Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00404/22.8BECBR
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:02/10/2023
Tribunal:TAF de Coimbra
Relator:Maria Fernanda Antunes Aparício Duarte Brandão
Descritores:PROCESSO CAUTELAR;SUSPENSÃO DA EFICÁCIA DO ACTO;
SANÇÃO DISCIPLINAR DE DESPEDIMENTO; ANTECIPAÇÃO DO JUÍZO SOBRE A CAUSA PRINCIPAL;
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO;
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Procedimento Cautelar Suspensão Eficácia (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

RELATÓRIO
AA, residente na Rua ..., ... Coimbra, instaurou processo cautelar contra o MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, com sede na Av. ..., ..., ... ..., pedindo que seja declarada a suspensão da eficácia do ato que determinou a aplicação da sanção disciplinar de despedimento, por se encontrarem verificados os requisitos do art.º 120.º do CPTA.
Por sentença proferida pelo TAF de Coimbra, em antecipação do juízo sobre a causa principal, foi julgada improcedente a acção e absolvido o Requerido dos pedidos.
Desta vem interposto recurso.
Alegando, o Autor formulou as seguintes conclusões:
Quanto à antecipação de juízo sobre a causa principal
B) O Recorrente foi notificado de despacho no dia 10 de novembro, datado de 9 de novembro, o qual se transcreve;
C) “Compulsados os presentes autos e atentos os contornos da pretensão material que o Requerente ora visa obter, a título cautelar e provisório, afigura-se-nos que o Tribunal se encontra em condições de poder antecipar o juízo sobre a causa principal, proferindo decisão que constituirá a decisão final desse processo, uma vez que, nos termos exigidos pelo art.° 121.°, n.° 1, do CPTA, o processo principal já foi intentado (processo n.° 395/22.5BECBR), constam dos presentes autos todos os elementos necessários à boa decisão da causa e a simplicidade do caso e/ou a urgência na resolução definitiva do litígio justificarão, em concreto, tal antecipação.
D) Assim, notifique as partes para que sobre tal questão se pronunciem, querendo, no prazo de 10 (dez) dias - art.° 121.°, n.° 1, do CPTA.”
E) No dia 11 de novembro o Recorrente vem, requerer, a declaração de ineficácia dos atos de execução indevida, tendo notificado a parte contrária Ministério da Educação, doravante ME.
F) O ME não tinha apresentado resolução fundamentada, estava a executar a sanção disciplinar, incumprindo, deste modo com o n.° 2 do artigo 128.° do CPTA.
G) O despacho com a advertência que apesar de ter entrado o articulado do Incidente, o prazo para pronúncia, continuava a correr, como já se referiu, não foi notificado ao Recorrente, porém, ainda assim, veio, dizer que antes de ser proferida decisão, o Tribunal deveria apreciar a declaração de ineficácia dos atos de inexecução devida.
H) Vem, o Tribunal apenas, pronunciar-se, em simultâneo com a preleção da sentença, pela não apreciação “Do incidente de declaração de ineficácia dos atos de execução indevida:
I) Considera que a decisão final que infra será prolatada corporiza a convolação do processo cautelar em processo principal-, perde utilidade a apreciação, neste momento, porquanto tal apreciação apenas colheria algum efeito útil se mantivesse o pressuposto de uma regulação meramente provisória dos interesses das partes, o que não sucederá, à luz do mecanismo previsto no art.º 121.º do CPTA.
J) Há uma nítida violação de omissão de pronúncia do incidente, pois, o que Tribunal alegou para não conhecer do incidente não foi sobre o incidente, foi, unicamente por o considerar instrumental em relação à regulação provisória dos interesses das partes;
K) O texto do n.° 1 do artigo 121.° do CPTA é claro ao afirmar “quando, existindo processo principal já intentado, se verifique que foram trazidos ao processo cautelar todos os elementos necessários para o efeito e a simplicidade do caso ou a urgência na sua resolução definitiva o justifique, tribunal pode(.....)
L) Só excecionalmente deve decidir-se pela convolação - isto é, pela substituição do juízo cautelar por um juízo de mérito - quando os interesses envolvidos sejam de grande relevo e se esteja seguro de possuir todos os elementos de facto relevantes para a decisão, a decisão tem de ser fundamentada.
M) Em que factos se baseou para a convolação, como interpretou o conceito de simplicidade e o conceito de urgência. Socorreu-se dos dois, ou apenas de um, e se foi de um, qual, a simplicidade ou a urgência?
N) A decisão de convolação sofre do vício de falta de fundamentação e também de violação do princípio do contraditório, por não ter permitido ao recorrente responder ao articulado de resposta do recorrido ao incidente de declaração de ineficácia dos actos de execução indevida; mas mais do que isso, por ter notificado o recorrido do articulado com expressa advertência de que continuava a decorrer o prazo para as partes se pronunciarem sobre a aplicação do artigo 121.º do CPTA e não ter feito igual advertência ao recorrente;
O) DA CAUSA PRINCIPAL
Efetivamente, diz-nos o artigo 187.º da Lei Geral de Trabalho em Funções Públicas dispõe que “as sanções de despedimento disciplinar ou de demissão são aplicáveis em caso de infração que inviabilize a manutenção do vínculo de emprego público nos termos previstos na presente lei”.
P) Por sua vez, o artigo 297.º daquela lei acrescenta que “o vínculo de emprego público pode cessar em caso de infração disciplinar que inviabilize a sua manutenção”, salientando o n.º 3 deste artigo “a infração disciplinar que inviabilize a manutenção do vínculo, nomeadamente, os comportamentos do trabalhador que: (...) g) dentro do mesmo ano civil, dê cinco faltas seguidas ou dez interpoladas, sem justificação”.
Q) Contudo, ainda que não resultem dúvidas interpretativas dos normativos acima referidos, não decorre automaticamente do cometimento de dez faltas, ou mais, injustificadas, que a entidade empregadora decida pelo despedimento disciplinar.
R) Atento os factos dados como provados, resulta em primeiro lugar, que a ausência é precedida de requerimentos com o objetivo de lecionar em Timor Leste e que esta necessidade advém de uma ordem emitida pelo Superior Provincial da Província Portuguesa da Ordem dos Padres Missionários Capuchinhos, ao qual o recorrente obedeceu, cremos que convicto de que o pedido de licença sem vencimento ia ser autorizado;
S) Como se referiu na ação, a idoneidade do recorrente nunca foi posta em causa, nem poderia, pois não existia qualquer facto concreto ou meramente indiciário de que não era capaz de cumprir a sua missão como docente no caso de lhe ser permitido o regresso ao ensino.
T) Dos factos dados como provados, não existe um único que sustente a inviabilização da manutenção do vínculo de emprego público, pois embora o comportamento do recorrente possa merecer censura pelo descuido em se ter ausentado sem ter obtido a competente autorização, a sua decisão também foi condicionada pela Ordem dada pelo Superior da congregação religiosa a que pertence.
U) Ainda que se saiba que o Tribunal não pode em princípio, sobrepor o seu poder de apreciação ao da autoridade investida de poder disciplinar, apenas, podendo, reservar a sua intervenção aos casos em que a sanção aplicada, revele erro grosseiro, por manifesta desproporção entre a sanção decidida e a falta cometida, neste caso as faltas injustificadas, pode, contudo, no âmbito do erro grosseiro, o tribunal apreciar se houve violação do princípio de proporcionalidade (art. 266, n.° 2 da CRP), na medida em que este princípio necessariamente preside ao exercício de poderes discricionários da Administração, funcionando como seu limite interno” (cfr. Ac. do STA de 20-10-1994, no Proc. n.° 032172).
V) Os factos dados como provados e sobretudo os constantes em 7, 8 e 10, não foram tidos em consideração para apreciação da desproporcionalidade da sanção disciplinar;
W) Não existindo factos suficientes e bastantes que preencham o conceito de inviabilidade de manutenção do vínculo de relação jurídica de emprego público;
X) Padecendo a sentença também de erro de interpretação da norma do artigo 187.° da Lei Geral de Trabalho em Funções Públicas ex vi n.°s 1 e 3 do artigo 297.° da mesma Lei.
Nestes termos e nos melhores de Direito deve o presente recurso proceder e ser dada como improcedente a convolação da causa cautelar com vista a antecipação de juízo sobre a causa principal e,
Quanto à ação principal proceder por provada.
A Entidade Demandada não juntou contra-alegações.
O MP, notificado ao abrigo do disposto no artigo 146º/1 do CPTA, não emitiu parecer.
Cumpre apreciar e decidir.
FUNDAMENTOS
DE FACTO

Na sentença foi fixada a seguinte factualidade:
1) O Requerente obteve, em 2001, a licenciatura em Teologia na Faculdade de Teologia do Instituto Universitário de Ciências Religiosas da Universidade Católica Portuguesa (cfr. doc. n.º 2 junto com o requerimento inicial).
2) O Requerente concluiu, em 2010, o Curso de Profissionalização em Serviço – Educação Moral e Religiosa Católica, tendo lecionado, até ao ano letivo de 2010­2011, a disciplina de Religião e Moral (acordo e cfr. doc. n.º 3 junto com o requerimento inicial).
3) A partir de 2011, e já na posse do Curso de Formação Especializada em Educação Especial – Domínio Cognitivo e Motor, o Requerente passou a lecionar na área de Educação Especial (acordo e cfr. doc. n.º ... junto com o requerimento inicial).
4) O Requerente exerce a profissão de docente desde o ano letivo de 1996/1997 (cfr. doc. n.º ... junto com o requerimento inicial).
5) O Requerente pertence à Ordem dos Capuchinhos (acordo).
6) No ano letivo de 2019-2020, o Requerente encontrava-se colocado a lecionar no Agrupamento de Escolas ..., em ..., no grupo de recrutamento 910 – Educação Especial (cfr. doc. n.º ... junto com o requerimento inicial).
7) Através de requerimento de 29/08/2019, dirigido ao Requerido, mas sem qualquer carimbo de entrada ou comprovativo de envio e receção nos seus serviços, o Requerente expôs o seguinte:
(...) foi convidado pela ordem dos Frades Menores Capuchinhos, entidade com presença Missionária em Timor Leste a desempenhar a atividade missionária e social desenvolvida por esta ordem religiosa em Timor Leste.
Paralelamente a esta atividade, como sou profissionalizado e Professor de Educação Especial Domínio Cognitivo e motor irei, também, desempenhar funções docentes a nível deste grupo disciplinar, em escolas abrangidas por esta Ordem dos Frades Menores capuchinhos. Assim sendo, gostaria de saber da possibilidade de ver tal tempo contabilizado para todos os efeitos legais como tempo de serviço docente, uma vez que prestarei serviço como professor de Educação Especial. Gostaria ainda que me fosse referido qual o procedimento burocrático a realizar caso seja autorizada a referida contagem de serviço
(cfr. doc. de fls. 92 do processo administrativo).
8) Em anexo à exposição que antecede seguiu uma “Declaração”, de 26/08/2019, emitida pelo Frei BB, Superior Provincial da Província Portuguesa da Ordem dos Padres Missionários Capuchinhos, da qual consta, além do mais, o seguinte:
(...) declara, para os devidos efeitos, que AA, professor de Educação Especial e membro da Ordem Religiosa dos referidos Missionários Capuchinhos, está destinado a prestar colaboração, por um tempo indeterminado, na atividade missionária e social realizada por esta Ordem em Timor Leste.
A razão da sua ida para Timor Leste é motivada pela resposta preciosa que pode dar às muitas carências do povo timorense, a partir da sua condição de religioso consagrado na Ordem missionária referida e, particularmente, no campo da sua especialização profissional como professor de Educação Especial. (...)
(cfr. doc. de fls. 91 do processo administrativo).
9) Através de requerimento de 18/12/2019, dirigido à DGAE, mas sem qualquer carimbo de entrada ou comprovativo de envio e receção nos seus serviços, o Requerente expôs e requereu o seguinte:
3.º - Pretende o requerente dedicar-se à sua integração na atividade missionária e social que é realizada em Timor Leste pela Ordem dos Padres Missionários Capuchinhos (Franciscanos Capuchinhos). (...)
5.º - A sua missão a desenvolver ali visando suprir carências do povo timorense, enquanto na condição de religioso consagrado na ordem missionária tem como enfoque principal o ensino de português no estrangeiro e a sua especialização profissional como professor de Educação Especial
(...).
6.º - Assim sendo, certo que se encontra substituído na respetiva escola, de onde resulta que não ocorrerá qualquer perturbação de natureza científico-pedagógica e de continuidade de docência quanto aos alunos de educação especial que acompanharia, fica assim arredada a razão normalmente impeditiva para a formulação de um requerimento visando uma licença sem vencimento de longa duração para além da data de início do ano escolar. (...)
8.º - Assim, ao abrigo do disposto no artigo 107.º do estatuto da carreira docente e tendo em conta o disposto na portaria n.º 281/2012 de 14 de setembro, requer a Vossa Excelência a título vincadamente excecional que seja deferido o seu pedido de licença de longa duração por 3 anos com início no dia 1 de janeiro de 2020 e termo em 31 de agosto de 2022
(cfr. doc. de fls. 93 do processo administrativo).
10) Em 05/02/2020 o Requerente apresentou, através de formulário próprio da DGAE, um pedido de licença sem vencimento para o ensino de português no estrangeiro, ao abrigo da Portaria n.º 281/2012, de 14/09, com a seguinte fundamentação: “Foi convidado a prestar colaboração na atividade missionária e social na Ordem dos Padres Missionários Capuchinhos enquanto professor para prestar apoio pedagógico a alunos do ensino secundário em Timor Leste que pretendem ingressar no Ensino Superior em Portugal. Este pedido é feito apenas nesta data em virtude de ter estado a aguardar resposta da parte da DGAE quanto ao tipo de licença que poderia solicitar. Foi hoje que recebeu tal resposta e daí este pedido ser feito com caráter excecional” (cfr. doc. de fls. 55 e 56 do processo administrativo).
11) Por despacho de 17/02/2020 da Diretora-Geral da Administração Escolar, foi indeferido o pedido de licença sem vencimento, por um ano, referido no ponto que antecede, nos termos do art.º 106.º do ECD, com fundamento em que tal pedido não tinha enquadramento na Portaria n.º 281/2012, de 14/09, que se referia ao ensino de Português no estrangeiro, quando aquilo que o Requerente pretendia era desenvolver atividade missionária no âmbito da Ordem dos Missionários Capuchinhos (cfr. doc. de fls. 52 do processo administrativo).
12) O despacho que antecede foi notificado ao Requerente através do ofício n.º ...99, de 26/02/2020, recebido em 28/02/2020 (cfr. docs. de fls. 1 a 3 do processo administrativo).
13) Em 08/01/2020 o Requerente iniciou um processo de faltas injustificadas ao serviço, tendo-se deslocado, em data não concretamente apurada, para Timor Leste (acordo e cfr. doc. de fls. 132 a 141 do processo administrativo).
14) Através do ofício n.º ...83, de 04/08/2020, foi o Requerente notificado pela Diretora do Agrupamento de Escolas ... (AELC) para “se fazer presente na Escola Sede do Agrupamento de Escolas ... (AELC) (...) até ao próximo dia 11 de agosto de 2020 (3.ª feira), durante o horário de expediente dos serviços administrativos, para tratar de assuntos do seu interesse e relacionados com a ausência de apresentação de comprovativo de justificação de faltas, até à data. No caso de não comparecer, restará subentendida a ausência do desejo de resolver a situação, passando a serem tomadas as medidas judiciais cabíveis” (cfr. doc. de fls. 6 do processo administrativo).
15) Não tendo o Requerente comparecido no AELC nem prestado qualquer outra informação a respeito da sua ausência, foi o mesmo notificado, através de ofício do AELC de 24/09/2020, de que, “de acordo com o quadro legal em vigor, as faltas dadas (de 8 de janeiro de 2020 até à data) estão injustificadas, por não ter sido apresentada a prova prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 71.º do DL n.º 100/99, de 31 de março” (cfr. doc. de fls. 8 do processo administrativo).
16) Em 25/09/2020 a Diretora do AELC emitiu a seguinte “Declaração”:
(...) declara que o docente do GR 910, AA, se encontra em situação de ausência e paradeiro incerto/desconhecido, desde 8 de janeiro de 2020, até à presente data, pelo que solicito a validação do pedido de horário, para o grupo de recrutamento
910, pela manifesta necessidade de apoio especializado aos alunos deste Agrupamento de Escolas e com base nos seguintes fundamentos:
· N/ Ofício n.º ...00, de 24/09/2020 – comunicação de faltas injustificadas por não ter sido apresentada a prova prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 71.º do DL n.º 100/99, de 31 de março. Resta subentendida a ausência do desejo de resolver a situação, passando a serem tomadas as medidas judiciais cabíveis; (...)
· Docente notificado por mim, na qualidade de diretora desta Unidade Orgânica, para se apresentar em dia e hora marcada, nos serviços administrativos, a fim de prestar informações e regularizar a sua situação (...);
· Tentativa de contactos telefónicos e e-mail institucional, sem qualquer sucesso;
· Pedido de LSV – recusada pela DGAE em 20 de fevereiro de 2020 (...)
(cfr. doc. de fls. 10 do processo administrativo).
17) Em 29/12/2020 a Diretora do AELC proferiu despacho a determinar a instauração de processo disciplinar contra o Requerente, ao qual foi atribuído o n.º ...20 (cfr. doc. de fls. 35 do processo administrativo).
18) No âmbito do referido processo disciplinar, prestaram declarações, na qualidade de testemunhas, CC, diretora do AELC, DD, professora do ensino especial no AELC, e EE, aluno do AELC (cfr. autos de inquirição de fls. 59, 60 e 61 do processo administrativo).
19) Em 08/10/2021 a instrutora do processo disciplinar deduziu acusação/nota de culpa contra o Requerente, da qual consta o seguinte:
Artigo único
Desde o dia .../.../2020, até à presente data, 8 de outubro de 2021, o arguido não compareceu a serviço, nem apresentou qualquer tipo de justificação para essa ausência, perfazendo assim um total de 640 dias de faltas injustificadas. Desses dias de faltas
injustificadas, 359 foram dados no ano civil de 2020 e 281 dias no ano civil em curso, de 2021.
Com este procedimento violou o arguido de modo grosseiro, voluntário e intencional, o dever geral de assiduidade, previsto na alínea i) do n.º 2 e no n.º 11 do artigo 73.º da LTFP e bem assim os deveres gerais de prossecução do interesse público, zelo e lealdade, previstos, respetivamente, nas alíneas a), e) e g) do n.º 2 e nos n.os 3, 7 e 9 do referido artigo 73.º da LTFP.
Com a descrita conduta o trabalhador arguido demonstrou um profundo e completo desprezo pelo serviço, revelou ter uma personalidade imprópria e inadequada para o exercício de funções. E quebrou, em definitivo, a relação de confiança que deve existir entre o empregador e o trabalhador.
Com a referida conduta o trabalhador AA cometeu de forma livre, consciente, voluntária, reiterada e continuada, uma infração que inviabiliza a manutenção do seu vínculo laboral, nos termos do disposto nos artigos 187.º e 297.º, mormente no seu n.º 3, alínea g), ambos da LTFP, punida pelas disposições conjugadas dos referidos artigos (187.º e 297.º da LTFP), com a sanção de despedimento disciplinar ou de demissão, que consiste, nos termos dos n.os 5 e 6 do artigo 181.º, conjugado com o disposto nos n.os 1 e 2 do artigo 297.º, ambos da LTFP, no afastamento definitivo do trabalhador do serviço, cessando a sua relação jurídica com o órgão ou serviço.
Nos termos do n.º 4 do artigo 182.º da LTFP, a referida sanção disciplinar acarreta a perda de todos os direitos do trabalhador, salvo quanto à reforma por velhice ou à aposentação, nos termos e condições previstos na lei, mas não o impossibilitam de voltar a exercer funções em órgão ou serviço que não exijam as particulares condições de dignidade e confiança que aquelas de que foi despedido ou demitido exigiam.
Não são conhecidas circunstâncias dirimentes e atenuantes da responsabilidade disciplinar que militem a favor do trabalhador arguido e contra ele milita a circunstância agravante especial, prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 191.º da LTFP, da produção efetiva de resultados prejudiciais para a Escola e para os alunos, que o trabalhador podia ter previsto como
necessários da sua conduta, já que tais faltas implicaram uma sobrecarga para os outros docentes
(cfr. doc. de fls. 62 e 63 do processo administrativo).
20) O Requerente apresentou defesa escrita quanto ao teor da acusação/nota de culpa que antecede, formulando, a final, o seguinte pedido: “(...) deve o presente processo conduzir à aplicação da punição conducente à desobrigação da Administração Pública em manter o atual vínculo jurídico existente, mas não sendo atribuído o efeito da medida disciplinar aplicável, isto é, ficando reconhecido ao trabalhador arguido a sua capacidade e idoneidade profissionais para o exercício futuro de funções docentes em qualquer escola da rede pública ou privada, assim se fazendo justiça e realizando o direito” (cfr. doc. de fls. 82 a 90 do processo administrativo).
21) Foram ouvidas as testemunhas arroladas pelo Requerente na sua defesa escrita, tendo prestado declarações FF, tradutor ao serviço do Vaticano e membro da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos, GG e HH (cfr. autos de inquirição de fls. 114 e 122 a 131 do processo administrativo).
22) Em 09/05/2022 foi elaborado, pela instrutora do processo disciplinar, o respetivo relatório final, no qual foi analisada a defesa apresentada pelo Requerente, foram indicados os factos dados como provados e foi proposta a aplicação da pena de despedimento, nos seguintes termos:
39.º O argumentário apresentado pelo arguido, é manifesto que o mesmo não colhe, porque ainda que tivesse sido o Frei, II, a mandar o arguido para Timor Leste e tivesse sido enviado para o Ministério da Educação a declaração com tal conteúdo, tal declaração só seria apta para justificar a ausência do trabalhador arguido na Escola Básica ... caso tivesse havido, por parte da DGAE, um despacho de deferimento, o que nunca aconteceu. O que sucedeu foi justamente o contrário, o indeferimento do pedido para obter licença sem vencimento, em 20 de fevereiro de 2020, pelo que não poderia ausentar-se das suas obrigações profissionais de docente na Escola Básica ..., como o fez desde o dia .../.../2020 até 08 de outubro de 2021.
40.° Em relação aos pontos 16.°, 17.° e 18.° da defesa, onde se refere a declaração emitida pelo Sr. Frei II, que foi remetida ao Ministério da Educação, a mesma não foi deferida, assim como também não foram deferidos os vários requerimentos enviados e a concessão de licença sem vencimento de longa duração, que foi indeferida pela DGAE, pelo que o conteúdo do argumentado é improcedente.
(…)
55.° Com a descrita conduta dada por procedente o professor arguido violou o dever geral de assiduidade, previsto na alínea i) do n.° 2 e no n.° 11 do artigo 73.° da LTFP e bem assim os deveres gerais de prossecução do interesse público, zelo e lealdade, previstos, respetivamente, nas alíneas a), e) e g) do n.° 2 e nos n.os 3, 7 e 9 do referido artigo 73.° da LTFP.
56.° O professor arguido atuou com grave desinteresse pelo cumprimento dos deveres funcionais, atentou gravemente contra a dignidade e prestígio da função pública, sobrevalorizando a sua função de membro da Ordem dos Capuchinhos em detrimento da sua função de funcionário público.
(…)
59.° Atendendo aos critérios gerais enunciados nos artigos 184.° a 188.° da LTFP, a sanção disciplinar aplicável ao caso aqui em apreço é a de despedimento disciplinar ou demissão, prevista nos artigos 187.° e 297.°, sobretudo no seu n.° 3, alínea g), ambos da LTFP.
60.° No que concerne à natureza, à missão e às atribuições do órgão ou serviço, as mesmas inserem-se no domínio da prestação de serviços de educação e de ensino.
61.° O cargo e categoria do trabalhador arguido é a de docente, para cujo desempenho se espera e se exige particulares responsabilidades.
62.º A modalidade de emprego público é com vínculo, em regime de contrato de trabalho em funções públicas.
63.º O grau de culpa do arguido é grave.
64.º As circunstâncias em que as infrações foram cometidas foram as supra descritas.
65.º O trabalhador arguido quebrou definitivamente a relação de confiança que o empregador nele depositou e inviabilizou a manutenção da sua relação laboral.
66.º As circunstâncias atenuantes da responsabilidade disciplinar que militam a favor do arguido não são de modo a alterar a sanção aplicável. Contra ele milita a circunstância agravante especial, da produção efetiva de resultados prejudiciais ao serviço e ao interesse geral, que o trabalhador podia ter previsto como necessários da sua conduta, prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 191.º da LTFP.
67.º Em face do supra exposto e depois de tudo visto e ponderado, nos termos do mencionado nos n.os 5 e 6 do artigo 181.º e do artigo 297.º, ambos da LTFP, proponho que ao arguido seja aplicada a sanção disciplinar de despedimento/demissão, cessando o seu vínculo de emprego público
(cfr. doc. de fls. 132 a 141 do processo administrativo, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
23) Remetido o processo disciplinar ao Ministro da Educação, a Inspeção-Geral de Educação e Ciência elaborou a informação n.º I/01732/DSJ/22, de 21/06/2022, na qual, analisado o processo, se propôs a aplicação ao Requerente da sanção de despedimento disciplinar, por verificação da infração prevista na alínea g) do n.º 3 do art.º 297.º da LGTFP (cfr. doc. de fls. 147 a 149 do processo administrativo).
24) Em 21/06/2022 o Ministro da Educação proferiu o seguinte despacho, exarado sob a informação que antecede: “Nos termos e fundamentos de facto e de direito constantes do relatório final do presente processo disciplinar e da presente informação, determino a aplicação ao docente AA, do quadro do AE ..., em ..., da sanção disciplinar de despedimento disciplinar” (cfr. doc. de fls. 147 do processo administrativo).
25) O Requerente foi notificado do despacho que antecede através do ofício n.º ...34, de 28/06/2022 (cfr. docs. de fls. 156 e 157 do processo administrativo).
26) A partir do dia 01/01/2020, o Requerente não apresentou qualquer justificação de baixa médica para as suas ausências ao serviço, pelo que não foi substituído por outro docente no AELC (cfr. doc. de fls. 29 do processo administrativo).
27) O requerimento inicial do presente processo cautelar deu entrada em juízo no dia 26/09/2022 (cfr. doc. de fls. 1 do suporte eletrónico do processo).
Em sede de factualidade não provada o Tribunal exarou:
Não há factos que cumpra julgar não provados com interesse para a decisão da causa, de acordo com as várias soluções plausíveis de direito.




DE DIREITO
Está posta em causa a sentença que acolheu a leitura do Requerido.
Constitui entendimento unívoco da doutrina e obteve consagração legal o de que o objecto do recurso jurisdicional se encontra delimitado pelas conclusões extraídas da motivação, por parte do recorrente, não podendo o tribunal ad quem conhecer de matéria que nelas não tiver sido versada, com ressalva óbvia, dos casos que imponham o seu conhecimento oficioso.
Assim, vejamos,
Questão prévia
Da antecipação do juízo sobre a causa principal -
O Recorrente deu entrada de requerimento de providência cautelar e nos autos desta, foi notificado de despacho no dia 10 de novembro, datado de 9 de novembro, o qual se transcreve;
“Compulsados os presentes autos e atentos os contornos da pretensão material que o Requerente ora visa obter, a título cautelar e provisório, afigura-se-nos que o Tribunal se encontra em condições de poder antecipar o juízo sobre a causa principal, proferindo decisão que constituirá a decisão final desse processo, uma vez que, nos termos exigidos pelo art.º 121.º, n.º 1, do CPTA, o processo principal já foi intentado (processo n.º 395/22.5BECBR), constam dos presentes autos todos os elementos necessários à boa decisão da causa e a simplicidade do caso e/ou a urgência na resolução definitiva do litígio justificarão, em concreto, tal antecipação.
Assim, notifique as partes para que sobre tal questão se pronunciem, querendo, no prazo de 10 (dez) dias - art.º 121.º, n.º 1, do CPTA.”
No dia 11 de novembro o Recorrente requereu a declaração de ineficácia dos atos de execução indevida, tendo notificado a parte contrária/Ministério da Educação.
Neste requerimento o Requerente argumentava que tentara aceder às ofertas de escola na plataforma Sistema Internacional de Gestão de Recursos Humanos de Educação (SIGRHE) para a verificação de horários ainda por preencher na área da sua lecionação e que apesar de inicialmente ter conseguido aceder e não ter concorrido porque não havia vagas, quando tentou de novo aceder, já não conseguiu, tendo concluído que o tinham retirado da plataforma dos itens Concurso Nacional 2022/2023 e Horários/contratação, tendo junto prints para o efeito, requerendo que lhe fosse reposta a possibilidade de acesso à plataforma para, caso houvesse vagas, pudesse concorrer.
O ME não tinha apresentado resolução fundamentada e estava a executar a sanção disciplinar, incumprindo, deste modo com o n.° 2 do artigo 128.° do CPTA.
Ora, consultados os autos, verifica-se que por movimentação processual o Recorrido/Ministério da Educação tinha sido notificado pelo Tribunal do Incidente de declaração de ineficácia dos atos de execução indevida no dia 14 de novembro, e de despacho judicial (não notificado ao ora Recorrente) no qual se ordenava que sem prejuízo do determinado no despacho anterior e do prazo nele fixado para pronúncia das partes, leia-se despacho datado de 9 de novembro sobre Juízo de antecipação da causa principal, para, querendo, se pronunciar, igualmente sobre o incidente de declaração de ineficácia dos atos de execução indevida apresentado pelo Requerente, no prazo de 5 dias.
Para o efeito o Recorrido foi notificado do articulado apresentado pelo Recorrente (Incidente de declaração de ineficácia dos atos de execução indevida).
No dia 21 de novembro o Requerido/ME respondeu ao articulado do incidente, tendo invocado que com a suspensão da eficácia do ato administrativo de despedimento disciplinar e considerando o regime contratual do docente, de Quadro de Zona Pedagógica, este deveria ter-se apresentado ao serviço no estabelecimento escolar onde foi colocado para os devidos efeitos.
Contudo, apesar desta alegação o ME indica que “Atualmente, na plataforma SIGHRE (separador “Reposicionamento”) aparece o n.º do docente, o nome do docente, n.º do documento e na fase de preenchimento- ANULADO (doc....). Foi colocada a seguinte informação: “sanção disciplinar-despedimento”. Foram tomadas diligências para disponibilizar o acesso ao docente das opções anteriormente pretendidas na plataforma SIGHRE, aguardando a abertura do separador Reposicionamento- Atualização 2022 de modo a poder reverter a situação do docente (Doc. ...).”.
A esta resposta do ME nem sequer teve oportunidade o Recorrente de responder, mais, não fosse ao abrigo do princípio do contraditório, pois, o prazo de 5 dias com dilação terminava no dia 29 de novembro e ficou prejudicado pela sentença notificada no dia 28 de novembro.
Como já atrás se referiu, o despacho judicial datado de 11 de novembro no qual ordenava “Sem prejuízo do determinado no despacho anterior e do prazo nele fixado para pronúncia das partes, (…), apenas foi notificado ao ME.
No seguimento do despacho que considerava poder antecipar o juízo sobre a causa principal, o Recorrente veio, dentro do prazo de dez dias ordenado no mesmo despacho, no dia 24 de novembro, com requerimento, pugnar que antes de ser proferida decisão, o Tribunal deveria apreciar a declaração de ineficácia dos atos de execução indevida, fundamentando esta sua posição.
Recebida a sentença verifica-se que quanto à antecipação do juízo sobre a causa principal alega a Senhora juíza que as partes apesar de notificadas por despacho judicial de 9 de novembro para se pronunciarem, querendo, sobre a possibilidade de antecipação do juízo sobre a causa principal, ao abrigo do disposto no art.° 121.° do CPTA, nada disseram.
Ora, o despacho com a advertência que apesar de ter entrado o articulado do Incidente, o prazo para pronúncia, continuava a correr, como já se referiu, não foi notificado ao Recorrente; porém, ainda assim, este veio, dizer que antes de ser proferida decisão, o Tribunal deveria apreciar a declaração de ineficácia dos atos de inexecução devida.
Sendo certo que o Recorrente não se opôs expressamente à antecipação do juízo sobre a causa principal, dentro do prazo ordenado para se pronunciar, sempre deveria ter sido notificado de que, pelo menos, no entender do Tribunal perdeu utilidade a apreciação do incidente e de lhe ser dado o direito ao contraditório e de seguida, a manter-se a posição da convolação, ser proferida a sentença.
O Tribunal assim não entendeu.
Vem, apenas, pronunciar-se, em simultâneo com a prolação da sentença, pela não apreciação “Do incidente de declaração de ineficácia dos atos de execução indevida:
Considera que a decisão final que infra será prolatada corporiza a convolação do processo cautelar em processo principal -, perde utilidade a apreciação, neste momento, porquanto tal apreciação apenas colheria algum efeito útil se mantivesse o pressuposto de uma regulação meramente provisória dos interesses das partes, o que não sucederá, à luz do mecanismo previsto no art.º 121.º do CPTA.
O Recorrente discorda deste entendimento e, quanto a nós, bem.
Na verdade há uma nítida violação de omissão de pronúncia do incidente, pois, o que o Tribunal alegou para não conhecer do incidente não foi sobre o incidente, foi, unicamente por o considerar instrumental em relação à regulação provisória dos interesses das partes, descurando qualquer ilegalidade que tenha havido por parte do ME ao não acolher a suspensão da eficácia do ato impugnado.
Aliás, o próprio ME ainda que venha alegar que o Recorrente se deveria ter apresentado na Escola, acaba por admitir que tem de regularizar o acesso do docente à plataforma.
Pelo que mais não fosse por esta aceitação implícita do ME de que efetivamente não assumiu a não prossecução do ato suspenso, deveria o incidente ter sido decidido em despacho autónomo.
Como alegado, sobrepôs o Tribunal a figura do juízo de antecipação sobre a causa principal à verificação dos pressupostos do Incidente.
O incidente teria de ser apreciado e posteriormente, o Tribunal, poderia manter o despacho sobre a antecipação do juízo sobre a causa principal.
Aliás o texto do n.° 1 do artigo 121.° do CPTA é claro ao afirmar “quando, existindo processo principal já intentado, se verifique que foram trazidos ao processo cautelar todos os elementos necessários para o efeito e a simplicidade do caso ou a urgência na sua resolução definitiva o justifique, o tribunal pode (.....). Ou seja, a norma é bem explícita ao dizer “se verifique que foram trazidos ao processo cautelar todos os elementos necessários para o efeito”
Sucede que a ineficácia de atos de execução indevida faz parte do processo cautelar, e nesta sede tem de ser decretado ou indeferido. A proibição de executar o ato administrativo mantém-se até que seja proferida decisão sobre o pedido de suspensão da eficácia.
Ora, o Requerido/ME procede à execução indevida quando executa a sanção disciplinar, sem ter emitido resolução fundamentada, como foi o caso dos autos.
Por outro lado, o próprio despacho sobre a antecipação do juízo sobre a causa principal - constam dos presentes autos todos os elementos necessários à boa decisão da causa e a simplicidade do caso e/ou a urgência na resolução definitiva do litígio justificarão, em concreto, tal antecipação - não está devidamente fundamentado, pois que não basta invocar genericamente a simplicidade do caso e/ou a urgência na resolução do litígio.
É pela simplicidade?
É pela urgência?
Ou é pela verificação de ambos os pressupostos?
O que é a simplicidade?
Qual o entendimento que o Tribunal teve ao considerar o pressuposto da urgência?
A urgência é vista da parte de quem instaura a providência ou da parte de quem é requerido?
Resulta de uma ponderação dos interesses envolvidos?
Qual a interpretação que o Tribunal fez dos pressupostos legais atrás assinalados?
E em que factos se baseou para a convolação?
Considerando que só excepcionalmente deve decidir-se pela convolação - isto é, pela substituição do juízo cautelar por um juízo de mérito - quando os interesses envolvidos sejam de grande relevo e esteja seguro de possuir todos os elementos de facto relevantes para a decisão, esta decisão tem de ser fundamentada.
Quanto à decisão fundamentada da convolação, cfr in Comentário ao Código de Processo Nos Tribunais Administrativos, Mário Aroso de Almeida, Carlos Alberto Fernandes Cadilha, 2017, 4.ª edição, Almedina, pág. 988, “ “O esquema gizado supõe que, no contexto da sentença mediante a qual profere decisão final do processo principal, o juiz emita uma decisão, devidamente fundamentada, pela qual determina a convolação do processo cautelar, declarando-se em condições de apreciar o mérito da causa principal. A essa decisão seguir-se-á o julgamento da causa principal, o qual pode ser no sentido da procedência ou da improcedência (....).”
Em suma,
-Há uma nítida violação de omissão de pronúncia do incidente, pois, o que Tribunal alegou para não conhecer do incidente não foi sobre o incidente, foi, unicamente por o considerar instrumental em relação à regulação provisória dos interesses das partes;
-A decisão de convolação sofre do vício de falta de fundamentação e também de violação do princípio do contraditório, por não ter permitido ao ora recorrente responder ao articulado de resposta do aqui recorrido ao incidente de declaração de ineficácia dos actos de execução indevida; mas mais do que isso, por ter notificado o Recorrido do articulado com expressa advertência de que continuava a decorrer o prazo para as partes se pronunciarem sobre a aplicação do artigo 121.º do CPTA e não ter feito igual advertência ao Recorrente;
-O princípio do contraditório, ínsito no artigo 3.° do CPC, aplicável, ex vi, artigo 1.° do CPTA, constitui, inclusive, uma manifestação da tutela jurisdicional efetiva, consagrada no artigo 20.° da CRP, e significa que cada acto praticado durante o processo seja resultante da participação activa das partes;
-O principio do contraditório exprime a garantia de que ninguém pode sofrer os efeitos de uma decisão sem ter tido a possibilidade de ser parte do processo do qual esta provém, isto é, sem ter tido a possibilidade de uma efetiva participação na formação da decisão judicial (direito de defesa). O princípio é derivado da frase latina audi alteram partem (ou audiatur et altera pars), que significa "ouvir o outro lado", ou "deixar o outro lado ser ouvido bem";
-Implica, pois, a necessidade de uma dualidade de partes que sustentam posições jurídicas opostas entre si, de modo que o tribunal encarregado de instruir o caso e proferir a sentença não assume nenhuma posição no litígio, limitando-se a julgar de maneira imparcial segundo as pretensões e alegações de ambas partes;
-O princípio do contraditório tem consagração constitucional (artº 32º/nº 5 da Constituição da República Portuguesa) e significa que nenhuma decisão (mesmo interlocutória) deve ser tomada pelo juiz, sem que previamente tenha sido dada ampla e efectiva possibilidade ao sujeito processual contra o qual é dirigida de a discutir, de a contestar - Acórdão da RC de 17/3/2009, no prc. 63/07.8SAGRD.C1 JTRC;
-A decisão em causa, proferida em violação do princípio do contraditório previsto no artigo 3°/3 do CPC, configura uma decisão surpresa;
-Este é um princípio basilar do processo, que hoje ultrapassou a concepção clássica, que estava associada ao exercício do direito de resposta, assumindo-se como uma garantia de participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o processo, conferindo às partes a possibilidade de influírem em todos os elementos que se liguem ao objeto da causa;
-Como ensina Lebre de Freitas em Introdução ao Processo Civil, Conceitos e Princípios Gerais à luz do Código Revisto, Coimbra Editora, 1996, pág. 96: “a esta concepção, válida mas restritiva, substitui-se hoje uma noção
mais lata de contraditoriedade, entendida como garantia de participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo”;
-Segundo este princípio, o juiz não deve decidir qualquer questão, de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre ela se pronunciarem, pois só assim se assegura a participação efetiva das partes no desenvolvimento do litígio e na busca da justiça da decisão;
-Como se sumariou no Acórdão do STA de 13/11/2007, proc. 0679/07
I-O princípio do contraditório é um dos direitos fundamentais das partes no desenvolvimento do processo já que, garantindo-lhes a possibilidade de intervir em todos os seus actos, permite-lhes defender os seus interesses e influenciar a decisão do Tribunal.
II-E, porque assim, tal princípio só pode ser postergado nos casos de manifesta desnecessidade ou nos casos em que o seu cumprimento poderia pôr em causa, injustificadamente, os direitos de uma das partes ou poderia comprometer seriamente a finalidade que determinou a instauração do processo.
III-O cumprimento do princípio do contraditório é essencial na marcha do processo e que, por isso, a sua violação constitui nulidade uma vez que pode influir no exame ou na decisão da causa a qual, por via de regra, determinará a nulidade de todo o processado que lhe é posterior. - nºs 1 e 2 do art. 201 do CPC;

-Este princípio foi aqui postergado;
-A “decisão surpresa” tem um alcance objetivo: a decisão é desse tipo - e, então, surpreende - quando o tribunal, desviando-se do que seria expectável em face do anteriormente discutido, resolve uma questão sem antes ouvir as partes a seu propósito; por outro lado, a “decisão surpresa” tem a ver com a novidade das questões - e não com a novidade dos argumentos utilizados na resolução delas.
Procedem as conclusões do Apelante.

DECISÃO
Termos em que se concede provimento ao recurso, e, em consequência, anula-se o aresto recorrido e determina-se que, regressando o processo ao TAF a quo, aí se proceda nos termos supra explanados, ficando, assim, prejudicado o conhecimento do fundo da causa.
Sem custas, atenta a ausência de contra-alegações.

Notifique e DN.

Porto, 10/02/2022

Fernanda Brandão
Hélder Vieira
Alexandra Alendouro