnóstico do hipotiroidismo;
(ii) Definir o número e a localização dos centros regionais;
(iii) Controlar a execução do plano e cobertura e a qualidade e preço das análises em causa;
(iv) Elaborar os protocolos que os centros de rastreio deverão seguir;
(v) Propor ao Ministros dos Assuntos Sociais (ou ao Secretário de Estado da saúde) todas as medidas directa ou indirectamente relacionadas com aquele diagnóstico e que entenda de utilidade para o programa de cobertura;
(vi) Administrar as verbas que venham a ser afectadas ao diagnóstico precoce das patologias referidas;
(vii) Contactar e estabelecer colaboração com as organizações europeias congéneres, quer para estabelecimento comparativo de frequências, quer para planificação de ampliações de programa, quer para controles de qualidade de exames. Cf. fls. 711 do processo físico, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
85) Pelo mesmo despacho foi designada a composição da Comissão Nacional, a saber: Dr. J.A.F.A.M., director do Instituto de Genética Médica, Dr. R.M.C.V.O., chefe de clínica de genética, e Prof. J.L.A.L.R., professor catedrático de Genética da Faculdade de Ciências Médicas, da Universidade Nova de Lisboa.
86) Do site do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge consta a seguinte informação “ O Diagnóstico Precoce visa identificar doenças nas primeiras semanas de vida do bebé de forma a possibilitar uma intervenção precoce e a impedir a ocorrência de atraso mental, doença grave irreversível ou morte da criança” – cf. www.insa.pt.
87) Do site “diagnosticoprecoce.pt” consta a seguinte informação “Iniciou-se em 1979, por iniciativa do Instituto de Genética Médica, incluindo inicialmente apenas o rastreio da Fenilcetonúria (PKU) e em 1981 iniciou-se o rastreio do Hipotiroidismo Congénito” – cf. www.diagnosticoprecoce.pt.
88) Do folheto informativo de fls. 649 do processo físico que, em 2005, era entregue aos Centros de Saúde extrai-se o seguinte “um programa deste tipo, com análises gratuitas e abrangendo todos os recém-nascidos, não permite o envio de resultados. Os pais só serão contactados se as análises não forem normais ou se houver necessidade de qualquer confirmação laboratorial. Se for detectada alguma das referidas doenças, os pais serão imediatamente avisados, directamente pelo telefone ou através do Centro de Saúde, de modo a iniciarem o tratamento o mais precocemente possível.
Poderão, contudo, conhecer os resultados normais através da internet, 4 semanas após a picada no pezinho, consultando o endereço www.diagnosticoprecoce.org” e introduzindo o número do código anexo à ficha, que lhes será entregue na altura da colheita” - Cf. fls. 649 do processo físico, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
89) À data dos factos, o IGM aceitava que o risco de extravio do teste existia e sabia que havia perdas.
90) A partir de 2004, a Comissão de Diagnóstico Precoce implementou o site “diagnosticoprecoce”.
91) À data dos factos, os resultados positivos não eram divulgados no site do “diagnostico precoce”, apenas os negativos, pelo que em caso de teste positivo o contacto era sempre telefónico.
92) À data dos factos, o IGM não tinha capacidade para inserir prontamente os testes negativos no site, pelo que demorava cerca de um mês a inserir a informação no site do “diagnostico precoce”.
93) À data dos factos, o site “diagnostico precoce” estava em funcionamento há cerca de um ano e havia fichas antigas (sem código de barras) nos centros de saúde que eram entregues aos pais enquanto as mesmas não se esgotassem (demoraram cerca de 2/3 anos a esgotar as fichas antigas).
94) O Dr. M.R., médico, a exercer funções no IGM, consultou a M. aos 3 meses, no dia 23/03/2006, no Centro de Genética Médica por ter sido encaminhada pelo Dr. B. em virtude de revelar baixa estatura, dismorfia facial e suspeita de cardiopatia.
95) O Dr. M.R. não suspeitou, na altura, de hipotiroidismo, pois quando questionou os pais sobre o rastreio, estes disseram que o tinham feito, daí que o médico tenha ficado descansado quanto a esse assunto, não tendo feito mais perguntas, pois no seu entender o habitual, quando há alguma alteração, é os pais serem contactados e se não foram é porque o resultado do rastreio teria sido negativo.

Factos não provados

A) Os pais da menor insistiram para que procurassem melhor, uma vez que tinham feito o teste do “pezinho” à sua filha no Centro de Saúde de (...) – quesito 24.º da base instrutória.
B) No IGM informaram os pais da menor, de forma peremptória, que não tinha havido qualquer recepção do teste da sua filha em nenhuma data posterior ao nascimento desta - quesito 25.º da base instrutória.
C) As instruções que lhes foram dadas foram as de que o exame em causa deve ter lugar entre o 3.º e o 6.º dias de vida- quesito 48.º da base instrutória.
D) Ao longo do primeiro mês de vida, a menor já apresentava sinais de má evolução ponderal que foi diagnosticada pelo médico assistente da menor - quesito 55.º e 56.º da base instrutória.
E) Existe registo da entrada do “teste do pezinho” da menor M.L.T.C. nos serviços do Centro de Genética Médica Jacinto Magalhães - quesito 62.º da base instrutória.
F) Aquando da consulta de 16/10/2007, a informação verbal da A. mulher era a de que o QI da M. era de 88, normal - resposta ao quesito 83.º da base instrutória.
G) Aquando da deslocação ao “Hospital de (...)”, os AA. faziam-se acompanhar daquela ficha - resposta ao quesito 68.º da base instrutória.
H ) Aquando da primeira consulta da menor (aos 3 meses e dois dias de vida) no Centro de Genética Doutor Jacinto Magalhães, a 23 de Março de 2006, os AA. procuraram saber nesta data o resultado do teste junto daquele Centro- resposta ao quesito 69.º da base instrutória.
*
Não existem quaisquer outros factos provados ou não provados relevantes para a boa decisão da causa.»
**
III.B- DE DIREITO

1.Da questão de saber se o despacho que admitiu a ampliação do pedido formulado pelos Autores, ora Apelados, é legalmente inadmissível por ter sido apresentado já depois de encerrada a audiência de julgamento.

A 30.06.2016, a Meritíssima Juiz a quo deferiu a ampliação do pedido formulada pelos Autores, proferindo despacho com o seguinte teor: «Vieram os autores requerer a ampliação do pedido para um montante global de € 955.639,92, porquanto à data da entrada da ação em Tribunal não era possível apurar com exatidão os danos causados na menor, mas com a prova adicional decorrente do relatório pericial resulta que o pedido inicial é demasiado baixo para ressarcir os autores de todos os prejuízos sofridos, computando a indemnização total em € 955.639,92.
Cumprido o contraditório, importa decidir.
Nos termos do art.º 265.º, n.º2 do NCPC “ O autor pode, em qualquer altura, reduzir o pedido e pode ampliá-lo até ao encerramento da discussão em 1.ª instância se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo”.
(…) No caso dos autos, não há duvida que a ampliação do pedido se contém na mesma causa de pedir constituindo apenas um desenvolvimento do pedido inicial por, na ótica dos autores, se tratar do ressarcimento de sequelas apuradas no relatório pericial e que os autores não poderiam ter reclamado na petição inicial.
Em face do exposto, defere-se a ampliação do pedido passando este a ser de € 955.639,92, nos moldes expostos no requerimento de fls. 789 e 790 do processo físico».
A Apelante ARSN considera que o referido despacho padece de erro de julgamento uma vez que a ampliação do pedido só pode ter lugar até ao encerramento da audiência de discussão e julgamento em 1. ª instância e uma vez precludido não pode ressurgir com a «reabertura» da audiência para efeito de contraditório de um documento adicional, menos ainda sem audiência presencial, como aconteceu. Por outro lado, a ampliação só existe quanto a factos que sejam desenvolvimento de outros não contidos na formulação da petição inicial.
Vejamos se assiste razão à Apelante nesta crítica que aduz à sentença sob sindicância, antecipando-se, desde já, que considerando o momento processual em que os Autores requereram a ampliação do pedido e as razões que presidiram a essa ampliação, bem andou o tribunal de 1.ª instância ao deferir a requerida ampliação do pedido.
Vejamos.
Conforme resulta do disposto no n.º 2 do art.º 265 do CPC, o autor pode, a todo o tempo, reduzir o pedido, como, além disso, pode ampliá-lo até ao encerramento da discussão em 1.ª instância se a requerida ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo, ou se se tratar da aplicação de sanção pecuniária compulsória.
Entende-se que a ampliação do pedido é mero desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo quando ele emana da mesma causa de pedir e está contido virtualmente no pedido inicialmente formulado, ancorando-se no mesmo facto ou ato jurídico já contido na petição inicial e que configuram a causa de pedir em que o autor estriba o seu pedido indemnizatório. Cfr. Ac. do TRL, de 06.06.2007, processo 5202/2007-1, in base de dados dgsi; TRL, de 28.02.2013, processo 2112/09;
Por outro lado, no ” processo ordinário a discussão encerra-se quando se fixarem os debates sobre a matéria de facto (art.º 652.º, n.º3 do CPC) coincidindo com esse momento o limite colocado no art.º 273.º, n.º2 do Cód. Proc. Civil para a ampliação do pedido (Ac. STJ, de 5.12.1995:BMJ, 452.º-405” Cfr. Novo Código de Processo Civil, anotado, de Abílio Neto, 2.ª Edição Revista e Ampliada, Janeiro de 2014”, pág. 687, nota 12..
No caso presente, é certo que a audiência final foi encerrada mas essa mesma audiência final veio a ser reaberta por despacho de 19.12.2014, da Meritíssima juiz a quo, ao abrigo do disposto nos artigos 607.º, n.º1 e 411.º do NCPC, determinando a realização de novas diligências de prova ( cfr. fls. 704 do suporte físico do processo), e posteriormente, por despacho de 19.06.2015, ordenou a notificação do Gabinete Médico-Legal de (...) para « com referência aos quesitos elencados a fls. 271 do processo físico e às conclusões do relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito civil, quantificar o quantum doloris e o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica ( tradicionalmente designada por Incapacidade Permanente Geral), nos termos do D.L. n.º 352/2007 de 23/10 …, elementos essenciais para a boa decisão da causa». Após nova insistência do tribunal (despacho de 11.12.2015, fls. 736 do suporte físico do processo), ao gabinete médico-legal, foi junto aos autos, em 18.01.2016, o “Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Cível”, tendo as partes sido notificadas do mesmo para, querendo, reclamarem ou pedirem esclarecimentos, nenhuma delas tendo reagido contra o referido relatório.
Após, a Senhora juiz a quo proferiu despacho de 07.04.216 onde “atendendo a que foi reaberta a audiência com prova pericial” ordenou a notificação das “partes para apresentarem alegações complementares ou informarem que prescindem de as apresentar”, tendo sido nessa sequência que os Autores requereram a ampliação do pedido.
Deste modo, as razões que impedem que após o encerramento da discussão da audiência de julgamento se possa ampliar o pedido, assim como impedem que nos termos do disposto no artigo 425.º do CPC se juntem documentos aos autos não obstante os mesmos serem objetivamente ou subjetivamente supervenientes a esse encerramento, que se prendem com o princípio do contraditório, uma vez que após esse encerramento a parte contrária já não tem oportunidade de quanto a eles se pronunciar, não se verificam no caso vertente.
Com efeito, reaberta a audiência final iniciou-se nova fase de instrução da causa, em que todos os direitos de defesa das partes se encontravam plenamente assegurados, podendo, no caso, a Apelante não só pronunciar-se quanto à ampliação do pedido operada pelos Apelados, como inclusivamente carrear para os autos factos e meios de prova tendentes a demonstrar não existir fundamento fático ou legal para essa ampliação. Logo, no caso, a Apelante teve a oportunidade de exercer cabalmente o seu direito de defesa e de influir positivamente no despacho recorrido que se pronunciou quanto àquela ampliação, admitindo-a.
Acresce que nos presentes autos, os Autores deduziram pedido de indemnização cível por todos os danos patrimoniais e não patrimoniais que para si e sua filha emergiram dos comportamentos alegadamente ilícitos que descrevem na petição inicial. Quem formula semelhante pedido pretende, pois, ser indemnizado por todas as consequências danosas dos factos ilícitos e culposos que no caso imputam às Rés.
A ampliação do pedido, foi operada pelos Apelados na sequência do pedido oficiosamente determinado pela 1.ª instância para que o INMLCF concretizasse o “quantum doloris” adveniente para a apelada menor em consequência das lesões e sequelas decorrentes dos comportamentos imputados aos Apelantes, logo em sede de petição inicial.
A ampliação do pedido é, pois, mero desenvolvimento da causa de pedir que já se encontrava alegada pelos Apelados na petição inicial, estando esse pedido ampliado já contido, virtualmente, no pedido inicial por eles formulado com base nessa causa de pedir.
Neste sentido, e com interesse para o caso, sumariou-se em aresto da Relação de Guimarães que “I- Constitui desenvolvimento do pedido primitivo o pedido em que se pede a ampliação do valor de obras, invocadas na petição inicial, decorrente de uma perícia realizada no processo. II- A ampliação do pedido é admissível mesmo quando o valor resultante da ampliação já pudesse ter sido reclamado na petição inicial”. Cfr. Ac. da Rel. Guimarães, de 03.05.2011, processo 1150/08.0TBVCT-A.G1, disponível in www.dgsi.pt.
No mesmo sentido, veja-se acórdão da Relação de Coimbra em que se sumariou a seguinte jurisprudência: “II- Quem exigir indemnização nos termos do art. 569.º do CC não necessita de indicar a importância exata, nem o facto de ter pedido certo quantitativo impede o lesado de reclamar quantia mais elevada se o processo vier a revelar danos superiores aos inicialmente previstos. III- A ampliação do pedido pode ter lugar quando ambos os pedidos estejam integrados no mesmo complexo de factos. IV- Tendo o lesado em acidente de viação tomado conhecimento de novos danos antes do encerramento da discussão em 1.ª instância pode ampliar o pedido quanto a eles”. Cfr. Ac. Rel. Coimbra de 26.02.2008, CJ, 2008, 1.º-38.
Resulta do que se vem dizendo que, porque a ampliação do pedido é mero desenvolvimento daquele que já vinha formulado pelos Apelados na petição inicial em decorrência da causa de pedir por eles nela formulada e porque essa ampliação ocorreu em momento processual em que, fruto da reabertura da audiência final ainda se encontravam em curso diligências de instrução e onde consequentemente os Apelantes podiam não só pronunciar-se quanto a essa ampliação, como requerer meios de prova tendentes a demonstrar a inexistência de fundamentos fáticos ou jurídicos que suportassem essa ampliação, estando o seu direito ao contraditório quer na sua dimensão negativa, de indefesa- art.º 3.º, n.º1 do CPC- quer na sua dimensão positiva de influência- art.º 3.º, n.º3 do CPC- cabalmente assegurado, bem andou a 1.ª instância ao deferir essa ampliação.
Resulta do que se vem dizendo que na improcedência dos fundamentos de recurso, aduzidos pelo Apelante, impõe-se confirmar o despacho recorrido.
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Da Nulidade da Decisão Recorrida decorrente de condenação além do pedido.
(artigo 609.º e al. e) n.º1 do art.º 615.º do CPC)

De acordo com o disposto no art.663º, n.º 2 do NCPC, o “acórdão principia pelo relatório, em que se enunciam sucintamente as questões a decidir no recurso, expõe de seguida os fundamentos e conclui pela decisão, observando-se, na parte aplicável, o preceituado nos artigos 607º a 612º” do NCPC.

Por sua vez, estabelece o art.º 608º, n.º1 do NCPC, que, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do art.º 278º do NCPC, a sentença conhece, em primeiro lugar, das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica (n.º 1) e que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (n.º 2).

Como é bom de ver, são razões de economia e de celeridade processual que impõem a solução jurídica enunciada naquele n.º 1 do art. 608º, dado que, em caso de procedência de alguma exceção que leve à absolvição da instância, automaticamente ficará prejudicado o conhecimento dos restantes fundamentos de recurso invocados pelos recorrentes.

Dentro desta filosofia, compreende-se que sendo suscitadas nulidades da sentença recorrida, a jurisprudência considere que se deverá conhecer dessas nulidades, antes de se entrar no conhecimento dos restantes fundamentos de recurso, uma vez que, a procederem as nulidades invocadas, tal poderá impedir, tornando inútil, o conhecimento daqueles outros fundamentos de recurso aduzidos pelo Recorrente.

Resulta do que se vem dizendo, que tendo a Apelante imputado à decisão recorrida desvio da legalidade por condenação para além do pedido, o que consubstancia nulidade da sentença nos termos da alínea e), n.º1 do art.º 615º do NCPC, impõe-se conhecer, de imediato, desse pretenso vício de invalidade da sentença recorrida, uma vez que, reafirma-se, caso proceda, tal poderá implicar que o conhecimento dos restantes fundamentos de recurso invocados pela Apelante fiquem prejudicados.

No caso, a Apelante imputa o vício da nulidade da sentença recorrida com fundamento em condenação ultra petitum, sustentando que os autores formularam um pedido global de €90.000,00, sendo 50.000,00 € a título de danos patrimoniais, €30.000,00 a título de danos não patrimoniais devidos á menor e € 10.000,00 a título de danos não patrimoniais aos pais da menor. Porém, advogam que na sentença recorrida, a 1.ª instância desviou-se do direito aplicável ao condenar o Réu na quantia de € 80.000,00 a título de compensação por danos não patrimoniais sofridos pela autora menor, com o que infringiu o disposto no art.º 609.º, n.º1 do CPC., mas sem manifesta razão.

Com efeito, nos termos do disposto no artigo 609.º, n.º 1 do CPC “ A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir”, sendo nula aquela, quando “ O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido” (art.º 615, n.º1, al. e) do CPC).
Deste modo, é certo que decorrência dos princípios do dispositivo e do contraditório o juiz não pode condenar em prestação quantitativamente superior ao pedido, sequer em prestação qualitativamente diversa à pedida. Contudo, conforme é entendimento doutrinário a condenação quantitativamente superior à pedida carece de ser aferida por referência ao pedido global formulado pelo autor, não estando o juiz limitado ao valor de cada uma das parcelas em que se decompõe o pedido.
Nesse sentido existe abundante jurisprudência.
Assim o STJ, em aresto de 10.10.2002 decidiu que “I. Os limites da condenação estabelecidos pelo art.662.º do CPC entendem-se reportados à soma global do pedido, que não às parcelas e que se desdobre o cálculo do prejuízo.. Cfr. Ac. do STJ, de 10.10.2002, processo n.º 02B2643 disponível in www.dgsi.pt;
Em igual sentido, o mesmo STJ, em acórdão de 04.11.2003, sumariou a seguinte jurisprudência: “ I- Em acidente de viação, o juiz pode valorizar qualquer das parcelas em que se desdobra o pedido global de indemnização em montante superior ao indicado pelo próprio peticionante, mas o valor total alcançado não pode em caso algum ser superior ao pedido, pois, de outra forma, terá de ser reduzido para o valor do pedido, em obediência ao disposto no n.º1 do art. 661.º do CPC.” Cfr. Ac. do STJ, de 16.03.2004, processo 04A365 disponível in www.dgsi.pt,
Também em acórdão deste TCAN de 18.10.2019 se professou que “ A condenação judicial não pode exceder, face ao disposto no artigo 609.º, n.º1 do Código de processo Civil ( de 2013), o valor global do pedido e não o valor de cada uma das parcelas que integram a totalidade do pedido” Cfr. processo n.º 00283/11.0BEVIS, disponível in www.dgsi.pt;

No caso, os Autores pediram a condenação dos Réus a pagar-lhes um quantitativo indemnizatório global de € 935.639,92.
Deste modo é apodítico que no caso a condenação dos Apelantes a pagar a quantia compensatória de € 80.000,00 por danos não patrimoniais sofridos pela menor e de €10.000,00 pelos danos não patrimoniais sofridos pelos pais daquela, quando se relegou a liquidação dos restantes danos sofridos para incidente de liquidação não configura condenação ultra petitum, reafirma-se.
Essa condenação ultra petitum apenas ocorrerá uma vez operada a liquidação dos danos patrimoniais sofridos, acrescidos dos montantes compensatórios ora liquidados na estrita medida em que a soma total desses créditos indemnizatórios exceda os enunciados € 935.639,92.
Termos em que sem necessidade de mais desenvolvimentos se impõe julgar improcedente a invocada nulidade de sentença.

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DOS ERROS DE JULGAMENTO DE DIREITO
Á presente situação, como bem decidiu o Tribunal de 1.ª instância, aplica-se o regime da responsabilidade civil do Estado e demais pessoas coletivas por atos ilícitos, no domínio dos atos de gestão pública, previsto no Decreto-Lei n.º 48.051, de 21.11.1967.
Nos termos do artigo 2.º do D.L. 48051 O Estado e demais pessoas coletivas públicas, respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas aos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de atos ilícitos culposamente praticados pelos respetivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício.
Este regime correspondia, em traços gerais, ao conceito civilístico de responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, consagrado no artigo 483.º/1 do Código Civil. Cfr. Ac. do STA de 27.01.1987, in Ac. Dout. 311, 1384;

São seus pressupostos: a) o facto, comportamento ativo ou omissivo voluntário; b) a ilicitude, traduzida na ofensa de direitos de terceiros ou disposições legais destinadas a proteger interesses alheios; c) a culpa, nexo de imputação ético-jurídica do facto ao agente ou juízo de censura pela falta de diligência exigida a um homem médio ou a um funcionário ou agente típico; d) a existência de um dano, i.e., lesão de ordem patrimonial ou moral, esta quando relevante; e) o nexo de causalidade entre a conduta e o dano, segundo a teoria da causalidade adequada.
Estes pressupostos da responsabilidade civil, mantêm-se, com algumas alterações no Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, regulado pela Lei n.º 67/2007.
Importa, porém, considerar o disposto no artigo 6º do mesmo diploma que comporta uma definição de ilicitude segundo a qual “é ilícito o ato que viole normas legais e regulamentares ou princípios gerais aplicáveis, bem como aquele que viole as regras de ordem técnica e de prudência comum”. Trata-se de um conceito de ilicitude mais amplo que o consagrado na lei civil. (vd. Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, 10º ed., vol. II, p. 1125; ac. Supremo Tribunal Administrativo de 10.05.1987, in Ac. Dout. 310, p. 1243 e segs.).
A este respeito, veja-se o acórdão do STA de 07.11.2019 Cfr. Ac. STA, de 07.11.2019, processo n.º 0145/04.6BESNT., onde pese embora se diga que a literalidade deste preceito inculca a ideia de que «onde haja um acto ilegal aí mora, também, a ilicitude» [Marcello Caetano, Manual, II volume, 9ª edição, página 1201], não deixou de se assinalar que o « STA optou - desde há muito - por afastar uma interpretação do citado artigo 6º que equipare ilegalidade a ilicitude, adoptando um conceito de ilicitude que aproxima a responsabilidade do Estado e demais entidades públicas [por actos de gestão pública] da responsabilidade civilística, exigindo que a ilegalidade se traduza na violação de direitos subjectivos do lesado ou, pelo menos, de interesses cuja protecção a norma violada se destina a proteger.
Seguiu, assim, a orientação que é preconizada pelo Professor GOMES CANOTILHO, que, embora reconhecendo que «no nosso direito positivo, facilmente se constata que o ilícito definido no artigo 6º do DL nº48.051 […] é mais amplo que o ilícito civil definido no artigo 483º do Código Civil» sustenta que não se deverá adoptar uma «completa equiparação da ilegalidade à ilicitude», antes se devendo exigir uma «relação mais íntima do indivíduo lesado para com a administração do que a simples legalidade e regularidade do funcionamento dos órgãos administrativos». Segundo este Professor, «a violação dos preceitos jurídicos não é, por si só, fundamento bastante da responsabilidade. Quer se exija a violação de direitos subjectivos, quer a violação de um dever jurídico ou funcional para com o lesado, quer ainda uma falta da Administração, faz-se intervir sempre um elemento qualificador e definidor de uma relação mais íntima do indivíduo prejudicado com a Administração do que a simples legalidade e regularidade do funcionamento dos órgãos administrativos» - esta «posição» é também defendida por outros autores, nomeadamente Margarida Cortez, e foi seguida em Pareceres do Conselho Consultivo da PGR - nº46/80 e nº183/81, in BMJ nº306 e nº316 - e sufragada por este STA, desde logo, e entre outros, nos arestos de «05.03.98», Rº30.840, e de «09.11.2000», Rº46.441.
São duas as «razões» fundamentais que sustentam esta tese: - por um lado, o entendimento de que - para efeitos indemnizatórios - nem toda a ilegalidade implica ilicitude, designadamente há ilegalidades veniais - como o vício de forma e a incompetência rationae personae - que não abrem direito a indemnização; - por outro lado, funda-se no princípio - presente designadamente na «1ª parte do nº1 do artigo 2º do DL nº48.051» - de que «os actos inquinados por vício de forma raramente poderiam ofender direitos particulares e, em princípio também não ofenderiam interesses protegidos por disposições legais destinadas a proteger tais interesses, já que as normas prescritivas de formas, em direito administrativo, raramente visariam proteger directamente interesses económicos dos particulares, muito menos visariam fazê-lo através da atribuição de uma indemnização».
Todavia, o Tribunal Constitucional já advertiu, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, para o perigo de uma interpretação demasiado restritiva do artigo 2º, nº1º, do DL nº48.051, ao decidir «julgar inconstitucional, por violação do princípio da responsabilidade extracontratual do Estado - consagrado no artigo 22º da CRP - a norma constante do artigo 2º, nº1, do DL 48.051, de 21.11.1967, interpretada no sentido de que um acto administrativo, anulado por falta de fundamentação, é insusceptível, absolutamente e em qualquer caso, de ser considerado um acto ilícito, para efeito de poder fazer incorrer o Estado em responsabilidade civil extracontratual por acto ilícito» [AC 154/2007 de 02.03.2007, Rº65/02].
E fê-lo, após ter relacionado a norma em causa - artigo 2º, nº1, do DL nº48.051 - com outras normas de direito ordinário - tendo em conta, apenas, o «direito vigente até à data do acórdão aí recorrido» [09.05.1995] - respeitantes a «determinadas consequências da anulação de actos administrativos com base, nomeadamente, em falta de fundamentação», em particular com determinadas regras relativas à execução, ou inexecução, da sentença anulatória, tendo concluído que a norma em causa - artigo 2º, nº1, do DL nº48.051 -, se interpretada no sentido de que um acto administrativo anulado por falta de fundamentação é insusceptível, absolutamente e em qualquer caso, de fazer incorrer o Estado em responsabilidade civil extracontratual por acto ilícito, levará - além do mais - a que «fique sem qualquer consequência uma eventual recusa ilegítima, por parte da Administração, da execução da sentença anulatória […]», o que não permite «cumprir a principal função do instituto da responsabilidade civil - a função reparadora - que especialmente garante aos particulares o ressarcir de danos causados por actos praticados pelos titulares dos órgãos, funcionários e agentes do Estado e das entidades públicas».
Quanto à culpa, "Agir com culpa significa atuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito. E a conduta do lesante é reprovável quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo" Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 6ª edição, p. 531).

Quanto ao nexo de causalidade a jurisprudência do STA tem considerado que à responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas coletivas públicas [no âmbito do DL nº48051, de 21.11.1967] se aplica o artigo 563º do CC, sendo pacificamente aceite que este normativo legal consagra a vertente mais ampla da teoria da causalidade adequada, ou seja, na formulação negativa de ENNECERUS-LEHMANN - o facto que atuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada quando, segundo a sua natureza geral, é indiferente para a produção do dano e só se tornou condição dele em virtude de outras circunstâncias extraordinárias […]. O nexo de causalidade tem uma dupla vertente: de facto e de direito. Ou, dito de outro modo, necessário se torna que em concreto, isto é, no plano naturalístico, o facto seja condição do dano [vertente contida no restrito âmbito da matéria de facto] e que, em abstrato, isto é, segundo as regras da vida, o facto constitua causa adequada ou apropriada à ocorrência do dano verificado.

Nas presentes apelações, está em causa a decisão proferida pelo tribunal de 1.ª instância que condenou as Apelantes, solidariamente, ao pagamento do montante de €80.000,00 à menor M.L.T.C., representada pelos seus pais, os ora Apelados e, bem assim, na quantia de €10.000,00 aos últimos, a título de danos não patrimoniais ( relegando a indemnização dos danos patrimoniais para liquidação em execução de sentença), tendo para o efeito, julgado provados os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, considerando que houve funcionamento anormal do serviço, por terem sido violados por omissão, os deveres impostos pelo artigo 3.º do D.L. n.º 431/80, de 01/10, que atribui ao Instituto de Genética Médica Doutor Jacinto Magalhães a programação e realização de estudos de genética médica, tendo atribuição assistenciais de investigação e de ensino e, no que se refere à ASRN, por ter sido violado o art.º 2.º, n.º 1 e 2 do D.L. n.º 335/93 de 29/09, que lhe atribui a competência para avaliar a execução do programa e propor as medidas que fossem necessárias ao bom funcionamento do programa (cf. art.º 2.º, n.º 2), mas relativamente ao modo de envio das análises para o IGM nada fez, aceitando, por omissão, aquele sistema, pelo que tendo obrigações ao nível da boa execução do programa, tal comportamento constitui omissão passível de integrar conduta ilícita à luz do disposto no art.º 2.º, n.º 1 e 6.º do D.L. n.º 48051 de 21/11/1967 por violação do disposto no art.º 2.º, n.º 1 e 2 do D.L. n.º 335/93 de 29/09.
Tais violações, nos termos do artigo 2.º e 6.º do D.L. n.º 48.501, de 21.11.1967 constitui as Apelantes em responsabilidade civil perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes, resultantes de atos ilícitos culposamente praticados pelos respetivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício.
A decisão recorrida considerou que «ocorreu ofensa do direito da menor M. a um diagnóstico do hipotiroidismo congénito ao 12.ª dia e a um tratamento com início nessa data, verificando-se, assim, um diagnóstico tardio causado pela existência de um plano de cobertura do diagnóstico do hipotiroidismo que padece de fragilidades que potenciaram essa situação».

(i) Do erro de julgamento de direito decorrente de na sentença se ter reputado como funcionamento anormal do serviço a situação de fragilidade ou falibilidade de procedimento/regulamento.

A Apelante ARSN sustenta que ao contrário do que vem alinhado na sentença recorrida, no caso não se está perante uma situação reconduzível ao mau funcionamento do serviço a que se refere a norma do art.º 7.º, n.º3 da lei n.º 67/2007, de 31.12, inaplicável à situação, importando distinguir essa situação da situação de “ineficiência ou fragibilidade/falibilidade do procedimento seguido. Sustenta que aquilo que a sentença pretende atingir, tomando-a como base da condenação, é a estrutura e densificação do procedimento/regulamento, não podendo a figura do “vício de procedimento/regulamento, fragilidade de procedimento” equivaler ao “anormal funcionamento do serviço”, porque não pode confundir-se a responsabilidade por ato ou omissão de ato legislativo com a responsabilidade por ato ilícito.
No caso, afirma que se está perante um procedimento instituído pela Administração que foi corretamente cumprido, com a única diferença de o correio ter sido expedido por correio simples e não por correio azul, sustentando que as fragilidades de um procedimento regulado pelo poder administrativo central não pode gerar responsabilidade civil extracontratual da Administração que o cumpre, com fundamento em “faute du service”, mas apenas responsabilidade por ato legislativo ou regulamentar.

Não podemos concordar com o Recorrente.
No caso, como claramente resulta da decisão recorrida, provou-se que o procedimento implementado para a realização do “teste do pezinho”, cuja definição e implementação cabia às Recorrentes, tinha fragilidades e, devido a essas fragilidades, foi ofendido o direito da menor a um diagnóstico de hipotiroidismo congénito ao 12.º dia e a um tratamento com início nessa data, verificando-se um diagnóstico tardio causado pela existência de um plano de cobertura do diagnóstico do hipotiroidismo que padece de fragilidades que potenciam essa situação, pelo que a conduta das Recorrentes se inscreve no âmbito da responsabilidade civil extracontratual decorrente de facto ilícito. Ou seja, que houve má administração.
Vejamos.

A responsabilidade por ato da função legislativa, nos termos em que se encontra regulada, e já anteriormente á vigência da lei n.º 67/2007, não abarca nem abarcava este tipo de situações ( cfr.o art.º 15.º da Lei n.º 67/2007).
São pressupostos da responsabilidade civil do Estado por ato legislativo:
(i) a prática de um facto jurídico (ou seja, a aprovação de um ato legislativo);
(ii) a verificação da ilicitude, numa dupla vertente: objetiva (violação, pela lei, dos respetivos parâmetros de validade ou de eficácia) e subjetiva( ofensa dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos);
(iii) existência de culpa do legislador;
(iv) a ocorrência de um dano anormal;
(v) a identificação de um nexo de causalidade.

Decorrendo a responsabilidade civil extracontratual por ato legislativo da verificação de danos resultantes da prática de um ilícito legislativo, importa ter presente que o conceito de Lei acolhido pela Constituição (CRP) é um conceito formal, que corresponde á forma de ato legislativo (cfr. art.º 112.º, n.º1 da CRP), compreendendo, por conseguinte, apenas três tipos de atos jurídico-públicos, sendo os mesmos os únicos atos legislativos abrangidos pela responsabilidade extracontratual por ato legislativo, a saber:
(i) a Lei, aprovada pela Assembleia da República, ao abrigo dos artigos 161.º, al. c), 164.º e 165.º da CRP;
(ii) o Decreto-Lei, aprovado pelo Governo em reunião de Conselho de Ministros, ao abrigo do artigo 198.º da Constituição; e
o Decreto legislativo regional, aprovado pela Assembleia legislativa da Região Autónoma respetiva, ao abrigo dos artigos 112.º, n.º4, 227.º, 228.º e 232.º, n.º1, da CRP
Este regime apenas conhece uma exceção que é a que se prende com aquelas situações em que na própria lei se surpreende a existência de atos administrativos individuais e concretos, os quais não seguem este regime de responsabilidade mas o regime da responsabilidade por ato da função administrativa (art.º 268.º, n.º4 da CRP e art.º 52.º, n.º1 do ETAF).

Assim, a responsabilidade decorrente de ato ou omissão regulamentar não se encontra abrangida pela responsabilidade por ato legislativo, por não estarem em causa atos legislativos mas normas administrativas emanadas ao abrigo de disposições de direito administrativo e no exercício da função administrativa.
Estas considerações são válidas á luz do quadro legal que vigorava quando ocorreram os factos constitutivos do pedido indemnizatório formulado contra as Rés com fundamento em responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, considerando o disposto no art.º 22.º da CRP e a noção de ato legislativo acolhida pela CRP.
Mas mesmo que estivéssemos perante a fragilidade de um procedimento instituído por Lei ou Decreto-Lei, ainda assim, refira-se, a prática por um órgão da Administração de um ato inválido em virtude da existência de um quadro legal eventualmente ambíguo, complexo ou lacunar, não permitiria a invocação dessa circunstância pela Administração para deixar de se ressarcir o particular pelos danos sofridos, apenas se nos afigurando legitima a sua invocação na perspetiva do exercício de uma espécie de direito de regresso perante o(s) órgão(s) legislativo(s) Cfr. Alexandra Leitão, in Cfr. Alexandra Leitão, “ A ilicitude e presunção de culpa na Responsabilidade pelo Exercício da Função Administrativa”, in Novos Temas da Responsabilidade Civil Extracontratual das entidades Públicas”, Instituto de Ciências Jurídico -Politicas da Faculdade de Direito da universidade de Lisboa;.
Conforme obtempera Alexandra Leitão “A solução não é, no fundo, muito diferente da relação que existe entre a Administração e o seu funcionário ou agente quando estes atuam com dolo ou negligência grave. Outra hipótese seria considerar ilidida a presunção do artigo 10.º, n.º 2, o que afastaria o dever de indemnizar por parte do órgão administrativo, e remeter o particular lesado para a responsabilidade por ato da função legislativa. No entanto, esta solução pode acarretar uma desproteção inaceitável dos particulares. É que os pressupostos da responsabilidade por ato da função legislativa são muito mais restritivos, implicando, desde logo, que a norma legal já tenha sido declarada inconstitucional ou objeto de desaplicação com esse fundamento, nos termos do artigo 15.º, n.º 2, do RREE. Mais: o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República já considerou, em Parecer homologado e publicado no Diário da República, que a figura da imunidade dos Deputados implica, necessariamente, a irresponsabilidade da Assembleia da República pela aprovação de um diploma legal e que, por isso, relativamente aos danos causados pelo exercício da função legislativa, a responsabilidade é exclusiva do Estado ou das regiões autónomas.
(…)Isto significa que se o particular lesado demandar uma entidade administrativa pela prática de atos administrativos ilícitos e a presunção de culpa for ilidida no sentido de afastar a responsabilidade dessa entidade, tão pouco será o órgão legislativo a responder em termos de responsabilidade civil extracontratual. Efetivamente, sendo ilidida a presunção de culpa, não existiria responsabilidade pelo exercício da função administrativa e, por sua vez, o Estado legislador poderia não ser responsável por faltarem os pressupostos específicos daquele tipo de responsabilidade. E esse é o resultado que não parece admissível à luz do artigo 22.º da Constituição e dos princípios gerais do Direito, designadamente, o da proteção dos direitos dos particulares”

Assim, não assiste razão ao Recorrente quando pretende que não pode ser responsabilizado por a fragilidade do procedimento implementado para o “teste do pezinho” que foi considerada pela decisão recorrida como consubstanciando uma conduta ilícita à luz do art.º 2.º, n.º1 e 6.º do D.L. 48051, de 21.11.67, traduzir uma situação enquadrável no âmbito da responsabilidade por ato legislativo.

(ii) Do Erro de Julgamento Quanto ao Pressuposto da Culpa e da Ilicitude
Insurge-se ainda a Recorrente contra a imputação que lhe é feita na sentença recorrida em termos de culpa, uma vez que não é admissível uma omissão culposa em abstrato, por relação a um procedimento regulamentar de génese extrínseca, estranha à entidade imputada porque estaríamos a imputar um facto de terceiro. E que não aceita a contiguidade estabelecida pela decisão recorrida entre a culpa e a ilicitude, sendo a culpa sempre um momento distinto e autónomo do fator ilicitude, nem pode aplicar-se quando os factos em concreto têm agentes e autoria e a fragilidade do procedimento é diluída entre legisladores, detentores do poder clínico, administrativo, que se sucederam ao longo dos anos, titulares do poder regulamentar e de estabelecimento de regras gerais e abstratas a cumprir pelos serviços.
Também o Apelante INSA refuta a imputação de uma conduta e ilícita e culposa que lhe é feita na decisão recorrida, entendendo que quanto a si tais pressupostos se não verificam, uma vez que não rececionou nos seus serviços qualquer teste sobre o qual tenha deixado de intervir, não tendo qualquer responsabilidade no facto do mesmo não ter dado entrada nos seus serviços.
Mas que não é o caso, uma vez que não houve qualquer omissão que tivesse resultado em diagnósticos tardios em que o teste nem sequer chegou a dar entrada no IGM, não podendo a Apelante saber sequer da existência do mesmo, com o que cai um dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual.
No que concerne à ilicitude, na vertente subjetiva sustenta que aquela apenas se verificará quando os danos sejam imputáveis a uma atuação do serviço globalmente considerado, o que no caso, daquela Unidade, não se verificou.
Quanto á culpa, afirma que a mesma apenas existe havendo uma atuação ou omissão ilícita por parte do agente, o que se verificou não existir. Ainda que a culpa seja apreciada pela diligência que é exigível, em abstrato, a um titular de órgão, funcionário ou agente, e não segundo a diligência habitual do autor do dano, o facto gerador do dano tem de ser praticado no exercício de funções e por causa desse exercício. Ora, neste caso o IGM tinha responsabilidade e alçada sobre os testes que lhe fossem enviados por todas as Unidades de saúde onde eram efetuados mas essa responsabilidade apenas se podia iniciar com a existência desses mesmos testes, pelo que não tendo o teste da menor filha dos autores chegado ao IGM, não há qualquer culpa do Apelado.


Uma vez mais, as Recorrentes não têm razão.
Na decisão recorrida considerou-se que « impendia sobre a ARSN um dever de agir decorrente da lei, mais concretamente, do art.º 2.º, n.º 1 e 2 do D.L. n.º 335/93 de 29/09 que conferia às ARS competências ao nível da execução da política de saúde devendo coordenar, orientar e avaliar a execução das políticas de saúde pública, onde se integra o diagnóstico precoce. Desta forma, é manifesto que o diagnóstico tardio se ficou a dever ao deficiente funcionamento do sistema implementado, atendendo à falibilidade do procedimento, devendo a responsabilidade do diagnóstico tardio ser, igualmente, atribuída à ARSN por omissão passível de integrar conduta ilícita à luz do disposto no art.º 2.º, n.º 1 e 6.º do D.L. n.º 48051 de 21/11/1967.
Note-se que em 2007, já as ARS divulgaram procedimentos distintos, tal como decorre do ofício circular de 09/07/2007 no qual se afirma que devem ser rigorosamente seguidos todos os mecanismos que permitam minimizar os riscos de extravio ou de perda de informação nos diversos circuitos, determinando-se que os serviços dos Centros de Saúde e dos Hospitais da ARSN onde se realize o rastreio neonatal adoptem os seguintes procedimentos: manter um registo local permanente das fichas enviadas para o IGM onde conste o nome da mãe a a data do envio; os envios devem ser feitos em correio simples (o correio registado introduz um factor de demora de processamento a evitar), os profissionais envolvidos na colheita de sangue para o diagnóstico precoce devem entregar sempre o folheto informativo pelo IGM e providenciar pela sua reposição em tempo útil; devem estes profissionais informar os pais da possibilidade de consulta a página www.diagnosticoprecoce.org e de ter conhecimento do resultado, usando como acesso o número que consta junto ao código de barras da ficha; os centros de saúde deverão colocar este recurso à disposição dos utentes que não tenham acesso à internet, através do Gabinete do Utente ou do sector de Saúde Materno-Infantil, informando os pais de que: duas semanas após a colheita podem verificar se a ficha chegou ao Instituto de Genética e que, ao fim de quatro semanas, devem verificar o resultado; perante a informação “não foram encontrados dados” os pais devem contactar
o Instituto de Genética seguindo os procedimentos referidos na página da internet; perante informação “em curso” a consulta deverá repetir-se alguns dias depois. Extrai-se deste ofício circular de 09/07/2007 que a ARSN assume um papel activo na definição do procedimento, pelo que não há dúvida que por força da lei ( Estatuto do Serviço Nacional de Saúde e D.L. n.º 335/93 de 29/09, diplomas vigentes à data dos factos) impunha-se um dever de diligenciar pelo bom funcionamento do rastreio na parte que respeita ao envio, já que os Centros de Saúde e os Hospitais serviam (e ainda servem) como centros de colheita no âmbito de um programa de prevenção que também faz parte das políticas de saúde.
Por conseguinte, o IGM/ Comissão Nacional de Diagnóstico Precoce (actualmente, INSA que sucedeu nas suas atribuições) e a Administração Regional de Saúde do Norte violaram o direito da Autora a um diagnóstico do hipotiroidismo congénito ao 12.º dia e início do tratamento a partir desta data, não tendo assegurado que o diagnóstico se fizesse em tempo estando, por isso, preenchido o pressuposto da ilicitude.»

A condenação da Recorrente ARSN e do INSA teve como pressuposto a sua conduta omissiva em resultado de, no exercício das suas competências não ter providenciado pela definição de um procedimento rigoroso que acautelasse a possibilidade de extravio das recolhas efetuadas nos vários centros autorizados a proceder a essa recolha e que eliminasse ou contivesse a margem de extravio em parâmetros aceitáveis, o que de todo não sucedeu, ao conformarem-se com um procedimento em que as colheitas efetuadas pelos vários centros no âmbito do “teste do pezinho” seriam remetidas para o IGM (atualmente INSA) por correio simples urgente, que, como sabemos, não oferece uma garantia fiável da chegada ao destino, significando que as Recorrentes aceitaram e conviveram bem com a implementação de um sistema que não assegurava a realização do “teste do pezinho”, nada tendo feito, como lhes competia, para alterar esta situação que podia lesar gravemente o direito á saúde de quem realiza esse teste.
No caso, está claramente em causa, no mínimo, um funcionamento anormal generalizado dos serviços da ARSN e do IGM (atualmente INSA), ou seja, uma má administração desses serviços, que contribuiu em termos de concausalidade, para a produção dos danos sofridos pela menor e pelos seus pais, nas suas esferas jurídicas, impondo-se o ressarcimento desses danos.
Como referem GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, a localização constitucional do instituto da responsabilidade das entidades públicas, no artigo 22.º da CRP, significa que ele “não transporta apenas uma lógica indemnizatória-ressarcitória decalcada da responsabilidade do direito civil. A responsabilidade conexiona-se, desde logo, com outros princípios jurídico-constitucionalmente estruturantes, como o princípio do Estado de Direito, o princípio da constitucionalidade e o princípio da legalidade”. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, 4ª ed., Coimbra, 2007, págs. 425;

O direito ao ressarcimento por danos causados por ações ou omissões da Administração Pública é um direito fundamental, o que significa que as limitações ou exclusões da responsabilidade são restrições a um direito fundamental e estão, por isso, sujeitas a um regime particularmente restritivo e exigente, não se compreendendo que no caso, em face dos factos apurados, a culpa morresse solteira.

Nas palavras de Alexandra Leitão a sujeição da Administração Pública “ ao bloco de legalidade tem também uma dimensão garantística que fundamenta a função reparadora da responsabilidade” Cfr. Alexandra Leitão, “ A ilicitude e presunção de culpa na Responsabilidade pelo Exercício da Função Administrativa”, in Novos Temas da Responsabilidade Civil Extracontratual das entidades Públicas”, Instituto de Ciências Jurídico -Politicas da Faculdade de Direito da universidade de Lisboa, pág. 17 e 18., e daí que a mesma defenda até a consagração legal de uma presunção inilidível de culpa leve decorrente da prática de atos jurídicos ilícitos ou mesmo, que se prescinda completamente da culpa.

É certo que, como referem JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS “O legislador pode, pois, densificar os pressupostos da obrigação de indemnizar e o regime da responsabilidade, cabendo-lhe designadamente delimitar o conceito de ilicitude relevante e esclarecer em que medida uma ideia de culpa – entendida, evidentemente, numa aceção normativa e não psicológica – constitui pressuposto da responsabilidade” V. JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra, 2010, pág. 480.
. A verdade, porém, é que mesmo estes autores não deixam de salientar a natureza normativa e não psicológica de uma ideia de culpa relevante.

Tem-se vindo a assistir a uma tendência para uma certa objetivização da responsabilidade da Administração, o que se compreende, considerando a sujeição da Administração ao princípio da legalidade. Como bem salienta PEDRO MACHETE “se o facto lesivo [praticado pela AP] também é ilícito, isso significa necessariamente que os serviços administrativos não funcionaram como deviam (…) Daí ser compreensível que no caso da Administração – caracterizada por uma função específica e regendo-se por uma legalidade própria – a questão da culpa tenda a esbater-se ou a objetivar-se” Cfr. PEDRO MACHETE, “A responsabilidade da Administração por facto ilícito e as novas regras de repartição do ónus da prova, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 69, 2008, pág. 34..
Assim, numa situação como a dos autos em que os danos sofridos pela menor decorreram da fragilidade do procedimento estabelecido pelas Rés/Recorrentes para a realização do “teste do pezinho”, provando-se essa inadequação do procedimento ao fim visado, ou seja, o de permitir a realização do referido teste em momento adequado, a culpa da Administração como que resulta diluída na verificação da ilicitude do respetivo comportamento, ela está diluída na má administração do serviço.
Saliente-se que no âmbito da figura do funcionamento anormal dos serviços, nos termos em que vem regulada nos n.ºs 3 e 4 do artigo 7.º do RREE, pode mesmo afirmar-se que o legislador prescinde da culpa.
Neste sentido, já em 1999, VIEIRA DE ANDRADE sublinhava que na responsabilidade da Administração ocorre uma desvalorização da culpa como censura ético-comportamental, subordinando-a à ideia de ilicitude Cfr. in “Panorama geral do Direito da responsabilidade “civil”, in La Responsabilidad Patrimonial de los Poderes Públicos, Madrid, 1999, págs. 44 e 45,, e daí que este mesmo autor sustente, em relação ao artigo 9.º, n.º2 do RREE que o disposto nesse normativo seja qualificado como ilicitude e não como culpa, defendendo como mais adequada a expressão “funcionamento anormal do serviço” em detrimento de “culpa do serviço”, na medida em que nestes casos não existe verdadeiramente culpa, tratando-se, quando muito, de um conceito impróprio de “culpa anónima”.
Ainda conforme sustenta Ana Fernanda Neves “A ilicitude no caso da responsabilidade administrativa pelo funcionamento anormal do serviço, consubstancia-se na ofensa de “direitos ou interesses legalmente protegidos decorrente do serviço não ter adotado a atuação devida para evitar a produção de danos.
O desvio face á atuação devida pelo serviço para evitar os danos afere-se pelos parâmetros legais, técnicos e deveres objetivos de cuidado e pelas exigências de uma boa ou correta administração, aplicados nas circunstâncias concretas” Cfr. Ana Fernanda Mendes, in Novos Temas da Responsabilidade Civil Extracontratual das entidades Públicas”, Instituto de Ciências Jurídico -Politicas da Faculdade de Direito da universidade de Lisboa, pág. 567 e sgts.


Conforme dissemos, e resulta também da jurisprudência dos tribunais administrativos e fiscais, tem-se vindo a assistir à diluição do elemento subjetivo da culpa na ilicitude, pelo que a decisão recorrida, ao acolher idêntico entendimento, não nos merece reparo.
Nesse sentido, veja-se o acórdão de 02 .04.2009, onde o Colendo STA Cfr. Ac. do STA, de 02.04.09, processo n.º 0698/08; professou «…como se entendeu ainda entre outros, no Ac. deste Tribunal de 23.10.08, Rec. 264/08,” afirmar a existência de culpa numa conduta ilícita- seja por violação das prescrições legais estabelecidas, seja por violação das regras de ordem técnica ou de prudência comum que deviam ser adotadas- implica a formulação de um juízo de reprovação por se considerar que o agente tinha a obrigação para agir de modo a não violar aquelas regras, o que não fez”. Em tal situação, o elemento culpa dilui-se na ilicitude quando é violado o dever de boa administração pela prática de um ato administrativo ilegal.
Assim sendo, tendo a violação daqueles preceitos sido imputada a falhas dos serviços da Administração Pública e na ausência de factos dados como provados que nos permitam afirmar que houve culpa do lesado, sempre se teria de dar como provada a culpa do R. no caso em apreço» Cfr. ainda Ac. do STA de 11.11.2008, processo n.º 0682/07..

Quanto ao dever de boa administração, Ana Fernanda Neves afirma que “ A responsabilidade pelo funcionamento anormal do serviço é tendencialmente uma manifestação de má administração” e que quer se perspetive a boa administração como um direito dos cidadãos, conforme se estabelece no art.º 41.º da Carta dos Direitos Fundamentais da EU, quer como princípio, conforme se estabelece no art.º 5.º do CPA e 267.º, n.º1 da CRP «aplica-se de um modo geral, á ação da União ( e das administrações nacionais) nas suas relações com o público». E cita o Acórdão proferido pelo Tribunal Geral, de 29 de abril de 2015, processo T-217/11 que julgou procedente a ação intentada por C. S. contra o Provedor de Justiça europeu, na qual pediu a reparação do prejuízo sofrido « na sequência do tratamento pelo Provedor de Justiça Europeu da sua queixa relativa à má gestão da lista de candidatos aprovados no concurso geral EUR/A/151/98, da qual constava como candidata aprovada». O TG considerou que «uma vez que a demandante tem direito a que os seus pedidos sejam tratados num prazo razoável, a inobservância do referido prazo constitui uma violação suficientemente caracterizada de uma regra jurídica que tem por objeto conferir direitos aos particulares, suscetível de desencadear a responsabilidade da União». O TG explicitou, relativamente ao direito á boa administração, que, « quanto à exigência de que a regra jurídica cuja violação é alegada tenha por objeto conferir direitos aos particulares, há que recordar que a jurisprudência esclareceu que o requisito relativo ao caráter protetor está preenchido quando a regra jurídica violada, visando embora interesses de caráter geral, assegure igualmente a proteção dos interesses individuais dos particulares em causa…Ora, no que se refere ao princípio da diligência ou ao direito a uma boa administração, este princípio possuem claramente um caráter protetor em relação aos particulares». Ob. citada, pág. 578 e 579;
Esta jurisprudência não tem inteira correspondência na jurisprudência dos tribunais administrativos mas a verdade é que já em vários acórdãos se verifica a referência a este conceito de má administração do serviço.
Assim, veja-se o Acórdão do STA, de 08.09.2016 Processo n.º 01306/15, 1.ª Subsecção do STA;, que a propósito da determinação do alcance do dever de vigilância das Brigadas de Conservação da Direção de Estradas do Distrito de Santarém e/ou Lisboa sustentou que « quando está em causa um dever de boa administração, os conceitos de ilicitude e culpa confundem-se, bastando ao autor demonstrar que o objeto cuja vigilância cabia à administração pública, interveio ilicitamente numa ocorrência ( art.º 493.º do CC)».
Também em acórdão deste TCAN, de 18.03.2016 Processo n.º 02120/09.7BEPRT;, proferido num processo em que estava em causa o cumprimento pela Unidade Local de Saúde de Matosinhos, EPE, Centro de Saúde de S. Mamede de Infesta, do art.º 9 do D.L. n.º 135/99, de 22.04. sobre prioridades no atendimento se considerou aquele dever de boa administração embora de forma latente, designadamente, quando aí se refere que aquele preceito «define os princípios gerais de ação a que devem obedecer os serviços e organismos da Administração Pública na sua atuação face ao cidadão, bem como reúne de uma forma sistematizada as normas vigentes no contexto da modernização administrativa».
Tal não significa que não tenha de verificar-se uma lesão da “posição subjetiva individualizada” do particular afetado, uma vez que conforme sustenta Carla Amado Gomes “esta despersonalização da ilicitude …não significa que a má administração possa ser sindicada por quem quer que seja, desconectada de um prejuízo singular. O mau funcionamento do serviço, para relevar em termos de responsabilidade por facto ilícito, deve ser causa adequada de um dano individualizado, não bastando a sua configuração como uma violação da legalidade objetiva ou um incómodo para a coletividade em geral» Cfr. “ A Responsabilidade Civil Extracontratual da Administração por facto ilícito: Reflexões avulsas sobre o novo regime da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro”, in Textos Dispersos sobre Direito da Responsabilidade Civil Extracontratual das Entidades Públicas, AAFDL, Lisboa, 2010 ”, p.56-57;

Na situação em análise, o tribunal de 1.ª instância, depois de estabelecer que o regime aplicável á presente situação, considerando a data do facto alegadamente gerador de responsabilidade civil extracontratual do Estado que ocorreu em 2005/2006, é o que consta do D.L. n.º 48051, de 21/11/1967, e de ter efetuado uma incursão sobre os pressupostos deste tipo de responsabilidade e procedido à densificação de cada um deles, deteve-se no que se entende por funcionamento anormal do serviços, tendo julgado que «o funcionamento anormal do serviço abrange os casos em que os danos não possam ser diretamente imputados a um comportamento concreto de um titular de órgão, funcionário ou agente, antes resultando de uma atuação global que envolva uma responsabilidade dispersa por diversos sectores ou intervenientes.
A culpa do serviço envolve a lesão resultante de falhas imputáveis ao serviço globalmente considerado em que a responsabilidade se dilui na atividade operativa do serviço considerado no seu conjunto.
Neste sentido, Cons. Carlos Alberto Fernandes Cadilha in “Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado”, anotado, 2.ª edição, pág. 164 aplicável ao caso dos autos por ser um regime que já decorria do anterior.
Com efeito, a culpa do serviço vinha sendo admitida, desde há muito, na doutrina como na jurisprudência -cf. Acórdãos do STA de 16/05/1996 (proc. n.º 36075), de 07/12/1997 (proc. n.º 44836), de 10/02/2000 (proc. n.º 45121) e 12/03/2009 (proc. n.º 67/09) e Margarida Cortez, Responsabilidade Civil da Administração por Actos Administrativos Ilegais e Concurso de omissão culposa do lesado, Coimbra Editora, pág. 93-96.”
Considerando tudo quando se expôs, não vislumbramos razão para divergir da decisão recorrida, razão pela qual improcedem os presentes fundamentos de recurso.

(iii) Da Interrupção do Nexo Causal por força da intervenção dos CTT

A Recorrente ARSN, I.P. insurge-se contra a decisão recorrida por o Tribunal a quo ter ignorado que o Centro de saúde enviou o correio para o Instituto e que aquele não recebeu o teste enviado pelo correio, tendo aqui havido a intervenção contratual e material de uma entidade exterior à Administração Pública – os CTT- que interrompeu o nexo causal de eventual ilícito praticado pela Administração da Saúde.
Em igual sentido, o Apelante INSA sustenta que, quanto ao nexo de causalidade entre o facto e do dano, sempre era necessário estabelecer uma relação de causalidade entre a omissão e o resultado, mas no caso o autor da alegada omissão não chegou sequer a praticar a omissão. No caso, terá havido interrupção do nexo de causalidade uma vez que a carta que continha o teste, por motivos alheios ao IGM, nunca lá chegou, tendo-se extraviado, facto que resulta da ação dos Correios cuja obrigação perante o serviço contratado era de entregar aquela carta no seu destinatário.
Vejamos.
Como supra referimos, na responsabilidade por facto ilícito, o nexo causal afere-se com recurso à denominada formulação negativa da causalidade, pelo que o facto que atuou como condição do dano só deixará de ser considerado causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo em todo indiferente para a verificação do dano,
Na situação dos autos o facto que atuou como condição dos danos sofridos pela menor e pelos seus pais, foi a conduta das Rés traduzida no deficiente procedimento que implementaram, no qual deviam ter previsto a possibilidade de por força da intervenção de terceiros, como é o caso dos CTT, as colheitas para a realização do “teste do pezinho” podiam não chegar ao seu destino, e por conseguinte, ao serviço encarregue de efetuar esse exame, com as consequências danosas daí decorrentes para os recém nascidos ao impossibilitar a deteção das patologias com que eventualmente nasceram e respetivo tratamento atempado.
Tal significa que as Apelantes sobre quem impendia o dever legal de implementar um sistema seguro que garantisse a chegada do material biológico necessário à realização do teste ao laboratório com competência técnica para o realizar, não cuidaram de implementar um sistema seguro, que dentro das possibilidades humanas e dos meios existentes assegurasse a receção desse material pelo serviço de destino, sequer suscetível de detetar eventuais falhas nessa chegada.
Com efeito, quem envia uma carta ou outro bem por via postal simples sem cuidar em estabelecer um procedimento que assegure a efetiva receção dessa carta ou objeto pelo respetivo destinatário, como seria, por exemplo, estabelecer o envio por correio registado com aviso de receção, meio comprovadamente com maiores garantias de entrega e que possibilitaria que a não chegada ao destino fosse detetada, conforma-se com possíveis extravios desse material, com a consequente não efetivação em tempo útil do exame e com as consequências decorrentes das patologias que afetam os recém nascidos não serem diagnosticadas e tratadas em tempo útil, e das consequências danosas daí decorrentes para aqueles e para os que deles têm a obrigação legal de cuidar.

Como referido, era obrigação legal das Apelantes procederem à implementação de um procedimento que assegurasse a realização do teste do pezinho e que, consequentemente, o material biológico necessário à realização desse teste, chegasse ao seu destino.
A obrigação legal que impunha às Apelantes a criação de procedimentos de segurança tendentes à realização desse exame, embora se destinem a proteger interesses gerais da coletividade não deixam de consubstanciar normas protetoras de interesses alheios, ou seja, dos utentes do serviço nacional de saúde.
Logo, ao optarem por estabelecer um sistema de envio desse material biológico por correio azul, que é um procedimento consabidamente inseguro, como já referido, as Apelantes agiram ilícita e culposamente, culpa esta que conforme já enunciado, inclusivamente, tem sido prescindida pela doutrina e pela jurisprudência.
Deste modo, consagrando o artigo 563.º do C. Civil a doutrina da causalidade adequada, que não pressupõe exclusividade do facto condicionante do dano, sequer exige que a causalidade tenha de ser direta e imediata, antes admitindo não só a ocorrência de outros factos condicionantes, contemporâneos ou não, como ainda, a causalidade indireta, bastando que o facto condicionante desencadeie outro que diretamente suscite o dano, só caso o comportamento das Apelantes fosse totalmente indiferente para o dano é que resultaria a exclusão do nexo de causal- neste sentido, acórdãos do STJ, de 07.04.2005, Proc. 05B294; de 21.02.2006, CJ/STJ, T.I, pág. 85; de 18.05.2006, CJ/STJ, T.II, pág.95; de 20.06.2006, CJ/STj, T. II, pág.119.
Ora, como referido, o elemento desencadeante dos danos foi o comportamento das Apelantes que não cuidaram em criar procedimentos seguros destinados a garantir que o material biológico necessário à realização do teste do pezinho chegasse ao laboratório, destinatário desse material, para que fosse realizado o exame. A concausa decorrente de terem sido os CTT que eventualmente perderam esse material, a ser esse o caso, não exclui a responsabilidade destas uma vez que sempre que ocorra um concurso de causas adequadas, qualquer dos seus autores é responsável pela reparação de todo o dano.
Termos em que improcede este fundamento de recurso.

(iv) Falta de Base Legal ou Contratual para a Condenação Solidária dos Recorrentes

A Recorrente ARSN, imputa erro de julgamento à decisão por falta de base legal ou contratual para o Tribunal a quo condenar solidariamente as RR., não podendo haver condenação solidária sem a concreta identificação da base legal ou contratual que a fundamente.
Mas sem razão.
Sobre a responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos como é, o caso, rege o n.º 1 do art.º 497.º do C. Civil no qual se prescreve que se forem várias as pessoas responsáveis pelos danos é solidária a sua responsabilidade.
Nesse sentido veja-se o acórdão de 29.06.2010, do STJ, em cujo sumário se concluiu que “II. Existindo vários responsáveis pelos prejuízos, verifica-se uma situação de responsabilidade solidária, independentemente do respetivo plano de intervenção pessoal e de terem atuado isolada ou concertadamente” Ac. STJ, de 29.06.2010: CJ/STJ, 2010, 2.º-16;.
Termos em que, sem necessidade de mais considerações, improcede o alegado fundamento de recurso.

(v) Do Erro de Julgamento de Direito por Violação do Artigo 570.º do Código Civil.

Por fim, sustenta a ARSN que os Apelados, pais da menor, não fizeram tudo quanto estava ao seu alcance para lograrem o esclarecimento dos problemas de saúde da menor, tendo também contribuído para a causação dos danos cuja reparação agora reclamam, o que convoca a aplicação da norma do art.º 570.º do C.Civil, que não foi tida em consideração pelo Tribunal a quo.
Mas sem razão.
Na decisão recorrida a Meritíssima Juiz julgou não ter sido apurada qualquer materialidade fática de que se pudesse concluir que os pais da menor concorreram com a sua atuação para a produção dos danos que atingiram a esfera jurídica da sua filha menor e a dos próprios.
A decisão recorrida julgou a questão nos seguintes termos: «Colhe-se do probatório que à mãe da menor foi entregue pelo Centro de Saúde, aquando da realização do exame, o talão da própria recolha do sangue do bebé, onde consta a menção «NOTA CONSERVE ESTE TALÃO Para saber o resultado do teste do seu filho, consulte na Internet www.diagnosticoprecoce.org. e digite este número”.
Provou-se que os AA. foram esclarecidos pelo Centro de Saúde de que poderiam conhecer esse resultado entre a 2.ª e 3.ª semanas no site de “diagnosticoprecoce”, mas para não se preocuparem porque se houvesse algum problema seriam contactados pelo IGM.
Também se provou que os AA. consultaram via Internet o site de “diagnosticoprecoce” para saberem do resultado do exame e, nesta data, quando era introduzido o código de barras constante do talão, surgia no site a seguinte informação “não foram encontrados resultados para esse código de barras. É possível que o teste ainda não tenha sido processado. Nota: O resultado é colocado on line normalmente a partir da 4.ª semana a seguir à colheita e retirado ao fim de três meses”.
Ficou demonstrado que aquando da realização do “teste do pezinho” foi entregue aos pais uma ficha contendo o código de barras que permite a qualquer pai ter acesso, via Internet, aos resultados negativos do teste. Foi esclarecido pelo Dr. Vaz Osório que os resultados positivos não são divulgados no site do “diagnosticoprecoce”, apenas os negativos, pelo que em caso de teste positivo o contacto era sempre telefónico.
Esclareceu, ainda, que o IGM não tinha capacidade para inserir prontamente os testes negativos no site, pelo que demorariam cerca de um mês a inserir a informação no site do “diagnosticoprecoce”. Esclareceu, também, que à data dos factos tinham começado a utilizar a internet há cerca de um ano e que ainda havia fichas antigas (sem código de barras) nos centros de saúde que eram entregues aos pais enquanto as mesmas não se esgotassem (diz que demoraram cerca de 2/3 anos a esgotar as fichas antigas).
Provou-se, igualmente, que além do acesso via Internet, os AA. também podiam conhecer o resultado do teste por intermédio de contacto telefónico com o Centro de Genética Doutor Jacinto Magalhães, mas esta informação não foi prestada aquando do teste do pezinho.
Resulta, assim, que a consulta do site permitia apenas a consulta dos resultados negativos e sendo positivo o contacto era sempre pessoal, via telefone, sendo esta informação prestada no Centro de Saúde, daí que os pais contassem sempre com esse contacto pessoal, caso o teste fosse positivo, e não havendo contacto pessoal, os pais poderiam formar a convicção de que o resultado do teste seria negativo. Com efeito, os pais não tinham razões para duvidar do funcionamento do sistema, pois os utentes desconhecem o seu funcionamento a partir do momento da colheita (o modo de envio do teste ao INSA e os riscos inerentes).
No que respeita à internet, apesar do site permitir a consulta dos resultados negativos, o certo é que a mensagem que surgia “não foram encontrados resultados para esse código de barras. É possível que o teste ainda não tenha sido processado.
Nota: O resultado é colocado on line normalmente a partir da 4.ª semana a seguir à colheita e retirado ao fim de três meses” transmitia aos pais a convicção que o resultado do teste seria negativo. De facto, não havendo contacto pessoal entre a 2.ª e 3.ª semana de vida (o que fazia admitir que estava tudo bem) os pais podiam legitimamente acreditar que o resultado do teste seria negativo. Além disso, o facto de no site constar informação de que o resultado seria colocado on line normalmente a partir da 4.ª semana, até aí já os pais teriam formado a convicção de que o resultado do teste seria negativo, não lhes sendo exigível que continuassem a consultar o site. Aliás, a reforçar este entendimento é bem elucidativo o depoimento do Dr. M.R., médico geneticista, a exercer funções no INSA, que consultou a menor em 23/03/2006 no Centro de Genética Médica, que declarou que não suspeitou, na altura, de hipotiroidismo, pois quando questionou os pais sobre o rastreio, estes disseram que o tinham feito, daí que o médico tenha ficado descansado quanto a esse assunto, não tendo feito mais perguntas, pois o habitual quando há alguma alteração é os pais serem contactados e se não foram é porque o resultado seria negativo.
Se atentarmos no teor do folheto que era entregue nos Centros de Saúde constatamos que o mesmo refere “um programa deste tipo, com análises gratuitas e abrangendo todos os recém-nascidos, não permite o envio de resultados. Os pais só serão contactados se as análises não forem normais ou se houver necessidade de qualquer confirmação laboratorial. Se for detectada alguma das referidas doenças, os pais serão imediatamente avisados, directamente pelo telefone ou através do Centro de Saúde, de modo a iniciarem o tratamento o mais precocemente possível. Poderão, contudo, conhecer os resultados normais através da internet, 4 semanas após a picada no pezinho, consultando o endereço www.diagnosticoprecoce.org” e introduzindo o número do código anexo à ficha, que lhes será entregue na altura da colheita”. Resulta, assim, que o contacto pessoal ocorreria sempre e imediatamente, sendo a consulta dos resultados normais a partir da 4.ª semana uma mera faculdade, ou seja, em nenhum momento do procedimento é levantada a possibilidade da ficha não chegar ao seu destino e, por isso, o contacto não ocorrer.
Assim, é manifesto que o sistema assentava na confiança de que não havendo contacto pessoal o resultado seria negativo, não sendo a consulta do site uma obrigação ou um ónus dos pais, pelo que a falibilidade do envio do teste pelo correio (azul ou normal é irrelevante, pois ambos são falíveis) e a implementação do site “diagnosticoprecoce” que não impunha um dever de consulta pelos pais (nem permitia saber se o teste havia sido ou não recepcionado pelo IGM) geraram um atraso do diagnóstico de hipotiroidismo congénito, ou seja, um tratamento que deveria ter começado ao 12.º dia de vida iniciou-se apenas aos três meses.
Note-se que em 2007, através do ofício circular de 09/07/2007 da ARS, já se afirma que os profissionais envolvidos na colheita de sangue para o diagnóstico precoce devem entregar sempre o folheto informativo pelo IGM, informar os pais da possibilidade de consulta da página www.diagnosticoprecoce.org para ter conhecimento do resultado, que duas semanas após a colheita podem verificar se a ficha chegou ao Instituto de Genética, que, ao fim de quatro semanas, devem verificar o resultado, que perante a informação “não foram encontrados dados” os pais devem contactar o Instituto de Genética seguindo os procedimentos referidos na página da internet e perante a informação “em curso” a consulta deverá repetir-se alguns dias depois.
Ora, este procedimento não estava implementado à data dos factos, pelo que reitera-se que é manifesto que a falibilidade do envio do teste pelo correio e a implementação do site “diagnosticoprecoce” que não impunha um dever de consulta pelos pais (nem permitia saber se o teste havia sido ou não recepcionado pelo IGM) geraram um atraso do diagnóstico de hipotiroidismo congénito, ou seja, um tratamento que deveria ter começado ao 12.º dia de vida iniciou-se apenas aos três meses».
Pelas razões que abundantemente vêm ponderadas na decisão recorrida, soçobra igualmente o presente fundamento de recurso.

II) Do Recurso Interposto pelo INSA- Dos erros de julgamento da decisão recorrida quanto aos pressupostos de que depende a responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos.

O INSA insurge-se contra a decisão recorrida assacando-lhe erro de julgamento de direito por considerar verificados os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito, sustentando que não houve qualquer omissão da sua parte que tivesse resultado em diagnósticos tardios, uma vez que o teste nem sequer chegou a dar entrada no IGM, não podendo a Apelante saber sequer da existência do mesmo, não se tendo verificado qualquer atuação ilícita nem culposa da sua parte, nem nexo de causalidade entre a imputada omissão e o resultado, porque não houve qualquer comportamento omissivo da sua parte.
A respeito destes concretos fundamentos de recurso damos aqui por reproduzidas todas as considerações que efetuamos supra das quais igualmente resulta não serem atendíveis as razões apresentadas pela Apelante INSA contra o julgamento efetuado pelo Tribunal de 1.ª instância a propósito de cada um dos pressupostos de cuja verificação depende a responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos que foi imputada às rés/Recorrentes.
Assim, não merece acolhimento a posição sustentada pela Apelante quanto a nenhum dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por fato ilícito que lhe foi imputada, uma vez que, dos factos apurados, resulta claramente demonstrado que os danos sofridos pela menor M. e pelos seus pais, decorrentes do diagnóstico tardio de hipotiroidismo se ficaram a dever, conforme se refere na decisão recorrida ao «deficiente funcionamento do sistema implementado, atendendo à falibilidade do procedimento, nos termos expostos, e sendo da competência da Comissão (à data dos factos, a funcionar junto do IGM) assegurar que o rastreio e o diagnóstico se fizessem com qualidade e efectividade, ao IGM (actualmente, INSA,IP que sucedeu nas suas atribuições) deve ser atribuída a responsabilidade do diagnóstico tardio, por violação da norma contida no art.º 3.º do D.L. n.º 431/80 de 1/10 que estatuía que ao IGM competia a programação e realização de estudos de genética médica, tendo atribuições assistenciais, de investigação e de ensino.».
Considerou-se na decisão recorrida que (…)No caso dos autos, as condutas dos Réus são ilícitas merecendo a censura ou reprovação do direito e, nessa medida, são culposas, pois os Réus não lograram provar factos que descaracterizassem a sua culpa, devendo ter-se por assente a existência da mesma. Com efeito, os Réus tinham obrigação de ter consciência da falibilidade do sistema e a Comissão tinha conhecimento de casos de extravio, pelo que podiam e deviam ter agido de outra forma promovendo as medidas necessárias para garantir que o diagnóstico se fizesse em tempo, o que não aconteceu no caso dos autos. A conduta das entidades responsáveis pela implementação e execução do programa não corresponde à que seja exigível e esperada de um serviço público zeloso, eficiente e diligente no qual os utentes depositam a sua confiança, pelo que se considera preenchido o pressuposto da culpa.
(…) Acresce que os Réus não provaram que a doença poderia ter sido detectada pelo médico que acompanhou a menor, ou seja, que o diagnóstico tardio se tenha ficado a dever a culpa daquele que não soube diagnosticar a doença pelos indícios que a menor apresentaria.

Quanto aos danos, colhe-se do probatório que no período de internamento, de 28 de Março a 17 de Abril de 2006, a M. teve sofrimento (quantum doloris de grau cinco numa escala de sete graus de gravidade crescente, tendo em conta os tratamentos efectuados, o tipo de doença de que é portadora e o tipo de terapia que tem de efectuar, valoração do sofrimento físico e psíquico vivenciado durante o período de danos temporário, isto é, entre a data do evento e a cura ou consolidação das lesões).
Com o sofrimento da sua filha, os pais da menor sofreram igualmente e estiveram com ansiedade.
Provou-se, igualmente, que a M. Luísa apresenta dificuldades mantidas em termos de motricidade grosseira, com linguagem expressiva pobre, atraso de desenvolvimento psicomotor que requerem terapias ocupacionais, de fala, fisioterapia para melhorar as suas capacidades – défice funcional permanente da integridade físico e/ou psíquica da pessoa de 78 pontos.
Assim, não há dúvida que a menor e os seus pais sofreram danos, pelo que se mostra preenchido o pressuposto do dano.
Quanto ao nexo causal, analisando a factualidade assente, facilmente se verifica a existência de um nexo de causalidade entre todos os danos supra mencionados e o diagnóstico tardio, na medida em que ficou provado que a M. Luísa apresenta dificuldades mantidas em termos de motricidade grosseira, com linguagem expressiva pobre, atraso de desenvolvimento psicomotor que requerem terapias ocupacionais, de fala e fisioterapia para melhorar as suas capacidades, bem como que é seguida por hipotiroidismo congénito, resultando do relatório de peritagem que as lesões sequelares, nomeadamente relativas a atraso de desenvolvimento psicomotor, se devem a
diagnóstico estabelecido tardiamente – défice funcional permanente da integridade físico e/ou psíquica da pessoa de 78 pontos.
Ficou provado que se tivesse sido detectada a doença logo após o nascimento, o tratamento teria sido eficaz e não deixaria mazelas na menina, pois se os pais tivessem sido avisados entre 10.º e 15.º dias a contar do nascimento iniciar-se-ia o tratamento e é quase seguro que teria um desenvolvimento normal desde que os pais cumprissem o tratamento. O Dr. V. O. declarou, igualmente, que o objectivo do rastreio é diminuir o tempo de início de tratamento para ser mais eficaz. Além disso, se o teste do “pezinho” tivesse realizado o seu percurso normal teria sido detectada a existência da doença congénita e se a doença de que a M. padece fosse detectada logo após o seu nascimento, para tal bastando que o teste do “pezinho” fosse recepcionado pelo IGM, não existiriam mazelas presentes e futuras desde que os pais cumprissem o tratamento.
Em conclusão, os danos ocorreram em resultado das condutas dos Réus que não lograram provar que a mesma foi indiferente à produção dos danos, pelo que se encontra demonstrado o nexo de causalidade.
Posto isto, estão verificados os pressupostos de que depende a responsabilidade civil dos Réus havendo lugar ao pagamento de uma indemnização pelos danos sofridos.»

Termos em que, por todas as razões explanadas, improcedem os fundamentos de recurso invocados pelas apelantes, impondo-se concluir pela improcedência de ambas as apelações e a consequente confirmação da decisão recorrida.

IV-DECISÃO
Nestes termos, acordam, em conferência, os juízes deste Tribunal em negar provimento aos recursos interpostos por ambas as Apelantes e, em consequência, confirmam o despacho e a sentença recorridos.
Custas das apelações pelas respetivas Apelantes - artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
Registe e notifique.

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Porto, 17 de janeiro de 2020.


Helena Ribeiro
Conceição Silvestre
Alexandra Alendouro