Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01224/06.2BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:05/22/2015
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Esperança Mealha
Descritores:CULPA IN VIGILANDO; RESPONSABILIDADE CIVIL;
FACTO ILÍCITO
Sumário:Não consubstancia ato ilícito, por omissão do dever de vigilância, a circunstância de o Réu hospital não ter evitado a defenestração da Autora, quando se provou que i) a doente encontrava-se internada voluntariamente; ii) não apresentava consciência mórbida ou ideação autodestrutiva; iii) não necessitava de vigilância permanente, mas apenas relacionada com o perigo de fuga; iv) foi deixada sozinha por alguns minutos na sala de convívio, situada no 1º andar do edifício, cujas janelas, que distam 5 metros do solo, têm um mecanismo de segurança.*
*Sumário Elaborado pelo Relator.
Recorrente:AMRC
Recorrido 1:HOSPITAL DE ML, EPE
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum - Forma Ordinária (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
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Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte
1. Relatório
AMRC interpõe recurso jurisdicional da sentença do TAF do Porto, que julgou não verificado o facto ilícito e, em consequência, improcedente a ação que a Recorrente intentou contra o HOSPITAL DE ML, na qual peticiona uma indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que alegadamente sofreu em consequência de ter saltado de uma janela do 1º andar das instalações do Recorrido, durante o seu internamento para tratamento de descompensação psicótica, o que entende ter acontecido por omissão do dever de vigilância do Recorrido e por ausência das necessárias condições de segurança das janelas do edifício.
A Recorrente conclui as suas alegações como se segue:
1. “O presente recurso vem interposto da decisão proferida pelo Tribunal a quo o qual julgou improcedente a pretensão indemnizatória formulada pela A. ao abrigo do instituto da responsabilidade civil extracontratual por entender não se verificar, in casu, a ocorrência de qualquer facto ilícito atribuível à R.
2. O presente recurso tem por objecto não apenas a interpretação e aplicação da lei à factualidade dada como provada, mas visa também a reapreciação da prova produzida, maxime a prova testemunhal (gravada) com vista à impugnação da matéria de facto.
3. Por outro lado, o presente recurso visa também a impugnação da matéria de facto, sendo que o mesmo se impõe, a partir do momento em que a Mª Juiz a quo, deu como provada a matéria constante dos quesitos 54º e 55º
4. Para o efeito, a A. funda a sua discordância no teor dos registos clínicos juntos aos autos; no teor do processo de averiguações interno e o depoimento da Enf. EJ, colhido na sessão de julgamento de dia 4 de Outubro de 2012, com início às 14h.39m.20s e da testemunha SMBSM, obtido no dia de 4 de Outubro de 2012
5. De facto, da conjugação dos citados elementos probatórios, entende a A. que fica demonstrado a violação das regras de prudência comum por banda da R e que se traduzem na omissão do dever de vigilância e omissão do dever de adopção de mecanismos de segurança nas janelas existentes nas suas instalações que efectivamente salvaguardassem a integridade física da A.
6. Relativamente à subsunção de direito ao caso em concreto, entende a Recorrente que, uma vez alterada a resposta aos quesitos sobreditos, ficará amplamente demonstrado que estão reunidos os pressupostos para proceder a pretensão indemnizatória com fundamento no instituto da responsabilidade civil extracontratual.
7. Normas jurídicas violadas: art.º 483º do CC; art.º 6º do DL 48051.
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O Recorrida contra-alegou, concluindo que:
1ª – Devem manter-se as respostas, tal como foram dadas, aos quesitos 54º e 55º da Base Instrutória uma vez que estão em conformidade com a prova produzida.
2ª – Não houve qualquer violação do dever de vigilância por parte dos profissionais do ora recorrido, pois
3ª – Tratava-se de uma doente internada voluntariamente; das diversas vezes que estivera internada no Hospital, ora recorrido, nunca manifestara qualquer ideação auto – destrutiva; na data da ocorrência ia já no 11º dia de internamento, motivado, não por qualquer comportamento auto – destrutivo, mas por descompensação psicótica; não apresentava consciência mórbida; não havendo nada, mesmo nada, que justificasse uma especial vigilância.
4ª – Não houve também qualquer violação do dever de vigilância em relação às condições de segurança nas janelas do Hospital, ora recorrido.
5ª – Os estabelecimentos de Saúde Mental, na área do internamento, destinam-se tanto a doentes internados compulsivamente nos termos da Lei de Saúde Mental como a doentes internados voluntariamente.
6ª – Em relação aos primeiros exigem-se medidas especiais de segurança para evitar fugas e outras situações de desespero.
7ª – Em relação aos segundos – os internados voluntariamente – já não são necessárias tais medidas especiais até porque estes doentes – era o caso da recorrente – podem sair do Hospital sempre que o desejem, desde que assinem o respectivo termo de responsabilidade da alta.
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A Magistrada do Ministério Público junto deste TCA Norte emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso e mantida a sentença recorrida.
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2. Objeto do recurso
O presente recurso, tal como delimitado pelas alegações da Recorrente, tem por objeto:
i) A impugnação dos pontos 54) e 55) da matéria de facto assente, que a Recorrente considera que deviam ter sido dados como não provados;
ii) Erro de julgamento quanto à não verificação do facto ilícito consubstanciado na omissão de deveres de vigilância e de segurança.
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3. Factos
A decisão recorrida considerou assente a seguinte factualidade:
1) A A. padece de uma doença do foro psíquico denominada de psicose atípica;
2) Em virtude daquela doença, a A. foi por diversas vezes internada no Hospital de ML;
3) O R. é um hospital do sector público administrativo, integrado na rede de prestação de cuidados de saúde (com a natureza jurídica estabelecida pela alínea a) do n.° 1 do artigo 2.° da Lei n.° 27/2002, de 8 de Novembro, e pelo Decreto-Lei n.° 188/2003, de 20 de Agosto), tendo por missão a prestação de cuidados de saúde especializados de psiquiatria e de saúde mental à população adulta;
4) Em princípios de Outubro de 2003, em virtude de uma descompensação psicótica da sua doença, a A. foi internada no hospital supra, no serviço PV/ VC;
5) A A. ficou internada sob a responsabilidade médica Dra. SV e aos cuidados do serviço de enfermagem chefiado pela Enfermeira EJ;
6) No dia 10/10/2003, cerca das 11:40 horas, a A. foi conduzida pela Enfermeira EJ a uma sala de estar/convívio para que aí pudesse relaxar e fumar um cigarro;
7) A sala referida situa-se num 1° andar;
8) Aquela sala possui janelas que distam do solo cerca de 5 metros de altura;
9) Como consequência da queda, a A. foi transportada pelo INEM para a Unidade Local de Saúde (ULS) de Matosinhos, onde lhe foram prestados os primeiros socorros, ficando aí internada desde o dia 10 de Outubro até dia 17 do mesmo mês;
10) Posteriormente, em 17/10/2003, foi-lhe dada alta hospital e conduzida daquela ULS para o Hospital de ML;
11) Do relatório de alta clínica consta “Resumo da história clínica: Fractura exposta multicominutiva de pilar tibial direito. Fractura cominutiva calcâneo. Terapêutica efectuada: Encavilhamento peronial direito + maléolo tibeal + osteo-fixação com fixador externo. Osteosíntese com cravo Steim.
Resultado: melhor
Prognóstico: reservado.”
Teve alta, com terapêutica instituída e consulta marcada para o dia 19/11/2003 para fazer radiografia sem gesso;
12) Após ter conduzido a A. à sala descrita nos pontos 6), 7) e 9) deste probatório, a Enfermeira EJ deu-lhe um cigarro, conversou um pouco com a A. e referiu-lhe, então, que ia chamar um dos enfermeiros de serviço para a acompanhar ao exterior quando acabasse de fumar o cigarro;
13) Após, a Enfermeira EJ ausentou-se da sala descrita nos pontos 6), 7) e 8) deste probatório, deixando a A. só e sem qualquer vigilância;
14) A A. saltou por uma das janelas;
15) A roupa e sapatos que a A. trazia ficaram danificados, importando as calças o valor de cerca de 40,00 Euros, a camisola o valor de cerca de 25,00 Euros e os sapatos o valor de cerca de 30,00 Euros;
16) Em 17/10/2003, após ser transferida do Hospital PH... para os serviços do R., a A. foi transportada para “H...- Hospitais Portugueses, S.A.- C...”, tendo despendido a quantia de 40,00 Euros nesse transporte e a quantia de 25,00 Euros na consulta que ali efectuou;
17) Na C... concluíram que a A. apresentava fractura do pilar tibial direito, fractura do calcâneo esquerdo e fractura do corpo vertebral de L2;
18) Naquela clínica foi submetida a operação cirúrgica no dia 05/11/2003, tendo feito:
a) Extracção do fixador externo da perna direita e imobilização do tornozelo com bota gessada;
b) Redução incrucente da fractura do calcâneo esquerdo com reintrodução de novo cravo de gissave e colocação, por agulha, de enxerto ósseo e imobilização gessada do tornozelo com bota gessada;
19) A A. teve alta hospitalar no dia 11/11/2003, para aguardar re-internamento;
20) Para realização da cirurgia descrita no ponto 18 deste probatório e obtenção de cuidados subsequentes, a A. despendeu a quantia de 10.204,57 Euros;
21) A apólice do seu seguro de saúde não cobria este tipo de ocorrências;
22) Àquela quantia acrescem 940,01 Euros relativa à permanência de um acompanhante durante o período de internamento;
23) Em 16/12/2003, a A. deslocou-se novamente aos HOSPITAIS PORTUGUESES, S.A. (H...), tendo pago 8,00 Euros pela deslocação e 70,35 Euros na consulta de ortopedia efectuada, consumos farmacêuticos, consumos de armazém e pensos;
24) Desde o dia 10 de Outubro até meados de Dezembro, a A. esteve totalmente impossibilitada de realizar com autonomia as actividades da vida diária, familiar e social;
25) A partir de finais de Dezembro, é que a A., ainda com limitações, retomou algumas daquelas actividades;
26) A A. sofreu violentas dores aquando da queda, bem como com as cirurgias e durante o período de convalescença e fisioterapia;
27) Actualmente, a A. sente dores nos pés e pernas, mais acentuadas nas mudanças climatéricas;
28) A A., após a queda descrita nos pontos 9, 14 e 47 deste probatório passou a coxear;
29) A A. move-se devagar e com custo e nunca mais poderá voltar a correr;
30) A A. tem dificuldade em desempenhar grande parte das actividades domésticas que desempenhava anteriormente- varrer, aspirar, limpar pó, carregar com sacos, lavar e passar a roupa, lavar a loiça e cozinhar;
31) A A. tem grande dificuldade em ajoelhar-se e não consegue permanecer de pé durante muito tempo;
32) Antes da ocorrência do descrito nos pontos 9 e 11 deste probatório, a A. ia à piscina e fazia caminhadas com o seu marido;
33) Hoje em dia não pratica qualquer desporto;
34) Durante a Primavera e o Verão, a A. fica ainda mais angustiada, pois sente-se fisicamente diminuída perante as outras mulheres;
35) As cicatrizes decorrentes das cirurgias desfearam-lhe a perna direita;
36) O descrito no ponto 31 implica para a A. limitação em termos de desempenho de natureza sexual, pois encontra-se mais limitada em termos de movimento e agilidade;
37) É provável que a A. venha a carecer do auxílio de muletas/bengala para obter mais autonomia nas suas deslocações;
38) A A. tem necessidade de recorrer a assistência prestada por terceira pessoa para complemento ou substituição na realização da lide doméstica que anteriormente estava a seu cargo, e para auxílio no vestir e calçar;
39) É provável que ocorra agravamento das sequelas descritas nos pontos 29, 30 e 31 deste probatório;
40) Na data descrita no ponto 6 deste probatório, a A. tinha 29 anos e era vaidosa e alegre;
41) Após o descrito nos pontos 6, 9 e 12 deste probatório deste probatório, a A. ficou mais triste;
42) Os sintomas da doença mental de que a A. sofre se têm vindo a agravar, tendo sido aumentada a sua medicação para dormir;
43) A sua qualidade de vida diminuiu;
44) A realização de cirurgia plástica pode atenuar as cicatrizes deixadas pelas operações;
45) Os cigarros eram controlados à A.;
46) As janelas da sala descrita nos pontos 6, 7 e 8 deste probatório tinham fecho de segurança;
47) Escassos minutos após a Enfermeira EJ se ter ausentado da sala descrita nos pontos 6, 7 e 8 deste probatório, a A. saltou por uma das janelas da mesma sala;
48) A A. foi de imediato socorrida pela Enfermeira EJ e dois outros Enfermeiros, bem como pelo médico Dr. MM, que a observou e enviou, de imediato, para o Hospital PH..., em Matosinhos;
49) Nem todas as janelas do Hospital R. têm um sistema de segurança;
50) A A. era uma doente internada voluntariamente;
51) Das diversas vezes que estivera internada no Hospital R. nunca manifestara qualquer ideação auto destrutiva;
52) À data do acidente a A. ía na segunda semana de internamento;
53) A A. não apresentava consciência mórbida;
54) A A. não necessitava de uma vigilância permanente;
55) Nada fazendo prever o seu comportamento a sua defenestração;
56) Se a A. continuasse a ser tratada no Hospital PH... e Hospital ML nada teria pago;
57) Após o acidente, a A. voltou a recorrer ao Hospital R. para ali ser internada;
58) Nesse internamento, a A. não demonstrou valorizar a ocorrência de 10/10/2003, mostrando afeição pela sua médica assistente e pelo pessoal de enfermagem;
59) Foi recomendado à A. repouso no leito até indicação médica em contrário por causa da fractura do corpo vertebral de L2, tendo sido dadas instruções à Enfermagem do R. sobre os tratamentos a ministrar à A.;
60) Todos os tratamentos, designadamente cirúrgicos a que a A. foi submetida na C..., ser-lhe-iam prestados no PH... ou noutro Hospital oficial ou privado que tivesse protocolo estabelecido com a Segurança Social se a A. a eles tivesse acorrido;
61) A A. indicou à C... a Companhia de Seguros T… como a entidade responsável pelo pagamento dos tratamentos;
62) A A. era beneficiária da Segurança Social com o n° 132… , tendo sido esta instituição que pagou os tratamentos por si efectuados no Hospital PH....
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4. Impugnação da matéria de facto
4. 1. Os pontos 54.º e 55.º da matéria de facto
A Recorrente considera que deviam ter sido dados como não provados os pontos 54.º e 55.º da matéria de facto, onde foi considerado provado o seguinte:
54) A A. não necessitava de uma vigilância permanente;
55) Nada fazendo prever o seu comportamento a sua defenestração;
Cumpre lembrar que as competências dos Tribunais Centrais Administrativos em sede de intervenção na decisão da matéria de facto encontram-se reguladas, por força da remissão do artigo 140.º do CPTA, nos artigos 640.º e 662.º do CPC/2013, que acolheram um regime que, de um lado, assume a alteração da matéria de facto como função normal da 2.ª instância e, do outro, não permite recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto, mas apenas admite a possibilidade de revisão de “concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências pelo recorrente” (v. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra, 2014, 130). Neste contexto, recai sobre o recorrente, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, o ónus de especificar, por um lado, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e, por outro, os concretos meios probatórios que, no seu entender, impunham decisão diversa da recorrida, quanto a cada um dos factos que entende que deviam ter sido dados como provados ou não provados, incluindo a indicação exata das passagens da gravação, no caso de depoimentos gravados (artigo 640.º do CPC).
No caso em apreço, a recorrente não cumpre adequadamente este ónus de impugnação, por várias razões.
Primeiro, porque não individualizou, relativamente a cada um dos pontos da matéria de facto que impugna, os meios probatórios que, no seu entender, ditavam resposta diversa; segundo, porque não especificou os concretos meios probatórios dos quais retira essa conclusão, limitando-se a indicar genérica e integralmente os documentos e o depoimento que reputa relevantes, sem especificar qual a parte (ou partes) dos mesmos a que se quer referir.
Na verdade, a Recorrente limita-se a referir, quanto a ambos os pontos da matéria de facto aqui impugnados, que os mesmos deviam ter sido dados como não provados, com base nos seguintes elementos probatórios: registos clínicos referentes ao internamento da A., enviados a tribunal em 2009/04/03; depoimento da Enf. EJ, colhido na sessão de julgamento de dia 04.10.2012, com início ao 14h39m20s; relatório de averiguações interno. Mas a Recorrente não individualiza os excertos desses documentos, nem indica com exatidão as passagens da gravação do depoimento que, no seu entender, contrariam os factos dados como provados no pontos 54.º e 55.º da matéria de facto, o que estava obrigada a fazer sob pena de rejeição do recurso nesta parte, nos termos do disposto no artigo 640.º/1-b)/2-a) do CPC/2013.
Embora a Recorrente aluda a alguns excertos concretos de gravações de depoimentos (indicando a hora e minuto da gravação) e transcreva parte de dois depoimentos (de SSM e da Enfermeira EJ), verifica-se que essas indicações mais concretas não dizem respeito aos factos constantes dos pontos 54.º e 55.º, únicos aqui impugnados. Na verdade, a Recorrente faz uso desses excertos probatórios para discutir as condições em que se encontrava o fecho da janela e se teria sido estroncado, ou não, quando é certo que não impugnou os factos relativos a tal janela, que constam dos pontos 46), 47) e 49) dos factos provados.
Da mesma forma, a Recorrente transcreve excertos dos relatórios médicos, do diário de enfermagem para demonstrar que existia “perigo de fuga” e que este se encontrava registado nos documentos clínicos. Acontece que o facto consubstanciado no “perigo de fuga” é distinto dos factos constantes dos pontos 54.º e 55.º e, só por si, não contradiz estes factos. Verifica-se, aliás, que o elenco da matéria de facto é totalmente omisso quanto a tal perigo de fuga, omissão que, como a seguir veremos, deverá ser suprida, mas que não determina qualquer alteração aos pontos 54.º e 55.º dos factos, que incluem factos diversos e não incompatíveis com aquele.
Resta dizer que as razões indicadas pelo tribunal recorrido para dar como provados os factos constantes dos pontos 54.º e 55.º são sólidas e coerentes, desde logo porque se baseiam nos registos clínicos, mas também, em grande parte, no depoimento da médica psiquiatra MSGV, médica que acompanhava a autora/Recorrente há cerca de 20 anos (e que o tribunal considerou ser uma “profunda conhecedora da patologia de que a A. padecia, das caraterísticas e manifestações da mesma, bem como da personalidade da A.”), tendo a referida médica, no seu depoimento, afastado perentoriamente a ideação suicida do horizonte patológico da autora, quer no que se refere ao internamento no período em causa, quer quanto a internamentos anteriores e posteriores ao referido período. O tribunal recorrido baseou-se, ainda, nos registos clínicos e diário de enfermagem relativamente ao internamento da A. nos serviços do R., no período de 29/09/2003 a 10/10/2003, dos quais retirou a conclusão de que a A. necessitava de vigilância, “relacionada exclusivamente com o perigo de fuga” e que no seu processo clínico nada constava que induzisse a convicção de que a A. carecia de vigilância permanente, tendo tal desnecessidade sido afirmada também pela referida médica psiquiátrica (cfr. fls. 603 e 604 dos autos).
Ora, como já referido, ao tribunal de recurso não compete repetir o julgamento da matéria de facto efetuado pelo tribunal de 1.ª instância, nem pronunciar-se sobre impugnações genéricas da matéria de facto, mas apenas lhe incumbe rever concretas questões de facto controvertidas, o que exige que o recorrente concretize as divergências que pretende ver apreciadas em sede de recurso. No caso vertente, fica por saber quais são essas divergências relativamente aos pontos 54) e 55) da matéria de facto, apenas se conhecendo que a Recorrente considera que aqueles pontos da matéria de facto deviam ter sido dados como não provados, ambos com base em dois documentos e um depoimento, que indica de forma ampla, sem concretizar as passagens dos mesmos de onde retira tal conclusão.
Em suma, não há fundamento para alterar os pontos 54) e 55) da matéria de facto, improcedendo o recurso nesta parte.
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4.2. Aditamento aos factos provados
Ao abrigo dos artigos 662.º/1 e 665.º/1/2 do CPC/2013, adita-se o seguinte facto, que se encontra documentado nos autos e é relevante para a decisão:
63) No processo clínico da autora do Hospital de ML, encontrava-se registado o aviso de “perigo de fuga”, tendo a autora saído ocasionalmente para passeios no exterior, acompanhada por enfermeiro (cfr. fichas de observação e diários de enfermagem, nomeadamente, dos dias 29.09.2003, 30.09.2003 e 01.10.2003, constantes de fls. 303-375 dos autos, em suporte digital).
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5. Erro de julgamento - omissão dos deveres de vigilância e de segurança
A Recorrente intentou ação contra o Hospital Recorrido para indemnização dos danos sofridos em consequência de defenestração, alegando, no essencial, a falta de condições de segurança (por falta de fechos de segurança nas janelas) e a omissão de vigilância (por ter sido deixada sozinha) durante o seu internamento (voluntário) nesse hospital, em virtude de descompensação psicótica, no decurso do qual, no dia 10.10.2003, a Recorrente saltou por uma janela da sala de convívio situada no 1º andar.
A sentença recorrida julgou improcedente a ação por considerar não verificados os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, nos termos previstos nos artigos 483.º e s. do CCiv e no Decreto-Lei n.º 48051 (em vigor a data), concretamente, o facto ilícito consubstanciado na alegada omissão de vigilância e de condições de segurança. O tribunal recorrido, depois de citar extensamente as modernas teorias da psiquiatria, que propugnam que o acompanhamento dos doentes com patologia da saúde mental deve acontecer em ambiente de confiança e mobilidade de movimentos, devendo a sua vigilância decorrer de modo discreto, e depois de detalhar as circunstâncias de facto em que ocorreu o internamento voluntário da Autora/Recorrente e o episódio de defenestração, concluiu que a Autora era uma doente internada voluntariamente, que nunca tinha revelado ou manifestado qualquer ideação autodestrutiva, nem durante aquele internamento (que já durava há mais de 10 dias), nem nos anteriores, e que na data em saltou da janela, a Autora não apresentava consciência mórbida, não necessitava de uma vigilância permanente e nada fazia prever o comportamento da sua defenestração, apenas se encontrando registado o perigo de fuga que determinava que fosse acompanhada por um enfermeiro nos seus passeios pelo exterior do pavilhão. Ou seja, o tribunal recorrido, apoiando-se em jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo sobre casos paralelos, considerou que no caso não ocorria omissão do dever de vigilância, na medida em que não estavam demonstrados factos que tornassem previsível o comportamento da Autora que, por isso, não era um perigo representável. Além disso, a sentença recorrida considerou que não ficaram provadas as condições em que se encontrava a janela em questão, nomeadamente, se a mesma estava aberta ou se tinha sido a Autora a forçar o respetivo fecho.
A Recorrente contesta o assim decidido, defendendo que o Réu/Recorrido violou regras de prudência comum, omitiu deveres de vigilância e omitiu medidas de segurança eficazes que evitassem a defenestração.
Considera a Recorrente que, no domínio dos serviços de saúde, a “prudência comum” consiste na percepção de determinados estados patológicos dos utentes e na adoção dos comportamentos que se revelem adequados para afastar, na medida do possível, os riscos que a manutenção ou evolução daquelas patologias poderá acarretar. Mais entende que a defenestração da autora/Recorrente não era totalmente imprevisível, na medida em que, estando a autora identificada com risco de fuga, o meio escolhido não era inidóneo ou completamente imprevisível, podendo a sua atividade delirante impedi-la de calcular mal a distância entre a janela e o solo; além disso, a medicina não é uma ciência exata, havendo sempre um grau de imprevisibilidade inerente aos internamentos de doentes mentais. Sustenta, ainda, que o réu/Recorrido não dotou as janelas da sala em questão dos meios técnicos necessários a prevenir um acidente como o que ocorreu, nomeadamente, janelas basculantes, fechos de segurança, vidros inquebráveis ou vigilância por vídeo.
O Recorrido contrapõe que a patologia diagnosticada à Recorrente não justificava uma especial vigilância, além de que se tratava de uma doente internada voluntariamente que, por isso, não exigia medidas especiais (destinadas a doentes internados compulsivamente), até porque poderia sair do Hospital sempre que o desejasse, desde que assinasse o respetivo termo de responsabilidade da alta.
Também o Magistrado do Ministério Público junto deste TCAN se pronunciou no sentido de a Autora/Recorrente não ter logrado provar a verificação in casu de um ato (omissão) ilícito e culposo da autoria do R./Recorrido.
No caso vertente, a Autora/Recorrente imputa duas omissões ilícitas ao Réu/Recorrido: a omissão do dever de vigilância e a omissão de deveres de segurança quanto às condições das janelas da sala em questão.
Ficou provado que as janelas por onde a autora/Recorrente saltou (situadas no 1º andar, a cerca de 5 metros de altura do solo) tinham fecho de segurança, mas nada se provou quanto às circunstâncias concretas em que se encontravam as janelas no momento do acidente. Nomeadamente, não se provou que as janelas em causa já estivessem abertas, nem se provou o seu contrário, ou seja, que as mesmas janelas se encontravam fechadas, com o fecho acionado (cfr. respostas aos quesitos 3.º e 46.º).
Perante a prova produzida, forçoso é concluir que não há fundamento para considerar que o Réu/Recorrido violou deveres de segurança: por um lado, porque se provou que as janelas em causa tinham um fecho ou mecanismo de segurança; e, por outro lado, porque a Autora/Recorrente não logrou provar que no concreto momento do acidente esse dispositivo de segurança tenha falhado (nomeadamente, por as janelas se encontrarem abertas, como alegara) sendo certo que o ónus de tal prova recaía sobre a Autora (cfr. artigos 342.º/1 e 486.º do CCiv). Em nosso entender a colocação de fechos de segurança nas janelas em causa cumpre suficientemente o dever que incumbe ao Réu/Recorrido de manter os doentes internados em segurança, pois se é verdade que outros dispositivos impossibilitariam de todo em todo uma situação de defenestração (como seria o caso da colocação de grades nas janelas ou de vidros inquebráveis, sem qualquer abertura), não pode esquecer-se que a opção por dispositivos de segurança que não são totalmente invioláveis, não equivale necessariamente a uma falta de prudência do hospital, mas antes tem subjacente uma ponderação de outros valores, que se prendem com o ambiente do internamento. Acresce que a colocação de fechos de segurança é um mecanismo de segurança que se afigura suficiente e adequado, atendendo à natureza da sala em questão que, como ficou provado, servia como “sala de estar” ou “sala de convívio”, sendo também esse o fim visado no dia do trágico acidente, quando a enfermeira levou a Autora/Recorrente à referida sala para que aí “pudesse relaxar e fumar um cigarro”.
Como bem salienta a decisão recorrida, as modernas teorias da Psiquiatria propugnam por um paradigma terapêutico dos doentes do foro psiquiátrico em ambiente de confiança e em condições físicas que propiciem liberdade e autonomia de movimentos. Isso mesmo é reconhecido em Relatórios da Organização Mundial de Saúde e da União Europeia, citados na sentença recorrida, onde se propugna o “abandono dos cuidados em grandes instituições carcerárias a favor de um tratamento, mais aberto e flexível, na comunidade” e se faz notar a falência do paradigma comummente adoptado até meados do século XX, de prestação de cuidados de saúde a doentes mentais em hospitais ou instituições de tipo clausura. Mais importante, o atual paradigma terapêutico tem consagração legal no nosso ordenamento jurídico, nomeadamente no artigo 3.º da Lei de Saúde Mental (Lei n.º 36/98, de 24 de julho, alterada pela Lei n.º 101/99, de 26 julho), que estabelece os princípios gerais de política de saúde mental, entre os quais a referida preferência pelos cuidados promovidos a nível da comunidade e também, no que aqui mais releva, o princípio de que “os cuidados de saúde mental são prestados no meio menos restritivo possível”.
No caso em apreço, o Réu é prestador de serviços de cuidados de saúde mental em ambiente institucionalizado, estando obrigado à adopção do referido paradigma terapêutico dos doentes do foro psiquiátrico e devendo guiar-se pelos princípios da citada Lei de Saúde Mental. Nomeadamente, o hospital Réu tem um dever de assegurar o direito dos seus utentes internados a usufruir de “condições dignas de habitabilidade, higiene, alimentação, segurança, respeito e privacidade” (cfr. artigo 5.º/1-f) da Lei de Saúde Mental). Assim, os deveres que recaem sobre o Réu/Recorrido, quanto à segurança dos doentes ali internados, não são absolutos, mas antes coexistem com outros, que, nomeadamente, passam pela necessidade de oferecer terapêuticas adequadas “no meio menos restritivo possível”.
Este contexto – que tem em consideração a natureza da prestação de cuidados de saúde aqui em causa e as boas práticas que a orientam e também as circunstâncias do caso concreto – leva-nos a concluir que a colocação de fechos de segurança nas referidas janelas é uma medida adequada e suficiente à natureza do estabelecimento em causa e àquela sala (de estar ou convívio) em concreto. Pelo que, não tendo a Autora/Recorrente logrado provar que no momento do acidente ocorreu uma qualquer falha na ativação desse mecanismo de segurança das janelas, que seja imputável ao Réu/Recorrido, não pode considerar-se verificado o facto ilícito invocado, consubstanciado na violação de deveres de segurança.
No que respeita à invocada omissão do dever de vigilância, ficou provado, na parte que mais releva, que após ter conduzido a Autora à dita sala de convívio, a Enfermeira EJ deu-lhe um cigarro, conversou um pouco com a Autora e referiu-lhe, então, que ia chamar um dos enfermeiros de serviço para a acompanhar ao exterior quando acabasse de fumar o cigarro, tendo-se ausentado em seguida e deixado a Autora só e sem qualquer vigilância. Escassos minutos após a Enfermeira EJ se ter ausentado da referida sala, a Autora saltou por uma das janelas da mesma sala, tendo em resultado da queda sofrido fraturas e lesões várias. Mais se provou que a Autora não necessitava de vigilância permanente e que nada no seu comportamento fazia prever a defenestração. Provou-se também que no processo clínico da autora do Hospital de ML, encontrava-se registado o aviso de “perigo de fuga”, tendo a autora saído ocasionalmente para passeios no exterior, acompanhada por enfermeiro (facto acima aditado, que a sentença recorrida, embora tenha omitido do elenco de factos provados, não deixou de ter em consideração na fundamentação de direito, nomeadamente, ao analisar a imprevisibilidade do comportamento da autora).
Com base neste facto, a sentença recorrida concluiu que o comportamento de defenestração não era previsível, nas circunstâncias de tempo e de lugar concretas, e que a conduta do Réu não era censurável, com os seguintes fundamentos, no essencial:
(...) importa assinalar que o perigo de fuga por banda da A. encontra-se registado no processo clínico, sendo por isso que a A. era acompanhada por um enfermeiro nos seus passeios pelo exterior do pavilhão. Tal circunstancialismo denota que a A. necessitava de vigilância apertada, relacionada exclusivamente com o perigo de fuga, sucedendo que, no que concerne ao estado clínico da A., não existe registo no processo clínico que induza a convicção de que a A. carecia de vigilância permanente, tendo tal desnecessidade sido também afirmada pela testemunha Maria da Soledade.
Sendo assim, considerando o exposto, entendemos que não é possível afirmar que o comportamento da A. agora em apreço era,
E a esta conclusão não obsta o facto de estar identificado o perigo de fuga por parte da A., pois que, atendendo à autonomia e independência de que os doentes devem gozar durante o internamento sempre que a tal nada obste, torna-se praticamente impossível impedir a adopção de tais comportamentos impetuosos e absolutamente imprevisíveis, a não ser com a aplicação de um regime de internamento em confinamento, isolamento ou restrição, o que, não só não é o adequado à recuperação terapêutica, como é totalmente desaconselhado pela ciência médico-psiquiátrica (art.ºs 3º, n.º 1, al.s a) e b) e 5º, n.º 1, al.s f) e g) da Lei n.º 36/98, de 24 de Julho).
Concomitantemente, importa mencionar que dos autos nada resulta que pudesse, no caso específico da A., justificar a adopção de tratamento involuntário nos dias que antecederam o dia 10/10/2003, visto que não era previsível que viesse a adoptar o comportamento em causa, nem que o seu juízo crítico estivesse tão deteriorado, em conformidade com o prescrito nos art.ºs 7º, al a), 8º e 12º da Lei n.º 36/98, de 24 de Julho (Lei da Saúde Mental). O que implica afirmar que, de acordo com a factualidade inserida no probatório, não se verificavam os pressupostos de emergência de que depende o internamento compulsivo ou a adopção de procedimentos restritivos, como o isolamento ou confinamento (sobre estas questões e no sentido agora apontado, ver Livro de Recursos da OMS sobre Legislação Mental, Direitos Humanos e Legislação- Cuidar, sim- Excluir, não, Organização Mundial de Saúde, 2005, pp. 61 a 81).
(...) uma vigilância permanente do doente implicaria, do ponto de vista logístico, ou que o doente deambulasse sempre acompanhado por uma espécie de guarda pessoal, ou que fossem implantados mecanismos de vigilância electrónica (v.g. a pulseira electrónica) que permitissem, em cada momento, verificar a localização do doente ou que impedissem o mesmo de sair do perímetro do estabelecimento onde se encontra internado. Todavia, e como já se frisou supra, tal híper vigilância não só se revela impraticável e contendente com a concepção terapêutica psiquiátrica propugnada, como é apológica de uma visão carcerária para o tratamento do doente mental.
E é de salientar que o doente mental, estando em estado de equilíbrio do ponto de vista médico- e, portanto, em situação de não ser expectável ou previsível a adopção de comportamentos de auto ou heteroagressão-, não deve ser tratado como se fosse um incapaz, mentecapto ou criminoso. O que significa que, o procedimento assumido pelo R. no caso concreto não merece reparo.
Desta feita, sopesando criticamente o exposto, entendemos ser de concluir que os serviços do R. não são merecedores de censura, dado que funcionam regularmente e consonantemente com o padrão médio expectável para serviços de saúde pública de idêntica natureza, considerando, especialmente, as propostas terapêuticas da moderna ciência médico-psiquiátrica.
No presente recurso, a Recorrente contrapõe que o seu comportamento não pode ser considerado totalmente imprevisível, já que o salto pela janela não constituiu um meio inidóneo para empreender uma fuga (para cujo perigo o Réu/Recorrido estava alertado), nomeadamente, porque o seu estado delirante pode tê-la levado a confundir a distância entre a janela e o solo e, de qualquer forma, uma fuga sempre pode ser empreendida por uma janela que dista cerca de 5m do solo. Mais alega que o Réu Hospital não tem apenas que acautelar o risco de suicídio dos doentes, mas também, como era aqui o caso, o risco de fuga. Invoca ainda que não sendo a medicina uma ciência exata, não pode tomar-se como seguro a alega imprevisibilidade da defenestração, antes incumbindo ao Réu/Recorrido tomar todas as medidas no sentido da minoração desse risco, o que no caso, não fez, uma vez que deixou a Autora/Recorrente só e sem qualquer vigilância.
Contudo, a argumentação da Recorrente decai perante os factos provados e perante o conteúdo do dever de vigilância aqui em causa, pelas razões já avançadas, no essencial, pela sentença recorrida, que merecem inteira concordância.
Como tem sido salientado na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (aliás, invocada na decisão recorrida), precisamente sobre o dever de vigilância de hospital sobre doente internado, o “dever de vigilância só existe em relação a perigos representáveis por um avaliador prudente”, pelo que “não estando provado um qualquer facto gerador da suspeita de que um doente internado num hospital pudesse tentar o suicídio e sabendo-se que a vigilância que sobre ele recaiu era conforme à patologia diagnosticada e aos riscos previsíveis, não pode dizer-se que o facto de ele se atirar ex abrupto de uma janela adveio de culpa in vigilando” (cfr. sumário do Acórdão do STA, de 29.01.2009, P. 0966/08 e, antecedentemente, no mesmo sentido, os Acórdãos do STA, de 06.12.2006, P. 0921/06 e de 25.11.1998, P. 038737). E, mais recentemente, conclui o Acórdão do STA, de 29.05.2014, P. 0922/11: “Não é ilícita a conduta do Hospital réu, permitindo que um doente do foro psiquiátrico, ali internado, deambulasse livremente no seu perímetro circundante e que veio a suicidar-se, se não ocorreram factos que tornassem previsível tal conduta.

Extrai-se desta jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo uma orientação no sentido de “não estender o dever de vigilância das instituições hospitalares para além de um suporte de facto que suficientemente o explique e justifique” (em sentido concordante, v. também o Acórdão do TCAS, de 21.06.2012, P. 08532/12).
Note-se que, nos termos do disposto no artigo 486.º do CCiv, a omissão dá lugar à obrigação de reparar os danos quando há, por força da lei ou de negócio jurídico, “dever de praticar o ato omitido”. No caso, impende sobre o hospital Réu um dever de vigilância dos seus internados, que implica uma proteção inclusivamente de si próprios. Contudo, “porque é virtualmente impossível prevenir todos os riscos, é excessivo crer-se que só pela eliminação completa deles se observaria um tal dever. O que aos entes públicos do género se exige é que representem todos os riscos prováveis e, de entre os demais possíveis, os que, por não serem extraordinários ou fortuitos, ainda possam caber nas expectativas de um avaliador prudente («vide» os arts. 4º, n.º 1, do DL n.º 48.051, de 21/11/67, e 487º, n.º 2, do Código Civil); e, em seguida, exige-se que tais entes previnam os riscos representados, desde que não haja motivos logísticos ou orçamentais que, «ab extra», o impossibilitem.” (Acórdão do STA, de 29.01.2009, P. 0966/08, citado).
A própria Recorrente acaba por não questionar este entendimento, segundo o qual o dever de vigilância do Recorrido não ultrapassa a representação dos riscos prováveis; o que a Recorrente verdadeiramente contesta é que a sua defenestração fosse imprevisível. No entanto, o salto da Recorrente – através de uma janela que distava 5 metros do solo e na qual estava instalado um dispositivo de segurança – não constitui um “perigo representável”, na medida em que ficou provado que a Recorrente não apresentava consciência mórbida, nada fazendo prever no seu comportamento a sua defenestração, assim como se provou que não necessitava de uma vigilância permanente, mas apenas de vigilância “relacionada exclusivamente com o perigo de fuga”.
A circunstância de a Recorrente nunca ter revelado ideação autodestrutiva (nem no internamento em causa, que se prolongava há cerca de 10 dias, nem em internamentos anteriores no mesmo hospital) e a natureza voluntária do internamento, também não permitem afirmar que era previsível que a Recorrente desconsiderasse os perigos para sua integridade física que adviriam de um salto de uma janela que distava 5 metros do solo. Note-se que a Recorrente, apesar de sofrer de doença do foro psíquico, não tinha qualquer incapacidade jurídica (tanto assim que sempre agiu em nome próprio, nomeadamente, quanto à decisão de internamento, que tomou voluntariamente), nem logrou provar que no momento do acidente estivesse afetada de uma incapacidade temporária, que não lhe permitisse avaliar as consequências do salto que empreendeu da citada janela.
Neste contexto, não recaia sobre o Recorrido o dever de determinar medidas de vigilância permanente sobre a Recorrente, não apenas porque não era previsível um comportamento da Recorrente que justificasse tais medidas, mas também porque tais medidas restritivas não deviam ser adoptadas sem que esse perigo fosse representável. Na verdade, a vigilância permanente ou o confinamento da Recorrente, sem justificação aparente, seria contrária ao paradigma aconselhado para o tratamento de doentes do foro psiquiátrico que, como referido, se pauta pelo princípio de que “os cuidados de saúde mental são prestados no meio menos restritivo possível” (cfr. artigo 3.º da Lei de Saúde Mental).
Assim, não consubstancia ato ilícito, por pretensa omissão de dever de vigilância, a circunstância de o Réu hospital não ter evitado a defenestração da autora/Recorrente, quando se provou que i) a doente encontrava-se internada voluntariamente; ii) não apresentava consciência mórbida ou ideação autodestrutiva; iii) não necessitava de vigilância permanente, mas apenas relacionada com o perigo de fuga; iv) foi deixada sozinha por alguns minutos na sala de convívio, situada no 1º andar do edifício e cujas janelas, que distam 5 metros do solo, têm um mecanismo de segurança.
Em suma, tal como conclui a sentença recorrida, não se mostram comprovadas as omissões ilícitas imputadas ao Réu, decaindo os pressupostos da responsabilidade civil e improcedendo o presente recurso.
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6. Decisão
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pela Recorrente, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário que lhe foi concedido.
Porto, 22.05.2015
Ass.: Esperança Mealha
Ass.: Rogério Martins
Ass.: Luís Migueis Garcia