Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00619/20.3BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:10/28/2022
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Helena Ribeiro
Descritores:ACIDENTE DE VIAÇÃO-COLISÃO COM CANÍDEO EM AUTOESTRADA; RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL; DA CONCESSIONÁRIA:
DANO DA PRIVAÇÃO DO USO DE VEÍCULO AUTOMÓVEL; CONTRATO DE SEGURO.
Sumário:I- Nos termos do artigo 12.º da Lei n.º 24/2007, a concessionária de uma autoestrada em que se verifique um sinistro rodoviário causado por objetos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem, atravessamento de animais e líquidos na via, neste último caso quando não resultantes de condições climatéricas anormais, está onerada com uma presunção de incumprimento das obrigações de segurança que lhe cabe observar.
II- No que respeita ao atravessamento de animais, exige-se às concessionárias, quanto à prova para o afastamento da referida presunção, um grau de exigência elevado, não bastando a prova genérica do cumprimento das obrigações do contrato de concessão, nem do bom estado das redes de proteção. Antes, a prova da concessionária terá que consistir na demonstração, em concreto, das circunstâncias que levaram ao atravessamento do animal.
III-A privação do uso de um veículo sinistrado constitui um dano patrimonial indemnizável por se tratar de uma ofensa ao direito de propriedade e caber ao seu proprietário optar livremente utilizá-lo ou não (art. 1305º do CC), uma vez que esse direito de dispor e de usar do veículo é inerente ao direito de propriedade detido pelo proprietário sobre a viatura sinistrada e, inclusivamente, é-lhe assegurado e reconhecido pelo art.º 62º da CRP, devendo a privação desse uso ser economicamente valorizável, se necessário, com recurso à equidade.
IV- Nos contratos de seguro de responsabilidade civil, o segurador cobre o risco de constituição, no património do segurado, de uma obrigação de indemnizar terceiros (art.º 137º da LCS), garantindo a obrigação de indemnizar, nos termos acordados, até ao montante do capital seguro por sinistro, por período de vigência do contrato ou por lesado (art.º 138º, n.º 1 do LCS).
Sumário (elaborado pela relatora – artigo 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil).
Recorrente:AA
Recorrido 1:ASCENDI GRANDE PORTO - AUTO ESTRADAS DO GRANDE PORTO, S.A
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Condenação à Prática Acto Devido (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Conceder parcial provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não foi emitido parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo:
I – RELATÓRIO
1.1. AA, contribuinte fiscal n.º ..., residente na Rua do ..., propôs ação declarativa junto da Instância Local Cível de Valongo, contra a ASCENDI GRANDE PORTO - AUTO ESTRADAS DO GRANDE PORTO, S.A., pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 5.792,65, acrescida de juros desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.
Alega, para tanto e em síntese, que é possuidora, com reserva de propriedade para a financeira Banco BNP Paribas, do veículo de marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-FO-.., e que, em 22/06/2019, pelas 20h35m, na autoestrada n.º ... (A...), no sentido Alfena-Matosinhos, ao km 14,480, no concelho de Valongo, ocorreu um acidente de viação, no qual foi interveniente o referido veículo, conduzido pelo marido da autora, BB, seguindo a autora no lugar do passageiro;
O local do acidente configura uma curva acentuada, prolongada e fechada, com visibilidade reduzida, que se descreve para a direita, atento o sentido de marcha, e do seu início não se vislumbra o fim, tendo inclinação descendente;
Há data do acidente, o pavimento estava em bom estado de conservação e no momento do acidente, ainda havia luz solar;
O seu veículo circulava pela via de trânsito mais à direita, junto à linha longitudinal contínua, que ladeia a via, dela distando cerca de 0,5 metros e a velocidade moderada, na ordem dos 90/100 km/h, com o respetivo condutor atento ao trânsito de veículos.
Acontece que, sensivelmente a meio da curva, de forma súbita e inesperada, do seu lado direito, provindo da berma, surge um canídeo de médio porte, em correria desenfreada, assustado e desorientado, atravessando a via da direita para a esquerda, invadindo a faixa de rodagem e ocupando a via onde seguia o veículo em causa, colocando-se à sua frente, obstruindo-lhe a passagem quando dele distava não mais do que 2/3 metros, não permitindo ao condutor do veículo qualquer manobra de travagem ou desvio, de forma a evitar o embate no animal, o qual se tornou inevitável.
A colisão ocorreu com a parte frontal esquerda do veículo na fila mais à direita da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha do veículo.
Em consequência do acidente, o seu veículo ficou imobilizado sem poder circular.
De imediato, a autora e o seu marido chamaram as autoridades policiais, que compareceram no local juntamente com a carrinha de apoio da ré.
O canídeo morreu em resultado da colisão e foi retirado da via pelo funcionário da ré.
A ré é concessionária da A..., pelo que lhe compete zelar pela segurança da mesma, nos termos do artigo 12.º da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho;
Como consequência direta e necessária do acidente de viação, o veículo sofreu danos nas seguintes componentes da sua parte frontal: para-choques e respetiva grelha, friso, farol de nevoeiro esquerdo, guarda-lamas esquerdo e respetiva tira, cobertura da cave da roda esquerda, travessa superior, suporte do para-choques, conduta de ar esquerda, carga do ar condicionado, anticongelante.
O valor da reparação do veículo, incluindo mão-de-obra de chapa, mecânica e pintura, ascende a € 2.392,65.
A autora solicitou uma peritagem para avaliar os estragos no veículo, e interpelou a demandada para reparar o veículo, tendo a mesma declinado a sua responsabilidade por email de 11.06.2019.
O veículo em causa é o único que a autora possui, pelo que a mesma ficou do mesmo privada, o que a impossibilitou de fazer as suas deslocações de trabalho e lazer, com um prejuízo quantificável em € 50/dia, quantia inferior à usada no mercado de veículos de aluguer para uma viatura idêntica, pedindo a quantia de 3.400,00€ a esse título.
A autora é logista no norteshopping e utiliza o veículo nas deslocações entre a sua casa e o trabalho, pelo que passou a socorrer-se de boleias e veículos emprestados por terceiras pessoas.
A autora ainda não ordenou a reparação do veículo porque não dispõe de dinheiro para a custear, o que prevê conseguir no final de agosto, quando reunir as poupanças necessárias.
1.2. Citada, a Ré contestou, defendendo-se por impugnação, pugnando pela improcedência da presente ação, contrapondo, para tanto e em síntese, que o acidente em causa ocorreu em 02/06/2019, e não em 22/06/2019, como se refere na p.i..
Aquela concessão da contestante tem as características (perfil) de autoestrada (AE), mas é, como era à data, uma AE sem barreiras físicas de portagens à entrada dos diversos nós existentes, os quais não eram e não são fechados, ou seja, não existiam à data do sinistro e não existem atualmente quaisquer barreiras físicas que pudessem impedir a entrada de animais, não sendo exequível para a ré e nem sequer exigido ou exigível pelo contrato de concessão celebrado com o Estado Português que mantenha postos de vigia em cada nó e em cada ramo de entrada e/ou saída da A...;
A contestante exerce a vigilância sobre esses nós e ramos e, no dia do acidente, a ré também exerceu a vigilância sobre os nós da A... e respetivos ramos, e sobre aqueles nós situados no sublanço onde se integra o local de eclosão do sinistro indicado pela autora e particularmente sobre o denominado nó de Alfena cujo eixo (centro) fica situado nas proximidades do local onde a autora diz ter deflagrado o acidente (e os respetivos ramos mais perto ainda), tendo o nó de Alfena o seu eixo sensivelmente ao Km 14,825, ou seja, a menos de 350 metros do local onde a autora diz ter eclodido o sinistro, localizando-se os respetivos ramos desse nó ainda mais próximos do local avançado pela autora, não existindo barreiras físicas no referido nó à data do sinistro;
As vedações das AE concessionadas em geral e daquela A... em particular merecem a prévia aprovação por parte do concedente (Estado Português), o que resulta quer do contrato de concessão, quer do Decreto-Lei n.º 189/2002, de 28 de Agosto, alterado e republicado pelo Decreto-Lei n.º 110/2015, de 18 de Junho (cfr., a este propósito, a alínea a) do n.º 4 da Base XXX), e isso tanto é válido no que se refere às características das vedações (dimensões, altura, etc.), como igualmente no que respeita à respetiva extensão e ainda à forma como devem ser colocadas, designadamente nos ramos dos nós de acesso/saída das AE pois, se assim não fosse, sempre aquela A... (ou outra qualquer AE concessionada) não seria considerada em condições de ser aberta ao tráfego e à utilização pelos respetivos utentes;
Tanto à data do sinistro, como atualmente, as vedações que se encontram implementadas na A... respeitavam integralmente o respetivo projeto e mereceram a prévia aprovação por parte dos organismos competentes do Estado Português, e encontravam-se, na data do sinistro e nas imediações do local onde este terá eclodido, em boas condições de segurança e conservação, o que vale por dizer que as ditas vedações não apresentavam naquela data quaisquer buracos, aberturas, ruturas, anomalias ou deficiências de qualquer espécie, pelo que é absolutamente falso que a ré tenha descurado – ainda que minimamente – o dever de vigilância e/ou de conservação da sua concessão;
Cumpriu na íntegra as obrigações que sobre si impendem enquanto concessionária da via, traduzidas na realização de patrulhamentos permanentes e regulares à sua concessão, bem como a manutenção e conservação das estruturas daquela via, pois, no dia do sinistro, os seus funcionários efetuaram diversos patrulhamentos a toda a extensão da concessão desta, passaram por diversas vezes no local indicado pela autora como tendo sido o da eclosão do sinistro e não detetaram nas vias qualquer animal, designadamente um cão, nas imediações daquele local;
Não é exigível nem sequer razoável que os patrulhamentos efetuados pelos funcionários da ré cubram, em cada instante, toda a área da via concessionada a esta, mas apenas que tenham – como sucedeu in casu – uma regularidade e uma cadência pré-estabelecidas, diligentes e aceitáveis;
A ré obrigou-se, em condições normais, a efetuar passagens de vigilância no mesmo local com o intervalo máximo de 4 horas entre as 7 e as 23 horas (turnos diurnos), salvo se as condições de tráfego/circulação ou a eclosão de acidentes, incidentes ou outro tipo de ocorrências o não permitirem;
Os patrulhamentos da ré passaram no local do acidente por volta das 17h40m, i. e., cerca de 2h55m antes da hora do acidente, e, nessa altura e passagem efetuada no local pela patrulha da ré, não foi detetado qualquer animal a remover da via;
A própria brigada de trânsito da GNR em serviço na rede também não detetou nos seus patrulhamentos normais à autoestrada a presença de qualquer animal no local em causa, sendo habitual, quando assim sucede, que alerte a central de comunicações da ré para que sejam tomadas as devidas providências, pelo que, antes de ter eclodido o acidente, a ré não tinha conhecimento - e nem razoavelmente o podia ter tido - da existência de qualquer animal na via nas proximidades do local do sinistro;
Sempre que tem conhecimento de quaisquer animais que possam colocar em risco a segurança e a normal circulação automóvel na sua concessão – nomeadamente, através de informações de utentes ou da própria brigada de trânsito da GNR -, atua de forma imediata e diligente por forma a remover rapidamente esses objetos da via;
Procedeu com toda a diligência e cuidado que lhe seria exigível, não lhe podendo, por isso, ser assacada qualquer culpa na produção do acidente;
É aplicável a este acidente a Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, concretamente o seu artigo 12.º, n.º 1, norma esta que incide tão-somente sobre o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança por parte das concessionárias de AE no âmbito da responsabilidade extracontratual, da mesma não resultando que as concessionárias só se eximem da sua eventual responsabilidade se provarem que se verificou um caso de força maior nem qualquer presunção de culpa, como também se pode concluir facilmente da leitura da Base LXXIII do Decreto-Lei n.º 189/2002, de 28 de Agosto;
As obrigações/os deveres das concessionárias de autoestradas são deveres de meios (de diligência, de envidar esforços com vista a acautelar a segurança da circulação), como resulta dos n.ºs 1 e 2 da a Base LXXIII do Decreto-Lei n.º 189/2002, de 28 de Agosto, redação do Decreto-Lei n.º 110/2015, de 18 de Junho, e não de resultado ou de garantia (que os utentes cheguem sãos e salvos – sem acidentes, portanto - ao destino da sua circulação).
1.3. Em 11/11/2019, a Instância Local Cível de Valongo proferiu sentença em que se julgou incompetente em razão da matéria para conhecer da ação.
1.4. Por despacho de 29/01/2020, foi determinada a remessa dos autos ao Tribunal a quo.
1.5. Por despacho de 28/09/2020, foi admitida a intervenção principal da A..., Limited – Sucursal em Portugal, tendo a mesma contestado a ação, e apresentado defesa apor impugnação.
Alegou, em síntese, que a A..., Limited foi incorporada, por fusão transfronteiriça, na A..., S.A., que opera em Portugal e aqui está estabelecida através da A..., S.A., Sucursal em Portugal;
Por efeito da referida fusão, todos os direitos e obrigações, nomeadamente os advenientes dos contratos de seguro da A..., Limited, incluindo o junto aos autor pela ré, foram transferidos para a A..., S.A., e para a sua sucursal quanto ás operações em Portugal;
A ré celebrou com a interveniente contrato de seguro titulado pela apólice n.º ..., pelo qual a primeira transferiu para a segunda, até ao limite de 30 milhões de euros por sinistro, a sua responsabilidade civil por eventuais danos causados a terceiros em virtude da sua atividade, ficando convencionado que, por cada sinistro participado, a ré suportaria uma franquia de 10% do valor peticionado por danos materiais, com o mínimo de € 2.500,00 e o máximo de € 25.000,00; O sinistro em causa não foi participado à interveniente.
Acontece que o sinistro em causa não foi presenciado pela autoridade policial, pelo que não há inversão do ónus da prova quanto ao cumprimento dos deveres de vigilância e manutenção.
1.6. Realizou-se a audiência prévia, em que se identificou o objeto do litígio, enunciaram-se os temas da prova, decidiram-se os requerimentos probatórios e agendou-se a audiência final.
1.8 . Fixou-se o valor da causa em € 5.792,65.
1.8. Realizou-se a audiência final de julgamento, e em 27/01/2022, o Tribunal a quo proferiu sentença que julgou a presente ação improcedente, constando da mesma o seguinte dispositivo:
« VI – DECISÃO
Pelo exposto, decide-se julgar a acção improcedente e, em consequência, absolver a ré e a interveniente principal do pedido.
Custas pela autora.»
1.9. Inconformada com a sentença proferida, a Autora interpôs o presente recurso de apelação, no qual formulou as seguintes Conclusões:
«I. Ao considerar o Tribunal a quo improcedente a presente acção andou mal, tendo, por tal, nesta sede, de ser revogada a sentença proferida e substituída por outra que condene as Recorridas no pagamento, à Recorrente, do valor peticionado, o que, mui respeitosamente, se requer a V/Exas.
II. Face aos depoimentos prestados a 21 de Janeiro de 2022, pela Recorrente, com gravação entre os minutos 00:10:18” e 00:10:34”, e por BB, com gravação entre os minutos 00:51:04” e 01:24:15”, e à prova documental constante dos autos, deveria ter sido julgada não provada a factualidade constante de H. da Sentença; como provada a factualidade constante de 2., 4., 5., 6. e 8. dos factos não provados da Sentença; e serem modificados, no sentido seguinte sentido, os factos U. e X. da Sentença:
- U. Como consequência directa e necessária do acidente de viação, o veículo sofreu danos na sua parte frontal, descritos no documento n.º 3 da petição inicial, no valor total de 2.392,65€.
- X. A autora solicitou uma peritagem, nos termos da qual o valor da reparação do veículo, em consequência directa e necessário do acidente sofrido com o animal na A..., incluindo mão-de-obra de chapa, mecânica e pintura, ascende a € 2.392,65 – cfr. doc. 3 junto com a p.i..
III. A questão a apreciar nos presentes autos consistia em saber se estão preenchidos ou não os pressupostos para efectivação da responsabilidade civil extracontratual das Recorridas, uma vez que, lhe cabe manter a auto-estrada em bom estado de conservação e em perfeitas condições de utilização, assegurar, em permanência, boas condições de comodidade e segurança, por força do contrato de concessão celebrado com o Estado Português.
IV. A presente acção, como as demais desta natureza, apresenta uma causa de pedir complexa, sendo vários os requisitos exigidos pela lei substantiva para que se verifique a obrigação de indemnizar, sendo o regime aplicável aos presentes autos o regime da responsabilidade civil extracontratual.
V. Nos casos, como o presente, em que a concessionária não sabe o modo como o animal se introduziu na via, para lograr ilidir a presunção de culpa que sobre si impende, tem que, pelo menos, identificar o ponto da infra-estrutura em que tal introdução ocorreu e descrever os comportamentos adoptados, em relação aos pontos sensíveis de entrada de animais na via, para prevenir a ocorrência de acidente, como o que ocorreu.
VI. No caso concreto, as Recorridas não lograram ilidir a presunção de incumprimento, na medida em que, o animal entrou na via, desconhecendo, aquelas, e não tendo ficado provado, por onde entrou, pelo que, ao contrário do que sucedeu, sempre as mesmas deveriam ter sido condenadas nos presentes autos.
VII. Ao contrário do que foi sentenciado, o cumprimento de obrigações de segurança não se restringe à mera operação de patrulhamento, à confirmação do estado das redes e às concretas previsões contratuais que constam do contrato de concessão outorgado com o Estado Português.
VIII. É que, apesar do que alegam relativamente à vedação da via, as Recorridas não demonstram que a auto-estrada estava efectivamente vedada em condições de segurança.
IX. Além disso, os patrulhamentos não são especificamente destinados à detecção de animais. Ao contrário dos elementos estáticos (como pedras) que podem causar acidentes, os animais são elementos que se movimentam e que se escondem, pelo que os patrulhamentos, só por si, não se afiguram como prova adequada e suficiente do cumprimento das obrigações de segurança desacompanhados de outra prova no sentido de que as Recorridas tenham instalado na auto-estrada infra-estruturas que permitam, em concreto, prevenir a entrada de animais.
X. E, no caso concreto, resultou demonstrado que, a Recorrida CC sabe da existência de dispositivos adequados a tal fim, optando por não os utilizar.
XI. Resulta, cabalmente, demonstrado que as Recorridas negligenciaram os seus deveres, motivo pelo qual, sempre deveriam ter sido condenadas nos presentes autos.
Ademais,
XII. No caso sub judice, o que se discute é a responsabilidade da Recorrida CC, enquanto concessionária da via, responsável pela sua vigilância, manutenção, fiscalização e conservação, perante terceiros, a título de responsabilidade civil extracontratual, pelo que, não basta alegar e provar o cumprimento de obrigações contratuais.
XIII. De contrário, importa que demonstre actos e operações que assegurem a concreta e efectiva segurança da via para os seus utilizadores, nomeadamente impedindo o atravessamento de animais.
XIV. Pois bem, quanto à Recorrida CC, limitou-se esta, como, de resto, resulta da sentença proferida pelo Tribunal a quo, com as suas testemunhas, a reproduzir, oralmente, o vertido no contrato de concessão, o que, manifestamente, não é bastante para afastar a presunção de incumprimento que sobre si impende.
XV. A Recorrida não ilidiu, em consequência, a presunção de incumprimento dos deveres de segurança, vigilância e fiscalização da estrada, pelo que se verificou o pressuposto da ilicitude, devendo, consequentemente, ser esta e, naturalmente, também a outra Recorrida, condenadas.
Mais se diga, ainda, que,
XVI. Perscrutados os depoimentos das testemunhas, nenhuma foi capaz de dizer, com razão de ciência, já que nenhuma viu, por onde o animal entrou na auto-estrada, circunstância que, de igual modo, importa a não ilisão da presunção de incumprimento que impendia sobre a Recorrida CC.
XVII. Por tudo o exposto,
Dúvidas não restam de que, deve a sentença proferida ser revogada e, em consequência, ser substituída por outra que condene as Recorridas no pagamento, à Recorrente, do valor peticionado, o que, mui respeitosamente, se requer a V/Exas., Venerandos Senhores Juízes Desembargadores.
NESTES TERMOS,
E NOS MAIS DE DIREITO QUE, V/EXAS., DOUTAMENTE, SUPRIRÃO, REQUER, MUI RESPEITOSAMENTE, SEJA O PRESENTE RECURSO JULGADO PROCEDENTE E, EM CONSEQUÊNCIA, SEJAM AS RECORRIDAS CONDENADAS NO PEDIDO FORMULADO
ASSIM SE FAZENDO INTEIRA E SÃ
JUSTIÇA»
1.10. A Apelada CC contra-alegou, apresentando as seguintes Conclusões:
«A) A culpa pela deflagração do sinistro dos autos (ou pela não “evitação” deste) é total e inequivocamente imputável ao motorista do veículo da A., posto que este agiu de forma diversa daquela que lhe era exigível naquele caso concreto, designadamente por imprimir ao veículo velocidade manifestamente superior à legalmente permitida no local;
B) Por tal motivo, é absolutamente seguro concluir que aquele motorista violou pelo menos o disposto nos artigos 24º, nº 1 e 27º, nº 1 do Cód. da Estrada;
C) E é igualmente seguro assentar, tal como sucedeu, aliás, com o ac. deste T. C. A. N. de 12.07.2018 (proc. nº 242/14.1BECBR; relator: Luís Migueis Garcia), que a R. cumpriu inequivocamente e no caso concreto destes autos as suas obrigações de segurança, cujos contornos/preenchimento são agora (desde 18 de Junho de 2015, para ser mais exacto) ainda mais nítidos, decorrentes do claro e provado (por testemunhas e com prova documental) cumprimento do que se dispõe nomeadamente nas Bases LXXIII, nºs. 1 e 2 e LIV – A do Decreto-Lei nº 189/2002, de 28 de Agosto, na redacção do Decreto-Lei nº 110/2015, de 18 de Junho.
Termos em que deve ser negado provimento ao recurso da A. e respectivas conclusões, assim se fazendo inteira Justiça.»
1.11. A interveniente não contra-alegou.
1.12.O Ministério Público junto deste TCA Norte, notificado nos termos e para efeitos do disposto no artigo 146.º do CPTA, não se pronunciou sobre o mérito do recurso.
1.13. Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de acórdão aos juízes desembargadores adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
*
II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO.
2.1. Conforme jurisprudência firmada, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), 608.º, n.º2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPT.
Acresce que por força do artigo 149.º do CPTA, o tribunal ad quem, no âmbito do recurso de apelação, não se queda por cassar a sentença recorrida, conquanto ainda que a declare nula, decide “sempre o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito”.
2.2. Assentes nas mencionadas premissas, as questões que se encontram submetidas à apreciação deste TCAN resumem-se ao seguinte:
a- se a dita sentença padece de erro quanto ao julgamento da matéria de facto nela realizado pela 1ª instância em relação: (i) à facticidade julgada provada na alínea H que deveria ter sido julgada não provada; (ii) à factualidade constante dos pontos 2., 4., 5., 6. e 8. dos factos não provados que devia ter sido julgada provada; e (iii) à factualidade constantes das alíneas U. e X. que carece de ser modificada.
b- se a sentença incorreu em erro de julgamento de direito ao julgar não verificados os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, absolvendo as Rés do pedido.
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III. FUNDAMENTAÇÃO
A. DE FACTO
3.1. Com interesse para a apreciação da causa, o Tribunal a quo julgou provada a seguinte facticidade:
«A. A autora é possuidora, com reserva de propriedade para a financeira Banco BNP Paribas, do veículo de marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-FO-.., datada de 2008 – cfr. doc. 1 junto com a p.i..
B. Em 02.06.2019, pelas 20h35m, na autoestrada n.º ... (A...), no sentido Alfena-Matosinhos, ao km 14,480, no concelho de Valongo, ocorreu um acidente de viação, no qual foi interveniente o referido veículo, conduzido por BB – cfr. doc. 2 junto com a p.i.
C. A ré é concessionária da A..., no troço onde ocorreu o sinistro – acordo.
D. O pavimento estava em bom estado de conservação – confissão.
E. No momento do acidente, ainda havia luz solar – confissão.
F. O condutor do veículo é marido da autora.
G. No momento do acidente, a autora seguia no lugar do passageiro.
H. O veículo circulava a uma velocidade de cerca de 120 km/hora.
I. De forma súbita e inesperada, o veículo em causa embateu num canídeo de médio porte que se atravessou à sua frente.
J. A colisão ocorreu com a parte frontal esquerda do veículo.
K. Após a colisão, a autora e o seu marido chamaram as autoridades policiais, que compareceram no local juntamente com a carrinha de apoio da ré.
L. O canídeo morreu em resultado da colisão e foi retirado da via pelo funcionário da ré – cfr. doc. 2 junto com a pá.
M. O nó de Alfena tem o seu eixo sensivelmente ao Km 14,825.
N. De acordo com o anexo 28 (“Manual de operação e manutenção”) do contrato de concessão do Grande Porto, na qual figura como concessionária a ré, “As obrigações da Concessionária relativas ao serviço de assistência aos utentes e de vigilância da infraestrutura são cumpridas da seguinte forma: (...)” – cfr. fls. 211 do SITAF:
a)Patrulhamento sistemático da infraestrutura de acordo com o seguinte modelo:
i)Patrulhas permanentemente disponíveis (365 dias por ano, 24 horas por dia, divididas em 3 turnos de 8 horas), constituídas por um operador de assistência e vigilância dotado de um veículo ligeiro equipado com meios simples para atuação em situações de emergência, designadamente sinalização de acidentes e incidentes e desempanagem em casos de avarias simples, por exemplo falta de combustível;
ii Nos turnos diurnos (7.00-23.00h), as patrulhas circularão em permanência, garantindo, em cada turno, a passagem pelo mesmo ponto a cada 4 horas, exceto em caso de necessidade de imobilização prolongada para socorro a acidente ou incidente ou em de condições de tráfego excecional, situações que podem determinar o ajustamento da frequência de patrulhamento, ou mesmo o reposicionamento estratégico das patrulhas;
iii)Sem prejuízo do disposto na subalínea seguinte, no turno noturno, as patrulhas manter-se-ão estacionadas nos seus locais de estadia, sem obrigação de vigilância da infraestrutura, em regime de prontidão de resposta a alguma necessidade de assistência mediante chamamento do Centro de Controlo de Tráfego e/ou de Autoridade Policial e para as seguintes situações: acidente, animal ou objeto na via, verificação de condição meteorológica extrema de neve e/ou gelo, ou expressa solicitação de assistência a utente;
iv)No período de maior risco de condições meteorológicas adversas (15 de outubro a 30 de março), realizar-se-á patrulhamento no turno noturno em termos idênticos ao patrulhamento efetuado nos turnos diurnos (cfr.)
O. No local do acidente, o limite máximo de velocidade de circulação é de 100 km/h.
P. Os carros patrulha da ré passaram no local do acidente por volta das 17h40m, e, nessa altura e passagem, não foi detectado qualquer animal a remover da via – cfr. doc. 2 junto com a contestação.
Q. Em 03.06.2019, o oficial de conservação e manutenção da ré DD deslocou-se ao local do acidente para inspeccionar as vedações existentes desde o km 14,480 numa distância de 500 metros para cada lado, em ambos os sentidos da A..., não tendo detectado qualquer anomalia, encontrando-se as vedações em boas condições, sem cortes, brechas ou imperfeições.
R. As vedações da ré naquele trecho da A... abrangem toda a extensão da autoestrada, incluindo os ramais de acesso e saída.
S. As vedações que ladeiam a A... têm 1,60 metros de altura, são de arame e são inspeccionadas anualmente pela ré.
T. Junto aos ramais de acesso à A... pelo nó de Alfena encontra-se instalada pela ré uma câmara de vigilância.
U. Como consequência directa e necessária do acidente de viação, o veículo sofreu danos na sua parte frontal.
V. O veículo em causa é o único que a autora possui.
W. A autora ainda não ordenou a reparação do veículo.
X. A autora solicitou uma peritagem, nos termos da qual o valor da reparação do veículo, incluindo mão-de-obra de chapa, mecânica e pintura, ascende a € 2.392,65 – cfr. doc. 3 junto com a p.i..
Y. A autora interpelou a demandada para reparar o veículo, tendo a mesma declinado a sua responsabilidade por email de 11.06.2019 com o seguinte teor – cfr. doc. 4 junto com a p.i.:
[dá-se por reproduzido o documento/imagem constante do original]

Z. A A..., Limited foi incorporada, por fusão transfronteiriça, na A..., S.A., que opera em Portugal e aqui está estabelecida através da A..., S.A., Sucursal em Portugal – cfr. doc. 1 junto com a contestação da interveniente.
AA. Por efeito da referida fusão, todos os direitos e obrigações, nomeadamente os advenientes dos contratos de seguro da A..., Limited, incluindo o junto aos autor pela ré, foram transferidos para a A..., S.A., e para a sua sucursal quanto ás operações em Portugal – cfr. doc. 2 junto com a contestação da interveniente.
BB. A ré celebrou com a interveniente contrato de seguro titulado pela apólice n.º ..., pelo qual a primeira transferiu para a segunda, até ao limite de 30 milhões de euros por sinistro, a sua responsabilidade civil por eventuais danos causados a terceiros em virtude da sua actividade, ficando convencionado que, por cada sinistro participado, a ré suportaria uma franquia de 10% do valor peticionado por danos materiais, com o mínimo de € 2.500,00 e o máximo de € 25.000,00 – cfr. doc. 3 junto com a contestação da ré.
Não se provaram quaisquer outros factos para além dos referidos, com relevância para a decisão da causa, designadamente os seguintes:
1. No local do acidente, a via configura uma curva acentuada, prolongada e fechada, com visibilidade reduzida, que se descreve para a direita, atento o sentido de marcha, e do seu início não se vislumbra o fim, com inclinação descendente.
2. O veículo circulava pela via de trânsito mais à direita, junto à linha longitudinal contínua, que ladeia a via, dela distando cerca de 0,5 metros.
3. O condutor seguia atento ao trânsito de veículos.
4. A colisão ocorreu na fila mais à direita da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha do veículo.
5. O veículo ficou imobilizado sem poder circular.
6. Desde a data do acidente, e por causa dos danos que o mesmo sofreu, a autora ficou impossibilitada de fazer deslocações de trabalho e lazer, com um prejuízo quantificável em € 50/dia, quantia inferior à usada no mercado de veículos de aluguer para uma viatura idêntica.
7. A autora é logista no norteshopping e, desde o acidente, passou a socorrer-se de boleias e veículos emprestados por terceiras pessoas para se deslocar entre a casa e o trabalho.
8. Como consequência directa e necessária do acidente de viação, o veículo sofreu danos nas seguintes componentes da sua parte frontal: para-choques e respectiva grelha, friso, farol de nevoeiro esquerdo, guarda-lamas esquerdo e respectiva tira, cobertura da cave da roda esquerda, travessa superior, suporte do para-choques, conduta de ar esquerda, carga do ar condicionado, anticongelante.»
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3.2.A Senhora Juíza de Direito a quo adiantou, para justificar o julgamento referido em 3.1. esta motivação:
«A decisão da matéria de facto assentou no acordo das partes, na confissão e na análise nos documentos constantes dos autos, conforme referido a propósito de cada concreto ponto do probatório, e na prova testemunhal e por declarações de parte quanto aos factos F. a K. e O. a W., nos termos que se seguem.
A autora prestou declarações de forma sincera e, embora pouco tenha adiantado relativamente à dinâmica do acidente – na medida em que pouco se recordava da mesma, apesar de seguir no lugar ao lado do condutor quando se deu o acidente -, fez afirmações que se revelaram importantes no apuramento da factualidade relevante para decisão da causa no que respeita aos danos. Efectivamente, a autora relatou que, à data do acidente, estava de baixa médica por depressão, situação que manteve até Fevereiro ou Abril (sem ter conseguido precisar) de 2020, encontrando-se actualmente desempregada desde Outubro de 2020, pelo que as deslocações em trabalho para as quais necessitava do carro terão ocorrido apenas no período que mediou entre Fevereiro ou Abril e Outubro de 2020. Mais asseverou que a empresa lhe custeava o aluguer de um carro para efectuar as deslocações necessárias sempre que as mesmas se mostrassem difíceis de fazer em transportes públicos, não tendo faltado ao trabalho por falta do carro. Afirmou ainda que, desde o acidente, conduz o carro do marido sempre que ele não precisa do mesmo, esclarecendo que o mesmo está reformado há 5 anos.
A testemunha BB, marido da autora e condutor do veículo aquando do acidente, prestou um depoimento sério, não se tendo detectado no mesmo contradições aptas a pô-lo em causa, pelo que foi considerado credível. Quanto aos danos, referiu que se encontra reformado desde 2016 e que, desde o acidente, passou a transportar a autora, sua mulher, sempre que necessário. Também confirmou que, à data do acidente, a autora se encontrava de baixa médica por depressão e que, por isso, tratou de fazer a reclamação do acidente junto da ré, mais atestando que o carro ainda se encontra na garagem de ambos porque não foi arranjado e, como tal, não tem a inspecção legal necessária para circular. Revelou ainda que, no momento do acidente, circulava à velocidade de cerca de 120 km/h.
A testemunha EE, que seguia no veículo atrás do interveniente no acidente em causa e que assistiu ao mesmo, também depôs de forma séria e isenta e, por isso credível. Afirmou que, antes do embate, o veículo da autora havia ultrapassado o seu e que o viu, de trás, a encostar à berma, após o que o ultrapassou, tendo visto pelo retrovisor que o mesmo havia embatido contra um cão. Seguiu viagem, mas saiu da autoestrada mais à frente e regressou ao local do embate para se oferecer como testemunha do acidente. Logrou localizar o acidente, no tempo e no espaço, com conhecimento e segurança, e afirmou que seguia a uma velocidade de cerca de 90/100 km/h, o que, conjugado com o depoimento da testemunha anterior, nos leva a considerar como plausível que o veículo da autora seguisse a 120 km/h, dado que ultrapassou o veículo em que seguia a testemunha, o que pressupõe que circule a uma velocidade superior.
A testemunha FF, operador do centro de controlo e gestão do tráfego da ré, prestou depoimento sério e isento, independente e desinteressado da relação profissional que o liga à ré. Explicou o seu trabalho de monitorização das câmaras de vigilância das estradas concessionadas da ré, o tratamento dos registos de ocorrências nelas verificadas e a gestão das equipas de patrulhamento das vias e descreveu e caracterizou o local do acidente com conhecimento de causa. Mais assegurou que, no dia do acidente, e anteriormente ao mesmo, nem a patrulha nem a câmara de vigilância que existe no nó de Alfena havia detectado a presença de qualquer animal na zona onde ocorreu o acidente, tendo sido a testemunha quem elaborou o relatório que constitui o doc. 2 junto com a contestação.
A testemunha DD, oficial de conservação e manutenção da ré, explicou claramente como fez, em 03.06.2019, a fiscalização do estado das vedações de segurança da auto-estrada existentes no local do acidente, assegurando que nada encontrou digno de registo por onde algum animal se pudesse interseccionar em direcção à A... numa distância de 500 metros para cada lado por referência ao local do acidente. Mais descreveu as características das vedações existentes no local.
A testemunha GG, coordenador de operação e manutenção da ré, também de forma isenta e credível, descreveu o giro normal com que a ré patrulha a A... e fiscaliza as suas vedações, mais se reportando à velocidade máxima de circulação no local de 100 km/h, tendo revelado conhecer bem o local.
Os factos M., R. e U. mostraram-se ainda confirmados por consulta à plataforma googlemaps, na qual é visível a vedação dos ramais de acesso à A... assim como a localização do nó de Alfena.
Quanto aos factos não provados 1. a 4., cumpre referir que nenhuma das testemunhas logrou precisar em que via de trânsito seguia o veículo da autora no momento do acidente, nem mesmo o seu condutor, o qual, inclusivamente, nem sequer soube identificar com certeza o local do acidente quando lhe foi exibido o mesmo no Google maps, sendo certo que o mesmo corresponde a uma recta (e não curva). Quanto aos factos não provados 5., 6. e 7., as declarações da autora, conjugadas com o depoimento do seu marido, condutor do veículo no momento do acidente, foram em sentido diferente da correspondente realidade dado que atestaram a situação de baixa prolongada da autora e a sua situação de desempregada, de modo a concluir que a autora apenas esteve a trabalhar, desde o acidente e até à apresente data, no máximo, 8 meses (de Fevereiro a Outubro de 2020). Mais atestaram que a autora, não só pôde usar o carro do marido desde a data do acidente, como o próprio a transportou, tendo ainda a entidade patronal da autora custeado as suas deslocações em trabalho. Quanto aos concretos danos do veículo, o “relatório de peritagem”, ainda que conjugado com as fotos do veículo sinistrado juntas pela autora, e na ausência de qualquer outra concreta prova quanto aos danos identificados, mostra-se inapto para concluir no sentido da correspondente realidade. Finalmente, a própria autora afirmou nunca ter sido logista, tendo trabalhado para uma empresa de cosmética.»
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III. B. DE DIREITO
3.3. Vem o presente recurso de apelação interposto da sentença proferida pelo Tribunal a quo que absolveu a Ré e a Interveniente dos pedidos formulados pela Autora, a qual pretendia ser indemnizada pelos danos verificados no veículo de tipo ligeiro, marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-FO-.., em virtude de acidente ocorrido na A..., no dia 02/06/2019, resultante da colisão com um canídeo, com fundamento em incumprimento das obrigações de segurança que impendiam sobre a ré enquanto concessionária da autoestrada no local do acidente, alegando uma situação de responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos em que se terá constituído a Ré.
3.3.1.O Tribunal a quo considerou que a factualidade que logrou apurar é reveladora de que a que a Ré CC deu cumprimento às obrigações de segurança, manutenção e vigilância da via em causa que sobre a mesma impendiam, tendo demonstrado que a adotou todas as medidas possíveis e exigíveis para o efeito.
3.3.2.A esse talhe, considerou que a Ré CC logrou ilidir a presunção de incumprimento dos deveres de segurança, vigilância e fiscalização da estrada que lhe incumbia provar nos autos e, assim sendo, que não se mostra verificado o pressuposto da ilicitude.
3.3.3. Ademais, entendeu que, configurando o local do acidente uma reta e que, no momento do acidente, ainda havia luz solar – assim se proporcionando boas condições de visibilidade -, o excesso de velocidade a que seguia o veículo em causa prejudicou a travagem e/ou a adoção de manobra de desvio do animal que seriam aptas a evitar a colisão.
3.3.4.Nessa sequência, decidiu que inverificada a ilicitude, ficou prejudicada a apreciação dos demais pressupostos da responsabilidade civil na medida em que os mesmos são de verificação cumulativa e, em conformidade, julgou a ação improcedente.
3.3.5.A Apelante não se conforma com a decisão recorrida, advogando que a mesma enferma de erro de julgamento sobre a matéria de facto e de erro de julgamento sobre a matéria de direito ao considerar que a Ré CC ilidiu a presunção de culpa que sobre si recaía por força do disposto no artigo 12.º, n.º 1, al. b) da Lei n.º 24/2007, de 18 de julho.
Vejamos.
b.1. do error in iudicando por erro em matéria de provas.
3.4. A Apelante impugna o julgamento da matéria de facto julgada provada pela 1ª Instância na alínea H que deveria ter sido julgada não provada, ou seja, propugna que se dê como não provado que “O veículo circulava a uma velocidade de cerca de 120 km/hora”.
3.4.1. Ademais, pretende que se dê como provada a matéria que a 1ª Instância deu como não provada nos pontos 2,4,5,6 e 8 por, na sua perspetiva, perante a prova produzida, se impor concluir pela respetiva prova.
A matéria que consta desses pontos é a seguinte:
2. O veículo circulava pela via de trânsito mais à direita, junto à linha longitudinal contínua, que ladeia a via, dela distando cerca de 0,5 metros.
4. A colisão ocorreu na fila mais à direita da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha do veículo.
5. O veículo ficou imobilizado sem poder circular.
6. Desde a data do acidente, e por causa dos danos que o mesmo sofreu, a autora ficou impossibilitada de fazer deslocações de trabalho e lazer, com um prejuízo quantificável em € 50/dia, quantia inferior à usada no mercado de veículos de aluguer para uma viatura idêntica.
8. Como consequência directa e necessária do acidente de viação, o veículo sofreu danos nas seguintes componentes da sua parte frontal: para-choques e respectiva grelha, friso, farol de nevoeiro esquerdo, guarda-lamas esquerdo e respectiva tira, cobertura da cave da roda esquerda, travessa superior, suporte do para-choques, conduta de ar esquerda, carga do ar condicionado, anticongelante.”
3.4.2.Ademais, insurge-se contra os factos insertos nas alíneas U. e X. da sentença sob sindicância, pretendendo que a prova produzida não consente que se julgue provada essa concreta facticidade, mas apenas a seguinte materialidade fáctica:
“- U. Como consequência direta e necessária do acidente de viação, o veículo sofreu danos na sua parte frontal, descritos no documento n.º 3 da petição inicial, no valor total de 2.392,65€.
- X. A autora solicitou uma peritagem, nos termos da qual o valor da reparação do veículo, em consequência direta e necessário do acidente sofrido com o animal na A..., incluindo mão-de-obra de chapa, mecânica e pintura, ascende a € 2.392,65 – cfr. doc. 3 junto com a p.i..
3.4.3. Primacialmente, impõe-se referir que a Apelante, em sede de impugnação do julgamento da matéria de facto, cumpriu com todos os ónus impugnatórios do julgamento da matéria de facto que lhe são impostos pelo art.º 640º, n.ºs 1 e 2, al. a) do CPC, ex vi, art. 1º do CPTA, na medida em que indica, nas conclusões de recurso, os concretos pontos da matéria de facto que impugna e, bem assim, enuncia, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre a matéria de facto que impugna, assim como indica quais os concretos meios probatórios que, na sua perspetiva, impõem esse julgamento da matéria de facto diverso que propugna, fazendo uma análise minimamente crítica desses meios de prova, por forma a demonstrar o porquê de os mesmos não consentirem o julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância, mas antes imporem o por si propugnado, e quanto aos meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas que foram objeto de gravação, indica o início e o termo dos excertos da prova pessoal em que funda o seu recurso e, inclusivamente, procede à transcrição destes, embora com algumas imprecisões.
Deste modo, é apodítico que a Apelante cumpriu com os ónus impugnatórios do julgamento da matéria de facto a que se encontra legalmente adstrita, o que nem sequer vem colocado em crise pela Apelada, pelo que nos abstemos de tecer maiores, por desnecessárias, delongas e considerações a propósito dos mencionados ónus impugnatórios e respetivo cumprimento pela Apelante, pelo que, do ponto de vista estritamente processual, nenhum óbice legal se suscita quanto à possibilidade deste tribunal entrar na apreciação dessa impugnação.
3.4.4. Posto isto, incumbe precisar que em sede de impugnação do julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância e submetida ao princípio da livre apreciação da prova, do regime jurídico que se encontra explanado no art.º 662º do CPC aplicável ex vi art.º 1.º do CPTA, decorre ser propósito do legislador que o tribunal de 2ª Instância realize um novo julgamento em relação à matéria de facto impugnada, assegurando um efetivo duplo grau de jurisdição Ac. STJ. de 14/02/2012, Proc. 6823/09.3TBRG.G1.S1, in base de dados da DGSI..
Deste modo, perante as regras positivas vigentes na atual lei processual civil, tendo o recurso por objeto a impugnação da matéria de facto, o tribunal ad quem deve proceder a um novo julgamento, limitado à matéria de facto impugnada pelo recorrente, procedendo à efetiva reapreciação da prova produzida, devendo, nessa tarefa, considerar os meios de prova indicados no recurso, assim como, ao abrigo do princípio do inquisitório, outros que entenda pertinentes, tudo da mesma forma como o faz o juiz da primeira instância, embora, nessa tarefa, esteja naturalmente limitado pelos princípios da imediação e da oralidade.
Nesse novo julgamento, como verdadeiro tribunal de substituição que é, o tribunal ad quem tem autonomia decisória, devendo apreciar livremente as provas produzidas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto impugnado, exceto no que respeita a factos para cuja prova a lei exija formalidades especiais ou que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados por documento, acordo ou confissão e que, portanto, se encontrem subtraídos ao princípio da livre convicção do julgador (art. 607º, n.º 5 do Cód. Proc. Civil).
Nessa sua livre apreciação, o tribunal de recurso não se encontra condicionado pela apreciação e fundamentação do tribunal recorrido, uma vez que o objeto da apreciação em 2ª instância é a prova produzida, tal como na 1ª instância, e não a apreciação que esta fez dessa mesma prova, podendo, na formação dessa sua convicção autónoma este TCAN recorrer a presunções judiciais ou naturais nos mesmos termos em que o faz o juiz da primeira instância Ac. R... de 01/06/2017, Proc. 1227/15.6T8BGC.C1, in base de dados da DGSI..
No entanto, uma vez realizado esse novo julgamento, para que seja possível ao tribunal ad quem alterar o julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância, não basta que a prova indicada pela Apelante, conectada com a restante prova constante dos autos, a que o tribunal de recurso, ao abrigo do princípio da oficiosidade, entenda dever socorrer-se, consinta esse julgamento diverso que vem propugnado pelo mesmo, mas antes que o imponha.
Com efeito, o n.º 1 do art. 662º, n.º 1 do CPC é expresso ao estatuir que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, não bastando, por isso, que a prova produzida consinta ou admita o julgamento de facto diverso que vem propugnado pelo recorrente, mas antes que o imponha.
Essa exigência legal decorre da circunstância de se manterem em vigor no atual CPC os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, pelo que sempre que a impugnação do julgamento da matéria de facto verse sobre matéria de facto submetida ao princípio da livre apreciação da prova, o tribunal de recurso nunca poderá deixar de ter presente os enunciados princípios e, bem assim a consideração que o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta, não podendo, por isso, aniquilar, em absoluto, a livre apreciação da prova que assiste ao julgador da 1ª Instância, sequer desconsiderar, em absoluto, os princípios da imediação, da oralidade e da concentração da prova, que tornam percetíveis a esse julgador, que intermediou na produção da prova, determinadas realidades relevantes para a formação da sua convicção, que fogem à perceção do julgador do tribunal ad quem através da mera audição da gravação áudio dos depoimentos pessoais prestados em audiência final.
Daí que o uso pelo tribunal de recurso dos poderes de alteração da decisão sobre a matéria de facto só deva ser usado quando seja possível concluir, face à prova produzida, com a necessária segurança, pela existência de um efetivo erro na apreciação da prova relativamente aos concretos pontos da matéria de facto impugnados pelo recorrente, isto é, quando após proceder à audição efetiva da prova gravada e à análise da restante prova produzida que entenda pertinente, se conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direção diversa e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância.
Daqui deriva que “em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte”. [Ana Luísa Geraldes, “Impugnação e Reapreciação Sobre a Matéria de Facto”, in “Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, vol. IV, pág. 609.]
O controlo efetuado pela 2.ª Instância “é atuado na ausência de dois princípios que contribuem decisivamente para a boa decisão da questão de facto: o da oralidade e da imediação - a decisão da Relação não é atingida por forma oral – mas através da audição de registos fonográficos ou da leitura, fria e inexpressiva de transcrições – e sem uma relação de proximidade comunicante com os participantes processuais, de modo a obter uma perceção própria do material que há-de ter como base dessa mesma decisão”. [Cfr. Michelle Taruffo, La Prueba, Marcial Pons, Madrid, 2008, págs. 42 e 43.]
Além disso, esse controlo orienta-se pelos parâmetros seguintes:
«a) Do exercício da prova – que visa a demonstração da realidade dos factos – apenas pode ser obtida uma verdade judicial, jurídico-prática e não uma verdade, absoluta ou ontológica, matemática ou científica (art.º 341.º do Código Civil);
b) A livre apreciação da prova assenta na prudente convicção – i.e., na faculdade de decidir de forma correta - que o tribunal adquirir das provas que foram produzidas (art.º 607.º, nº 5, do CPC).
c) A prudente obtenção da convicção deve respeitar as leis da ciência, da lógica e as regras da experiência - entendidas como os juízos hipotéticos, de conteúdo geral, desligados dos factos concretos objeto do processo, procedentes da experiência, mas independentes dos casos particulares de cuja observação foram deduzidos e que, para além desses casos, pretendem ter validade para casos novos – e que constituem as premissas maiores de facto às quais são subsumíveis factos concretos;
d) A convicção formada pelo juiz sobre a realidade dos factos deve ser uma convicção subjetiva fundada numa convicção objetiva, assente nas regras da ciência e da lógica e da experiência comum ou de normalidade maioritária e, portanto, uma convicção cognitiva e não volitiva, voluntarista, subjetiva ou emocional.
e) A convicção objetiva é uma convicção argumentativa, i.e., demonstrável através de um ou mais argumentos capazes de se impor aos outros;
e) A apreciação da prova vincula a um conceito de probabilidade lógica – de evidence and inference, i.e., segundo um critério de probabilidade lógica prevalecente, portanto, segundo o grau de confirmação lógica que os enunciados de facto obtêm a partir das provas disponíveis: os elementos de prova são assumidos como premissas a partir das quais é possível extrair inferências; as inferências seguem modelos lógicos; as diversas situações podem ser analisadas de acordo com padrões lógicos que representam os aspetos típicos de cada caso; a conclusão acerca de um facto é logicamente provável, como uma função dos elementos lógicos, baseada nos meios de prova disponíveis«. Cfr. JJ, ..., KK, ..., 2008, págs. 42 e 43.
(i) da factualidade inserta na alínea H dos factos provados
3.5.Posto isto, entrando na concreta apreciação do julgamento da matéria de facto operada pela Apelante, a mesma começa por asseverar que a matéria que consta da alínea H dos factos assentes foi erradamente julgada como provada pelo Tribunal a quo.
Ora, nesta alínea do elenco dos factos assentes a 1.ª Instância deu como provado queO veículo circulava a uma velocidade de cerca de 120 km/hora”.
Para fundamentar o invocado erro de julgamento, a Apelante socorre-se das declarações de parte prestadas pela própria e do depoimento prestado pela testemunha BB, seu marido e condutor do veículo interveniente no acidente.
3.5.1.A fim de aquilatarmos sobre a ocorrência do apontado erro de julgamento ouvimos integralmente as declarações de parte prestadas pela Autora, e os depoimentos prestados pelas testemunhas BB ( seu marido) e EE ( advogado e que tinha sido ultrapassado pelo veículo da Autora antes do embate com o canídeo).
3.5.2.Pese embora a autora tenha declarado que no momento em que se deu a colisão entre o veículo sua propriedade e o canídeo, o seu marido, que conduzia o veículo automóvel “ vinha para aí a 80…vínhamos devagar”, a verdade é que o seu marido, a testemunha BB á pergunta sobre a velocidade a que circulava disse de forma espontânea e sem qualquer hesitação que: “vínhamos em ritmo de passeio…a 120Km/hora…presumo que seja essa a velocidade”.
3.5.3.Outrossim, não é despiciendo atentar no depoimento prestado pela testemunha EE, que conduzia um veículo que fora ultrapassado pela viatura interveniente no acidente dos autos, segundo o qual, na descida a chegar a Alfena, apercebendo-se pelo retrovisor do embate da viatura sinistrada com o canídeo, saiu da A..., na Maia, e voltou a nela entrar, indo ter com a autora e o seu marido, a fim de se disponibilizar para ser testemunha, caso necessitassem, o qual, quando questionado sobre a velocidade a que seguia revelou que circulava a uns «90 ou 100 km/hora».
3.5.4.Conjugando o depoimento prestado pelo condutor do veículo interveniente no acidente, que, recorde-se, prontamente respondeu, quando questionado, circular a cerca de 120Km/hora, com o depoimento prestado pela testemunha EE, de acordo com qual o próprio circulava a 90/100 Km/hora, quando foi ultrapassado pelo veículo interveniente no acidente dos autos, resulta como altamente credível que este último veículo circulasse a uma velocidade de 120Km/hora, tanto quanto se sabe que, de acordo com as regras de experiência de vida, comum a quem conduz veículos automóveis, na realização de uma manobra de ultrapassagem a velocidade imprimida ao veículo pelo condutor que pretende realizar essa manobra tem de ser necessariamente superior ao veículo que pretende ultrapassar.
3.5.5.Logo, se o veículo a ultrapassar seguia a uma velocidade de 90/100 Km, é seguro concluir que o veículo conduzido pela testemunha BB, marido da Autora, circulava a uma velocidade superior, pelo tendo esta testemunha, situado a velocidade a que circulava em 120Km/hora, não vemos qualquer razão para alterar a matéria de facto que a 1.ª Instância deu como provada nesta alínea, não resultando da prova produzida a conclusão da existência de um efetivo erro na apreciação da prova que foi produzida relativamente a esse concreto ponto.
3.5.6.O facto de a Autora ter declarado que o veículo interveniente no acidente, sua propriedade e conduzido pela supra identificada testemunha, seu marido, circulava “para aí a 80…”, não é suficiente para alterar aquela conclusão a que chegou a 1.ª Instância. Note-se que as suas declarações não têm a mesma razão de ciência do depoimento prestado pelo condutor do veículo, que era quem detinha a direção efetiva do veículo no momento em que se deu o acidente e que não podia ignorar a velocidade a que circulava.
Ademais, quando se circula em vias como são as autoestradas, em que o pavimento, em regra, se apresenta em boas condições, a velocidade de circulação do veículo nem sempre é percecionada pelo próprio condutor, conquanto em vias dessa natureza os veículos atingem velocidades elevadas sem grande esforço do próprio veículo e daí que, para quem circule como passageiro essa perceção seja ainda menos evidente.
3.5.7. Ademais, “ em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte”. [Ana Luísa Geraldes, “Impugnação e Reapreciação Sobre a Matéria de Facto”, in “Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, vol. IV, pág. 609.]
Termos em que improcede o invocado erro de julgamento.
(ii) da não prova da matéria constante dos pontos 2,4,5,6 e 8 dos factos não provados
3.5.8. Pretende também a Autora que o Tribunal a quo errou ao julgar como não provada a seguinte matéria :
“2. O veículo circulava pela via de trânsito mais à direita, junto à linha longitudinal contínua,
que ladeia a via, dela distando cerca de 0,5 metros.
4. A colisão ocorreu na fila mais à direita da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha do
veículo.
5. O veículo ficou imobilizado sem poder circular.
6. Desde a data do acidente, e por causa dos danos que o mesmo sofreu, a autora ficou impossibilitada de fazer deslocações de trabalho e lazer, com um prejuízo quantificável em € 50/dia, quantia inferior à usada no mercado de veículos de aluguer para uma viatura idêntica.
8. Como consequência direta e necessária do acidente de viação, o veículo sofreu danos nas seguintes componentes da sua parte frontal: para-choques e respectiva grelha, friso, farol de nevoeiro esquerdo, guarda-lamas esquerdo e respectiva tira, cobertura da cave da roda esquerda, travessa superior, suporte do para-choques, conduta de ar esquerda, carga do ar condicionado, anticongelante.»
3.5.9. Quanto à matéria dos pontos 2 e 4, pretende a Apelante que em face das declarações de parte que prestou, em que afirmou de forma clara que o veículo sinistrado seguia na faixa da direita, o Tribunal a quo devia ter julgado essa matéria como provada.
Sem razão.
3.6.Na verdade, ouvida a prova testemunhal produzida, apenas a Autora afirmou que o veículo seguia na faixa da direita da A..., sendo que, nem sequer o condutor da viatura atestou tal facto.
Assim, é a palavra da Autora, que não deixa de ser parte interessada no desfecho da presente lide, a única que afirma que o veículo seguia na faixa da direita quando se deu a colisão.
3.6.1. Recorde-se que, a 1.ª Instância deu como não provados os factos constantes destes pontos, invocando precisamente que nenhuma das testemunhas logrou precisar em que via de trânsito seguia o veículo da autora no momento do acidente, nem mesmo o seu condutor, o qual, inclusivamente, nem sequer soube identificar com certeza o local do acidente quando lhe foi exibido o mesmo no Google maps.
3.6.2. Não tendo a Autora logrado convencer a1.ª Instância, o Tribunal ad quem, desprovido, ademais, do auxílio facultado pelos princípios da imediação e da oralidade com que contou o Tribunal a quo, não tem fundamento válido para alterar aquela que foi a convicção da 1.ª Instância ao dar como não provada esta matéria. A prova produzida e revisitada por este Tribunal ad quem não impõe uma diferente conclusão.
Termos em que improcede o invocado fundamento de recurso.
3.6.3. No que concerne à matéria dos pontos 5 e 8 do elenco dos factos não provados, a Apelante sustenta que tomando em consideração as declarações de parte que prestou e o depoimento do seu marido, a testemunha BB, e os documentos juntos aos autos, devia ter sido julgada provada.
Recorde-se que nestes pontos o Tribunal a quodeu como não provada a seguinte facticidade:
«5. O veículo ficou imobilizado sem poder circular.
8. Como consequência direta e necessária do acidente de viação, o veículo sofreu danos nas seguintes componentes da sua parte frontal: para-choques e respectiva grelha, friso, farol de nevoeiro esquerdo, guarda-lamas esquerdo e respectiva tira, cobertura da cave da roda esquerda, travessa superior, suporte do para-choques, conduta de ar esquerda, carga do ar condicionado, anticongelante.»
Ouvimos integralmente toda a prova pessoal que foi produzida sobre esta matéria na audiência de julgamento.
3.6.4. Nas suas declarações de parte, a Autora, aqui Apelante, disse que em consequência da colisão do veículo sua propriedade, que no momento do acidente era conduzido pelo seu marido, o mesmo ficou com a frente danificada, designadamente do lado esquerdo, pese embora tivesse ficado a andar, tanto assim que foram para casa no veículo acidentado.
A Autora, quando confrontada com o documento n.º3 junto com a p.i, que constitui um relatório de peritagem que fora solicitado pelo seu marido, confirmou que os danos sofridos eram efetivamente os que constavam aí discriminados.
Mais referiu que o carro tinha sido adquirido já em estado de usado, mas que o mesmo não apresentava anomalias, tendo concretizado que o veículo se encontra sem circular desde a data do acidente, devido aos danos sofridos, uma vez que até o para -choques se encontra preso com um fio.
Precisou que, não tendo a Ré assumido a responsabilidade pelos danos, e não tendo dinheiro para o reparar, o mesmo ficou parado na garagem.
3.6.5. Por sua vez, a testemunha BB, seu marido e condutor do veículo interveniente no acidente, quando questionado sobre os danos sofridos pelo veículo em consequência do acidente dos autos, confirmou que os danos se localizam na frente do veículo, sendo que os danos mais evidentes se situam do lado esquerdo do veículo, embora toda a frente tenha ficado com danos.
Confirmou também que o veículo tinha sido comprado pela sua mulher, a Autora, em estado de usada mas que não tinha qualquer problema.
Disse que na sequência do acidente, o veículo foi “visto por uma oficina”, tendo consultado o site da CC, e apresentado reclamação, ao que a mesma respondeu declinando qualquer responsabilidade pelos danos do veículo. Nessa sequência, e porque era sócio do ..., contatou este organismo que o aconselhou a requerer uma peritagem independente, o que fez. Confrontado com o documento n.º3 junto com a p.i, confirmou tratar-se do relatório de peritagem cuja elaboração providenciou, por a isso ter aconselhado pelo A... , de que é associado.
Mais referiu que o dito veículo se encontra impossibilitado de circular, uma vez que não foi arranjado e que no estado em que está nem sequer tem inspeção, estando parado na garagem. 3.6.6.Quer das declarações de parte da Autora, quer do depoimento prestado pela testemunha identificada, quando conjugados com o relatório de peritagem junto como documento n.º3 à p.i. e, bem assim, com as fotografias juntas aos autos, a nossa convicção, diversamente da 1.ª Instância, força-nos a concluir que, efetivamente, o veículo propriedade da Autora sofreu os danos que constam discriminados no relatório de peritagem junto como doc. n.º3 com a p.i e, que, em consequência desses danos, o mesmo ficou imobilizado, sem circular, uma vez que, para poder circular, teria de ser reparado, não podendo circular designadamente com o para-choques preso por um fio!
A este respeito, é da experiência de vida que, uma viatura automóvel que patenteie os danos que o veículo da autora revela, que constam discriminados no relatório de peritagem junto aos autos, não pode circular na via pública, desde logo, porque conforme foi realçado pela testemunha que conduzia esse veiculo, o mesmo não passa na inspeção sem que tais danos se apresentem reparados .
Termos em que se julga procedente o invocado erro de julgamento quanto à não prova dos factos que constam dos pontos 5 e 8 dos factos não provados, facticidade essa que deve ser aditada ao elenco dos factos provados.
3.6.7. Assim sendo, aditam-se aos factos assentes as alíneas CC e DD, com o seguinte teor:
« CC- O veículo ficou imobilizado sem poder circular.
DD - Como consequência direta e necessária do acidente de viação, o veículo sofreu danos nas seguintes componentes da sua parte frontal: para-choques e respectiva grelha, friso, farol de nevoeiro esquerdo, guarda-lamas esquerdo e respectiva tira, cobertura da cave da roda esquerda, travessa superior, suporte do para-choques, conduta de ar esquerda, carga do ar condicionado, anticongelante.»
3.6.8. A Apelante imputa erro de julgamento à decisão da matéria de facto proferida pela 1.ª Instância por ter sido levado ao ponto 6 dos factos não provados a seguinte matéria:
«6. Desde a data do acidente, e por causa dos danos que o mesmo sofreu, a autora ficou impossibilitada de fazer deslocações de trabalho e lazer, com um prejuízo quantificável em € 50/dia, quantia inferior à usada no mercado de veículos de aluguer para uma viatura idêntica.».
3.6.9. Sobre esta matéria a única prova que foi produzida, resulta das declarações de parte prestadas pela Autora e do depoimento prestado pelo seu marido, a testemunha BB.
3.7. Considerando a audição a que procedemos das declarações de parte prestadas pela Autora, a mesma confirmou que usava o referido veículo nas suas deslocações para o trabalho, e para as demais necessidades, como ir às compras.
Precisou que estava de baixa médica quando se deu o acidente e que tendo retomado o trabalho, passou a deslocar-se em transportes públicos para os vários locais onde desenvolvia a sua atividade, percorrendo várias cidades.
Disse que apenas dispunha de viatura automóvel disponibilizada pela sua entidade empregadora quando tinha de se deslocar para Leiria. Muitas das vezes, era transportada pelo seu marido. Quando tinha veículo e se deslocava no seu próprio carro era paga pela sua entidade empregadora dessa despesa, esclarecendo que, quando deixou de usar a sua viatura, por força do acidente, a sua entidade empregadora lhe pagava as despesas de deslocação.
Mais referiu que ficou desempregada em outubro de 2020.
3.7.1. Por sua vez, a testemunha BB, confirmou que o veículo interveniente no acidente era usado pela autora “para tudo”, inclusivamente para se deslocar para o trabalho, mas que, a partir da ocorrência do acidente, e depois de sair da baixa médica, aquela apanhava os transportes públicos para se deslocar para o trabalho, sendo que, muitas vezes, era ele próprio quem levava a autora ao trabalho e a ia buscar, referindo que quando aquela esteve a trabalhar no ..., em Gaia, ia levá-la e busca-la todos os dias.
Disse que, por vezes, quando não necessitava do seu próprio automóvel, a autora usava o seu veículo.
3.7.2. Em face da prova pessoal assim produzida, concordamos com a 1.ª Instância quando na respetiva motivação, conclui resultar das declarações de parte da Autora e do depoimento do seu marido, que a mesma esteve de situação de baixa prolongada, e que em outubro de 2020 ficou desempregada, de tal modo que se impõe concluir que a autora apenas esteve a trabalhar, desde o acidente e até à apresente data, no máximo, 8 meses (de fevereiro a outubro de 2020). E bem assim que « a autora, não só pôde usar o carro do marido desde a data do acidente, como o próprio a transportou, tendo ainda a entidade patronal da autora custeado as suas deslocações em trabalho».
Contudo, essas evidências não permitem dar como não provado que em consequência do acidente dos autos, e « 6. Desde a data do acidente, e por causa dos danos que o mesmo sofreu, a autora ficou impossibilitada de fazer deslocações de trabalho e lazer através da sua viatura.
3.7.3. Assim sendo, concluímos resultar claramente provado nos autos que: « Desde a data do acidente, e por causa dos danos que o mesmo sofreu, a autora ficou impossibilitada de fazer deslocações de trabalho e lazer, com a sua viatura.».
3.7.4. Quanto ao prejuízo daí decorrente como sendo «um prejuízo quantificável em € 50/dia, quantia inferior à usada no mercado de veículos de aluguer para uma viatura idêntica.», nenhuma prova foi produzida.
3.7.5. Assim sendo, julga-se parcialmente procedente o erro de julgamento em relação ao ponto 6 dos factos não provados, devendo aditar-se aos factos assentes uma alínea EE, da qual conste como provada a matéria supra referida que julgamos assente e manter no ponto 6 dos factos não provados a parte da factualidade inscrita no mesmo, que nos moldes que antecedem, julgamos efetivamente não provada.
3.7.6. Nessa conformidade, ao elenco dos factos assentes, aditamos uma alínea EE, do seguinte teor:
« Desde a data do acidente, e por causa dos danos que o mesmo sofreu, a autora ficou impossibilitada de fazer deslocações de lazer, e de trabalho com a sua viatura, neste caso, durante 8 meses.».
3.7.7. Mantém-se no ponto 6 como facto não assente : «6. Que em consequência do referido na alínea EE dos factos assentes, a Autora sofreu um prejuízo quantificável em € 50/dia, quantia inferior à usada no mercado de veículos de aluguer para uma viatura idêntica.
3.7.8. Outrossim, pretende a Apelante que a matéria da alínea U está incompleta, não devendo constar dessa alínea apenas que “ Como consequência direta e necessária do acidente de viação, o veículo sofreu danos na sua parte frontal”, mas antes que “ Como consequência direta e necessária do acidente de viação, o veículo sofreu danos na sua parte frontal, descritos no documento n.º 3 da petição inicial, no valor total de 2.392,65€.”.
3.7.9. Por fim, a Apelante pretende ver alterada a alínea X do elenco dos factos provados onde consta que “ X. A autora solicitou uma peritagem, nos termos da qual o valor da reparação do veículo, incluindo mão-de-obra de chapa, mecânica e pintura, ascende a € 2.392,65 – cfr. doc. 3 junto com a p.i..”, entendendo que deve ser completada de modo a que nela passe a constar que: «X. A autora solicitou uma peritagem, nos termos da qual o valor da reparação do veículo, em consequência direta e necessária do acidente sofrido com o animal na A..., incluindo mão-de- obra de chapa, mecânica e pintura, ascende a € 2.392,65 – cfr. doc. 3 junto com a p.i…».
3.8.O aditamento proposto pela Apelante à alínea U, destina-se a melhor concretizar a facticidade provada nessa alínea quanto ao tipo de danos sofridos pelo veiculo sua propriedade e, considerando que o teor desse documento foi confirmado pela prova pessoal produzida nos autos, admite-se a requerida alteração.
3.8.1. Quanto à alteração pretendida para a alínea X dos factos assentes, indefere-se a mesma, conquanto a modificação pretendida pela Autora pretende que se estabeleça que a causa dos danos sofridos pelo veículo é imputável exclusivamente ao surgimento do cão na via por onde circulava o seu veículo aquando da colisão, mas o que resulta provado é que os danos no seu veículo demandam para a sua reparação, nos termos que constam da peritagem efetuada e que se relatam no documento n.º3, a referida importância, os quais surgiram em consequência da eclosão desse acidente. Da matéria de facto provada não resulta que para a verificação dos danos em causa apenas contribuiu o surgimento do cão, e daí que não possa deferir-se a requerida alteração deste ponto da matéria de facto.
Termos em que se indefere a alteração requerida à alínea X mantendo-se a mesma nos precisos termos em que essa matéria foi dada como assente pela 1.ª Instância.
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b.2. do erro de julgamento sobre os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito: da indevida conclusão do Tribunal a quo quanto à não verificação do requisito da ilicitude da atuação da Ré .
3.9.A responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas coletivas públicas, no domínio dos atos de gestão pública, rege-se, no caso, pelo disposto na Lei n.º 67/2007, de 31/12, que aprovou o regime da responsabilidade extracontratual do Estado e demais entidades públicas, porquanto este diploma encontrava-se em vigor, em 02/06/2019, data em que ocorreu o acidente sobre que versam os presentes autos.
3.9.1. Nos termos do n.º 5 do art.º 1.º da Lei n.º 67/2007 “As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas coletivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas coletivas de direito privado e respetivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por ações ou omissões que adotem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.
3.9.2. No caso em juízo, esse concreto acidente, deu-se quando o veículo propriedade da autora, e conduzido pelo seu marido, em 02/06/2019, pelas 20h35m, circulava a 120 Km/hora, na autoestrada n.º ... (A...), no sentido Alfena-Matosinhos, ao km 14,480, no concelho de Valongo, onde a velocidade máxima permitida era de 100 Km/hora, cujo pavimento estava em bom estado de conservação e quando ainda havia luz solar, o seu condutor foi surpreendido de forma súbita e inesperada, por um canídeo de médio porte que se atravessou à sua frente, contra o qual embateu na parte frontal esquerda do veículo- vide factos assentes nas alíneas A a J do elenco dos factos provados,
3.9.3. Do acidente assim descrito e em consequência do mesmo resultaram danos na viatura e danos decorrentes da privação de uso.
3.9.4. Na doutrina e na jurisprudência administrativa, este tipo de responsabilidade embora sujeito à disciplina da 67/2007, corresponde, no essencial, ao conceito civilístico de responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, que tem consagração legal no art.º 483º, n.º 1 do CC, pelo que são pressupostos da mesma a verificação dos seguintes requisitos legais cumulativos: a) a verificação do “facto”, enquanto comportamento ativo ou omissivo voluntário do agente, no sentido de ser controlado ou suscetível de ser controlável pela vontade deste; b) a “ilicitude” desse comportamento ativo ou omissivo do agente, traduzida na circunstância deste violar direitos de terceiros ou disposições legais destinadas a proteger interesses alheios; c) “culposo”, por se afirmar um nexo de imputação entre esse comportamento ilícito, ativo ou omissivo, e a vontade do agente, que o torna merecedor de um juízo de censura ético-jurídica, por essa sua conduta se mostrar desconforme com a diligência que teria tido um homem médio ou um funcionário ou agente típico que se encontrasse nas concretas circunstâncias em que o concreto agente se encontrava quando agiu ou quando omitiu a sua obrigação de agir, não obstante esse dever de ação lhe fosse legalmente imposto; d) a existência de “dano”, isto é a lesão de ordem patrimonial ou moral na esfera jurídica do demandante; e e) a afirmação de um nexo de causalidade adequado entre a conduta ativa ou omissiva do agente e o dano que se verificou ( cfr. Acs. STA de 10/10/2000, Proc. 40576 e de 12/12/2000, Proc. 1226/02, in base de dados da DGSI ).
3.9.5. De particular, na responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas entidades públicas, há a considerar que o art.º 9º da citada Lei n.º 67/2007, estabelece, em sede de ilicitude julgarem-se ilícitas as ações ou omissões dos titulares de órgãos, funcionários e agentes que violem disposições ou princípios constitucionais, legais ou regulamentares ou infrinjam regras de ordem técnica ou deveres objetivos de cuidado e de que resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos (n.º 1), bem como quando a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos resulte do funcionamento anormal do serviço, segundo o disposto no n.º 3 do art.º 7º (n.º 2).
Com efeito, deste dispositivo legal resulta que em sede de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, consagra-se um conceito amplo de ilicitude (bem mais amplo do que resulta do n.º 1 do art.º 483º do CC), na medida que para efeitos desta específica responsabilidade é ilícito o ato que viole normas legais sejam constitucionais ou infraconstitucionais, incluindo, regulamentares ou princípios gerais aplicáveis, bem como aquele que viole as regras de ordem técnica e de previdência comum.
Neste sentido já se pronunciava Marcelo Caetano no âmbito da vigência do anterior DL n.º 48.051, ao ponderar que “É necessário, em primeiro lugar, que tenha sido praticado um ato jurídico, nomeadamente um ato administrativo, como um facto material, simples conduta despida do caráter de ato jurídico. O ato jurídico provem por via de regra de um órgão que exprime a vontade imputável à pessoa coletiva de que é elemento essencial. O facto material é normalmente obra dos agentes que executam ordens ou fazem trabalhos ao serviço da Administração. O art.º 6º do DL 48054 contém, para os efeitos de que trata o diploma, uma noção de ilicitude. Quanto aos atos jurídicos, incluindo, portanto, os atos administrativos, consideram-se ilícitos os que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis: quer dizer, a ilicitude coincide com a ilegalidade do ato e apura-se nos termos gerais em que se analisam os respetivos vícios. Quanto aos factos materiais, por isso mesmo que correspondem tantas vezes ao desempenho de funções técnicas, que escapam às malhas da ilegalidade estrita e se exercem de acordo com as regras de certa ciência ou arte, dispõe a lei que serão ilícitos, não apenas quando infrinjam as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis, mas ainda quando violem as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração” ( cfr. Marcelo Caetano, “Manual de Direito Administrativo”, 10ª ed., volo. II, pág. 1125).
3.9.6. No que respeita ao requisito da culpa, é entendimento pacífico que “agir com culpa significa atuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito. E a conduta do lesante é reprovável quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo” (cfr. Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, 6ª ed., Almedina, pág. 531.).
Na senda deste conceito de culpa e concretizando-o para efeitos de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, estabelece o art.º 10º da Lei n.º 67/2007, que a culpa dos titulares de órgãos, funcionários e agentes deve ser apreciada pela diligência e aptidão que seja razoável exigir em função das circunstâncias ao agente zeloso e cumpridor (n.º 1) e que sem prejuízo da demonstração de dolo ou culpa grave, presume-se a existência de culpa leve na prática de atos ilícitos (n.º 2) e que para além dos demais casos previstos na lei, também se presume a culpa leve, por aplicação dos princípios gerais da responsabilidade civil, sempre que tenha havido incumprimento dos deveres de vigilância (n.º 3).
Destarte, resulta deste preceito não só que para efeitos de culpa, a aferição desta deverá ser feita, como sucede na responsabilidade civil extracontratual em geral, de acordo com as concretas circunstâncias especificas do caso concreto em que o agente deixou de atuar, apesar de sobre si impender um dever legal de atuação, ou em que atuou, e tendo em consideração o grau de diligência de um funcionário diligente, zeloso e cumpridor, mas também que em sede de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas é aplicável a presunção de culpa prevista no art.º 493º, n.º 1 do CC, o que desde sempre constituiu entendimento reiterado e pacífico ao nível da jurisprudência administrativa.
Ou seja, sempre que seja intentada ação de responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos contra o Estado ou demais entidades públicas, em que o demandante pretenda ser ressarcido por danos patrimoniais e/ou morais provocados por coisa móvel ou imóvel em poder do Estado ou daquelas entidades públicas, com o dever de as vigiar, e com fundamento no incumprimento desse dever, sempre se entendeu ser aplicável a presunção de culpa do n.º 1 do art.º 493º do C.Civil, presumindo-se a culpa do Estado ou dos entes públicos in vigilando sobre essas coisas quando estas provoquem danos a terceiros, o que agora é reafirmado no art.º 10º, n.º 3 da Lei n.º 67/2007, de 31/12, onde inclusivamente se presume que essa culpa é leve ( cfr. Ac. STA. de 09/02/2012, Proc. 035/12; 25/10/2000, Proc. 37510; TCAN de 09/09/2016, Proc. 00507/09.4; 17/11/2017, Proc. 01652/12.4BEBRG, in base de dados da DGSI).
Neste sentido, pronuncia-se Fernandes Cadilha ao ponderar que “o n.º 3 do art.º 10º prevê igualmente uma presunção de culpa leve no caso de incumprimento de deveres de vigilância. A admissibilidade da presunção por aplicação dos princípios gerais da responsabilidade civil” (cfr. Carlos Alberto Fernandes Cadilha, “Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas Anotado”, Coimbra Editora, pág. 103.).
3.9.7. Decorre do que se vem dizendo ser absolutamente pacífico que em todas as ações de responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos intentadas contra o Estado ou as demais entidades públicas por atos de gestão pública, em que o demandante pretenda ser indemnizado por danos patrimoniais e/ou não patrimoniais com fundamento em culpa in vigilando, este apenas tem o ónus da alegação e da prova dos factos base da presunção decorrentes do n.º 1 do art.º 493º do CC, para que um vez provados esses factos base da presunção se presuma a culpa do demandado.
Esses factos base da presunção de culpa resumem-se à alegação e prova pelo demandante que: a) o demandado tem em seu poder coisa móvel ou imóvel, com a obrigação de a vigiar; e b) que essa coisa móvel ou imóvel lhe provocou, em consequência direta e necessária de determinado evento em que esteve envolvida, designadamente, queda total ou parcial daquela, estragos.
Em conformidade com o disposto no art.º 350º, n.º 2 do CC, a presunção de culpa a que nos vimos referindo é uma presunção iuris tantum e, por isso, em princípio, ilidível mediante contraprova.
No entanto, impõe-se realçar que conforme resulta da parte final do n.º 1 do art.º 493º do CC, para que o Estado ou as demais entidades públicas demandadas possam validamente ilidir essa presunção de culpa e assim possam furtar-se ao dever indemnizatório que o demandante delas reclama, não se basta a lei com uma mera contraprova, mas antes exige que aleguem e provem factos concretos de onde se extraia que nenhuma culpa houve da sua parte no evento ilícito e presuntivamente culposo e danoso ou que os danos sofridos pelo demandante se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse qualquer culpa sua.
Destarte, a elisão da presunção iuris tantum de culpa que se encontra prevista no n.º 1 do art. 493º do CC, só é feita com a prova do contrário, não se bastando, por isso, a lei com a mera contraprova, ou com a prova de que os danos sofridos pelo demandante se teriam na mesma produzido ainda que o demandado não tivesse agido com nenhuma culpa (Ac. STA de 09/02/2005, Proc. 1758/03, in base de dados da DGSI).
Neste sentido lê-se no aresto do STJ. de 09/07/2009, Proc. 01103/08, in base de dados da DGSI que “a inversão desse ónus aplica-se, por exemplo, àqueles que têm o dever de vigiar coisa móvel ou imóvel em seu poder pois que eles responderão pelos danos que essa coisa provocar, salvo se provarem que nenhuma culpa tiveram ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa da sua parte (art. 493º/1 do CC). (…). O que quer dizer que caberá ao ente público possuidor da coisa demonstrar que empregou todas as providências ao seu alcance para evitar o evento danoso e que este só ocorreu por motivos que lhe escaparam e que não podia controlar – isto é, que o mesmo se deveu a caso fortuito ou de força maior – e, por conseguinte, que ele se teria verificado ainda que não houvesse culpa sua - a este propósito o Ac. STA de 16/03/2004, Proc. 40/04. Nestes casos, ao lesado incumbirá provar apenas a chamada base da presunção entendida como o facto conhecido donde se parte para afirmar o facto desconhecido (arts. 349º e 350ª do CC). Trata-se, porém, de uma presunção que admite prova destinada a contrariar o facto presumido e, consequentemente, que admite a demonstração de que o direito reclamado não existe (presunção iuris tantum – vd. acórdão do STA de 26/03/2009, Proc. 1094/08) (…). Decorre da citada presunção que quem tem o dever de vigiar a coisa que provocou os danos responde por eles, salvo se provar que não teve culpa na sua produção ou que eles se teriam produzido independentemente de culpa sua.
3.9.8. Quanto ao nexo de causalidade a jurisprudência do STA tem considerado que à responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas coletivas públicas se aplica o artigo 563º do CC.
3.9.9. No caso, considerando que estamos perante um acidente de viação ocorrido numa via classificada como autoestrada, provocado pelo atravessamento de animais, há que convocar o regime plasmado na Lei 24/2007, que conforme previsto no seu art.º 1.º « define direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como autoestradas concessionadas, itinerários principais e itinerários complementares e estabelece, nomeadamente, as condições de segurança, informação e comodidade exigíveis, sem prejuízo de regimes mais favoráveis aos utentes estabelecidos ou a estabelecer».
4. No art.º 12.º da referida Lei prescreve-se que:
«1 - Nas autoestradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respetiva causa diga respeito a:
a) Objetos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem;
b) Atravessamento de animais;
c) Líquidos na via, quando não resultantes de condições climatéricas anormais.
2 - Para efeitos do disposto no número anterior, a confirmação das causas do acidente é obrigatoriamente verificada no local por autoridade policial competente, sem prejuízo do rápido restabelecimento das condições de circulação em segurança.
3 - São excluídos do número anterior os casos de força maior, que diretamente afetem as atividades da concessão e não imputáveis ao concessionário, resultantes de:
a) Condições climatéricas manifestamente excecionais, designadamente graves inundações, ciclones ou sismos;
b) Cataclismo, epidemia, radiações atómicas, fogo ou raio;
c) Tumulto, subversão, atos de terrorismo, rebelião ou guerra».
4.1. Resulta deste preceito legal que, em caso de acidente rodoviário em autoestradas, em razão de (i) objetos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem, (ii) atravessamento de animais ou (iii) líquidos na via, quando não resultantes de condições climatéricas anormais, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança pertence à concessionária. 4.1.1.Subjacente ao ónus da prova do cumprimento das obrigações a cargo da concessionária, está a circunstância de apenas esta deter os conhecimentos e os meios técnicos e humanos aptos à prossecução dos deveres e obrigações que lhe são impostas, sendo a única que pode, de facto, controlar e atenuar as fontes de perigo, cabendo-lhe, por isso, o ónus de provar que cumpriu todos os deveres e procedimentos fulcrais para garantir a circulação normal e segura na via concessionada.
4.1.2. Desta previsão legal resulta que a concessionária de uma autoestrada em que se verifique um sinistro rodoviário causado por objetos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem, atravessamento de animais e líquidos na via, neste último caso quando não resultantes de condições climatéricas anormais, está onerada com uma presunção de incumprimento das obrigações de segurança que lhe cabe observar.
4.1.3. Este artigo veio pôr fim à polémica doutrinal e jurisprudencial que previamente à publicação da Lei 24/2007, existia sobre a natureza da responsabilidade civil dos concessionários de autoestradas. Existiam, então, três teses, a saber: (1) Uma que considerava que a responsabilidade da concessionária, era contratual, colocando-a na veste de devedor da prestação de serviço proporcionado ao utente (com velocidade legal e segurança), fazendo impender sobre si a presunção de culpa do art.º 799.º, n.º 1, do Código Civil; outra que sustentava ser tal responsabilidade civil extracontratual, o que implicava caber ao lesado a prova da culpa do autor da lesão; uma terceira, que considerava que a responsabilização da concessionária assentava no facto de ter à sua guarda coisa imóvel, o que, ainda aí, remeteria para a sua culpa presumida, por ser aplicável a regra do art.º 493.º, n.º 1, do Código, entendendo-se que esta norma estabelece uma inversão do ónus de prova quanto ao requisito culpa, competindo, por isso, à concessionária provar que agiu sem culpa. Esta discussão ficou de algum modo desvalorizada pela publicação da Lei n.º 24/2007 de 18/7, na medida em que este diploma legal definiu os direitos dos utentes das vias rodoviárias classificadas como autoestradas concessionadas.
4.1.4. Assente nas mencionadas premissas, revertendo ao caso dos autos, a 1ª Instância considerou que a Ré, por força do disposto no artigo 1.º, n.º 5 da Lei 67/2007, de 31/12, a mesma está submetida às normas aplicáveis à responsabilidade civil das entidades públicas, dependendo a sua responsabilidade da verificação dos mesmos pressupostos que se encontram previstos no artigo 483.º Código Civil. Quanto aos pressupostos da culpa e da ilicitude, tomou em consideração o regime da Lei n.º 24/2007, de 18 de julho, concretamente, o art.º 12.º , e entendendo estarem verificados os elementos que permitem acionar o referido artigo 12.º da Lei n.º 24/2007, de 18 de julho, depois de esclarecer que não é à autora que cabe alegar ou provar a ilicitude e a culpa da atuação da ré, mas antes a esta última que cabe ilidir a presunção que sobre si recai, conclui que a Ré conseguiu ilidir a presunção de incumprimento do artigo 12.º, n.º 1, al. b) da Lei n.º 24/2007, de 18 de julho.
4.1.5. Consta da decisão sob sindicância a seguinte fundamentação:
« (…)Temos, assim, que sobre a concessionária de autoestrada onde ocorra acidente rodoviário causado por atravessamento de animais na via recai uma presunção de incumprimento das obrigações de segurança que lhe incumbem, consubstanciando uma presunção de ilicitude e de culpa, atento o disposto no n.º 3 do artigo 10.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, ainda que continue a recair sobre o lesado, nos termos gerais, previstos no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, o ónus da prova dos demais pressupostos da responsabilidade civil (facto, nexo de causalidade e dano). Por conseguinte, cabe-lhe a prova da “correspondência entre a idoneidade das medidas que adoptou para prevenir esse tipo de acidentes ou remover as suas consequências e as exigências ditadas pelo bonus pater famílias, rejeitando estes autos, assim, a tese extrema de que não lhe bastaria provar o cumprimento das suas obrigações, sendo ainda preciso demonstrar um caso de força maior” (cfr. RUI PAULO COUTINHO DE MASCARENHAS ATAÍDE, Acidentes em auto-estradas: natureza e regime jurídico da responsabilidade dos concessionários, in Estudos de Direito Privado (2010-2020), AAFDL, p. 513).
É certo que a jurisprudência constitucional sobre o tema (cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional 596/09, de 18/11/2009; 597/09, de 18/11/2009; e 629/09, de 02/12/2009) sustentou a não inconstitucionalidade da norma constante do artigo 12.º, n.º 1, da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, na interpretação segundo a qual, “em caso de acidente rodoviário em auto-estradas, em razão do atravessamento de animais, o ónus de prova do cumprimento das obrigações de segurança pertence à concessionária e esta só afastará essa presunção se demonstrar que a intromissão do animal na via não lhe é, de todo imputável, sendo atribuível a outrem, tendo de estabelecer positivamente qual o evento concreto, alheio ao mundo da sua imputabilidade moral que não lhe deixou realizar o cumprimento”. Todavia, o inverso não foi sancionado por aquele Tribunal com a inconstitucionalidade. Assim, para este tribunal a ré concessionária terá apenas de provar o cumprimento dos seus deveres de segurança no tráfego em concreto, para se eximir de responsabilidade.
Sobre a matéria em apreço, com interesse para a decisão da causa, escreve MANUEL A. CARNEIRO DA FRADA (“Sobre a responsabilidade das concessionárias por acidentes ocorridos em auto-estradas”, in https://portal.oa.pt/publicacoes/revista/ano-2005/ano-65-vol-ii-set-2005/artigos-doutrinais/manuel-a-carneiro-da-frada-sobre-a-responsabilidade-das-concessionarias-por-acidentes-ocorridos-em-auto-estradas/) o que se passa a transcrever:
“(...) No caso das concessionárias de auto-estradas, apresenta-se completamente desajustado pretender que elas se encontram vinculadas a deveres de resultado, ou de garantia de que os utilizadores cheguem sãos e salvos ao destino da sua circulação em auto-estrada. A ocorrência de um acidente não legitima, por conseguinte, a concluir com um mínimo de certeza que houve a infracção de um dever de protecção que incumbia a tais concessionárias. Estas não prometeram, neste aspecto, resultados, nem ao Estado (contraparte no contrato de concessão), nem, muito menos, como vimos, aos utentes. Deste modo, se a concessionária demonstrar que agiu com a diligência adequada no cumprimento dos seus deveres, não é responsável. Como esses deveres não garantem um resultado, não se torna necessário que a concessionária, para afastar a imputação, desvende plenamente o concreto processo causal do acidente (se ele for desconhecido, ao menos em parte), demonstrando (por essa via) que por ele não é responsável. Os deveres, ainda que de matriz contratual, que impendem sobre as concessionárias são apenas deveres de diligência, de envidar esforços — certos esforços, como se disse, em princípio os determinados pelo contrato de concessão — com vista a acautelar a segurança da circulação. Tal qual se afirmou, a simples circunstância de o utente de uma auto-estrada sofrer um acidente por ocasião da sua circulação nela não justifica de modo algum a presunção de que a causa do dano sofrido tem origem num comportamento da concessionária contrário aos seus deveres (...). (...) A conveniência do reconhecimento deste tipo de prova pode exemplificar-se justamente com as situações de intrusão, no espaço da auto-estrada, de cães, provocando-se um acidente. Não é curial exigir que uma concessionária previna em absoluto a penetração desses animais ou garantir que ela jamais se dê (...). (...). Ao mesmo tempo, a prova concreta de que tomou todas as medidas adequadas a evitar essa intrusão, não se sabendo como esta concretamente se deu, é reconhecidamente pouco menos do que impossível. Nestes termos, parece equilibrado isentar a concessionária de responsabilidade se ela logra produzir aquele grau de convicção que basta às pessoas razoáveis para formular um juízo de que adoptou a diligência conveniente para evitar esse tipo de situações: se, por exemplo, não havendo sinais de desleixo na manutenção das vedações da auto-estrada que pudessem estar na origem da intrusão, se mostra razoável admitir ter ela adoptado os cuidados exigidos pela vigilância adequada das condições dessas vedações (...). Será assim desmesurado pretender que uma concessionária só logra eximir-se de responsabilidade caso se demonstre positivamente o modo específico como o animal concreto se introduziu na auto-estrada (...).”. No mesmo sentido, escreve ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO que “A violação dos deveres de protecção, fundamentalmente incluídos nas bases e no próprio contrato de concessão, dá azo a responsabilidade aquiliana. Esta é totalmente operacional. Se, por exemplo, por culpa da concessionária, faltarem vedações, poderá o tribunal, na base de uma (simples) presunção hominis, concluir que a presença de um cão na via lhe é imputável. Do mesmo modo, ser-lhe-ão imputáveis deficiências de manutenção: temos muitos acórdãos nesse sentido. Agora: responsabilizar uma concessionária pela presença de um cão na via e isso a menos que ela logre explicar a proveniência do animal: é imputação objectiva que nenhuma lei prevê” – cfr. do autor, Acidente de viação em auto-estrada; natureza da eventual responsabilidade da concessionária, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 65, Vol. I, Jun. 2005, disponível em https://portal.oa.pt/publicacoes/revista/ano-2005/ano-65-vol-i-jun-2005/jurisprudencia-critica/antonio-menezes-cordeiro-acidente-de-viacao-em-auto-estrada-natureza-da-eventual-responsabilidade-da-concessionaria/ ].
Em linha com o expendido, não é legalmente exigido da concessionária – nem tal se mostra razoável - que vigie durante 24 horas por dia todas as vedações, acessos e saídas, de modo a detectar a todo o tempo a intromissão de animais, bem como patrulhas permanentes em toda a extensão dos troços, de forma a removerem qualquer objecto acabado de lançar para a via.
Embora esteja em causa uma obrigação de meios reforçada, a concessionária fica exonerada de responsabilidade se provar que cumpriu todas as obrigações de segurança que para si advêm do contrato de concessão – e, como tal, aí consideradas idóneas a prevenir acidentes, de acordo com exigências razoáveis (razoabilidade aferida pelo padrão do bonus pater famílias) –, deste modo afastando a presunção que sobre a mesma recai.
Vejamos se a autora logrou provar a verificação dos referidos pressupostos da responsabilidade civil.
Resulta do probatório que, em 02.06.2019, pelas 20h35m, na A..., no sentido Alfena-Matosinhos, ao km 14,480, no concelho de Valongo, em zona concessionada da ré, ocorreu um acidente de viação, no qual foi interveniente o veículo da autora de marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-FO-.., datada de 2008, conduzido por BB, marido da autora, e no qual a mesma seguia no lugar do passageiro. O veículo circulava a uma velocidade de cerca de 120 km/hora, sendo o limite máximo de velocidade de circulação no local de 100 km/h. De forma súbita e inesperada, o veículo embateu, com a parte frontal esquerda, num canídeo de médio porte que se atravessou à sua frente.
Junto aos ramais de acesso e saída da A... pelo nó de Alfena, que tem o seu eixo sensivelmente ao Km 14,825 (muito próximo do local do acidente), encontra-se instalada pela ré uma câmara de vigilância.
Os patrulhamentos da ré passaram no local do acidente por volta das 17h40m, e, nessa altura e passagem efectuada no local pela patrulha da ré, não foi detectado qualquer animal a remover da via. No dia seguinte ao do acidente, o oficial de conservação e manutenção da ré, DD, deslocou-se ao local do acidente para inspeccionar as vedações existentes desde o km 14,480 numa distância de 500 metros para cada lado, em ambos os sentidos da A..., não tendo detectado qualquer anomalia, encontrando-se as vedações em boas condições, sem cortes, brechas ou imperfeições. As vedações da ré naquele trecho da A... têm 1,60 metros de altura e são de arame, sendo inspeccionadas anualmente pela ré.
Como consequência directa e necessária do acidente de viação, o veículo sofreu danos na sua parte frontal, não tendo a autora procedido à respectiva reparação e sendo o veículo em causa o único que a autora possui.
O facto ilícito que a autora imputa à ré corresponde ao incumprimento das obrigações de manutenção da via em boas condições para a circulação automóvel, concretamente evitando a presença do animal que se encontrava na via e contra o qual o veículo em causa embateu, pelo que importa, antes de mais, aferir se a ré incumpriu com tais deveres, tendo em conta que – como acima se referiu - incumbe à ré concessionária o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança, consubstanciadas no dever de vigiar, manter e conservar a via de trânsito em boas condições para que a circulação automóvel decorra de forma segura, sem perigo.
No caso, a ré provou que patrulhou a via com a cadência que se lhe impunha em cumprimento do Manual de operação e manutenção acordado com o Estado Português, circulando pelo local do acidente, pela última vez, cerca das 17h40 (e dentro do timing razoavelmente previsto no “Manual de operação e manutenção”), sem que nenhum animal na via tivesse sido detectado. É certo que entre essa hora e a do acidente, poderia ter entrado na A... um animal; mas mostra-se mais plausível que o animal tenha entrado na via pouco tempo antes da ocorrência do acidente, não só porque, nesse intervalo de tempo, a câmara de vigilância instalada no nó de Alfena – bem próximo do local do acidente – permitiria a sua detecção, mas também porque numa autoestrada movimentada como a A..., e no local preciso em questão (de saída e acesso), seria provável a colisão de veículos com o animal ou a sua detecção e comunicação pelos condutores dos veículos que aí circulam e pela GNR, que também patrulha as autoestradas, pouco tempo depois da entrada no animal na via.
Provou ainda a ré que tem colocadas vedações ao longo da concessão da A..., nomeadamente no local onde ocorreu o acidente, incluindo nos ramais de acesso, sem evidência de ruptura ou dano das mesmas no dia e momento do acidente em causa, o que leva a crer que o animal não terá entrado na A... pela zona de vedação, à qual se reporta a obrigação de vedação por parte da concessionária.
Finalmente, a ré também demonstrou que tem instalada câmara de videovigilância junto do local do acidente, ainda que a mesma não tivesse detectado a presença do animal em causa, sem que isso corresponda a um incumprimento do dever de vigilância. Efectivamente, em função do tamanho, cor e rapidez do animal, poderá a câmara de videovigilância não o detectar, sendo irrazoável que uma só câmara se fixe num ponto muito concreto e focado, o que implicaria que se instalassem inúmeras câmaras, o que se mostra absolutamente desproporcional, além de que nem sequer está prevista nas normas que regem a concessão a instalação de câmaras de videovigilância com vista ao cumprimento das obrigações da concessionária no que concerne à vigilância da infraestrutura (cfr. o já referido “Manual de operação e manutenção”), aí se prevendo o patrulhamento da via e a operacionalização de comunicação (via rádio e telefone) com as unidades de patrulhamento, os utentes e as autoridades e serviços de emergência e protecção civil. É certo que a concessionária pode tomar a iniciativa de instalar câmaras de vigilância para melhorar o controlo e gestão de tráfego, mas tal não constitui o cumprimento de qualquer obrigação prevista nos termos da concessão, não podendo a concessionária ser obrigada a cumprir obrigações ali – nem sequer na lei - não previstas.
Está em causa a apreciação da responsabilidade civil da ré pelos danos verificados no veículo de tipo ligeiro, marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-FO-.., em virtude de acidente ocorrido na A... no dia 02.06.2019, pelo incumprimento das obrigações de segurança que impendiam sobre a ré enquanto concessionária da autoestrada no local do acidente.
Estamos no domínio da responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público por danos resultantes do exercício da função administrativa.
Atenta a factualidade apurada, concluímos que a ré deu cumprimento às obrigações de segurança, manutenção e vigilância da via em causa que sobre a mesma impendiam, tendo demonstrado ter adoptado todas as medidas possíveis e exigíveis para o efeito.
Deste modo, a ré logrou ilidir a presunção de incumprimento dos deveres de segurança, vigilância e fiscalização da estrada que lhe incumbia provar nos autos e, assim, não se mostra verificado o pressuposto da ilicitude.
(…)
Está em causa a apreciação da responsabilidade civil da ré pelos danos verificados no veículo de tipo ligeiro, marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-FO-.., em virtude de acidente ocorrido na A... no dia 02.06.2019, pelo incumprimento das obrigações de segurança que impendiam sobre a ré enquanto concessionária da autoestrada no local do acidente.
Estamos no domínio da responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público por danos resultantes do exercício da função administrativa.
Atenta a factualidade apurada, concluímos que a ré deu cumprimento às obrigações de segurança, manutenção e vigilância da via em causa que sobre a mesma impendiam, tendo demonstrado ter adoptado todas as medidas possíveis e exigíveis para o efeito.
Deste modo, a ré logrou ilidir a presunção de incumprimento dos deveres de segurança, vigilância e fiscalização da estrada que lhe incumbia provar nos autos e, assim, não se mostra verificado o pressuposto da ilicitude
(…)
Inverificada a ilicitude, fica prejudicada a apreciação dos demais pressupostos da responsabilidade civil na medida em que os mesmos são de verificação cumulativa e, em consequência, improcede a presente acção.»
4.1.6. Observe-se desde já que, considerando os factos que foram dados como provados o quadro legal aplicável e o sentido da jurisprudência, que pode considerar-se firme e consolidada dos tribunais superiores, designadamente, dos que integram a jurisdição administrativa e fiscal, e, adiante-se, também o entendimento que temos professado em alguns acórdãos que relatamos, a sentença proferida pelo Tribunal a quo embora tenha procedido a uma cuidada análise dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual das concessionárias, designadamente, do regime instituído pela Lei n.º 24/2007, decidiu, salvo o devido respeito, erradamente quanto considerou que que a Ré viu afastada a presunção de culpa e de ilicitude que sobre si impendia por força do art.º 12.º da Lei n.º 24/2007 .
4.1.7. A elisão da presunção legal mista de culpa e ilicitude, por acidente em autoestradas decorrentes do atravessamento de um animal, como se verificou no caso, incumbe às concessionárias.
Isso mesmo é preconizado por abundante, sólida e reiterada jurisprudência (vide, entre outros, o Ac. do STJ de 09.09.2008, proc. n.º 08P1856, in www.dgsi.pt). Porém, não se olvida que a densidade do ónus probatório da concessionária variará em função das causas do acidente.
4.1.8. No que respeita ao atravessamento de animais, quer a jurisprudência, quer doutrina têm reconhecido um grau de exigência elevado às concessionárias para o afastamento da presunção, não bastando a prova genérica do cumprimento das obrigações do contrato de concessão nem do bom estado das redes de proteção.
4.1.9. A prova da concessionária terá que consistir na demonstração, em concreto, das circunstâncias que levaram ao atravessamento do animal.
Recorrendo às acutilantes palavras do Supremo Tribunal de Justiça, em cuja posição nos revemos integralmente: “Para afastar a presunção de incumprimento que sobre si impende, deveria pois a R. provar, em concreto, que o canídeo surgiu de forma incontrolável para si ou foi colocado na autoestrada, negligente ou intencionalmente, por outrem. Isto é, sempre que há um acidente devido a um cão (ou outro animal) que se introduziu numa autoestrada, presume-se o incumprimento da concessionária. Esta só afastará essa presunção se demonstrar que a intromissão do animal na via, não lhe é, de todo, imputável, sendo atribuível a outrem. Ou, como se refere no acórdão de 22-6-2004, “terá de estabelecer positivamente qual o evento concreto, alheio ao mundo da sua imputabilidade moral, que lhe não deixou realizar o cumprimento”.
4.2. Conforme se assevera no Acórdão proferido pelo STJ de 09.09.2008, proc. n.º 08P1856, para além do caso de força maior, “apenas a demonstração em concreto das circunstâncias que levaram a intromissão do animal na via é que poderão conduzir a um juízo conclusivo de que ela não deixou de realizar o cumprimento das suas obrigações. Só assim estabelecerá “positivamente qual o evento concreto, alheio ao mundo da sua imputabilidade moral, que lhe não deixou realizar o cumprimento”.
Em sentido idêntico, veja-se o Ac. do STJ de 06.09.2008, proc. n.º 08A2094, mas também o Ac. do STJ de 14.03.2013, proc. n.º 201/06.8TBFAL.E1S1; acórdãos deste TCAN, de 04.12.2015, proc. n.º0037/13.9BEPRT; de 30.11.2017, proc.00951/14.5BEBRG.
4.2.1. Afigura-se-nos ser esta posição a mais equilibrada e justa, já que, de contrário, considerando-se suficiente a prova genérica de que a concessionária de autoestrada cumpriu as obrigações decorrentes do contrato de concessão, acabaria por se colocar nos ombros do lesado a produção de uma prova que se revelaria de todo difícil, ou até impossível, de fazer.
4.2.2. Nos acidentes com animais (ou com outros objetos) em autoestradas, reafirma-se, quem mais facilmente pode provar a proveniência do animal (ou objetos) é a concessionária. Só ela tem, pode ou deve ter, os meios idóneos à monitorização do tráfego, da circulação viária e da segurança, meios que lhe devem permitir detetar a introdução na via de animais ou de objetos nocivos à circulação automóvel.
4.2.3. O utilizador da via depara-se com a óbvia e notória dificuldade natural em recolher meios ou elementos de prova. Não pode, como é notório, permanecer na autoestrada com vista a determinar a causa da introdução do animal aí, nem sequer tem, normalmente, equipamentos técnicos de recolha de prova.
4.2.4. No caso, embora a R., tenha efetuado a demonstração genérica de ter cumprido as suas obrigações de vigilância e de conservação, a verdade é que não conseguiu impedir que o cão tivesse entrado na autoestrada que lhe estava concessionada.
4.2.5. O acidente deu-se numa autoestrada concessionada em que sobre a concessionária impendem especiais e específicos deveres de vigilância, e aquela não demonstrou que tivesse cumprido o seu dever afastando assim a presunção de ilicitude e culpa que sobre ela recaía, contrariamente ao que foi o entendimento sufragado pela 1.ª Instância, uma vez que não logrou demonstrar quais foram as circunstâncias em que o canídeo entrou na autoestrada.
4.2.6. E note-se, esse presuntivo incumprimento foi também causal do acidente, embora no caso, se coloque a questão da existência de uma situação de concausalidade entre o incumprimento do dever de vigilância por parte da concessionária para a eclosão do acidente e a velocidade a que circulava o veiculo interveniente, não havendo, por conseguinte, uma causa única para o eclodir do concreto acidente sobre que versam os presentes autos, mas duas causas, que se traduzem: (i) na circunstância da Concessionária presuntivamente não ter cumprido com o seu dever de vigilância sobre a autoestrada; (ii) e do modo como circulava o veículo interveniente.
4.2.7. Subscrevemos a sentença recorrida no segmento em que nela se propugna que:
«Sem embargo, importa referir que o veículo da autora seguia a velocidade superior à permitida no local (100 km/h), num excesso de cerca de 20 km/hora, excesso esse que releva para a ocorrência da colisão. Neste contexto, importa ter como referência as noções de distância de paragem, distância de reacção e distância de travagem – cfr. os seguintes sítios da internet:http://www.ansr.pt/SegurancaRodoviaria/ArtigosTecnicos/Documents/Artigo_absolute%20motors.pdf e http://www.ansr.pt/SegurancaRodoviaria/ArtigosTecnicos/Documents/Dist_travagem% 20(absolute%20Motors)%20r.pdf
A distância de paragem é a distância percorrida pelo veículo durante o tempo de paragem – que decorre entre o instante em que o condutor tem a percepção de um determinado acontecimento e o instante em que ocorre a paragem do veículo -, correspondendo à soma da distância de reacção com a distância de paragem. A distância de reacção (que constitui uma parte da distância de paragem) é a distância percorrida pelo veículo durante o tempo de reacção (que decorre entre o instante correspondente à posição em que ocorre a percepção de um determinado estímulo externo por parte do condutor e o instante correspondente à posição em que este actua o pedal do travão do veículo). A distância de travagem é a distância percorrida pelo veículo desde o instante em que é actuado o seu pedal do travão até ao instante em que o mesmo deixa de ser actuado, e depende da velocidade a que o veículo segue antes de iniciar a travagem, quadruplicando a primeira se a segunda duplicar. Assim, a distância de reacção aumenta com o aumento do tempo de reacção e com o aumento da velocidade, pelo que, para parar numa determinada distância disponível, quanto maiores forem a velocidade e o tempo de reacção, menos tempo tem o condutor para reagir a qualquer acontecimento externo e maior é a distância de reacção e, portanto, menor é a distância disponível para a travagem.
Resulta de tais conceitos, com clareza, que o aumento da velocidade tem necessária repercussão nos tempos e nas distâncias de reacção, travagem e paragem. Por outro lado, natural e consequentemente, quanto maior a velocidade a que circula um veículo, menor o domínio que o seu condutor tem sobre o mesmo para efectuar desvios ou paragens.
(…)
Assim, e considerando que o local do acidente configura uma recta e que, no momento do acidente, ainda havia luz solar – assim se proporcionando boas condições de visibilidade -, o excesso de velocidade a que seguia o veículo em causa prejudicou a travagem e/ou a adopção de manobra de desvio do animal que seriam aptas a evitar a colisão.»
4.2.8. Tendo-se provado que o condutor do veículo interveniente no acidente com o canídeo, no momento em que se deu o acidente, circulava a uma velocidade de 120 km/hora, num local em que, conforme provado, a velocidade máxima permitida é de 100 km/hora, o mesmo circulava com excesso de velocidade, e esse excesso de velocidade, nas concretas circunstâncias em que se deu o acidente, não é irrelevante no processo causal que levou à colisão do veículo com o canídeo que se deparou em frente do veículo em plena autoestrada.
4.2.9. Conforme bem refere a Senhora Juiz a quo, o tempo de reação diminui à medida que aumenta a velocidade de circulação, de tal modo que, esse tempo de reação é diferente consoante se circule a 100 Km/hora ou menos, ou se circule a 120 Km/hora ou mais.
4.3. Daí que, no caso, a velocidade a que circulava o condutor do veículo não pode deixar de considerar-se como tendo concorrido para a verificação do acidente.
Recorde-se que o elemento básico da responsabilidade é o facto do agente - um facto dominável ou controlável pela vontade, um comportamento ou uma forma de conduta humana - pois só quanto a factos dessa índole têm cabimento a ideia da ilicitude, o requisito da culpa e a obrigação de reparar o dano nos termos em que a lei a impõe, mas, fundamental na responsabilidade por factos ilícitos, por culpa, além da ilicitude (elemento objetivo, o autor agiu objetivamente mal), é essencial concluir que a conduta do lesante se pode considerar reprovável, censurável e, bem assim, aferir, se a conduta do lesado foi a que devia ser ou se, ao invés, também é reprovável, de modo a verificar se existe uma concorrência de culpas.
4.3.1. No caso, feita essa análise critica das circunstâncias dinâmicas em que ocorreu o acidente dos autos, existe uma situação de concorrência de culpas na verificação do acidente.
Na verdade, estando provado que o condutor do veículo propriedade da Autora o conduzia em excesso de velocidade, o acidente ocorrido é também imputável à conduta ilícita e culposa- censurável- do seu condutor.
4.3.2. Por isso, impõe-se fixar a medida da responsabilidade em que as concausas do acidente contribuíram para a sua eclosão, designadamente, para a amplitude dos danos.
Conforme se sumariou no Acórdão do STA, de 03/11/2005, proferido no Proc.0792/05:
«I- Nos termos do art.º 570, n.º 1, do CPC "Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída."
II - Há concorrência de culpas entre "Estradas de Portugal EPE" e um condutor se aquela, apesar de ter colocado diversos sinais de perigo, não sinalizou, com sinalização luminosa (sinalização a que estava obrigada), um obstáculo - que recebeu o impacto de um veículo automóvel - que colocou no meio de uma via aberta à circulação rodoviária, obstruindo-a, e se este circulava pela hemi-faixa esquerda em local onde existia traço contínuo que não poderia transpor (quando deveria circular pela direita), em posição de ultrapassagem (infringindo o sinal existente que a proibia) e, pior que tudo, a uma velocidade de pelo menos 70Km/h (desrespeitando a sinalização que a limitava a 40Km/h) e que, objectivamente, na altura era inadequada (art.º 24 do CE) face ao denso nevoeiro que se fazia sentir (que não permitia a visibilidade para além de 15/20 metros), ser noite e não haver qualquer iluminação pública.
III - Tendo em consideração o peso relativo de cada um desses comportamentos entende-se como razoável concluir que cada um deles contribuiu para o sinistro em percentagens iguais (50%).»

4.3.3. Havendo um concurso de causas como determinantes de um acidente de viação, a operação de fixação da proporção em que cada um dos responsáveis contribuiu para a produção dos danos verificados, é uma tarefa difícil, a maior parte das vezes, impossível de realizar com rigor cientifico, mas por mera aproximação.
4.3.4. Recorde-se que o acidente em causa nestes autos, deu-se quando o veículo propriedade da autora, e conduzido pelo seu marido, em 02/06/2019, pelas 20h35m, circulava a 120 Km/hora, na autoestrada n.º ... (A...), no sentido Alfena-Matosinhos, ao km 14,480, no concelho de Valongo, onde a velocidade máxima permitida era de 100 Km/hora, cujo pavimento estava em bom estado de conservação e quando ainda havia luz solar, o seu condutor foi surpreendido de forma súbita e inesperada, por um canídeo de médio porte que se atravessou à sua frente, contra o qual embateu na parte frontal esquerda do veículo- vide factos assentes nas alíneas A a J do elenco dos factos provados.
4.3.5. Os factos provados, tendo em conta a dinâmica do acidente, demonstram que houve a concorrência de culpa do condutor do veículo na produção do acidente e na extensão dos danos.
4.3.6. No caso, contudo, salvo melhor opinião, afigura-se-nos, que a causa principal que determinou a verificação do acidente em discussão, foi o surgimento súbito do canídeo na A..., quando por ali circulava o veículo da Autora. Porém, não pode deixar de relevar na dinâmica do acidente, o facto de o condutor do veículo circular a uma velocidade superior em 20 Km à que era permitida no local, quando, como bem se nota na sentença recorrida, o aumento da velocidade diminui o tempo de reação do condutor a um obstáculo que surja.
E esse facto não é irrelevante, quando a própria velocidade regulamentar prevista para o local já é uma velocidade elevada- 100 Km/hora.
4.3.7. Assim, perante o recorte das circunstâncias em que se deu o acidente dos autos, afigura-se-nos adequado estabelecer em 30 % a contribuição do condutor do veículo interveniente no acidente, para a sua eclosão e para os danos daí resultantes- por circular acima do limite máximo permitido de velocidade e nessa medida ter contribuído para o agravamento dos danos que eclodiram em consequência da colisão com o canídeo surgido inopinadamente na faixa de rodagem por onde aquele circulava.
E em 70% a contribuição dada pelo surgimento do canídeo em plena autoestrada, atravessando a faixa por onde circulava o veiculo da autora, da direita para esquerda, de forma súbita, em violação dos deveres que impendiam sobre a Ré CC de garantir uma circulação segura naquela autoestrada.
Debrucemo-nos, agora, sobre a concreta indemnização a atribuir à Apelante pelos danos que alega ter sofrido.
(i)Da reparação dos danos sofridos pelo veiculoo da Autora
4.3.8. Como consequência direta e necessária do acidente de viação, e conforme se deu como assente, o veículo da Apelante sofreu danos nas seguintes componentes da sua parte frontal: para-choques e respetiva grelha, friso, farol de nevoeiro esquerdo, guarda-lamas esquerdo e respetiva tira, cobertura da cave da roda esquerda, travessa superior, suporte do para-choques, conduta de ar esquerda, carga do ar condicionado, anticongelante.
4.3.9. O valor da reparação do veículo, incluindo mão-de-obra de chapa, mecânica e pintura, demanda a importância de a € 2.392,65, conforme também se deu como provado.
5. Considerando que a responsabilidade da Ré CC pelo acidente é de 70%, sendo os restantes 30% assacáveis ao condutor do veículo interveniente no acidente, sobre a Ré impende a obrigação de ressarcir a Autora no montante de 1.674,75€.
(ii) Da reparação dos danos de privação do uso
5.1. Precise-se que a indemnização pelo denominado dano da privação do uso de viatura não tem merecido tratamento uniforme na doutrina e na jurisprudência, surpreendendo-se uma clivagem entre aqueles que defendem que este dano pode assumir natureza de dano patrimonial ou não patrimonial, conforme se projete numa ou noutra das esferas jurídicas do lesado (cfr.Acs. do TRG de 27/10/2016, Proc. 224/14.3T8FAF.G1; RC. de 06/02/2018, Proc. 189/16.7T8CDN.C1, in base de dados).
Acresce que mesmo entre aqueles que reconhecem a natureza de dano patrimonial ao dano da privação de uso assiste-se a novo dissenso.
5.2. Na verdade, entre aqueles que aceitam a natureza patrimonial deste concreto dano, assiste-se a uma corrente que defende para que exista direito à indemnização pelo dano da privação do uso da viatura sinistrada, não basta a alegação e prova da privação do uso desta, mas é ainda necessária a prova específica de que dessa privação do uso resultou um autónomo ou específico dano patrimonial para o lesado - trata-se do entendimento doutrinário e jurisprudencial tradicional que assenta este entendimento no comando do art.º 562º do CC, sustentando que ao dever de indemnização não basta que o evento seja suscetível de, em abstrato, produzir danos ao lesado, mas é necessária a prova dos concretos e específicos danos sofridos.
5.3. Já outra corrente considera que embora a privação do uso de um veículo sinistrado constitua um dano patrimonial indemnizável, por se tratar de uma ofensa ao direito de propriedade sobre aquele, propugna que à indemnização desse dano pela privação do uso não chega a alegação e prova da privação, mostrando-se ainda necessário que o autor alegue e prove que pretendia usar a coisa, ou seja, que dela pretendia retirar as utilidades (ou algumas delas) que esta normalmente lhe proporcionaria se não estivesse dela privado pela atuação ilícita do lesante (Neste sentido, Acs. STJ. de 18/11/2008, Proc. 08B2732, RP de 03/05/2011, Proc. 2618/08.6TBOVR.P1, in base de dados da DGSI ).
5.4. No entanto, uma última corrente que, cremos, ser atualmente maioritária e à qual aderimos, sustenta que a privação do uso de um veículo sinistrado constitui um dano patrimonial indemnizável por se tratar de uma ofensa ao direito de propriedade e caber ao seu proprietário optar livremente utilizá-lo ou não (art. 1305º do CC), uma vez que esse direito de dispor e de usar do veículo é inerente ao direito de propriedade detido pelo proprietário sobre a viatura sinistrada e, inclusivamente, é-lhe assegurado e reconhecido pelo art.º 62º da CRP, devendo a privação desse uso ser economicamente valorizável, se necessário, com recurso à equidade.
5.5. Nesta perspetiva, que é a nossa, “o simples uso constitui uma vantagem suscetível de avaliação pecuniária, pelo que a sua privação constitui naturalmente um dano” (cfr. Menezes Leitão, “Direito das Obrigações”, vol. I, 4ª ed., Almedina, pág. 317; No mesmo sentido Abrantes Geraldes, “Temas de Responsabilidade Civil – Indemnização do Dano da Privação do Uso”, 2ª ed., Almedina), de natureza patrimonial, indemnizável, ou dito por outras palavras, o proprietário privado por um terceiro do uso de uma coisa tem, por esse simples facto e independentemente da prova cabal da perda de rendimentos que com ela obteria, direito a ser indemnizado por essa privação, indemnização essa a suportar por quem leva a cabo a privação em causa e ao lesar, assim, o direito de propriedade sobre a coisa, retirando-lhe a livre disponibilidade sobre a mesma.
Conforme se pondera no aresto do STJ. de 09/03/2010, “quando a privação do uso recaia sobre um automóvel, bastará que resulte dos autos que o seu proprietário o usaria normalmente (o que na generalidade das situações concretas constituirá um facto notório ou poderá resultar de presunções naturais a retirar da factualidade provada) para que possa exigir-se ao lesante uma indemnização a esse título, que corresponderá, regra geral, ao custo do aluguer de uma viatura de idênticas características, mesmo que o lesado não tenha recorrido ao aluguer de um veículo de substituição, uma vez que bem pode acontecer que não tenha disponibilidades económicas para isso, sem que tal signifique que não sofreu danos ou prejuízos pela privação do seu veículo. Não necessita, por isso, de provar direta e concretamente prejuízos efetivos, como, por exemplo, que deixou de fazer esta ou aquela viagem de negócios ou de lazer, que teve de utilizar outros meios de transporte (táxi, transportes públicos, etc.) com o custo correspondente. Tudo isso estará abrangido pela privação do uso do veículo a ressarcir nos termos referidos ou, em última análise, se necessário, segundo critérios de equidade, sem prejuízo de se poder, evidentemente, alegar e provar outros danos emergentes ou lucros cessantes” (Neste sentido Acs. STJ. de 28/09/2011, Proc. 2511/07.8TACSC.L2.S2; 06/05/2008, Proc. 08A1279; RL. de 21/05/2009, Proc. 1252/08.3TBFUN.L1; 20/12/2017, Proc. 1817/16.0T8LSB.L1-2, in base de dados da DGSI).
5.6. No caso dos autos, apurou-se que a viatura em causa era utilizada pela Autora, aqui Apelante, nas suas deslocações, quer para o trabalho, quer para o lazer e que a aquela viatura, em consequência do acidente, ficou incapaz de circular desde a data do acidente – 02/06/2019.
5.7. A Apelante alegou que o aluguer de uma viatura similar ao veículo sinistrado demandava uma quantia nunca inferior a € 50 por dia, referindo tratar-se de uma quantia inferior à usada no mercado de veículos de aluguer para uma viatura idêntica.
5.8. Contudo, nenhuma prova foi feita quanto ao valor de aluguer diário de uma viatura similar ao veículo sinistrado.
5.9. A Apelante alegou que não ordenou a reparação do veículo porque não dispunha de dinheiro para a custear, o que previa conseguir no final de agosto de 2020, quando reunisse as poupanças necessárias, e nesse conspecto, liquidou a quantia indemnizatória que pediu a esse título em de 3.400,00€, com o que fixou o limite temporal e quantitativo a receber a este título.
6. Assim, de relevante sobre esta matéria, apurou-se que o veículo da Autora se encontra imobilizado desde a data do acidente e que o mesmo não foi ainda reparado, encontrando-se parado na garagem da autora, sendo que aquele veículo era utilizado pela mesma para se deslocar para o trabalho e para as suas atividades de lazer.
6.6. A propósito do quantum indemnizatório diário devido ao apelante pela privação do uso do veículo do seu segurado, que aquela lhe satisfez, Menezes Leitão preconiza que essa quantia indemnizatória pode ter como referencial o valor locativo do veículo ( cfr. ob. cit).
No entanto, a indemnização pela indisponibilidade do veículo não deverá ser pautada, em termos estritos e exatos, pelo preço de aluguer praticado pelas empresas de aluguer de veículos automóveis para uma viatura da mesma classe da acidentada, dado que nesse preço/dia de aluguer estão necessariamente contempladas as despesas de exploração da empresa de aluguer e o lucro do empresário.
Segundo Paulo Mota Pinto “…o dano da privação do uso deverá ser quantificado em valor que pode ser obtido de uma das duas formas: ou (como de “cima para baixo”) a partir dos custos de um aluguer durante o lapso de tempo em causa, “mas depurados” (…), excluído o lucro do locador e custos gerais como os gastos com a manutenção da frota, as provisões para períodos de paragem dos veículos, as amortizações, etc.”, concretizando que “no direito alemão os valores constantes das referidas tabelas rondam cerca de um terço dos custos do aluguer normalmente praticados; ou (como “de baixo para cima”), designadamente, a partir dos custos de capital imobilizado necessário para obter a disponibilidade de um bem, como aquele durante o período de tempo necessário (por ex. os custo necessários para constituir uma reserva de um bem, como o que está em causa)”- (cfr. Paulo Mota Pinto, “Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo”, vol. I, Almedina, pág. 592.)
Já segundo Maria da Graça Trigo, “…o valor locativo há-se servir como teto máximo para efeitos indemnizatórios”; “Até esse montante, o juiz deverá encontrar um valor equitativo ad hoc” ( cfr. Maria da Graça Trigo, “Responsabilidade Civil – Temas Especiais”, Almedina, 2015, pág. 64.)
6.2. Cientes que a indemnização diária pela privação do uso da viatura deverá ser fixado por recurso à equidade (n.º 3 do art. 566º do CC), tendo por referência o valor locativo cobrado pelas empresas de rent a car para uma viatura de características iguais/semelhantes às da viatura da Apelante, deduzidos dos valores corretivos, com vista a subtrair-se os custos de exploração da empresa de aluguer e o lucro desta, no caso, atendendo à importância reclamada, ou seja, 3.400,00€ pela privação do uso do veículo, durante, pelo menos, 14 meses , e dos preços que são cobrados pela empresas de rent a car,que, como é do conhecimento geral da vida, nunca serão inferiores a pelo menos 30€ por dia para uma viatura do tipo da detida pela Apelante, a quantia peticionada pela mesma corresponde a menos de 10€ por cada dia em que o veículo esteve paralisado.
6.3. Recorde-se que a Apelante apenas pediu que lhe fosse paga a quantia que reclama pela privação do uso de veículo, desde a data do acidente até ao final do mês de agosto de 2020, altura em que procederia à reparação do veiculo em causa, por nessa data contar dispor das necessárias poupanças para realizar a reparação.
Assim, a quantia peticionada pela Autora para compensação do dano da privação de uso não é desajustada.
6.4. Por esta quantia de € 3.400,00, a Apelada apenas é responsável na medida da sua contribuição para a verificação do acidente, que como resulta do que supra se fixou, foi de 70%, pelo que impende sobre a mesma a obrigação de pagar à Apelante, a esse título, a quantia de 2.380,00€.
6.5. Assim, à quantia de 2.380,00€, acresce a quantia de 1.674,75€ já arbitrada, perfazendo a quantia global dos danos sofridos pela Apelante a importância de 4.054,75€, a que acrescem juros de mora, contados desde a citação até efetivo e integral pagamento.
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6.6. Conforme resulta da matéria de facto assente nas alíneas Z, AA e BB da fundamentação de facto, a Ré celebrou com a Interveniente Principal A..., S.A., contrato de seguro titulado pela apólice n.º ..., pelo qual a primeira transferiu para a segunda, até ao limite de 30 milhões de euros por sinistro, a sua responsabilidade civil por eventuais danos causados a terceiros em virtude da sua atividade, ficando convencionado que, por cada sinistro participado, a ré suportaria uma franquia de 10% do valor peticionado por danos materiais, com o mínimo de € 2.500,00 e o máximo de € 25.000,00.
6.7. Nos contratos de seguro de responsabilidade civil, o segurador cobre o risco de constituição, no património do segurado, de uma obrigação de indemnizar terceiros (art.º 137º da LCS), garantindo a obrigação de indemnizar, nos termos acordados, até ao montante do capital seguro por sinistro, por período de vigência do contrato ou por lesado (art.º 138º, n.º 1 do LCS).
6.8. Decorre do que se vem dizendo, que nos casos de contrato de seguro de responsabilidade civil, como é o caso do contrato de seguro celebrado entre a Ré e a seguradora Interveniente esta obriga-se a indemnizar, nos termos estabelecidos no contrato de seguro, terceiros em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato – o sinistro – de que resulte a constituição do tomador ( a CC) na obrigação de indemnizar esses terceiros, de onde se segue que a obrigação típica assumida pela seguradora de indemnizar o terceiro está dependente, por um lado, da circunstância do tomador de seguro se ter constituído perante o terceiro na obrigação de o indemnizar, o que pressupõe, no caso dos autos, que se verifiquem os requisitos gerais da constituição deste em responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos perante esse terceiro (requisitos esses enunciados nos arts. 483º e ss. do CC e na Lei n.º 67/2007), e por outro, que esse evento constitutivo da responsabilidade do tomador em responsabilidade civil perante o terceiro tem de ter por causa o evento cujo risco é seguro nos termos do contrato de seguro celebrado – sinistro.
6.9. Deste modo, no caso da Ré CC se ter constituído em responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos perante terceiros e verificado que seja que a causa da constituição daquela em responsabilidade civil é o evento aleatório (sinistro) que nos termos do contrato de seguro, foi assumido pela seguradora, esta fica obrigada a satisfazer a indemnização devida pela Ré CC ao terceiro lesado, nos precisos termos e limites fixados no contrato de seguro.
7. Note-se que estando-se, no caso, na presença de um contrato de seguro de responsabilidade civil facultativo, essa obrigação da Interveniente Principal A..., S.A., satisfazer a indemnização devida pela Ré CC (tomador) ao terceiro lesado, nos termos e limites estabelecidos no contrato de seguro, ao contrário do que acontece no contrato de seguro obrigatório (art. 146º, n.º 1 da LCS), não desonera a Ré CC da sua responsabilidade civil perante o terceiro, uma vez que o direito indemnizatório do terceiro lesado não nasce voluntária e diretamente do contrato de seguro, mas antes da consumação do evento lesivo cujo risco de ocorrência naquele contrato se previra, pelo que a existência do contrato de seguro facultativo não libera o tomador do contrato de seguro (a Ré CC) e responsável civil pela satisfação devida ao terceiro lesado, de ser condenada no pagamento da indemnização devida a esse terceiro lesado, ainda que o pagamento dessa indemnização por parte da seguradora, também demandada (tanto assim que nos presentes autos é interveniente principal e, por isso, tem o estatuto de parte demandada) extinga a obrigação do tomador Ac. R... de 23/03/2017, Proc. 255/14...., in base de dados da DGSI..
7.1. Acontece que, resultando do contrato de seguro celebrado entre a Ré CC e a Interveniente Principal A..., S.A., que a primeira transferiu para a segunda, até ao limite de 30 milhões de euros por sinistro, a sua responsabilidade civil por eventuais danos causados a terceiros em virtude da sua atividade, quantia bem superior ao montante indemnizatório devido à Apelante em consequência do sinistro objeto dos autos, mas tendo ficado convencionado que, por cada sinistro participado, a Ré CC suportaria uma franquia de 10% do valor peticionado por danos materiais, com o mínimo de € 2.500,00 e o máximo de € 25.000,00, importa determinar se a condenação das Rés é solidária ou se a Interveniente Principal só poderá ser condenada para além do valor da franquia, havendo solidariedade passiva apenas para além do valor da franquia.
Coligido o contrato de seguro celebrado entre a CC e a A..., S.A., verifica-se que não foi pactuado entre ambas que a franquia estabelecida não era oponível a terceiros, o que significa que a mesma pode ser oposta à Apelante- terceira lesado -, respondendo perante ela a Apelante, até ao valor de 2.500€, e ambas as Rés solidariamente, em relação ao que excede aquele valor, como resulta do disposto no artigo 147.º do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16/94, no qual se estabelece que:
«1 - O segurador apenas pode opor ao lesado os meios de defesa derivados do contrato de seguro ou de facto do tomador do seguro ou do segurado ocorrido anteriormente ao sinistro.
2 - Para efeito do número anterior, são nomeadamente oponíveis ao lesado, como meios de defesa do segurador, a invalidade do contrato, as condições contratuais e a cessação do contrato.»

7.2. Aqui chegados, resulta do exposto, impor-se concluir pela parcial procedência da presente apelação e, em consequência, revogar a sentença recorrida e condenar a Ré CC a pagar á Autora a quantia global de € 4.054,75€, condenando-se solidariamente a Interveniente Principal A..., S.A., com a Ré CC, a pagar esse valor indemnizatório na parte em que excede a quantia de 2.500€, tudo acrescido de juros de mora à taxa de 4% ao ano, desde a citação até integral pagamento.
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IV - DECISÃO
Nestes termos, acordam, em conferência, os juízes desembargadores do Tribunal Central Administrativo Norte em conceder parcial provimento ao recurso e, nessa conformidade, revogam a decisão recorrida e em substituição,:

a - introduzem as alterações supra identificadas à matéria do julgamento de facto realizado pela 1.ª Instância;
b - condenar a Ré CC a pagar á Autora a quantia global de € 4.054,75€ ( quatro mil e cinquenta e quatro euros e setenta e cinco cêntimos), condenando-se solidariamente a Interveniente Principal A..., S.A. com a Ré CC, a pagar esse valor indemnizatório na parte em que excede a quantia de 2.500€, tudo acrescido de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, desde a citação até integral pagamento.
c - quanto ao mais, absolvem as Rés do pedido.
Custas por pela Apelante e pelas Apeladas, na proporção do respetivo decaimento (artigo 5127.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
Notifique.
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Porto, 28 de outubro de 2022
Helena Ribeiro
Nuno Coutinho
Ricardo de Oliveira e Sousa