Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01070/08.9BECBR
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:12/13/2018
Tribunal:TAF de Coimbra
Relator:Ana Patrocínio
Descritores:IMPOSTO DE SELO, TRESPASSE, ESTABELECIMENTO COMERCIAL, FARMÁCIA, INCIDÊNCIA OBJECTIVA E SUBJECTIVA, QUANTIFICAÇÃO, VALOR DO TRESPASSE
Sumário:
I - Para efeitos de tributação, a qualificação do negócio jurídico efectuada pelas partes, mesmo em documento autêntico, não vincula a Administração Tributária - nos termos do n.º 4 do artigo 36.º da Lei Geral Tributária.
II – Trespasse é o contrato pelo qual se transmite definitiva, e, em princípio, onerosamente, para outrem, juntamente com o gozo do prédio, a exploração de um estabelecimento comercial ou industrial nele instalado: implica a transferência, em conjunto, das instalações, utensílios, mercadorias ou outros elementos que integram o estabelecimento e que, transmitido o gozo do prédio, nele se continue a exercer o mesmo ramo de comércio ou indústria.
III - Tendo sido efectuada uma transmissão definitiva, onerosa, para outrem, juntamente com o gozo do prédio, da exploração de um estabelecimento comercial nele instalado, estamos perante um verdadeiro trespasse de um estabelecimento comercial (farmácia).
IV – Estando previsto no artigo 1.º, n.º 1 do Código do Imposto de Selo e na Tabela anexa, no ponto 27.1, o trespasse de estabelecimento comercial, é de concluir que a operação efectuada está sujeita a Imposto de Selo, na medida em que não é devido IVA, in casu, pela mesma – cfr. artigo 3.º, n.º 4 do Código do IVA.
V – O conceito de trespasse utilizado na doutrina civilista não coincide inteiramente com o mesmo conceito utilizado na contabilidade, sendo mais amplo nesta.
VI – A taxa de 5% prevista na verba 27 da Tabela Geral anexa incide sobre o valor declarado, ou seja, o preço constante do acto ou contrato, que englobará todos os bens e direitos transmitidos.
VII - A redacção do artigo 2.º, n.º 1, alínea p) do Código do Imposto de Selo – que indica o trespassante como sujeito passivo de imposto de selo nos trespasses de estabelecimento comercial, industrial ou agrícola – somente foi introduzida pela Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro. *
*Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:PGPU, Lda
Recorrido 1:Autoridade Tributária e Aduaneira
Votação:Unanimidade
Decisão:
Conceder provimento ao recurso
Revogar a sentença recorrida
Julgar a impugnação procedente e anular a liquidação
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido de dever ser negado provimento ao recurso
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. Relatório
PGPU, Lda., com sede na C…, Lugar L…, na Marinha das Ondas, pessoa colectiva n.º 5…02, interpôs recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, proferida em 29/11/2010, que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida contra as liquidações adicionais de Imposto de Selo e juros compensatórios, nos montantes de €30.000,00 e de €2.945,75, respectivamente.
A Recorrente terminou as suas alegações de recurso formulando as conclusões que se reproduzem de seguida:
a) O presente recurso é interposto no seguimento da Sentença, datada de 29 de Novembro de 2010, proferida no âmbito dos autos de impugnação judicial que correram termos sob o n.° 1070/08.9BECBR, junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, a qual julgou improcedente a referida impugnação e, consequentemente, manteve na ordem jurídica o acto de liquidação de Imposto do Selo n.° 2007 6430003571, no valor de 30.000,00 e o acto de liquidação de juros compensatórios n.° 2007 00002037701, no valor de € 2.94575.
b) A Recorrente celebrou um contrato de trespasse mediante o qual adquiriu um estabelecimento comercial de farmácia, bem como um "posto de medicamentos" dependente daquela farmácia, pelo preço de € 171.497,64 (correspondente ao valor atribuído ao trespasse, no montante de €110.000,00, com o valor das existências em stock, no montante de € 61,497,64), tendo, nesse âmbito, pago um montante de Imposto do Selo, com base na taxa de 5% prevista na Verba 27.1 da TGIS, no valor de € 8.574,88.
c) Na sequência de uma acção de inspecção, foi a Recorrente notificada da liquidação adicional n.° 2007 6430003571, através da qual lhe foi exigido o pagamento de imposto aiegadamente em falta no montante de € 30.000,00, correspondente à diferença entre o imposto que deveria ter sido, liquidado, no montante de 38.574,88, por aplicação da taxa de 5%, à soma dos activos incorpóreos "transmitidos", no valor total de € 771.497,64, e o valor que já havia sido liquidado por ocasião da celebração do contrato (€ 8.574,88).
d) Não se conformando com a referida liquidação, e após indeferimento da reclamação graciosa por si apresentada, a ora Recorrente apresentou, junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, petição inicial de impugnação judicial contra os referidos actos de liquidação, no âmbito da qual invocou os seguintes vícios e ilegalidades: i) ilegalidade por inexistência de facto tributário; ii) ilegalidade por erro na quantificação da matéria colectável e inconstitucionalidade por violação do princípio da capacidade contributiva; iii) ilegalidade por erro na quantificação da matéria colectável e inconstitucionalidade por violação do princípio da capacidade contributiva; e iv) a ilegalidade dos juros compensatórios liquidados.
e) A 2 de Dezembro de 2010, foi a Recorrente notificada da Sentença, proferida em 29 de Novembro de 2010, nos termos da qual a impugnação judicial apresentada. foi julgada improcedente e, por consequência, absolvida a Direcção de Finanças de Coimbra.
f) Não pode, por diversas ordens de razão, a Recorrente conformar-se com o entendimento perfilhado na Sentença Recorrida, a qual deverá ser revogada e substituída por outra conforme às normas e princípios jurídicos aplicáveis.
g) No que à matéria de facto considerada, provada diz respeito, deverá ser fixado, em conformidade com o contrato de trespasse celebrado, que a venda por trespasse do estabelecimento em causa foi efectuada pelo preço de € 171.497,64, com todos os seus elementos constitutivos, nomeadamente existências, no montante de € 61.497,64, bem os passivos correspondentes a dívidas a fornecedores que totalizam um montante de € 661,497,64.
h) Ainda no que diz respeito à matéria de facto considerada provada diz respeito, deverá ser fixada, em conformidade com o que resulta do contrato celebrado, e bem assim, com os valores então contabilizados, que o valor atribuído ao trespasse ascende a €110.000,00, ao invés de € 100.000,00, porquanto é esse o valor que corresponde à diferença entre o valor pago a título de preço e as existências (€171.497,64 - € 61.497,64).
i) No que ao vício de inexistência de facto tributário diz respeito; a Exma. Senhora Juíza a quo parece entender que o mesmo improcede por força do carácter residual que caracteriza o Imposto do Selo, conjugada com o facto de a operação ora em apreço não se encontrar, no caso concreto, sujeita a IVA.
j) A este respeito, considera a Recorrente, contrariamente ao que parece fazer crer o teor da Sentença, que nenhuma norma, nem, tão-pouco, o invocado n.° 2 do artigo 1.0 do Código do Imposto do Selo, determina que todos os factos excluídos da incidência de IVA devem, por essa razão e sem mais, estar sujeitos a Imposto do Selo. Efectivamente, por força do principio da tipicidade, além do requisito da não incidência efectiva em 1VA, os factos sujeitos a Imposto do Selo devem constar das suas normas de incidência objectiva.
k) E, sendo certo que a tributação dos trespasses, em sede de Imposto do Selo, se encontra prevista na Verba 27.1. da referida TGIS, perante a ausência da concretização do conceito de trespasse no Código do Imposto do Selo, tal conceito deverá, conforme determina o n.° 2 do artigo 11.° da Lei Geral Tributária, ser preenchido pelo sentido que lhe é conferido, neste caso, no Novo Regime do Arrendamento Urbano (aprovado pela Lei n,° 612006, de 27 de Fevereiro), o qual determina que tal conceito deve ser entendido, como a transmissão onerosa e definitiva, por acto entre vivos, da posição do arrendatário, acompanhada da transferência, em conjunto, das instalações, utensílios, mercadorias e outros elementos que integrem o estabelecimento, conquanto o trespassário continue a exercer a mesma actividade no estabelecimento trespassado.
l) Efectivamente, para efeitos civilisticos, o contrato de trespasse caracteriza-se pela cedência definitiva do estabelecimento como um todo, desde que este todo inclua a posição do arrendatário do prédio urbano onde o estabelecimento está instalado, devendo, também, ser esse o conceito relevante para efeitos fiscais, designadamente para efeitos de tributação em sede de Imposto do Selo.
m) Assim, cumpre concluir que, na medida em que o trespasse celebrado entre a Recorrente e a anterior proprietária do estabelecimento não comportou a transmissão da posição de arrendatária, por esta última ser também a proprietária do imóvel onde está instalado o estabelecimento, o referido contrato não consubstancia um trespasse na acepção jus-civilistica do termo consagrada no artigo 1112.° do Código Civil, pelo que, nessa medida, não estava o mesmo sujeito ao Imposto do Selo prevista na Verba 27,1 da TGIS.
n) Assim, também a Sentença recorrida ao concluir pela sujeição das operações em análise a Imposto do Selo, enferma de ilegalidade, por erro sobre pressupostos de facto e de direito, violando o disposto na Verba 27.1 da TGIS devendo, por essa razão, ser revogada, em conformidade.
o) Quanto ao erro sobre os pressupostos de direito e por violação da lei de autorização legislativa, a Exma. Senhora Juíza a quo parece entender que o encargo do imposto deverá recair sobre o adquirente dos bens, atento o disposto no artigo 3.°, n.° 3, alínea a) do Código do Selo, refutando o invocado em sede de impugnação judicial, também pelo facto de a Recorrente ter procedido ao pagamento do imposto.
p) Neste âmbito, não obstante não existir uma referência expressa, no Código do Imposto do Selo, quanto à entidade, no caso dos trespasses, que reveste a qualidade de sujeito passivo, decorre expressamente do teor da autorização legislativa constante do artigo 68.° da Lei n.° 26/2003, de 30 de Julho, que o sujeito passivo deste imposto consiste no trespassante, devendo, por sua vez, o encargo do imposto, ser suportado pelo adquirente.
q) Assim sendo, e sem conceder, mesmo admitindo a sujeição do contrato ora em apreço a Imposto do Selo — o que só por mera cautela e dever de patrocínio se admite —, atendendo a que, nestes casos, o sujeito passivo deste imposto é o trespassante, eventuais correcções, nesta sede, teriam de ser imputadas a essa entidade (a Exma. Sra. Dra. ABO) e, não, à ora Recorrente.
r) Importa ainda referir que o entendimento perpassado pela Sentença em crise, a respeito da determinação do sujeito passivo no contrato de trespasse se encontra ferido de ilegalidade, por violação de lei de carácter reforçado, na medida em que reitera a interpretação manifestamente contrária à lei, no âmbito da qual não é aplicada de forma adequada o que expressa e inequivocamente determinava a respectiva lei habilitante — o artigo 68.° da Lei n.° 26/2003, de 30 de Julho.
s) Assim, a Sentença recorrida ao manter na ordem jurídica o acto de liquidação impugnado por concluir que a Recorrente é no caso vertente sujeito passivo de imposto fez uma errada aplicação do artigo 2.° do Código do Imposto do Selo, o qual não pode deixar de ser interpretado em conformidade com o artigo 68.° da Lei n.° 26/2003, de 30 de Julho, sob pena de violação de lei de caracter reforçado, devendo, também por esta razão, ser revogada, em conformidade.
t) Relativamente ao erro na quantificação da matéria tributável, a Exma. Senhora Juíza a quo parece entender que o valor global do contrato celebrado corresponde ao somatório dos valores respeitantes às existências e ao passivo, devendo o Imposto do Selo ser liquidado sobre o somatório dos referidos valores.
u) Com efeito, atentando aos contornos do contrato celebrado pela Recorrente, constatamos que, por via do trespasse, esta assumiu nas suas contas a totalidade do passivo do estabelecimento, no valor de 661.497,64, correspondente a dívidas a fornecedores, adquirindo apenas, em contrapartida, activos no valor de €111.497,64.
v) Ainda que a Recorrente admita que os contratos de trespasse possam ser tributados em função da diferença entre o preço pago e a diferença — positiva — entre o valor dos activos e passivos transmitidos, o que traduz, em regra, a justa medida da capacidade contributiva demonstrada, e se apresenta, em regra também, mais favorável que o valor da preço, tal critério não poderá ser aplicável nas situações em que o valor da empresa seja negativo.
w) Sendo verdadeiramente insustentável a tese veiculada na decisão em crise, segundo a qual o valor tributável do trespasse não corresponde nem à referida diferença, nem ao preço, mas afinal à soma de todos os elementos envolvidos: preço, activos e, inclusivamente,passivos.
x) Efectivamente, não obstante a norma de incidência em apreço não estabelecer o que se deverá entender por 'valor do trespasse" para efeitos da aferição da base tributável, nem este se encontrar abrangido por nenhuma das regras especiais de determinação do valor tributável, em homenagem e por respeito ao princípio da capacidade contributiva consagrado no artigo 104.° da Constituição da República Portuguesa, nunca poderá a respectiva base tributável ser superior à contrapartida paga pelo adquirente do direito a título de preço.
y) De onde se conclui que, ao apurar o valor do Imposto do Selo alegadamente devido em função da celebração do contrato de trespasse, por referência à soma dos valores corpóreos e incorpóreos registados pela Recorrente em contas de fornecedores e outros credores, incorre a douta Sentença em apreço, em ilegalidade por manifesto erro sobre os pressupostos de facto e de direito do imposto.
z) Assim, e sem prejuízo do anteriormente exposto, a Sentença recorrida, ao pretender que a Recorrente liquide Imposto do Selo por referência à soma dos valores corpóreos e incorpóreos por si registados em contas de fornecedores e outros credores, incorre em manifesto erro sobre os pressupostos de facto e de direito, uma vez que o acto impugnado é manifestamente ilegal por violação não só do disposto na Verba 27.1 da TGIS, mas também inconstitucional por violação dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva, consagrados nos artigos 13.° e 104,° da Constituição da República Portuguesa, devendo, por ser razão, ser revogada a Sentença ora em apreço.
aa) Por fim, no que à ilegalidade dos juros compensatórios respeita, a Exma. Senhora Juíza a quo refere apenas que os mesmos se integram na própria dívida do imposto, com a qual são conjuntamente liquidados.
bb) Porém, compulsados os autos, resulta evidente que em momento algum é feita qualquer referência a que o suposto retardamento da liquidação do imposto tenha resultado de facto imputável à Recorrente, única situação em que seriam devidos juros compensatórios.
cc) Na verdade, pese embora liquidados conjuntamente com a própria divida de imposto, os juros compensatórios não são uma sua mera decorrência, carecendo por isso de fundamentação autónoma, expressa, acessível e contextuai, como qualquer outra matéria objecto de correcção na sequência de procedimento de inspecção tributária.
dd) Ora, é patente no caso em apreço, que nenhuma culpa recai sobre a Recorrente no retardamento da liquidação com base noutro valor, tendo esta inclusive — pese embora erradamente, dado não constituir o sujeito passivo do imposto — procedido tempestivamente ao pagamento do imposto aquando da celebração do contrato.
ee) Assim, a Sentença recorrida ao não determinar a anulação do acto de liquidação de juros compensatórios impugnado fez uma errada aplicação da disposição constante no artigo 35.° da Lei Geral Tributária, devendo ser revogada em conformidade.
NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO APLICÁVEIS, SEMPRE COM O DOUTO SUPRIMENTO DE VOSSAS EXCELÊNCIAS, DEVERÁ O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE E, ASSIM, SER REVOGADA A SENTENÇA DE 29 DE NOVEMBRO DE 2010 E, CONSEQUENTEMENTE,TAMBÉM SEREM ANULADOS OS ACTOS DE LIQUIDAÇÃO DE IMPOSTO DO SELO E DE JUROS COMPENSATÓRIOS, ATENTA A MANIFESTA ILEGALIDADE DOS MESMOS, COM AS DEMAIS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS.”
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Não houve contra-alegações.
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O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de dever ser negado provimento ao recurso.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO – QUESTÕES A APRECIAR
Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sendo que importa decidir se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento da matéria de facto e de direito, quanto à existência do facto tributário, à incidência subjectiva e à quantificação do facto tributário.
III. Fundamentação
1. Matéria de facto
Da sentença prolatada em primeira instância, consta decisão da matéria de facto com o seguinte teor:
A). Factos Provados
É o seguinte o elenco dos factos a dar como provados e considerados com interesse, em face dos elementos documentais juntos, para a presente decisão:
1 – O processo de impugnação judicial deu entrada neste Tribunal em 04.12.2008.
2 – A liquidação adicional de Imposto de Selo nº. 20076430003571, de 13.12.2007, no valor de € 30 000,00 e respectivos juros compensatórios correspondentes à liquidação adicional com o nº. 200700002037701, datada de 13.12.2007, no valor de € 2 945,75, correspondente à nota de cobrança nº. 20071361174, no total de € 32 945,75, com a data limite de pagamento era de 21.01.2008, conforme resulta do teor de fls. 43 que aqui se dá por integralmente reproduzido.
3 - A demonstração de liquidação do Imposto de Selo nº. 2007 00001361174, do ano de 2005 e correspondente à liquidação nº. 2007 6430003571, com data de análise 2007.12.03, com compensação em 2007.12.13, referente a transferências onerosas de actividades ou de exploração de serviços, no ano de 2005, no valor de imposto de € 30 000,00, sendo que a demonstração de liquidação de juros compensatórios, sobre o valor base de € 30 000,00, com data de início contagem em 2005.06.21 e data de fim em 2007.12.03, num total de 896 dias, à taxa de 4%, apurando-se um valor de € 2 945,75, perfazendo um valor total de € 32 945,75, estando, por meio desta, a impugnante notificada para proceder ao pagamento dos montantes acima indicados até 2008.01.21, conforme resulta do documento nº. 3 junto aos autos e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
4 - Por ofício nº. 16368, de 17.11.2008, a divisão de justiça tributária da Direcção de Finanças de Coimbra, referente ao processo nº. 338/311 remeteu aos mandatários da firma impugnante através de correio registado, com aviso de recepção, a notificação do despacho de 17.10.2008 que indeferiu a reclamação graciosa deduzida e para exercer o direito de audição, conforme os termos constantes do documento nº. 1 junto aos autos e cujos termos se dão aqui por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
5 – O despacho de indeferimento do Director de Finanças, por Delegação proferido no âmbito da reclamação graciosa nº. 0744200804000161 em 2008.11.17 foi o seguinte: “Concordo, pelo que, tornando definitivo o projecto de decisão notificado, nos mesmos e precisos termos que o intentaram, (…) da informação infra, indefiro o pedido da reclamante, tanto mais que do direito do audição exercido não resultaram novos factos ou outros elementos que nos permitam modificar tal sentido da decisão. Procedimentos consequentes.”, na sequência da informação de 14.11.2008, conforme documento junto a fls. 32 dos autos e cujos termos se dão aqui por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
6 – Por ofício nº. 3082, de 03.11.2008, no âmbito do processo nº. 338/311, remetido por correio registado e referente à reclamação graciosa nº. 0744200804000161, através do qual, foi a impugnante notificada para exercer o direito de audição, por escrito, conforme resulta do teor do documento nº. 7 junto aos autos e cujos termos se dão aqui por integralmente reproduzidos.
7 - A impugnante exerceu o direito de audição em 13.11.2008, na sequência da notificação do ofício nº. 3082, de 03.11.2008, conforme teor de fls. 33 dos autos cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
8 – Por despacho do Director de Finanças, por Delegação ALFDM proferido em 2008.10.31 decidiu-se nos seguintes termos: “Confirmo o sentido proposto do pedido da R. (…) indefiro, nos termos e fundamentos constantes da informação que segue. Notifique-se nos termos e para os efeitos do artigo 60º. da LGT”, conforme teor de fls. 34 dos autos cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
9 – Em 7 de Março de 2008, a impugnante apresentou reclamação graciosa das liquidações de imposto de selo e juros compensatórios referidas em 2)., nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 49º., do Código do Imposto de Selo (CIS) e artigo 69º do Código de Procedimento e Processo Tributário, no 1º Serviço de Finanças da Figueira da Foz, conforme resulta da informação constante de fls. 35 conjugada com o documento nº. 2 de fls. 42 dos autos cujo teor dos mesmos se dá aqui por integralmente reproduzido.
10 – A firma impugnante “PGPU, Ldª.”, em 9 de Maio de 2005, celebrou um contrato de trespasse por via do qual adquiriu a ABF o estabelecimento comercial, denominado “FO” instalado na fracção autónoma identificada pela letra “A”, correspondente ao rés-do-chão do prédio urbano constituído segundo o regime de propriedade horizontal, sito na Rua P…, em L…, Marinha das Ondas, pelo valor global de € 832 995,28, pelo qual pagou o preço de € 171 497,64, do qual, a quantia de € 100 000,00 correspondeu ao valor atribuído ao trespasse, pelos bens activos/existências em stock (inclui no valor de € 61 497,649), mais tendo assumido o pagamento do passivo do estabelecimento no valor de € 661 497,64 (valor relativo a dívidas a fornecedores), incluindo o “posto de medicamentos” dependente daquela Farmácia instalado na sala correspondente ao rés-do-chão frente, do prédio urbano sito no lugar de C…, na freguesia de P…, concelho de Figueira da Foz, conforme resulta do teor do documento nº. 4 junto aos autos a fls. 44 a 49 e cujos termos se dão aqui por integralmente reproduzidos.
11 - Conforme documento impresso em 20.02.2008, em 5 de Maio de 2005, a impugnante “PGPU, Lda.” com a celebração do referido contrato de trespasse escriturou os seguintes registos contabilísticos a crédito e a débito, no valor total financeiro de € 771 497,64, conforme melhor discriminado no documento nº. 5 junto a fls. 50 dos autos e que aqui se dão por integralmente por reproduzidos.
12 – A adquirente e trespassária procedeu à liquidação do valor de imposto sobre o valor tributável de € 171 497,64, de acordo com a verba 27.1 da TGIS em vigor, tendo sido apurado o valor de Imposto de Selo a pagar de € 8 574,88, conforme teor de fls. cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
13 - A impugnante através da celebração do contrato de trespasse adquiriu o estabelecimento descrito em 10) acompanhado de todos os elementos integrantes do seu activo, nomeadamente, as existências no valor de € 61 497,77, equipamentos diversos, valorizados em € 50 000,00 e ainda o conjunto do passivo constituído por dívidas a fornecedores, no montante total de € 661 497,64, conforme consta dos termos do contrato junto aos autos e cujos termos se dão aqui por integralmente reproduzidos.
14 – Os Serviços de Inspecção Tributária, no âmbito da acção de inspecção onde procederam à análise da contabilidade daquele e realizada, em 31.12.2007, elaboraram o relatório junto aos autos e, no qual, concluíram nos seguintes termos: “analisaram a contabilidade da adquirente, deram os valores registados como correcto e apuraram para efeitos de imposto de selo o valor tributável de € 771 497,64. Como já havia sido liquidado e pago o imposto calculado sobre o valor tributável de € 171 497,60, desencadearam ao procedimento para liquidação adicional sobre a diferença de € 600 000,00. O imposto liquidado adicionalmente foi de e 30 000,00, mais juros compensatórios de € 2 945,75, conforme teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
15 – E, por consequência, aqueles Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de Coimbra entenderam proceder à correcção do valor do Imposto de Selo liquidado em função da realização do referido contrato, por considerarem que o valor do trespasse, para efeitos de apuramento do valor tributável do imposto previsto na verba 27.1 da TGIS, deveria ter sido determinado pela soma dos activos incorpóreos “transmitidos”, ascendendo, no caso vertente, esse valor à totalidade das quantias despendidas pelo SP para aquisição do trespasse do estabelecimento comercial em causa.
16 – O estabelecimento comercial é destinado à actividade farmácia, sendo constituído por uma farmácia, sita em Leirosa, instalada em edifício da trespassante e um “posto de medicamentos”, sito no Lugar de C..., P..., instalado em edifício arrendado.
17 – A Divisão de Justiça Tributária da Direcção de Finanças de Coimbra, através da informação de 13.10.2008, elaborada no âmbito da reclamação graciosa nº. 0744200804000161 concluiu nos seguintes termos: “Por tudo quanto fica exposto entendo que não merece provimento o pedido de anulação liquidação adicional reclamada. Entendo que a reclamação deve ser indeferida e que deve ser promovida a rectificação da liquidação adicional, devendo o imposto ser apurado com base no valor tributável de € 8 995,28”, conforme resulta do teor de fls. 32 a 39 dos autos e cujos termos se dão aqui por integralmente reproduzidos.
18 – A informação e despacho foram remetidos por correio registado, com aviso de recepção à reclamante que foi recebido em 2008.11.17, conforme resulta do teor de fls. 40 e 41 dos autos e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
19 – Em 3 de Dezembro de 2007, na sequência da ordem de serviço nº. OI200701477 foi elaborado o relatório de inspecção tributária, na sequência da acção inspectiva realizada ao sujeito passivo “PGPU, Ldª.”, inscrita no CAE nº. 052310, sita na Rua C…, Praia de L…, Marinha das Ondas, na Figueira da Foz-1, no período compreendido entre 2007.08.01 (data de início) e 2007.10.08 (data da conclusão), correspondente ao exercício fiscal referente ao ano de 2005 pelos técnicos inspectores PP e AAS, conforme resulta do teor do documento nº. 6 junto aos autos e que aqui se dá por reproduzido.
20 – No relatório elaborado conclui-se por uma correcção aritmética da matéria tributável, em sede de imposto de selo, no valor de € 30 000,00.
21 - Em 3 de Dezembro de 2007, no âmbito do relatório referido em 13) foi dado o seguinte parecer: “o contribuinte efectuou um contrato de trespasse em 2005.05,09, sem que tenha liquidado o imposto de selo sobre a totalidade do valor da transacção. Nestes termos, falta liquidar imposto de selo (verba 27.1 da TGIS) referente a parte do trespasse do estabelecimento comercial denominado “FO”. O valor do Imposto de selo em falta é de € 30 000,00. Á consideração superior”.”, conforme teor do documento nº. 6 junto a fls. 51 e cujos termos se dão aqui por integralmente reproduzidos.
22 - O parecer que antecede foi objecto, em 4 de Dezembro de 2007, do seguinte despacho do Director de Finanças Adjunto, por delegação, AAAN “Concordo com as conclusões do relatório e determino o(s) valor(es) proposto(s) para tributação”, conforme teor do documento nº. 6 junto a fls. 61 dos autos e cujos termos se dão aqui por integralmente reproduzidos.
23 - O relatório resultante da acção inspectiva foi remetido por correio registado com aviso de recepção em 2007.12.07 à impugnante, tendo sido recebido nessa mesma data, conforme resulta do teor de fls. 58 cujos termos se dão aqui por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
Mais resultou provado:
24 - PCMS e MGP é sócia-gerente da firma impugnante e é técnico oficial de contas PMSF.
25 - O sujeito passivo está colectado pelo exercício da actividade de “comércio a retalho de produtos farmacêuticos”, no CAE 52310, desde 2005.04.22 e, em sede de IVA, estava enquadrado no regime normal, com periodicidade mensal e, em sede de IRC, sendo tributado segundo as regras de contabilidade organizada.
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B). Factos Não Provados:
Todos os demais factos que não estejam incluídos no elenco acima enunciado e que, tendo sido alegados, não se incluam em expressões de direito ou conclusivas.
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C). Convicção do Tribunal:
A convicção do tribunal quanto aos factos provados resultou fundamentalmente do teor da prova documental que integra o processo de impugnação e o processo administrativo e que não tendo sido impugnados quanto ao seu conteúdo, produzem prova plena dos factos que neles estão descritos, nos termos das regras gerais.”
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2. O Direito
Do quadro conclusivo das alegações do recurso resulta a imputação de erro de julgamento à decisão da matéria de facto, sustentando a Recorrente que no probatório, face ao teor do próprio contrato de trespasse celebrado, deverá fixar-se a seguinte matéria de facto:
- A venda por trespasse do estabelecimento em causa foi efectuada pelo preço de € 171.497,64, com todos os seus elementos constitutivos, nomeadamente existências, no montante de € 61.497,64, bem como os passivos correspondentes a dívidas a fornecedores que totalizam um montante de € 661,497,64.
- O valor atribuído ao trespasse ascende a €110.000,00, ao invés de € 100.000,00, porquanto é esse o valor que corresponde à diferença entre o valor pago a título de preço e as existências (€171.497,64 - € 61.497,64).
De entre a factualidade provada, consta, além do mais, o seguinte:
“(…) 10 – A firma impugnante “PGPU, Ldª.”, em 9 de Maio de 2005, celebrou um contrato de trespasse por via do qual adquiriu a ABF o estabelecimento comercial, denominado “FO” instalado na fracção autónoma identificada pela letra “A”, correspondente ao rés-do-chão do prédio urbano constituído segundo o regime de propriedade horizontal, sito na Rua P…, em L…, Marinha das Ondas, pelo valor global de € 832 995,28, pelo qual pagou o preço de € 171 497,64, do qual, a quantia de € 100 000,00 correspondeu ao valor atribuído ao trespasse, pelos bens activos/existências em stock (inclui no valor de € 61 497,649), mais tendo assumido o pagamento do passivo do estabelecimento no valor de € 661 497,64 (valor relativo a dívidas a fornecedores), incluindo o “posto de medicamentos” dependente daquela Farmácia instalado na sala correspondente ao rés-do-chão frente, do prédio urbano sito no lugar de C..., na freguesia de P..., concelho de Figueira da Foz, conforme resulta do teor do documento nº. 4 junto aos autos a fls. 44 a 49 e cujos termos se dão aqui por integralmente reproduzidos.
(…)
13 - A impugnante através da celebração do contrato de trespasse adquiriu o estabelecimento descrito em 10) acompanhado de todos os elementos integrantes do seu activo, nomeadamente, as existências no valor de € 61 497,77, equipamentos diversos, valorizados em € 50 000,00 e ainda o conjunto do passivo constituído por dívidas a fornecedores, no montante total de € 661 497,64, conforme consta dos termos do contrato junto aos autos e cujos termos se dão aqui por integralmente reproduzidos. (…)”
O pedido de alteração da matéria de facto, bem visto, não deixa de encerrar uma contradição, dado que, por um lado, a Recorrente pretende corrigir o probatório no sentido de a venda do estabelecimento comercial, através de trespasse, ter sido efectuada pelo preço do contrato, que totaliza €171.497,64, incluindo as existências e o passivo e, por outro lado, solicita que o valor atribuído ao trespasse seja corrigido para €110.000,00.
De todo o modo, considerando o que já consta do ponto 13 do probatório, entendemos mais adequado que o ponto 10 reflicta fielmente o clausulado do contrato, denominado de trespasse, e que se mostra ínsito nos autos, cabendo ao julgador efectuar a interpretação do mesmo e retirar as devidas ilações, evitando condicionar o julgamento de direito ao definir no probatório um valor a atribuir ao trespasse.
Nesta conformidade, alteramos o fixado no ponto 10 do probatório, de acordo com as cláusulas relevantes do contrato em apreço:
10 – A firma impugnante “PGPU, Ldª.”, em 9 de Maio de 2005, celebrou um contrato denominado de trespasse, por via do qual adquiriu a ABO o estabelecimento comercial, denominado “FO”, instalado na fracção autónoma identificada pela letra “A”, correspondente ao rés-do-chão do prédio urbano constituído segundo o regime de propriedade horizontal, sito na Rua P…, em L…, Marinha das Ondas, concelho de Figueira da Foz, pelo preço de € 171.497,64, com todos os seus elementos constitutivos do activo, nomeadamente existências no valor de € 61.497,649 (a preço de custo, líquido de IVA), bem como com os passivos aos fornecedores (que se discriminam na cláusula 2.ª no valor global de € 661 497,64 - montante relativo a dívidas a fornecedores), incluindo o “posto de medicamentos”, dependente daquela Farmácia, instalado na sala correspondente ao rés-do-chão frente, do prédio urbano sito no lugar de C..., na freguesia de P..., concelho de Figueira da Foz, com o alvará de funcionamento n.º 3709, conforme resulta do teor do documento n.º 4 junto ao processo físico a fls. 44 a 49 e cujos termos se dão aqui por integralmente reproduzidos.
Estabilizada a decisão da matéria de facto, vejamos, agora, a primeira questão colocada quanto ao apontado erro de julgamento de direito:
Está em causa averiguar acerca da existência do facto tributário, ou seja, saber se o facto tributário em apreço tem enquadramento legal, em termos de incidência, no ponto 27.1 da Tabela Geral anexa ao Código de Imposto de Selo (TGIS):
“(…) 27 Transferências onerosas de actividades ou de exploração de serviços:
27.1 Trespasses de estabelecimento comercial, industrial ou agrícola - sobre o seu valor - 5% (…)”
Atenta a decisão da matéria de facto, estará em causa uma aquisição conjunta de uma farmácia e um posto de medicamentos, e, na sequência de uma acção inspectiva, foi detectado que o imposto de selo foi liquidado em valor inferior à quantia efectivamente devida.
Embora a Recorrente tenha pago imposto de selo, veio colocar em questão a sujeição ao mesmo daquela operação.
Não está questionado o enquadramento jurídico efectuado na sentença recorrida, nem a abordagem ou articulação com o IVA e o afastamento da incidência de IVA, apoiados no Acórdão do STA, de 05/05/2010, proferido no âmbito do processo n.º 36/10. Isto é, em termos de delimitação negativa da incidência, concluiu-se estarem sujeitos a Imposto de Selo (IS), sendo-lhes por isso aplicável a verba 27.1 da TGIS, por não estarem sujeitos a Imposto sobre o Valor Acrescentado, os trespasses de estabelecimento comercial, industrial ou agrícola que ocorram entre sujeitos passivos de IVA e em que o adquirente afecte o estabelecimento ao exercício de uma actividade tributável em IVA, ou seja, os trespasses enquadráveis no artigo 3.º, n.º 4 do CIVA; como seria o caso em apreciação.
Está, essencialmente, em análise a tese perfilhada pela Recorrente de que o contrato celebrado, para efeitos da tributação operada, não consubstancia um trespasse, por não ter comportado a transmissão da posição de arrendatário na pessoa do trespassário, uma vez que a trespassante é proprietária do imóvel onde está instalado o estabelecimento – Farmácia.
Assim, na óptica da Recorrente, como não estamos perante um verdadeiro trespasse, inexiste o facto tributário, não sendo devido o Imposto de Selo.
O Código do Imposto de Selo (CIS), em termos de incidência, tem plasmado nos artigos 1.º e 2.º, o princípio segundo o qual, relativamente às operações em que haja sujeição a Imposto sobre o Valor Acrescentado, não há sujeição a Imposto de Selo.
No âmbito da Tabela Geral do Imposto de Selo (TGIS, anexa ao CIS) existem algumas normas de incidência do imposto, ao logo das várias verbas que a compõem, que integram operações que, em determinadas circunstâncias, estão sujeitas a Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), exigindo, por isso, uma correcta delimitação do seu campo de incidência, seja quanto àquilo que abrangem (delimitação positiva da incidência), seja quanto ao que delas está excluído (delimitação negativa da incidência).
Um desses casos é o da verba 27.1 da TGIS, nos termos da qual incide o Imposto de Selo (IS) sobre o trespasse de estabelecimento comercial, industrial ou agrícola.
Em termos de delimitação positiva da incidência do Imposto de Selo sobre os trespasses de estabelecimento e, por consequência, da verba 27.1 da TGIS, mostra-se necessário, desde logo, precisar o conceito de trespasse de estabelecimento comercial, industrial ou agrícola.
Na verdade, apesar de as partes terem denominado o acordo que formalizaram como “trespasse”, não existe uma sujeição do intérprete ou da Administração Tributária a essa qualificação, importando começar por delimitar o conceito jurídico de trespasse, na medida em que a Recorrente afirma a descaracterização do negócio jurídico por faltar a transmissão da titularidade do arrendamento sobre as instalações da farmácia.
Estamos, portanto, em presença de uma qualificação do negócio jurídico (feita pelas partes aquando da sua formalização, e, entretanto, pela ora Recorrente de forma diversa) eventualmente não condizente com a realidade.
As partes são livres de contratar e estipular o conteúdo dos contratos (cfr. artigo 405.º/1 e 2 do Código Civil). Mas uma coisa é o conteúdo dos contratos, e outra o "nomen juris" que lhes é dado.
Em sede de interpretação da vontade contratual das partes, releva a substância do negócio, através das características e conteúdos que lhe são impressos, e não o nome que se lhe atribui (cfr. artigo 238.º/1 do Código Civil).
Aliás, para efeitos de tributação, a Administração Fiscal não pode estar sujeita à qualificação que os contribuintes entendam atribuir aos seus negócios.
O n.º 4 do artigo 36.º da Lei Geral Tributária diz expressamente que a qualificação do negócio jurídico efectuada pelas partes, mesmo em documento autêntico, não vincula a Administração Tributária.
Nos termos do n.º 1 do artigo 371.° do Código Civil, os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos neles atestados com base nas percepções da entidade documentadora.
E - como escrevem Pires de Lima e Antunes Varela, em comentário ao mesmo normativo - o valor probatório pleno do documento autêntico não respeita a tudo 0 que se diz ou se contém no documento, mas somente aos factos que se referem praticados pela autoridade ou oficial público respectivo (ex: procedi a este ou àquele exame) e quanto aos factos que são referidos no documento com base nas percepções da entidade documentadora, por exemplo, o notário afirma que, perante ele, o outorgante disse isto ou aquilo, fica plenamente provado que o outorgante o disse; mas não fica provado que seja verdadeira a afirmação do outorgante, ou que esta não tenha sido viciada por erro, dolo ou coacção, ou que o acto não seja simulado.
De todo o modo, in casu, o apelidado trespasse foi formalizado em documento particular, não residindo dúvidas acerca da não vinculação da qualificação do negócio efectuada pelas partes.
De resto, e como é sabido, ao Direito Fiscal não é indiferente a tributação dos efeitos económicos pretendidos pelas partes, que, na realidade, se tenham produzido: é o que se tem denominado por "realismo" do mesmo Direito - a consideração económica dos factos ou actos com relevância tributária (cfr. a este respeito o acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 04/04/2001, proferido no recurso n.º 25469).
Salientamos que não consta do CIS, nem, concretamente, da norma de incidência do ponto 27.1 da TGIS, qualquer definição do conceito de trespasse. Tão-pouco o percurso dos restantes normativos tributários nos permite encontrar a definição deste conceito. Assim, temos que recorrer a outros ramos de direito e, nomeadamente, ao direito civil, para determinarmos o que deve entender-se por trespasse – cfr. artigo 11.º da Lei Geral Tributária que estabelece no seu n.º 2 “sempre que, nas normas fiscais se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei”.
Como se refere na sentença recorrida, o conceito de trespasse, durante muito tempo, não foi definido de forma uniforme, nem pela legislação, nem pela doutrina.
O recurso ao previsto pela lei civil mostra-se evidente e necessário.
Assim, o conceito de trespasse, considerando a evolução legislativa operada ao nível do artigo 115.º do Regime do Arrendamento Urbano (RAU) e, posteriormente, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, obtém-se por via da interpretação a contrario das situações que ali são elencadas como não configurando um trespasse (cfr. previsão do artigo 1112.º, n.º 2 do Código Civil), as quais, pese embora a diferente redacção legal, se reconduzem às situações anteriormente previstas no artigo 115º. do RAU.
Conforme refere M. Januário Gomes, in "Arrendamentos Comerciais", 2.ª ed., Almedina, pp. 162, "o art. 115 do R.A.U. não visa definir ou disciplinar esta figura: é, antes, uma disposição que regula uma situação jurídica que pode ocorrer, havendo trespasse."
Portanto, não encontramos aqui vertida qualquer definição do conceito de trespasse, continuando esta expressão a servir para autonomizar as situações em que é permitida a transmissão por acto entre vivos da posição do arrendatário, sem dependência da autorização do senhorio.
Inicialmente, o conceito de trespasse esteve associado pela jurisprudência e doutrina também à transmissão do direito ao arrendamento, mas, actualmente, há já doutrina que defende que o trespasse do estabelecimento não pressupõe necessariamente a transmissão do local onde ele está instalado.
O que define um contrato como trespasse “é a transmissão inter-vivos, definitiva, unitária e onerosa de um estabelecimento comercial, ou seja, de uma organização económico-jurídica constituída por bens materiais destinados ao serviço de determinado comércio ou indústria” – cfr. Acórdão da Relação de Coimbra, de 16/02/1993, Col. Jur. Ano XVIII, tomo I, pág. 47.
Também o acórdão do STJ, de 30/04/1996, proferido no recurso n.º 088194, refere que o contrato de trespasse se caracteriza pela transmissão definitiva e, em princípio onerosa, para outrem, juntamente com o gozo do prédio, da exploração de um estabelecimento comercial ou industrial nele instalado: implica a transferência comercial, em conjunto, das instalações, utensílios, mercadorias ou outros elementos que integram o estabelecimento e que, transmitindo o gozo do prédio, nele se continue a exercer o mesmo ramo de comércio ou indústria – cfr. Jorge Alberto Aragão Seia in Arrendamento Urbano, 7.ª edição revista e actualizada, Coimbra, Almedina, 2004, página 674 e Col. Jur. Acs. STJ, Ano IV, Tomo II, pág. 42.
Podemos, por isso, afirmar que, por via do trespasse, o cedente transmite definitivamente o bem económico, traduzido numa universalidade de direito do estabelecimento comercial – cfr. Acórdão do STA, de 12/04/2000, proferido no âmbito do processo n.º 022347.
Lembremos que o conceito de estabelecimento comercial abrange o conjunto ou complexo de coisas corpóreas e incorpóreas organizado para o exercício do comércio por determinada pessoa singular ou colectiva - cfr. Barbosa de Magalhães in Do Estabelecimento Comercial, 2.ª edição, pág. 13.
Na sentença recorrida afirma-se o seguinte:
“(…) Pelo que estaremos perante um trespasse sempre que ocorrer a transmissão onerosa e definitiva, por acto entre vivos, da posição de arrendatário acompanhada da transferência, em conjunto, das instalações, utensílios, mercadorias e outros elementos que integrem o estabelecimento. É ainda requisito do conceito de trespasse que o trespassário continue a exercer a mesma actividade no estabelecimento trespassado, exigindo-se ainda um requisito de forma que é a redução do contrato a escrito.
Contrato que se caracteriza, pois, pela cedência definitiva do estabelecimento como um todo, exigindo-se igualmente que este inclua a posição de arrendatário do prédio urbano onde o estabelecimento está instalado. No trespasse da universalidade que constitui o estabelecimento vai, assim, incluído todo o somatório de elementos materiais e imateriais que integram a organização da empresa, desde as mercadorias, móveis, a clientela, as patentes e segredos de fabrico, aos contratos, licenças e alvarás, entre outros elementos.
No Código do Imposto de Selo (doravante CIS) determina-se a sujeição a este imposto dos “trespasses de estabelecimento comercial, industrial ou agrícola”, como decorre da verba 27.1 da TGIS, sendo o trespasse integrado nas “transferências onerosas de actividades ou de exploração de serviços”.
Nestes termos, podemos concluir que o conceito de trespasse utilizado no âmbito do Código do Imposto de Selo é o que decorre do direito civil, ou seja, o trespasse é o negócio jurídico, em princípio oneroso, pelo qual se opera a transmissão definitiva, por acto entre vivos, da titularidade de um estabelecimento, sendo este constituído por um conjunto de bens e direitos. (…)”
No caso concreto, temos que está em causa a celebração de um contrato denominado de trespasse, cujo objecto da cessão foi uma farmácia - esta instalada no imóvel propriedade da alienante/trespassante, tendo, em simultâneo, na data de celebração do contrato de trespasse sido ainda celebrado um contrato de arrendamento comercial com a adquirente - e um “Posto de Medicamentos” – por sua vez, instalado num espaço arrendado e cujas instalações foram cedidas por via do contrato de arrendamento.
É por este motivo – por ter sido celebrado um contrato de arrendamento ex novo – que a Recorrente defende não se tratar a situação em análise de um verdadeiro trespasse.
Com efeito, enjeitando as teses mais inovadoras e mesmo sem proceder ao recorte da figura, é nossa convicção que para haver trespasse tem de ocorrer a transmissão definitiva do estabelecimento em conjunto com o gozo do prédio. Se for transmitido o estabelecimento mas não o gozo do prédio, não há trespasse; sendo transmitido só o gozo do prédio, desacompanhado do estabelecimento, também não há trespasse – cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 03/05/2006, proferido no âmbito do processo n.º 00030/04.
Ora, in casu, não está questionado que ocorreu a transmissão da titularidade de um estabelecimento comercial, uma farmácia, que englobou a universalidade em que o estabelecimento se traduz, abrangendo além das instalações, os utensílios, mercadorias e outros elementos que o integram, entre os quais estão as licenças e alvarás exigíveis, sendo elemento essencial deste negócio jurídico a manutenção no local do mesmo ramo de actividade que ali se exercia. Para garantir esta última exigência, o contrato celebrado assegurou o gozo (posse ou fruição) do espaço em que era exercida a actividade do estabelecimento comercial, através da celebração de contrato de arrendamento entre a trespassante (proprietária do imóvel) e a trespassária.
Na situação em apreço, não existe necessidade de chamar à colação ou sequer de acolher a discutível posição doutrinal de que o trespasse do estabelecimento não pressupõe necessariamente a transmissão do local onde ele está instalado. Na verdade, a especificidade de estar em causa uma farmácia, com os condicionalismos inerentes à utilização do respectivo alvará transmitido (alvará de funcionamento n.º 3709), sempre teríamos que reconhecer a essencialidade de se manter o mesmo ramo de actividade exercido nas mesmas instalações, ou seja, a importância de ser assegurado o gozo do espaço onde era exercida a actividade comercial de venda de produtos farmacêuticos.
No caso, foi transmitido o gozo do prédio, dado que, sendo a trespassante proprietária do prédio onde se encontram as instalações do estabelecimento farmácia, estava na sua esfera jurídica formalizar o contrato de arrendamento, que efectivamente consta em anexo ao contrato de trespasse, que permitiria o gozo das mesmas instalações do estabelecimento comercial.
É nossa convicção que a jurisprudência tem vindo a descaracterizar a figura do trespasse apenas quando existe um contrato de arrendamento com o trespassante do espaço e aquele não é transmitido pelo mesmo, efectuando o trespassário um novo contrato de arrendamento com o senhorio. Isto é, se existe um contrato de arrendamento, ele tem que se incluir na universalidade de direitos que são transmitidos, para que plenamente se possa falar de “trespasse”.
Mas, se não existe esse contrato de arrendamento (farmácia), porque a alienante é proprietária do prédio, apenas é necessário assegurar a transmissão definitiva do estabelecimento em conjunto com o gozo do prédio para se estar perante um “trespasse”.
Na situação dos autos, nenhum contrato foi celebrado com uma terceira pessoa (senhorio), pois a trespassante, não sendo arrendatária do imóvel, era proprietária do prédio das instalações do estabelecimento comercial; ou seja, é a própria trespassante que transmite também o local/instalações, já que a fruição do espaço da farmácia estava assegurada pelo direito de propriedade, sendo transmitida por arrendamento para a trespassária.
Tendo sido efectuada uma transmissão definitiva, onerosa, para outrem, juntamente com o gozo do prédio, da exploração de um estabelecimento comercial nele instalado, afigura-se-nos claro estarmos perante um verdadeiro trespasse de um estabelecimento comercial (farmácia) - ocorre a transmissão definitiva do estabelecimento em conjunto com o gozo do prédio, com sucessão nas posições contratuais.
Estando, por isso, previsto no artigo 1.º, n.º 1 do CIS e na tabela anexa, no ponto 27.1. E, em face do acima exposto, temos, pois, que concluir que a operação efectuada, efectivamente, está sujeita a Imposto de Selo, confirmando-se a improcedência do vício de inexistência de facto tributário.
Passemos à questão colocada pela Recorrente concernente ao erro de quantificação, uma vez que não se conforma com o assim decidido:
“(…) Relativamente ao erro na quantificação da matéria tributável, chamando à colação tudo quanto acima referimos, designadamente, quanto à caracterização do contrato de trespasse e o seu enquadramento, em termos de tributação, na verba 27.1 da Tabela Geral, importa salientar, contudo, do exarado naquele contrato junto aos autos, extraímos que a adquirente “PGPU, Ldª.” pagou à alienante, ABO o valor de € 171 497,64. Ora, o valor pago inclui os montantes correspondentes às existências e ainda o passivo aos fornecedores, conforme se infere da cláusula 2.ª daquele contrato.
Daqui devemos pois concluir que o valor global do contrato celebrado corresponde ao somatório dos valores respeitantes às existências (€ 61 497,64) e do “passivo a fornecedores” (€ 661 497,64), perfaz um valor total de € 832 995,28, sendo um contrato de trespasse sujeito a imposto selo, por estar este tipo de contrato especialmente previsto na Tabela Geral, o valor tributável do contrato celebrado pela impugnante a considerar só poderia ter sido o de € 832 995,28, conforme resulta dos termos do contrato escrito celebrado.
O que nos leva a concluir que a liquidação de Imposto de Selo efectuada pelo valor tributável de € 171 497,64 estava, desde logo, errada. (…)”
Extrai-se, assim, da sentença recorrida que o valor global do contrato celebrado corresponderá ao somatório dos valores respeitantes às existências e ao passivo, devendo o Imposto do Selo ser liquidado sobre o somatório dos referidos valores.
Na medida em que a veracidade do contrato não foi colocada em causa pela Administração Tributária, o que relevará para determinar o quantum do imposto devido será o clausulado do contrato, conforme consta do ponto 10 do probatório (alterado por este tribunal de recurso).
Com efeito, atentando aos contornos do contrato celebrado pela Recorrente, constatamos que, por via do trespasse, esta assumiu nas suas contas o passivo do estabelecimento que se mostra identificado na cláusula 2.ª, no valor de €661.497,64, correspondente a dívidas a fornecedores, adquirindo, em contrapartida, também todos os elementos constitutivos do activo, nomeadamente existências no valor de €61.497,64.
Nos termos do artigo 9.º, n.º 1 do CIS, o valor tributável do imposto de selo é o que resulta da Tabela Geral e, como vimos, aplicando-se a verba 27.1 dessa Tabela anexa, aí se determina a aplicação de uma taxa de 5% sobre o valor dos trespasses de estabelecimentos comerciais, industriais ou agrícolas.
Resulta da fundamentação da decisão de liquidação adicional, constante do relatório de inspecção tributária, que o valor tributável em sede de Imposto de Selo nos trespasses de estabelecimentos comerciais corresponde ao somatório dos activos corpóreos e incorpóreos transmitidos, correspondendo o valor apurado à totalidade das quantias despendidas pelo sujeito passivo para aquisição do trespasse do estabelecimento comercial em causa.
A Administração Tributária assenta esta conclusão no conceito contabilístico de trespasse (e por análise à contabilidade da Recorrente), tendo subjacente a ideia de que no trespasse de um estabelecimento comercial se transmitem não só os elementos corpóreos que integram o estabelecimento, mas também o elemento incorpóreo (consubstanciado na transmissão da posição do arrendatário).
As verbas relativas à aquisição de trespasses são contabilizadas na conta POC 434 – Trespasses. Em notas explicativas da conta 43 – Imobilizações Incorpóreas, refere-se que esta conta integra os imobilizados intangíveis.
No capítulo destinado aos critérios de valorimetria a utilizar nas Imobilizações, refere o POC que:
- O activo imobilizado deve ser valorizado ao custo de aquisição ou ao custo de produção;
- O custo de aquisição e o custo de produção dos elementos do activo imobilizado devem ser determinados de acordo com as definições adaptadas para as existências (5.4.2):
· Considera-se como custo de aquisição de um bem a soma do respectivo preço de compra com os gastos suportados directa ou indirectamente para o colocar no seu estado actual e no local de armazenagem.
Também no POC, em notas explicativas da conta 434 – Trespasses, lê-se que a rubrica de trespasses se destina a registar, exclusivamente, a diferença positiva entre o custo de aquisição e o justo valor dos activos e passivos identificáveis aquando da concentração de actividades empresariais (Directriz Contabilística n.º 12). Isto é, o valor a registar nesta conta traduz a diferença positiva entre o justo valor os bens adquiridos em operações de concentração de actividades empresariais e o valor efectivamente despendido.
Do exposto conclui-se que o valor registado pelo SP na conta 434 – Trespasse (excluindo o valor do imposto do selo pago pelo SP) reflecte a diferença positiva entre o valor total despendido pelo SP (€771.497,64) e o valor dos activos recebidos em troca (€111.497,64). Neste caso o SP faz coincidir o justo valor dos activos recebidos com o custo efectivo dos mesmos.
Apesar de a Recorrente admitir que os contratos de trespasse possam ser tributados em função da diferença entre o preço pago e a diferença — positiva — entre o valor dos activos e passivos transmitidos, o que traduz, em regra, a justa medida da capacidade contributiva demonstrada, e se apresenta, em regra também, mais favorável que o valor do preço, entende que tal critério não poderá ser aplicável nas situações em que o valor da empresa seja negativo.
Concluindo ser verdadeiramente insustentável a tese veiculada na decisão em crise, segundo a qual o valor tributável do trespasse não corresponde nem à referida diferença, nem ao preço, mas afinal à soma de todos os elementos envolvidos: preço, activos e, inclusivamente, passivos.
Efectivamente, não obstante a norma de incidência em apreço não estabelecer o que se deverá entender por “valor do trespasse” para efeitos da aferição da base tributável, nem este se encontrar abrangido por nenhuma das regras especiais de determinação do valor tributável, em homenagem e por respeito ao princípio da capacidade contributiva consagrado no artigo 104.º da Constituição da República Portuguesa, nunca poderá a respectiva base tributável ser superior à contrapartida paga pelo adquirente do direito a título de preço.
Estamos convencidos que a Recorrente tem, nesta parte, razão, não sendo aceitável que o Imposto do Selo seja liquidado por referência à soma dos valores corpóreos e incorpóreos por si registados em contas de fornecedores e outros credores.
Na verdade, o conceito de trespasse utilizado na doutrina civilista não coincide inteiramente com o mesmo conceito utilizado na contabilidade, sendo mais amplo nesta – cfr. Carlos Baptista da Costa e Gabriel Correia Alves, in "Contabilidade Financeira", 4.ª ed., Rei dos Livros, pp. 706.
O trespasse, a título oneroso, está sujeito ao pagamento de Imposto de Selo, conforme o disposto na verba 27 da Tabela Geral. A taxa de 5% aí prevista incide sobre o valor declarado, ou seja, o preço constante do acto ou contrato, que englobará, obviamente, todos os bens e direitos transmitidos.
Voltando ao início, os próprios termos e redacção do contrato formalizado vão nesse sentido e o que releva é o clausulado do contrato de trespasse: «(…) vende, por trespasse, à Segunda Contratante, que compra, o estabelecimento comercial (…), pelo preço de €171.497,64 (…), com todos os seus elementos constitutivos do activo, nomeadamente existências no valor de € 61.497,649 (a preço de custo, líquido de IVA), bem como com os passivos aos fornecedores a seguir discriminados (…) bem como um “posto de medicamentos”, dependente daquela farmácia, (…), com o alvará de funcionamento n.º 3709 (…)».
Não residem dúvidas que as partes pretenderam atribuir ao trespasse o valor de €171.497,64, correspondente ao preço declarado no contrato, montante este que teve em conta, como resulta dos termos transcritos, os elementos constitutivos do activo e os elementos passivos que foram transmitidos à trespassária. Tudo indica que se a responsabilidade pelas dívidas a fornecedores, devidamente identificadas no acordo, não tivesse sido assumida pela adquirente, provavelmente o preço acordado pelas partes seria mais elevado. Note-se que a cláusula 3.ª do contrato exclui outros ónus, encargos ou responsabilidades a cargo da trespassária.
Nesta conformidade, o preço constante do contrato (cuja realidade/veracidade não foi questionada pela Administração Tributária) já incluirá a ponderação de todo o acervo que é transmitido por força da celebração do trespasse do estabelecimento comercial.
Não alcançamos, por isso, razões válidas para o recurso ao conceito contabilístico de trespasse para determinar o seu valor tributável.
Nestes termos, não poderá manter-se na ordem jurídica a liquidação adicional de imposto de selo, nem, consequentemente, os respectivos juros compensatórios também liquidados.
Vejamos, por fim, em termos de incidência subjectiva, o erro de julgamento apontado pela Recorrente.
Não obstante não existir, à data, uma referência expressa, no Código do Imposto do Selo, quanto à entidade, no caso dos trespasses, que reveste a qualidade de sujeito passivo, defende a aqui Recorrente decorrer expressamente do teor da autorização legislativa constante do artigo 68.° da Lei n.º 26/2003, de 30 de Julho, que o sujeito passivo deste imposto consiste no trespassante, devendo, por sua vez, o encargo do imposto ser suportado pelo adquirente.
Assim sendo, atendendo a que, nestes casos, o sujeito passivo deste imposto é o trespassante, eventuais correcções, nesta sede, teriam de ser imputadas a essa entidade (a Exma. Sra. Dra. ABO) e não à ora Recorrente.
Importa ainda referir que o entendimento perpassado pela Sentença em crise, a respeito da determinação do sujeito passivo no contrato de trespasse se encontra ferido de ilegalidade, por violação de lei de carácter reforçado, na medida em que reitera a interpretação manifestamente contrária à lei, no âmbito da qual não é aplicada de forma adequada o que expressa e inequivocamente determinava a respectiva lei habilitante — o artigo 68.° da Lei n.º 26/2003, de 30 de Julho.
Assim, a Sentença recorrida ao manter na ordem jurídica o acto de liquidação impugnado por concluir que a Recorrente é no caso vertente sujeito passivo de imposto fez uma errada aplicação do artigo 2.º do Código do Imposto do Selo, o qual não pode deixar de ser interpretado em conformidade com o artigo 68.º da Lei n.º 26/2003, de 30 de Julho, sob pena de violação de lei de caracter reforçado, devendo, também por esta razão, ser revogada, em conformidade.
Na sentença recorrida decidiu-se a este propósito o seguinte:
“(…) - conforme o previsto no artigo 2.º, n.º 1, al. h) do CIS é sujeito passivo de imposto, qualquer entidade que intervenha em acto ou contrato;
- logo, os vendedores, compradores e partes outorgantes no contrato de trespasse são sujeitos passivos do imposto e qualquer deles pode chamar a si a responsabilidade da liquidação;
- de acordo com o previsto pelo artigo 3º., nº. 3, al. a). do CIS, o encargo do imposto irá recair sobre o adquirente dos bens, não causando qualquer estranheza que, no caso em apreço, a outorgante adquirente tivesse assumido a integral responsabilidade pela liquidação e entrega do imposto de selo porquanto a outra parte outorgante viria a cessar a actividade na sequência do trespasse do estabelecimento comercial;
E, constituindo-se a obrigação tributária, no momento da assinatura do contrato pelos outorgantes, conforme disposto no artigo 5º., al. a) do citado diploma legal que conjugado com o facto de a trespassária “PGPU” ter procedido à liquidação do imposto, no valor de € 8 574,88, conforme guia nº. 80054718341, em 08.06.2005, leva-nos a refutar integralmente a tese defendida pela ora impugnante de que a responsabilidade dessa liquidação era da exclusiva competência da trespassante.
Isto porque à data da celebração do contrato de trespasse ambas as partes outorgantes eram comerciantes, sendo por isso sujeitos passivos do imposto.
Pelo que, também, nesta parte temos que concluir pela improcedência deste vício. (…)”
A distinção que a Recorrente pretende acentuar entre “sujeito passivo” e “encargo do imposto” é, obviamente, pertinente, tanto mais que a incidência subjectiva está prevista no artigo 2.º do CIS, aí se elencando quem são os sujeitos passivos do Imposto de Selo, e no artigo 3.º apenas se explicita que o imposto constitui encargo dos titulares do interesse económico nas situações referidas no artigo 1.º, concretizando-se quem são os titulares do interesse económico.
Ora, uma vez que já ficou assente ser o imposto devido, nos termos (no quantum) em que foi já liquidado e suportado pela Recorrente, o disposto no artigo 3.º, n.º 3, alínea a) do CIS afasta claramente a pretensão da mesma, na medida em que, agora, não estará já em causa a liquidação adicional, que, como vimos, se impõe eliminar da ordem jurídica, por erro na sua quantificação.
Queremos com isto dizer que, atento o que ficou decidido, mostra-se irrelevante averiguar quem é o sujeito passivo da obrigação tributária liquidada adicionalmente, se a trespassante se a trespassária, e se a Administração Tributária terá agido bem em liquidar tal imposto adicionalmente à trespassária. O que importa é que a Recorrente teria que suportar o encargo do imposto, por ser a adquirente na aquisição onerosa do estabelecimento comercial – trespasse; tendo efectivamente suportado o valor de €8.574,88 a título de Imposto de Selo, conforme consta do ponto 12 da decisão da matéria de facto.
Não obstante a liquidação adicional ser anulada com outro fundamento, não podemos deixar de alertar a Recorrente que a redacção do artigo 2.º, n.º 1, alínea p) do CIS – que indica o trespassante como sujeito passivo nos trespasses de estabelecimento comercial, industrial ou agrícola – somente foi introduzida pela Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro, sem indicação de tratar-se de norma interpretativa; pelo que seria inaplicável à situação em análise, por não vigorar à data da celebração do contrato de trespasse – cfr. artigo 5.º, alínea a) do CIS.
Resta, assim, conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e julgar a impugnação judicial procedente, anulando os actos de liquidação adicional de imposto de selo e de juros compensatórios.
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Conclusões/Sumário
I - Para efeitos de tributação, a qualificação do negócio jurídico efectuada pelas partes, mesmo em documento autêntico, não vincula a Administração Tributária - nos termos do n.º 4 do artigo 36.º da Lei Geral Tributária.
II – Trespasse é o contrato pelo qual se transmite definitiva, e, em princípio, onerosamente, para outrem, juntamente com o gozo do prédio, a exploração de um estabelecimento comercial ou industrial nele instalado: implica a transferência, em conjunto, das instalações, utensílios, mercadorias ou outros elementos que integram o estabelecimento e que, transmitido o gozo do prédio, nele se continue a exercer o mesmo ramo de comércio ou indústria.
III - Tendo sido efectuada uma transmissão definitiva, onerosa, para outrem, juntamente com o gozo do prédio, da exploração de um estabelecimento comercial nele instalado, estamos perante um verdadeiro trespasse de um estabelecimento comercial (farmácia).
IV – Estando previsto no artigo 1.º, n.º 1 do Código do Imposto de Selo e na Tabela anexa, no ponto 27.1, o trespasse de estabelecimento comercial, é de concluir que a operação efectuada está sujeita a Imposto de Selo, na medida em que não é devido IVA, in casu, pela mesma – cfr. artigo 3.º, n.º 4 do Código do IVA.
V – O conceito de trespasse utilizado na doutrina civilista não coincide inteiramente com o mesmo conceito utilizado na contabilidade, sendo mais amplo nesta.
VI – A taxa de 5% prevista na verba 27 da Tabela Geral anexa incide sobre o valor declarado, ou seja, o preço constante do acto ou contrato, que englobará todos os bens e direitos transmitidos.
VII - A redacção do artigo 2.º, n.º 1, alínea p) do Código do Imposto de Selo – que indica o trespassante como sujeito passivo de imposto de selo nos trespasses de estabelecimento comercial, industrial ou agrícola – somente foi introduzida pela Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro.
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IV. Decisão
Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida, e, consequentemente, julgar a impugnação procedente, anulando o acto de liquidação adicional impugnado de imposto de selo e respectivos juros compensatórios.
Custas a cargo da Recorrida, em ambas as instâncias; nesta instância, as custas não incluem a taxa de justiça, uma vez que não contra-alegou.
Porto, 13 de Dezembro de 2018.
Ass. Ana Patrocínio
Ass. Ana Paula Santos
Ass. Pedro Vergueiro